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m_004
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05.09.2005
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generation 3
Corpus Processing Extent
Whole
Corpus Processing Edition Level
Status of Source Text
Edited
Modernized on Transcription
no
Document Title
Tácito Português
Document Author ID
Melo, F. M. de
Period by Birthdate
1600-1649
Word Count
35.039
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P. Abdo, T. Menegatti, C. Namiuti, V. Vinha
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Author Name
Francisco Manuel de Melo
Author Year of Birth
1608
Original Text Title
(none)
Genre
Narrative
Immediate Source Edition Level
Edited orthography
Immediate Source Title
Tácito Português
Immediate Source Rights
Livraria Sá da Costa
Immediate Source Editor
Raul Rêgo
Immediate Source Date
1995
Immediate Source Reference
MELO, Francisco Manuel de. Tácito Português (prefácio e leitura do manuscrito por Raul Rêgo). Lisboa, Livraria Sá da Costa, 1995.
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Livro Primeiro
Dom João o segundo do nome
Duque terceiro de Barcelos
Pinto para os tempos a imagem de um Rei cuja história se não compreendera outra maravilha para a sua felicidade por ela não somente não receara competição com os grandes do mundo.
Aqueles que para entenderem ou julgarem acções necessitam de longos triunfos apartem-se da observação destas memórias desenganados tão cedo da sua profunda brevidade; porque os espíritos que espiritualmente se alimentam tiraram do costume as proluxas crónicas pasto da vulgaridade, depois que passado o tempo da contemporização cada pena se fez atrevida.
Nem sangue, nem Pátria, nem respeitos se entrepõem entre mim e a verdade. Afirmá-lo-á o estilo, sendo novo na alteza, admirável na isenção e fará que se escreva, não já como estranho, mas como defunto.
Impertinentes e desorportunas acções não fazem livro nem exemplo. Ditos e feitos ainda que
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pequenos, encaminhados a grandes fins ou opulentos de alta doutrina, são como pedras preciosas que em curto círculo contêm grande valor. Assim procuraremos enriquecer esta obra do mais útil, e não do mais grande. Nasceu
Dom
D.
João em 19 de Maio de 1604, em Vila Viçosa, corte e morada de seus pais, os duques de Bragança,
Dom
D.
Teodósio
II
2.o
e
Dona
D.
Ana de Velasco.
Dom
D.
Teodósio, sétimo duque de seus estados, o era de
Dom
D.
João
I
1.o
do nome, e de
Dona
D.
Catarina, que sendo por título excelente infante e princesa, a quis preferir
Dona
D.
Ana, filha dos Condestables de Castela. Uma e outra nobreza não necessita de sinais e elogios; louva-se e refere-se juntamente.Sobrevivendo aos mais príncipes da Casa Real dos portugueses,
Dona
D.
Catarina, mãe do duque
Dom
D.
Teodósio, filha do infante
Dom
D.
Duarte, em segundo matrimónio, último génito do grande rei
Dom
D.
Manuel, era a última princesa; e quanto não herdou da Majestade do Reino que havia pretendido, herdou da glória dos seus maiores; porque sendo inferior coroa aquela deixação, livre a gozou com excesso por satisfação, das que lhe despojaram.Esta vaidade reconcentrada em fortuna pequena regulou então soberba a doutrina que muitas vezes põe o filho, marido e casa em perigosa contingência. Todo o estudo de
Dona
D.
Catarina era mostrar 03
que, no estado a que o tempo a reduzira, resplandecia nela a dignidade, que ele lhe pode fazer alheia, mas não imprópria.
Alguns entenderam que, depois de perder as esperanças da herança, aborrecia os herdeiros; e o confirmarão por haver aconselhado ao filho se não casasse, preceitos a que muitos anos esteve obediente.
Se nesta opinião permanecesse, quando nasceu
Dom
D.
João seu primeiro neto, entenderíamos que se esquivou desta alegria, ou por maior merecimento a festejara, prevenindo que este havia de ser quem desagravasse sua soberba ou sua justiça.Aos primogénitos da Casa de Bragança esperava antes de nascidos o título ducal de Barcelos a que lhe foi transferido o de Guimarães que alguns gozaram: desta sorte se intitulou duque
Dom
D.
João, em a primeira hora do seu nascimento, celebrado de seus parentes, vassalos e criados com reais demonstrações de contentamento.
Não lhe faltaram pelo discurso da vida aquelas fabulosas lisonjas de muitos que, retrocedendo aos vaticínios, chamam as estrelas ao testemunho da sua adulação, fazendo-as cúmplices do engano, que sacrificam sobre as severas aras do interesse do seu ídolo. A duquesa
Dona
D.
Ana, mulher de singular virtude, não impedida da disciplina da sogra, assistia aos 04
ofícios da ama, aia e mestra do duque de Barcelos, igualmente com o amor de mãe com que o criava. Os que de todo deixam aos servos a criação dos filhos a troco de não quebrantarem a autoridade de príncipes, parece que estimam por mais santas as leis da fortuna do que as da natureza.Nenhuma figura, moldada de disformes matizes, recebe depois tal benefício, como reparo da lisura que mude as primeiras formas. Atentem primeiro os pais que são os relevados que deixam imprimir aos filhos na primeira educação: mais os reis que não só nascem para senhores, mas para mestres da República.
Dom
D.
Diogo de Melo e Manuel do Vale foram aio e mestre de
Dom
D.
João. O primeiro, parente, servidor e criado da Casa, instruindo-o nos bons preceitos da antiga Corte Portuguesa. O segundo, sábio e virtuoso varão, como o tem mostrado sua vida e escritos.
O mais austero requeria o mais constante progresso a criação do duque de Barcelos; grandes razões de Estado, não sei se firmes, lhas solicitaram, omissa ou intercadente.
Fizeram entender ao duque
Dom
D.
Teodósio que criar um filho com majestade era fazê-lo réu dela, e só se contentasse com lográ-lo qual lhe saísse; pois pelo esplendor do carbúnculo perde a vida o animal de que é produzido.05
Política é esta mais difícil que incerta. Persuado-me que grandes fins obrigaram a que se faltasse neste tempo ao custo de tão grande herdeiro, mas é o menos culpável defeito que se pode notar a
Dom
D.
Teodósio, quando os mais lisonjeiros de seu filho não puderam desconhecer as faltas que nele deixou impressa a falta desta observância.
Soube contudo de latinidade com perfeição, ou por mais fácil ou por mais segura, antes a pia que a erudita, sendo-lhe familiar a Escritura Santa, e quase alheia a profana, donde procedeu que com notas de excessivamente eclesiástico lhe sobejava da latinidade tanta notícia quanta lhe faltava da política. Depois, por ocasião do visinho campo, inclinado ao seu exercício o seguiu, solto com todos os preceitos do decoro e temperança.
O duque seu pai, agradado de ver que
Dom
D.
João o imitava em alguns costumes, sendo aqueles os de menor inconvenientes, usava dele como a águia dos filhos, examinando-os nas oposições do sol para legitimá-los. Eram-lhe deleitosas as fadigas que do filho duque de Barcelos lhe referiam, algumas de novo lhe ocasionava com o exemplo, não pondo os olhos do desejo mais que em o ver livre dos riscos daquela idade.
Tem-se levantado a caça com o nome de virtude; não nego a que compreende útil para a
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robustidade que traz a seus aviadores. Os sábios ensinaram que o solar dos vícios é o extremo das coisas. A experiência nos mostra que os homens sumamente inclinados a este exercício declinam facilmente nas ásperas controvérsias, e dispõem os príncipes a contrários efeitos do principado ao ódio dos negócios sem lhes relevar a ocasião dos perigos na saúde e conservação. A esta causa, com alta providência, fingiram os poetas cuja arte foi mestra do mundo, que aquele seu Anfion se convertera em corvo. Não ousaram parece a admoestar de outro modo aos príncipes, que o homem motor da caça, se não na natureza, nos costumes, se convertia em fera.
De Hércules disseram os antigos que despedaçava no berço as serpentes; outros, entendendo compor o crédito com a elegância, se alargaram a contar fabulosas façanhas dos seus Ciros e de Aquiles que chegou a notar os destemidos acometimentos contra todo o animal e contra todo o perigo deste em sua puerícia, por ventura para que houvesse quem cresse ou desprezasse o que se refere dos passados.
A este tempo se repartia já o amor de pai por dois irmãos que, com intervalo quase de um a outro igual, mas não breve, haviam nascido.
Dom
D.
Duarte, o primeiro, o segundo e último
Dom
D.
Alexandre, ambos de curta vida e infelizes.07
Eram todos os medos do duque
Dom
D.
Teodósio, Alexandre, mais brandamente por menor ou de condição mais suave; como a cera que é mais disposta que o aço para receber as formas que lhe aplicam, correspondendo felizmente aos desígnios do artífice; contudo, o amor tem de sujeito divino (se não é de vulgar e humano) aquela grandeza necessária para estas maravilhas. E podem os pais repartir-se a todos os filhos sem quebranto do número ou da quantidade.
Ficam sem ponderação nomeados os irmãos do duque
Dom
D.
João.
Dom
D.
Duarte e
Dom
D.
Alexandre, nomes que vieram em obséquio de outros semelhantes tios-irmãos de Teodósio: mas não quero esquecer-me neste lugar da censura que alguns críticos, e não sei se autores, fizeram a
Dona
D.
Catarina, condenando até nesta acção sua vaidade; porque não contente, disseram eles, dos nomes vernáculos e comuns da pátria, ocultaram os notáveis e peregrinos, como Teodósio por dois imperadores, Duarte, por muitos reis, Alexandre, por um monarca que valeu por muitos. Nas filhas se foi soberba ou devoção, motivos houve de igual instância; porque esquecendo-se as vocações humanas passou as sobrenaturais, dizendo a uma Angélica, a outra Serafina. Certamente foi calúnia: porque a causa dos estranhos nomes dos filhos foi, antes por ventura da imitação dos avós que da eleição dos pais.08
Tantos olhos mais que Argos tem a malícia e a inveja, as quais, ajudadas da suspeita, vão sem termo que farão da culpa?
Então a duquesa
Dona
D.
Ana de Velasco trocou, com fácil acidente, seu grande estado por melhor reino, falecendo de vinte e seis anos, acompanhados de infinitas virtudes; e, se foi grande a lástima que deixou, foi maior o exemplo.
Dom
D.
Teodósio, com idade e saúde florescente, assim se penetrou da mágoa ou do desengano, que em breves dias pereceu e chegou de todo àqueles efeitos a que a saúde e a idade podiam levá-lo.
O traje e exercício, conformes com a dor e pensamento, fizeram que usasse antes o seu paço à observância da religião do que parecia observar a modéstia do príncipe recolhido.
Muitos julgaram excesso a compostura a que reduziu sua pessoa e estado; a ele não, porque não apartava os olhos do grande fim a que caminhava, pois só as vias que lá o conduzissem mais seguro elegeu por mais decentes.
De ordinário os homens não encontram a sublimidade da virtude ao que aspiram, porque pretendem achá-la por um modo equívoco entre a vida contemplativa e a política, cujo composto não guarda a lei do fado, antes confundidos os termos ou contradição cuja variedade encontram, sucede
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que o desengano toma o sabor do mundo, e este também se destempera pelo desabrimento daquele. Não lhe ficava ao duque
Dom
D.
Teodósio na terra outra vontade que pudesse regular suas acções, senão a da duquesa sua mãe, a quem sempre obedeceu com igual afeição que respeito; mas a idade de
Dona
D.
Catarina já a impossibilitava para escolher com advertência e mandar com constância os empregos convenientes. Desta sorte, atenuados os espíritos pela porfia dos anos, com mostras de grande piedade, só aquela vez se viu humilhada no sepulcro.
Apertou de novo a melancolia deste sucesso os cordiais da severidade a Teodósio. Julgando-se duas vezes viúvo pelas mortes da mãe e da esposa, tanto apertava na aspereza que por satisfazer ao sentimento devido aos mortos começou a faltar ao agasalho também devido aos vivos.
Os moços têm física contradição com os anos provectos. Por si mesma é dissemelhante, e por isso desagradável da mocidade a velhice; tolera-se quando artificialmente se desassombram as carrancas dos dias, comunicando com alegria os velhos aos mancebos. A falta desta destreza faz que os filhos, apartando-se do trato dos pais, quando menos os amam as mais das vezes no lugar do amor que lhes deviam acomodam por viciosos outros objectos.
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Vemos que as aves e os animais não desamparam suas crias, nem lhes são molestas; donde procede que enquanto se não conhecem bem instruídas em suas próprias faculdades lhe assistem sempre. Só o homem, obrigado a dar e receber melhor disciplina, parece que reprova sua imagem, não cedendo como é justo à condição do mais antigo a ignorância do mais moderno parto da natureza.
Neste estado se achava a Casa de Bragança no ano de 1619, quando um público acidente pode alterar sua severidade.
Resolveu El-Rei
Dom
D.
Filipe
III
3.o
(valendo-se da poderosa valia do duque de Lerma para se atar de novo a afeição do duque de Uzeda, seu filho) passar a Portugal, com mais justos que precisos pretextos; e tomava-se contudo, por ocasião, a cerimónia do juramento do príncipe
Dom
D.
Filipe de Portugal não menos; e a casta daqueles vassalos, confessando-se, que o melhor objecto dos olhos do Reino é o semblante dos monarcas.
Sendo já, sem dúvida, a jornada de El-Rei por éditos e cartas, manifesta, tratou Teodósio de acomodar sua corte, para seguir a real. Uns disseram que para orná-la; outros, que para competi-la.
O mesmo instrumento que se inventou para nos estorvar as espécies visíveis, as acrescenta ou diminui segundo a parte por onde o palpamos à vista;
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agora faz objectos maiores, agora menores, nunca de sua própria medida. A este modo o juízo humano crescia ou aumentava as acções, mostrando-as sempre desiguais, segundo a parte por onde acomodou a vista a este óculo incerto.
A mais custosa circunstância na saída do duque era a correspondência com o valido dos Reis Portugueses, que lhe foram uns criados mais aceitos que outros, mas não admitiam este modo de único ministério novamente praticado na Europa. Teodósio, como depois que deixara de ver a casa de El-Rei
Dom
D.
Sebastião, não viu outra mais que a sua, e como os decoros se observem melhor na ausência, que na familiaridade, duas coisas duvidava que perguntou aos mais interessados em seus acertos; a primeira se trataria ao duque de Uzeda, a segunda como o trataria.
Aquelas que lhe aconselhasse a separação parece que lhe ofendia a grandeza; mas ela poderia então conservar-se salva pela temperança. Ele ouviu a muitos, porém elegeu; se não por voto o seu ditame, e voto menos proporcionado à sua conveniência.
As mesmas contas dizem que vinha lançando Uzeda ao crédito de sua autoridade. Não era repreensível receio, se temesse que, achando-se, depois de Rei, o maior homem da monarquia, viesse a cortejar-se com outro de quem havia ficar excedido.
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Quando os de Fenícia desejavam conhecer os quilates de uma púrpura junta à outra se fazia com a batalha o exame.
Não direi qual foi maior, se a ousadia do Bragança, se o receio do Uzeda, nem quais foram mais artificiosos meios, se os daquele por se não humilhar, se os deste por se não ver preferido.
Porém, como cada um obrava violento, não foi a indústria permanente e as aparições. Sei que se culparam os instrumentos desta concórdia, a qual, depois de algumas visitas mal aceites da cortesia, veio a correspondência descendo até parar em uma declarada contradição.
O povo de Lisboa, sequioso de príncipes naturais, que por quarenta anos tinham faltado aos seus olhos, agora vendo todos juntos, começou a alegrar-se indistintamente julgando os ministros castelhanos e ainda os segundos portugueses era ofensa da Majestade a grande reverência com que todos olhavam para os duques de Bragança e Barcelos. Porém o vulgo que não tem compasso para medir as demonstrações, ou não percebia os cuidados que ocasionava ou tinha em menos que a demonstração com que cada hora confirmava os suspirados corações ciosos do seu obséquio.
Foi fama que o valido estimulado igualmente da vox publica que de sua própria queixa instigara a
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seu senhor pelo abatimento desta grandeza. Porém
Dom
D.
Filipe, merecendo agora tanto o nome de justo como sempre o de piedoso, escusando-se de aumentá-la se deu por satisfeito.Dizem contudo, que oferecendo mercê a
Dom
D.
Teodósio ouvira esta formal resposta: "Os nossos avós deixaram a Casa de Bragança tão engrandecida que mais se acha para exercitar que para pedir benefícios. Do Reino e sua nobreza espero que
Vossa Alteza
V. Al.
se lembre; porque eu somente me satisfaço com a permissão de casar ao duque meu filho donde convenha
".
."
Não obstante cresciam com as assistências de Lisboa os inconvenientes fomentados do grande poder dos émulos que por entre as flores semeavam os Áspides.Celebrando-se as Cortes em que se havia de jurar o rei
Dom
D.
Filipe, tardou advertidamente
Dom
D.
Teodósio que, como condestável do Reino, era força assistir àquela função. Chegou já depois das portas cerradas, e El-Rei disposto a caminhar para o trono, estas desculpas lhe oferecia; e dificultando-lhe a entrada um Ugier da Câmara, que artificiosamente mostrou desconhecê-lo, apartou-o severamente o duque com a mão, e entrou luzindo o filho diante. Disse a Ugier: "Abri de todo as portas que tudo é necessário para nós entrarmos; porque este negócio que El-Rei vai começar, não se pode lá fazer sem nós
".
."
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Quem disser que se compra barata a paixão, que se dissimula por mais vezes, deve de haver lutado com a dor secreta cujos braços tanto mais desprezam por mau ânimo que se lhes defende quanto é mais constante a resistência. Altíssimas árvores derruba o gusano intrínseco, arroja insensivelmente o que as fúrias não ousaram acometer e menos o atrevimento do ferro a abalar.
Teodósio padecendo tudo o que não mostrava haver sofrido dos perigos em que cada hora via a autoridade, era maior o seu silêncio.
Teve pequenos princípios uma arriscada discórdia que se moveu sobre o lugar da assistência dos cavalos de ambos os duques de Bragança e Barcelos, enquanto durava a última visita que fizeram a El-Rei. De uma parte o moço de esporas do duque, e da outra os soldados da Guarda Real. Devia já cavalgar Teodósio, quando abalando com a Corte que o seguia das escadas do Paço. Foi insolente a despedida, executando-se contra sua família todo o género de ofensas e opróbrios, não sem valor castigados. Andava mais ocasionada e descomposta a multidão dos inquietos, quando o duque
Dom
D.
João, voltando os olhos ao desconcerto, aconselhado do impulso da idade (era de 15 anos) fez semblante de tirar a espada; Teodósio, que tudo advertia, o atalhou dizendo: "Andai, filho, que El-Rei nos guarda as costas
".
."
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Bastou esta palavra a evitar grandes inconvenientes, se ponderarmos aos sucessos que depois trouxeram os anos. Não erra já quem disser se fundou nela o mais firme alicerce do futuro reinado. São os negócios como as plantas que, se quando brotam as abalam, secam antes do tempo.Recolhido o duque a Vila Viçosa, sucedeu logo a mudança do príncipe pela morte de Filipe
III
3.o
, a quem, em tenra idade, sucedeu o
IV
4.o
, que terceiro contaram os portugueses para cuja coroa foi o primeiro o segundo de Castela.Entrou com o novo rei novo valido, pois no dia do império cada sol traz sua estrela-de-alva. Foi
Dom
D.
Gaspar de Gusmán, conde de Olivares. Este o maior ministro da monarquia. Grande ocupação deram aos juízos da Europa suas acções. Resolvo-me que ao desconcerto de uma fortuna infeliz nenhuma providência humana lhe pode dar emenda. Dos mais foi mal julgado. Confesso a desgraça dos excessos; mas que seria se a culpa antes fosse da estrela que do homem? Este, ou porque entendesse convinha contemporizar com tão grande vassalo, ou por lançar mais subtis linhas por antever os desígnios dos validos antecedentes, determinou corresponder-se com melhor modo com a Casa de Bragança, cujo senhor chegou a recear-se que sendo de si a demonstração,
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seria porque tinha uma só filha herdeira, o conde-duque poderia solicitar ao de Barcelos para genro.
Era temor errado, mas desculpável; sendo certo que cada qual que logra um tesouro que não necessita de outra razão que seu preço para recear-se de que todos lho arrebatem. Mostrou-se aqui mais amante que político
Dom
D.
Teodósio. Concluía matéria de Estado que o de Olivares não se merecia engrandecer à custa de alheias vantagens, tendo em sua mão o registo da grandeza, cuja abundância era bastante a sublimá-lo assim. Aprovou o sucesso, negando a filha aos maiores senhores de Espanha e fora (dela), concedendo-a ao marquês de Liche, tronco principal de sua casa. Quem determina se levantar um soberbo edifício, antes o edifica em seu campo próprio, posto que estéril, que no alheio, suposto que abundante.
É força, para aclarar os negócios sucessivos, entrar-me mais do que quisera a historiar de Teodósio. Ou me perdoe, ou me culpe seu cronista.
Confessava-se até este tempo com
Frei
Fr.
João de Pina, religioso de Santo Agostinho. Mostra este caso melhor sua constância que sua prudência; e houve interior oposição em sua consciência do confessor e confessado; mas venceu a do confessor tão resoluto que pondo termos não guardados de 17
certas satisfações, deixou
Frei
Fr.
João o lugar e se recolheu a sua cela da Penha de França, onde acabou piedosamente. Não sabemos de outro confessor de algum príncipe que assim o fizesse; mas sabe-se que se assim o fizessem outros, haveria no mundo melhores confessores, em melhores príncipes.
Descobriu o tempo, anos depois, que a causa destes mistérios havia sido uma certa omissão com que o duque ultimamente satisfazia aos serviços familiares, de que os criados descontentes, os que menos o ofendiam, deixavam seu serviço; e os que mais urdiam intrincadas teias e se passavam a devação e assistência do duque de Barcelos; e logo como aos ídolos que mais divindade lhe faz quem lhe roga que quem lhe sacrifica. Não é oculta a veneração nem aquela coisa que jamais víssemos enjeitada.
Por este tempo muitos servidores da Casa de Bragança se apartaram de sua assistência; e porque este descontentamento, segundo a fama, compreendeu os mais beneficiados, escandalizando o duque antes dos meios que dos fins de seu apartamento, intentou compeli-los a seu serviço, por virtude dos bens apostólicos, donde se lhe permitia pudesse tirar as comendas que em sua Casa venciam e gozam todos aqueles que sem causa justa o desamparassem; mas como era vingança e
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Teodósio generosíssimo jamais se viu a execução. Contudo a esperança de novo senhor deteve a muitos porque,
Dom
D.
João, de natureza antes fácil que benigno, convidava com livre senhorio aos vassalos e criados.
Esta diversidade e divisão, que já começava a ascender-se pela Casa e Estado, entre pai e filho, foi trazendo cada dia novos motivos, para este de escândalo e para aquele de liberdade, a qual lisonjeada da intemperança, pelo ardor invencível, rebentou não poucas vezes em demonstrações que o pai já não podia dissimular e o filho não sabia encobrir.
Ditosos seriam os príncipes que se achassem melhor seguidos para os acertos como para as leviandades. Fingiram os poetas que as flechas do amor não perdoavam aos Deuses para desculpar as feridas dos homens. Ao duque
Dom
D.
João, mancebo robusto, soberano e livre, mais era para se lhe agradecer os excessos, que não intentou, que para lhe estranhar as demasias que empreendeu. Mas contudo não isento da repreensão, nem da causa, a natureza obrou nele subornando a idade os próprios efeitos com que costuma dominar aos outros homens.
É questão entre os políticos, qual tempo será conveniente ao casamento dos príncipes. Os mais
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afirmam ser logo que o permite a natureza. Assim o seguem por conclusão do costume que depois embargou a experiência por uma imperceptível execução; e é que os príncipes casando sendo moços, também alcançam filhos que depressa lhe vêm a ficar pouco inferiores aos anos; e a estes logo se reparte o governo e carecem despojados; e se o não repartem temem de o ser.
A pouca introdução que nos negócios permitia ao duque de Barcelos o duque seu pai fez com que ambos vivessem desconfiados: Teodósio de que em vida lhe pudessem diminuir a autoridade;
Dom
D.
João de que sendo tempo lhe não repartissem.
Era nos exercícios como nas queixas, servido dos mais inquietos, que como a qualidade da sem-razão só era feita ao futuro senhor, não se justificariam suas querelas; mas parece que tacitamente asseguravam seu aplauso no governo sucessivo por ser condição do ódio prender mais brevemente (que) o amor entre os corações onde se espalha alguma sizânia.
Então se julgou a propósito a prática do casamento do duque
Dom
D.
João; porque quando as coisas não concorressem era necessário oferecer um decente objecto à má afeição que o amor tinha aos criados de todo o possuir, se o tal objecto se podia prever à comunicação de mulher e filhos.
20
Não paravam aos muros de Espanha os pensamentos de Teodósio quanto discorria sobre esta matéria, reconhecendo Alemanha e Itália, onde por várias vias não faltavam encaminhadas proposições bem aceitas, e grandes casas da Europa não admitiam esta prática como discurso; mas faltou à de Bragança o instrumento que do discurso a trasladasse ao negócio. Por outra parte, a diversa matéria de Estado Castelhano requeria que todas as bodas ao de Barcelos se estrovassem, ou que havendo de ter, fossem para lhe servir mais de freio que de espada.
Pareceu que a princesa de Astilhavo, em parte livre Senhora, em parte vassala em Nápoles, por avós de qualidade e grandeza, era tálamo proporcionado a
Dom
D.
João. Juntou-se contra o efeito, não só a força da política espanhola, mas também a do destino, que aquela princesa não tinha assentado no livro das coroas.
Tornou a entender Teodósio à vista desta nova oposição, como só lhe convinha salvar a grandeza de que não podia ser despojado; pois aceitá-la era impossível.
A todas estas internas observações transferiam o nome os castelhanos a
Dom
D.
João. São os negócios dos homens como os partos das mulheres, que não sucedem quando se desejam, senão quando é tempo.
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Nenhuma diligência os antecipa e muitas os confundem.
Este novo movimento alterou notavelmente o ânimo do duque de Bragança, ora porque o susto vindo sobre outro é mais sensível, ora porque os anos de Teodósio haviam destemperado boa parte do vigor de seu ânimo.
Mas sendo tão subtil a dor deste escândalo, era maior a do remédio; porque o duque se certificava que os vassalos do filho o persuadiam possivelmente que usasse da autoridade do conde-duque por instrumento ao cómodo de seus descontentamentos.
Com licença do vigor dos provérbios, concórdias tem visto o mundo mais prejudiciais que a guerra ou contenda; porque o ferro a tempo também é mezinha.
Quem viciosamente observar fortuna dos reis, os achará cercados de infelicidades que bem descontam sua grandeza. A pessoa mais miserável de uma República é príncipe, a quem desamparou o Estado, fugiu a maioria e ficou a obrigação. A essa hora se lhe notam as imperfeições por defeitos, seus costumes parecem de horrível forma, suas acções de pouca justiça, e que, posto o sol da majestade, as sombras crescem até dominarem o céu.
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Quase a este modo a Casa de Bragança desordenada da soberania, não da razão dela, a todos parecia desagradável. Diziam os mais propínquos que a observação real para o poder se escusava como particular para a familiaridade se lhe propunha real para o respeito. Esta foi a razão porque se achava com poucos afectos, quando necessitava dos mais fiéis.
Dom
D.
Francisco de Melo, filho de
Dom
D.
Constantino segundo da Casa de Ferreira, que também o é segundo filho da de Bragança por varonia, começava a este tempo aquela carreira de gloriosa fortuna que não parou antes do último cume da grandeza.
Foi como arrebatado à graça do valido; porém vendo-se já em alto estado, entendeu que nenhuma árvore por mais viçosa que cresça pode levantar ou torcer suas folhas e seu arvoredo eminente.
Dos parentes da Casa de Bragança mais admitidos era livre
Dom
D.
Franscisco de Melo, um também dos mais beneficiados. Por esta causa, assistindo na Corte bem escusado do maior ministro, ambos os duques o instruíram em sua justificação.Como as obrigações eram iguais não se agregou a nenhum; mais por inclinação ou esperança ou porque houvesse que fazer mais negociação do
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duque de Barcelos, seguiu antes suas partes
Dom
D.
Francisco; de que queixoso Teodósio converteu em centelha a confiança, depois em temor, e ultimamente em queixa.
Foi fama que o duque
Dom
D.
João, vendo-se assistido de capaz instrumento, começou a usar dele secretamente segundo os afectos do seu ânimo.
Os servidores do duque se lhe publicavam que seu senhor não viveria, nem quisera haver vivido, para ver que seu filho contra sua própria autoridade quisesse abater a excelência de sua casa, repartindo-a com quem, para lhe acrescentar qualquer circunstância no gosto, lhe havia de tirar muito da opinião.
Fundava esta queixa em acertada notícia que se tinha de que
Dom
D.
João, escrevendo-se com o conde-duque por mãos de Francisco de Melo e por seu conselho, também sobre os negócios em que por força quisera introduzi-lo, se tratavam ambos por estilo igual, que para Teodósio foi o último escândalo da vida e termo último dela.
Não se duvida; conhecesse o duque de Bragança era o contrário impraticável, mas esta casa usou de singularidade, como o navegante no naufrágio, que vendo-se já perder, procura salvar a melhor jóia, a troco de escapar à estimação livre, toda a perda do mais tem em pouco.
24
Afirmam que este acidente prostrou as forças e ânimo de Teodósio, que, entregado nas mãos da morte, recebeu dela o partido de acomodar em vida a disposição de seus negócios.
Chamou para escrever seu testamento a
Dom
D.
Agostinho Manuel, por antigas obrigações seu confidente. Era
Dom
D.
Agostinho de profissão cronista, eloquente escritor e político estudioso, homem contudo de melhor entendimento que vontade; e, indo e vindo de Évora, onde assistia, gastou largos dias em conferências secretas com o duque, das quais o de Barcelos não entendendo o secreto fim, procurava informar-se, o que
Dom
D.
Agostinho logo fez com tanta imprudência como ingratidão, de que se admirou de si e, advertido, veio a perdê-los a ambos, a um por escandalizado, a outro por artificioso.
Disseram os poetas que o regozijo dos deuses era a luta do homem com a desgraça. Cuidaram impiamente, fazendo as divindades cúmplices das tragédias humanas; porque nós vemos que raras vezes é constante a observância do varão e a diversidade que sem razão não fique vencedora do mérito cujo sucesso só é dos deuses aplaudido. Bem se queixou aquele filósofo quando deixou escrito fora ditoso o mundo se os fados que o governam tivessem tanta conta com seu regimento como com seu castigo.
25
Apertado o duque
Dom
D.
Teodósio das paixões intrínsecas que padecia cujos efeitos resultavam corporalmente, em destemperança de humores tumultuosos, foi neles fácil passar-se da confusão à rebeldia; porque não obedecendo ao estudo dos médicos, nem faculdades da natureza, lhe consumiram o calor e nele a vida, com 66 anos de idade. Ano de 1630.
FIM DO LIVRO PRIMEIRO
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Livro Segundo
Nunca na esfera das cortes se eclipsam os maiores luminares do principado, sem que se lhe sigam acidentes violentos e tristes.
Começavam pelas mudanças dos postos as novidades. E dos homens e conselhos passam as novidades às mudanças dos costumes. Se o mundo, como alguns disseram, é livro de diferentes folhas, nunca melhor se verifica que na troca dos impérios, entre os quais sendo tanta a proporção não é nenhuma a semelhança; e é que unida ao poder a satisfação que cada qual tem do seu juízo, faz que, desprezando alheios ditames, sublime o seu parecer. Como não há músico, por mais acordado, que tome na mão o instrumento deixe de o temperar de novo, segundo a vox com que pretende acompanhá-lo. A maior parte das fortunas do duque
Dom
D.
Teodósio as desfez logo
Dom
D.
João, fabricando outras de novo. Já reprovou moralmente esta acção 28
algum dos primeiros sábios. Se é erro, quiçá foi aprendido da natureza cujos pólos vem a ter geração e concepção.Pois se não pode nos príncipes estas mudanças, serão nelas desculpados quando só mudem e não piorem. Serei se não louvável irrepreensível a
Dom
D.
João, porque em o que tocou de ministros acreditou obedecendo ao costume, se fizeram queixosos os homens e não o ficaram os lugares.
Talvez é dita de um reino a que julgamos pobreza porque havendo poucos sujeitos, em que escolher, não se confunde o número a ambição e à mingua da cópia são menos os descontentes. Nomeou a
Dom
D.
António de Melo por camareiro-mor. Estribeiro-mor a Fernão Rodrigues de Brito; copeiro-mor a
Dom
D.
Luís de Noronha. Vedor de sua casa a Pedro de Melo e Castro. Confessor a
Frei
Fr.
Dionísio dos Anjos, religioso da Ordem de Santo Agostinho. Por secretário recebeu a António Paes Viegas; e a Francisco de Sousa Coutinho elegeu para regedor na corte de Castela, onde fez vésperas e exame às grandes embaixadas que exercitou depois. Em menores ofícios acomodou menores pessoas. Não é pequeno elogio da grandeza de um senhor particular, qual
Dom
D.
João a este tempo representava, achar-se com criados que pudessem formar a casa passada e a presente velho e novo príncipe.29
Das primeiras acções do novo governo (que se fora mais ponderada não fora das primeiras) foi ordenar o duque
Dom
D.
João se levantassem novas tenças, com que o duque seu pai socorria a alguns fidalgos pobres e chegados independentes de sua família, uns para se sustentarem nos estados e outros nas armas e outros na corte aonde viviam.
Representaram os novos ministros de Bragança o desempenho mais lícitos de seus residos, que era melhor pagar o que se devia que dar o que não era obrigado. Ao varão justo assim pertence; mas ao soberano é tão própria a magnificência que talvez convém preferi-la à inconveniência. Esta voz deve ter sempre aos primeiros passos do governo, pois, começado com acções de miserável, é agravo da soberania. Foi argumento a este fim aquele costume de lançar sobre ouro a primeira pedra do edifício.
Os que se sentiam da reforma diriam que o aperto da fazenda fora preceito e não causa; e o motivo fora haver-se descoberto que o duque
Dom
D.
João amava antes a avareza que a prudência cujo natural observado de seus criados serviria de porta a grandes inconvenientes, porque o engano jamais entra com seus usos no coração do príncipe, senão vestido daquelas cores que lhe são mais agradáveis.30
Todas as armas de Heitor não bastavam a defendê-lo porque a lança de Aquiles busca a planta do pé, se está descoberto. Tanto convém recatar um príncipe seus defeitos. Mas qual príncipe cuida que tem defeitos que recatar?
Entre os parentes da Casa de Bragança não era o menos lustroso nem a ela aceito
Dom
D.
Fernando de Faro, senhor de Vimieiro, o qual com título de conde possuía seu pai
Dom
D.
Francisco e fora instituida por
Dom
D.
Fradique de Portugal, arcebispo de Saragoça, vice-rei de Aragão que foi irmão do duque degolado
Dom
D.
Fernando segundo. Tio por esta razão do tio deste que de seu próprio nome e maior sorte foi mordomo-mor da rainha
Dona
D.
Catarina.Andava vivo a este tempo o discurso e introdução do casamento do duque que para cada servidor ou afeiçoado seu, segundo seus interesses, lhe propunha, entre os mais,
Dom
D.
Fernando de Faro, residente da corte inculcava com instância as bodas de
Dona
D.
Mariana de Portugal, filha de
Dom
D.
Fernando Álvares de Portugal e Toledo, filho único de
Dom
D.
Duarte, irmão do duque
Dom
D.
Teodósio que fora marquês de Fredeilha, casado com a herdeira do conde de Oropeza, grande casa e de grandes resplendores. Dizia
Dom
D.
Fernando que o duque de Bragança havia de preferir a eleição de sua varonia e se achava em
Dona
D.
Catarina ou qualquer outra 31
de Espanha iguais as qualidade da mãe e avó desta senhora se igualavam às maiores; pois sua avó era filha de
Dom
D.
Fernando Álvares de Toledo, conde de Oropeza, e sua mãe filha do conde de Benavente, que em idade e pessoa também podia preferir-se a qualquer outra princesa com dote igual às mais ricas e às próximas esperanças dos estados paternos. Tendo só um irmão e enfermo, cuja herdeira a consideravam todos os juízos e vaticínios, que se correspondia igualmente nesta eleição a Casa de Oropeza aquela que já fez para entregar sua herdeira a um segundo de Bragança.
Dom
D.
Francisco de Melo era outro parente da Casa de Bragança que a este casamento e razões se opunha, mostrando com evidentes argumentos que, havendo de casar em Espanha, o duque de Bragança não tinha que buscar em outra e que achar menos quando em a Casa de Medina Sidónia havia uma filha para tomar estado. Era exemplo que já dera o maior duque de Bragança,
Dom
D.
Jaime, que aos passados excedeu na qualidade de príncipe herdeiro do Reino, escolher daquela grande casa a consorte quando agora
Dona
D.
Luiza de Gusmán, filha do duque
Dom
D.
Manuel Afonso não houvera a qualidade do nascimento, as suas partes a fizeram digna de alta fortuna; e se as partes e nascimento foram inferiores, o grande interesse que o valido mostrava 32
a estas bodas era suficiente para as fazer iguais aos maiores méritos que como nenhuma criatura pode viver sem influências dos astros que do Sol recebem a actividade, que nenhum vassalo pode permanecer sem a graça do favorecido em cuja mão se deposita a eficaz virtude do monarca, que os duques de Bragança pela mesma causa sustentam sempre conservarem-se independentes da valia.
Tinha ouvido o estado deste não poder conservar-se sem a contemplação dela, que os reis soberanos proviam a graça dos validos dos outros; porque mais negócios acaba a indústria que a força; e sendo esta máxima de rei a rei, quanto será mais absoluta entre príncipe e vassalo.
Contudo se cuidava que
Dom
D.
Francisco nestas negociações intrometia sem aumentos tão sublimemente como Fídias o seu nome entre as fímbrias da roupa de Minerva. Se aos príncipes como alquimistas fosse dado de natureza outro mercúrio, que como ele aparta o ouro dos outros metais, apartasse da sinceridade a circulação, menos príncipes víramos enganados e eles viram mais os enganos que lhe arma a malícia, sobredourando no zelo o interesse.O conde-duque, por certos ofícios, mostrava querer corresponder ao grande título de pai que o de Bragança lhe havia oferecido, e não persuadira
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um poderoso ajudado do rogo, de quem como ele o faz mais potente? Toda sua prudência ou artifício empregou em certificar a
Dom
D.
João que não se intrometia neste negócio por ele mesmo. Aceitou o de Bragança, e veio assim o de Olivares a ser rogado como seu próprio desejo.
Sobre numeroso dote foram grandes as promessas. A posse do ducado de Guimarães alheado da casa por dote inválido do duque
Dom
D.
João primeiro ao infante seu cunhado, e na confirmação dos privilégios, e efeitos dos antigos alvitres, cómodos decentíssimos aos irmãos, mercês a criados propicia graça de El-Rei.Até este ponto chegou a negociação de
Dom
D.
Francisco de Melo, que já participante nos reflexos de resplendor real, sobre mordomo da rainha, saiu a mostrar a suficiência na embaixada de Sabóia, cujo desígnio foi atalhado brevemente para chegar aos maiores lugares da monarquia.
Aos últimos congressos deste negócio, entrou na corte Francisco de Sousa Coutinho; e nela seguiu mais justificado, quando menos satisfeito, os acórdãos do seu antecessor. Não é lícito ao mais destro cantor do mundo meter novas vozes ou diversos contrapontos ao papel que lhe repartem. O que melhor se ajusta com a solfa que está escrita, é julgado por melhor músico.
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Poderão queixar-se os homens da Providência, senão deixando na sua mão o nascer nobres, os mandasse viver honrados. Com alto acordo os satisfez deixando-lhes livre a eleição dos matrimónios; porque como feitura do primeiro homem foi divina, a que lhes não pode tocar da origem lhes incumbe da sucessão; se todos os que se casam advertissem que então conservavam o nascer como nascem os que deles procedem, o mundo seria igual por casamentos conformes.
Segundo esta máxima que se afirma na doutrina sincera da verdade não há exame proluxo nos matrimónios que lhe não seja competente, creia o que casa se torna a fazer de novo.
A igreja de Elvas era então governada do bispo
Dom
D.
Sebastião de Matos e Noronha; homem que, com a altiveza dos pensamentos, queria equivocar a do sangue, não passando além da dignidade os termos da nobreza senatória. Nesta igreja de Elvas haviam de receber as bênçãos e descansar em sua cidade interposta com pouca desigualdade entre Vila Viçosa e Badajoz, por onde entraria em Portugal a duquesa de Bragança.
Foi esquisita a pompa prevenida do bispo para este acto. Vendeu e empenhou fazenda aos parentes, sem perdoar aos súbditos, presumindo que uma acção que compreendia ao duque de Bragança
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e a ele não se cingia licitamente se não por termos imensos.
Era o ano de 1633, quando o duque em vinte e nove de idade e vinte seis a duquesa, entraram em tálamo, com pública festividade aplaudidos. Acompanhou o conde de Melca de Medina Sidónia a duquesa sua irmã, não faltando por entre as alegrias alguns sinais que andando o tempo se adjudicariam a prognósticos do trabalho que estas bodas trariam à Casa de Medina.
Semelhante ou mais expresso agouro sucedeu ao bispo de Elvas que, indo a receber os duques, se embaraçou em si mesmo; que caíra se a fortuna então se não contentasse de ameaçá-lo com o precipício que lhe guardava para outro tempo.
Nunca vimos excessos que passassem voluntariamente à razão de que ela cedo se não visse vingada. Logo com intrínsecos desgostos pagou aquele prelado a demasia da sua vaidade, vendo-a não só sem logro, mas com desprezo; porque os duques isentando-se da hospedagem pretenderam antes pagá-la que merecê-la.
Foi fama que com um colar de subido preço (a sessenta mil cruzados o subiram alguns) quisera o duque
Dom
D.
João satisfazer os dispêndios daquela entrada. Porém o bispo se deu por melhor pago havendo feito uma demonstração à sua grandeza.
36
Neste sucesso quiseram muitos houvesse fundado aquele ódio que, deste dia ao último da sua vida, o bispo excitou contra o duque. Assim o mostraram os tempos.
É o ódio em os homens como a águia em sua corrente subida. Pela própria queda se regula aquele afecto que caiu de uma alta amizade; não pára até se levantar a outra tão alta contradição. Muitos parece que só se amaram com excesso para dar mais força ao aborrecimento.
Fora neste tempo louvável e louvada a concórdia entre o duque de Bragança e seus irmãos. O maior,
Dom
D.
Duarte, dos segundos por inclinação, ou por estudo, era o mais confidente. Havia nele partes dignas de amor e crédito (peçamos-lhe a França esta palavra) o que aos falcões da Noruega a quem a província do dia fez mais velozes. Convém aos segundos de um príncipe ornarem-se de grandes asas de virtudes para que voem tanto que alcancem e gozem digno estado.Mas porque Deus quis dar a mulher por objecto da afeição do homem, logo que o duque
Dom
D.
João se viu casado houve de faltar a seus irmãos aquele afecto que destinou à esposa. Então
Dom
D.
Duarte que se viu menos poderoso, se não estimado menos, começou a conhecer quão grande pobreza é fazer tesouro de alheias vontades.
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Via-se com anos, sangue e suficiência capaz de poder começar a valer por si mesmo, e em necessidade de viver do que valesse.
Alguns entenderam que a cunhada se achava oprimida, pois além da obediência que devia ao marido, não lhe era de menos peso o respeito que contribuía ao cunhado.
Desta causa se originou entre os dois recíproca desconfiança que, dizem muitos, foi esforço da suspeita que a duquesa teve de que
Dom
D.
Duarte olhava repreensivelmente uma criada menor de sua família. Se assim fosse, quem estranharia tão ordinário desconcerto? Passou adiante a desconformidade e buscando-se-lhe remédio um só havia: deixar
Dom
D.
Duarte o lado e casa do duque. Acordado de cumprido respeito de tantos anos, como os de sua idade, estimou esta despedida por igual favor dos fados: qual Eneias ver-se desatado dos encantos de Circe. Postos porém os olhos do mundo (que já se lhe oferecia largo mar de navegação incerta) só se julgava tábua para transferi-lo a favor de El-Rei de Espanha, que ele julgava merecer por seus passados e esperou ter seguro conforme às promessas feitas ao casamento do duque seu irmão.
Entrou de secreto na Corte onde em poucos dias alcançou que as pretensões não correspondem às
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esperanças, nem ainda aos méritos, depois que os oráculos acharam modo de interpretar conforme sua conveniência a promessa e palavra.
Querem os destros pretendentes que o primeiro astro predominante nos negócios seja a introdução deles, como se não houvera outros astros que influíssem as introduções conforme todavia com o parecer daqueles que julgaram errou
Dom
D.
Duarte a porta de seu aumento, não entrando pelas de El-Rei e conde-duque.O rogar é acção servil, suposto que com os monarcas se exercite. Aspiram por essa causa os monarcas aos alheios rogos; e são melhor servidos das petições dos maiores fazendo delas degraus para a soberania porque certamente tem moral contradição o necessitar e o presumir. Esperava
Dom
D.
Duarte que El-Rei lhe mandasse declarar o tratamento e mercê com que o esperava; e El-Rei e o valido esperavam que
Dom
D.
Duarte lhe pedisse e pretendesse as mercês e o tratamento.
Dom
D.
Duarte temia que, humilhado, à pretensão faltasse o despacho; El-Rei e o valido davam a entender que, para que não faltasse, convinha a humildade.
Dom
D.
Duarte presumiu que, humilhando-se, perdesse ponto e a pretensão. El-Rei e o valido sentiam que houvesse pessoa que pretendendo diante do seu rei quisesse manter pontos sem os 39
aventurar pelo gosto de El-Rei e valor das pretensões.
Foi aqui severa a censura dos émulos. Porém não bastaram as cinzas a escurecer o resplendor daqueles reais reflexos ventilantes nesta resolução.
Sem ver a El-Rei nem ao ministro, com doze dias de oculta assistência em Madrid, partiu
Dom
D.
Duarte a Alemanha onde do imperador Fernando segundo foi tão benignamente tratado como os seus diziam fora de El-Rei ofendido.
É o descanso da vida como o dos olhos ao horizonte. Vemos aquela distância determinada onde se nos figura juntar-se o céu e a terra, mas chegados a esse ponto se nos passa a outros distantes igualmente.
O duque e a duquesa de Bragança entenderam por ventura viver em grande conformidade, ausente
Dom
D.
Duarte, que aos olhos da emulação foi reputado pedra do familiar escândalo de suas vontades.
Dom
D.
Duarte se apartou e se descobrira logo entre os duques novas causas de descontentamento.
Aquele lascivo uso dos sustrais antigos que em tragédias pegnias e orquestras corromperam boa parte da juventude de Atenas e Roma ressuscitou com o título de farsa, com muito maior aplauso entre os espanhóis que jamais gozara na Itália e Grécia.
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Os príncipes lhe entregaram as horas do seu divertimento com não pequeno escândalo às reais disciplinas. Alcançou todavia maior parte da censura aos primeiros que desordenadamente o admitiram as comédias ou nelas dissimularam representações licenciosas.
Entre os muitos afectos a este exercício se declarou
Dom
D.
João cujo excesso não notou o público juízo senão depois de incitado das vozes, dos queixumes que a duquesa se sentia que a delícia do duque seu marido não parava nos teatros. As contínuas jornadas do bosque, e dilação neste, davam e não menos causa a semelhante efeito, tendo por certo que ao ânimo inficionado do vício sucede a que o corpo quando discorde os humores este converte em peçonha os melhores alimentos.
Não era menor, posto que nem menos sentido, outro inconveniente; era que como os robustos exercícios do campo necessitam de homens também robustos, o duque se afeiçoava aos companheiros e àqueles homens como àqueles exercícios. Os que mais altos fins só desejavam a seu serviço, vendo estimar a desigualdade, quando não desprezassem a virtude dos que se ornavam, uns procuravam trocá-la, outros refazê-la.
Talvez o sangue deste excesso respondesse interiormente a tal dignidade, que assim o promete a
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providência. Onde os homens faltam, passa a dispor que canse o mesmo delito para que seja em parte o gosto deste a quem só por segui-lo desamparou o risco.
Havia nos primeiros anos o duque
Dom
D.
João com facilidade aprendido a ciência da Música, a que voltando agora parte do apetite que lhe sobejava das outras inclinações se empregou nela tanto que chegou a seu perfeito conhecimento.
É questão dos políticos se convém aos príncipes a Música e a Poesia de que os mais os evitam, sendo perfeições não só honestas mas louváveis. Dizem que sua doçura lhes ministra certo invento, que os abstrai do trabalho dos negócios, ocupação que devera ser deleite dos monarcas. Algum filósofo suspeitou que como os homens não podem igualar aos príncipes nos dotes da fortuna, não sofrem que os príncipes os possam exceder nos da natureza.
Eu dissera que nos de particular estudo não ocorre aquela ruim consequência da sobeja afeição, com perigo do meio público; e aos que se virem livres deste encargo lícita pode ser a familiaridade das musas.
Nasceu, por este tempo
Dom
D.
Teodósio, primogénito da Casa de Bragança, que com novo e mais luzido e delicioso vínculo uniu as vontades dos duques seus pais.
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Concorreram algumas circunstâncias a seu nascimento que tendo já por pequeno afecto o menino a alegria e levar os corações a uma certa esperança de maior grandeza que a presente. Os professores davam judiciária interpretação pelos caracteres das estrelas alta fortuna ao menino. Ou não souberam ler tudo quanto cá estava escrito ou dissimularam as desgraças que tropologicamente eram como estrelinhas das habilidades.
Mas com que juízo se pesam na balança do tempo que veja mais os bens e os males, que ambas prendam igualmente apenas a balança do conhecimento está fornecida de seu peso quando na do pesar se lança outro maior peso que faz leve a primeira. Do mesmo modo, pouco depois do nascimento do quarto duque de Barcelos, o terceiro
Dom
D.
Teodósio, sucedeu a morte de seu tio
Dom
D.
Alexandre, em idade florente, ornada de igual gentileza que virtude.Era rico Alexandre e foi liberal, tanta obrigação traz tão grande nome. Instituiu herdeiro a
Dom
D.
Duarte seu irmão que segundo mostravam os seguintes sucessos na posse desta herança tomou a de seus trabalhos. Farei lembrança dela quando tratar deles.
O duque, com liberal providência, o proveu das comendas vagas por Alexandre, com suficientes réditos para sustentar o príncipe, digo o título de
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príncipe de Bragança, que Alemanha lograva. Desta mercê participou sua própria fazenda; porque ao irmão não acrescentou, mas apropriou as rendas que lhe havia consignado. Aquelas graças dos príncipes são ditosíssimas donde sem particular descontentamento todos ficam satisfeitos. É a satisfação consequência dos justos benefícios, quando regularmente se parte. Ao contrário, dos injustos procede o queixume, dele a parcialidade, mãe da rebelião, ruína do seu Império.
Se o Sol quando inclina a um dos trópicos prosseguira adiante aquela carreira, o mundo ficaria escurecido. Ainda bem não engrandeceu os dias quando já os diminui, volta a pacificar e satisfazer desta maneira todas as casas do Zodíaco.
Os grandes de Castela de cuja ordem era o valido não podiam conformar-se que, julgando-se eles por imediatos à Majestade, dentro de Espanha se achase que fosse todo por maior que eles.
Por esta razão iluminados de vários pretextos a troco de ver ao duque de Bragança seu igual, desejavam introduzi-lo nos lugares em que eles também desejavam introduzir-se. Passou do pensamento à prática que aprovada do conde-duque em traje de lisonja procedeu a inveja.
Propôs-se em Conselho de Estado que pois a monarquia era hoje a mais opulenta de ocasiões
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que sujeitos, não era tempo de descultivar os que floresciam; que anos havia durado o avô da Casa de Bragança já sobejo espanto para compor suas perturbações primeiras; que o presente duque, por idade e suficiência, estava capaz de grandes ocupações que ocorriam, sendo justo não aumentar El-Rei o silêncio em que tinha aquela casa, ou a presunção ou o desprezo se escusasse do serviço por lhe fazer o jugo de vassalo, ou senão por lhe começar a satisfazer o mérito da obediência; que o duque
Dom
D.
João se achava com filho herdeiro, que assegurava a sua Casa, e pretensões propostas por seguridade de seu aumento pedia a razão fosse adimitido ao que os outros grandes da monarquia e El-Rei edificasse em sua pessoa um capitão, um criado e um ministro.
A esta prática se mostrou propício e obrigado o conde-duque, não se esquivando da censura de alguns que por seus próprios fins o denunciaram autor daquele suborno.
À proposta se seguiu consulta, cedeu à conformidade, votou-se que o duque
Dom
D.
João de Bragança passasse ao governo de Milão e vigairaria de Itália cujos postos fazia mais reputáveis a guerra que se esperava certa com França e a paz que se ouvia incerta com Sabóia.
Os Catelães prontos a seguir a resolução de Alemanha, interessados pelos protectores na eleição
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do Rei dos Romanos, Veneza com os potentados de Itália não menos prontos que suspeitos a fomentar as novidades convenientes à sua conservação. Ignorava o duque este negócio que o valido fechou em novo secreto por lhe não dar tempo à prevenção das escusas. Chegou o dia do aviso tão artificiosamente despachado que só a Francisco de Sousa disse em Madrid o conde-duque tinha El-Rei feito mercê a seu senhor.
Foi largo e conseguinte o projecto que se seguiu a esta determinação, que enfim se revogou; porque sendo conferida como mercê mostraram haver-se contradito o ditame real.
Afirmam contudo os políticos não ser sincera mas artificial a conformidade do pretexto e a escusa; porque uma vez conhecido o ânimo de Bragança seria fácil de cair em outro mais barato modo de abatimento de que se satisfizesse melhor a emulação. De tal sorte interpretou aquela temperança esta malícia.
Alguns criados do duque
Dom
D.
João, sem discursar adiante do que ouviam, a título de receio da vingança temiam a escusa. Ele o recebeu da mesma dificuldade, vivendo com tal harmonia que se saísse de sua casa era força despojar-se dos tesouros ou da grandeza.É copioso o Estado de Bragança em ofícios de fazenda e justiça cujas datas corriam como moeda
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do senhor aos vassalos e criados, tendo estes ofícios a consignação de seus estipêndios. O resto se regulava conforme a casa dos reis antigos cujos criados gozavam tão poucas regalias pagas que antes parece se recebiam como sinal que prémio.
Dom
D.
Afonso V do nome, rei de Portugal, a quem chamaram o Africano, reduziu a singular concerto sua família que o segundo dito o Casto havia começado a polir rudemente. Não sabemos de outro príncipe que aspirasse a majestade igual, entendendo
Dom
D.
Afonso o número de seus criados tantos compreendesse a nobreza do Reino. Desde então consiste a fidalguia dos portugueses em serem moradores da Casa de El-Rei com certas pagas de reais assentamentos, que eles dizem moradias.
Mas porque será acaso esta a primeira vez que saía a público a notícia de coisa tão grande, direi mais dela sem perder nem deslustrar a história.
Não tratando da nobreza virtual primitiva que mais se deve a Deus que aos príncipes, se não da política, quiseram os reis que todos os nobres fossem moradores de sua casa, dividindo em duas ordens a generalidade deles e delas cada uma em três graus sucessivos. O primeiro grau de nobreza de primeira ordem se diz Moço fidalgo, com salário ténue, respectivo porém à antiguidade da família e esplendor da casa de que o fidalgo procede.
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O segundo, com pouca vantagem, dizem Fidalgo escudeiro.
O terceiro e último, com maior acrescentamento Fidalgo cavaleiro, cujo alto foro representa, segundo antiga lei, haver sido o fidalgo armado cavaleiro em algum famoso acto militar.
A segunda ordem da nobreza corresponde aos próprios termos com pouca variedade, porque começando em escudeiro fidalgo passa a moço da câmara e sobe a cavaleiro fidalgo com moradias e aumentos constituídos.
A primeira ordem se confere generosamente a todos os fidalgos de sangue ilustre, em tal maneira que para gozar desta mercê basta se justifique dos pais a legitimidade que deste fim, com boa energia, se seguia o título deste acto comum a todos os nobres daquela hierarquia. Valias e ocasiões puseram depois (e ainda põem agora) aos reis em necessidade de mandar escrever no livro de sua nobreza inferiores pessoas, ou das que a diferença dos fidalgos antigos são chamados fidalgos nos livros de El-Rei.
A segunda ordem, se não é comum, é possível a qualquer homem bom da República quando é benemérito do serviço do príncipe. Ambas porém ornadas de maiores ou menores privilégios, segundo os graus de cada qual, cuja lembrança não se guarda
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nos arquivos reais, se não em próprios diplomáticos ou alvarás, que cada qual guarda consigo e passa aos sucessores.
A primeira prerrogativa de constituir nobres foi somente atributo da regalia, depois se derivou em privilégios a príncipes e infantes. Todos podiam ordenar os fidalgos de sua casa que El-Rei depois confirmava. Na Real conseguiu Bragança a própria faculdade depois que o duque
Dom
D.
Jaime se arrojou a preeminências de príncipe herdeiro.
Porém como uns e outros foros fossem assistidos de tão certos interesses era certo que se o duque de Bragança descompassasse seu movimento, conformando-se com a jornada de Itália, apenas tinha criado que pudesse segui-lo; nem o Estado réditos convenientes para sustentar as próprias expensas e fausto decente quanto mais o trato soberano.
Não procedia de pobreza ou empenho em que os duques se achassem; mas por ser superior o número da família que muitas vezes passou de seiscentos criados, muitos de grandeza e qualidade conhecida de seus senhores, por obrigação de sangue e memória dos antepassados.
João Botero, não ardiloso mas desinformado, nas suas Relações, diz que a Casa de Bragança possui em Portugal a terceira parte. Se a verdadeira glória
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se pudesse firmar na opinião falsa, mais devedores lhe foram aqueles duques que aqueles reis. Todos deixou agravados aos duques, com a incerta grandeza, aos reis com a errada direcção.
Forma-se o Estado de Bragança de dois ducados, três marquesados, três condados e vários senhorios. Neles uma cidade, trinta vilas, cento e dezoito lugares, quarenta e três comendas; dois mil e quinhentos ofícios, mil e oitocentos benefícios, vinte e três mil vassalos, com cento e dezanove mil cruzados de património.
Conserva-se em sua esfera esta grandeza sucessiva de sorte que cegou os olhos da emulação. Sabe-se contudo que o Sol se ajunta com os raios em um côncavo vidro, fere tão eficazmente que acende fogo se os dilata. Pelo plano de um orbe logo perde a actividade. O mesmo em saindo do lugar onde teve princípio se torna em fumo brevemente. Todo o príncipe que quiser perpetuar a reputação perpetui-se na Pátria. Por isso chamam celeste àquele pássaro que não deixa o ar, senão depois de morto. E, como afirmam os filósofos, no centro, nenhum elemento é grave.
A monarquia de Espanha cuja pintura começou a urdir Fernando, para tecer Carlos seu neto, para que a vestisse o segundo Filipe, já não chegou inteira ao terceiro e veio rota ao quarto. Este príncipe,
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por discórdia dos fados, sendo um dos mais perfeitos do mundo, veio a ser um dos mais gravados nele.
A Coroa de França, por visinha contrária e por grande émula, opôs suas armas à potência e felicidade espanhola que na balança da fortuna contrapesada fez vários termos de infaustos acidentes.
Os turcos, não fechados nas portas do Helesponto, saíram de Trácia a amedrontar ao Poente açoutando com seus remos as costas da Citia, Corinto, Dalmácia, Calábria e Sicília. Os corsários de Argel, com repetidos roubos, infestavam o Mediterrâneo e portos nacionais. Todo o oceano erravam as armadas do Norte, quando França despregando as bandeiras pelos Países Baixos e pela Baixa Navarra deu princípio, vigor e forma à resolução de seus exércitos, uns dizem que agressores, outros que vingativos.
Então Espanha, ainda mais ameaçada que ofendida, experimentou e fez experimentar a favor dos golpes, uma guerra tão crua como se houvesse de ser menos porfiosa. Poucas semelhantes viram os tempos. Começou no ano de 1634 e vai ainda em aumento a febre desta indignação no ano de 1650, em que escrevemos.
Se na mão dos príncipes estivera o fim da guerra, como esta o princípio, poucos aconselharam o
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sofrimento às majestades; porém porque dos princípios voluntários sucedem meios violentos e fins incertos, há quem diga que a guerra somente se deve fazer por remédio das coisas que não têm remédio.
FIM DO SEGUNDO LIVRO
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Livro Terceiro
Notória é a declinação que padecia Espanha e censurada dos príncipes da Europa pela confusão do Governo do conde-duque. Não havia político que não se admirasse de ver que El-Rei Filipe IV admitia conselho fora da conservação do duque de Bragança. Portugal, pelo claro manifesto de sentir o reino a sua falta, vendo que o dano ia crescendo de sorte que ameaçava a cabeça da monarquia, acudiram à indução dos novos tributos que, segundo as vontades estavam dispostas, não se sabe se primeiro se estabeleceram ou se se aprovaram. Não é o vulgo aquele corpo cuja saúde consinta experiências de formas extravagantes, que usadas, se as não repulsa a soberba da união, perecem na desigualdade.
Começou em Évora a prática desta novidade. É cidade opulenta, antiga, e nobre da Lusitânia. Foi teatro de militares e pacíficas maravilhas. Das
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primeiras conserva ainda sinais; e das segundas realidades.
O vulgo amante da liberdade, jamais disputa qual lhe convém. A primeira é a mais lícita, a mais justificada, a mais próxima. Após daquela esperança correu o povo de Évora, com bárbaro movimento, reputarem-se em criminosos excessos donde menor era a sedição.
Inficionou seu contágio os lugares daquela província de Alentejo, que Trastagana nomeavam os romanos. Assim é poderoso o exemplo dos maiores: muitos deles amavam o repouso e não temiam o tributo, ou por altivos ou isentos. Os mais, por tão ínfimos, que a miséria os mantinha seguros. Mas é antigo certame da República festejar ou sentir todos de uma maneira, o benefício e a injúria dos maiores. Porque são infinitos os ignorantes que vivem com o juízo alheio.
Houve quem dissesse que se Évora estivesse mais perto de El-Rei e mais longe do duque não se mostrara tão briosa contra a conveniência real.
Primeiro divisou estes favores o temor que a malícia os inculcasse. Diogo Soares, ministro da Pena, grande português, assistia em Madrid e tinha a graça do valido. Disse em público "que El-Rei não seria senhor de Portugal enquanto a praça de Vila Viçosa se não tornasse um prado sempre verde".
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Temia o séquito do duque
Dom
D.
João; predizia o inconveniente e apontava o remédio.
O conde-duque reconheceu logo o perigo que propôs evitar por aquele modo que alguns capitães abriram primeiro as portas da cidade ao inimigo, armando-se de confiança contra a desconfiança.
Receando como estava o Reino resignado na vontade do duque, intentou fazê-lo suspeitoso ao povo com públicos sinais de inconfidências. Porém os portugueses soberbos na inteira obstinação do seu propósito interpretaram facilmente o temor e o artifício.
Porém força nem destreza requer um cordel delicado para ser roto, quando obra por si somente. Mas, juntando-se-lhes outros, chegam a fazer aumento inseparável, sendo cada fio fraco e débil. Aquele magistrado romano que levava ante si as fauces levantadas, denotava o rigor da reputação. Donde muitas varas subtis, estando unidas, são o melhor símbolo da potestade.
Os grandes que a princípio, desprezando o primeiro movimento popular, já o respeitavam; os que em secreto não aprovaram, em público não contradisseram. Foi fama que as maiores casas de Évora capitularam com o Povo que, de melhor vontade, recebeu sua obediência que seu aplauso.
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Axioma é dos reis que me amem, por escusar, que me temam. O Povo sempre deseja ser antes temido que amado, porque nas vivas acções que empreende obra o medo mais diligente que o respeito.
Não direi qual era o número de vozes e que diferença havia nelas: se as que pediam liberdade, se remédio. Mas como nem os vassalos esperavam segui-la, senão à custa do sangue, nem o príncipe sem eles se determinava na emenda.
Foi esta a primeira vez que o valido castelhano viu de parte a Carranca da Fortuna. Todos os passados acidentes da monarquia se padeceram nas províncias estranhas, digo, externas. Os quais, posto que grandes, diminuía, ou levantava os raios sua distância.
Temiam os ministros que dos rebeldes humores que Portugal indicava, se gerasse um cancro junto do coração da monarquia, procuravam por essa causa a sua cura com igual destreza a seu perigo. São de difícil remédio aqueles males, os quais com a aspereza ou brandura das mezinhas se agravam de uma mesma maneira.
A uns pareceu se devia dissimular com aqueles povos inquietos, até melhor tempo, a troco de não confessar às nações da monarquia se se achava nela alguma tão ousada; outros entenderam que com a nova do erro convinha chegasse a do castigo.
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Ambos estes remédios usou o conde-duque, mas por modos que a ambos fez perder a virtude; porque, enleado entre a clemência e a vingança, ameaçou quando era tempo de perdoar; e perdoou quando era tempo de punir.
Misturaram-se imprudentes as armas e as negociações; estas paravam ao estrondo daquelas e os portugueses na tardança conheciam até donde podiam chegar sem temor ou ousadia.
Ao duque de Bragança ocorriam diversas matérias de Estado; a primeira a sua conservação porque para acudir a qualquer parte onde a fortuna o chamasse convinha estar isento da suspeita.
Com tal ânimo elegeu e abraçou todos os meios de justificação; afectou socorro, digo afectou do novo ânimo dos homens, que se pudesse ser conviria que os próprios que padecessem os ignorantes.
Isto pode ser todas as vezes que o Sábio antes reserve que eleja as acções contingentes; não se esperdiça aquele propósito que no coração está depositado, nem o que se dilata se reprova.
Tais e tão eficazes foram as demonstrações do duque
Dom
D.
João que, ou não apetecia o ceptro, ou não crera. E ele mesmo não só por sorte ou prudência, foi o primeiro dissuadido daquele alto desejo; e muitos que já pretendiam sacrificar-se 58
com o obséquio da Pátria desmaiaram à vista da inteireza do mais interessado.Para que o servo ponha a vida pelo senhor é necessário persuadir-se que tem senhor que porá a vida pelo servo. O falcão, nos seus giros nos ares, são regulados pelos passos do seu senhor na terra, obrigado dos voos e da carreira não se nega para maiores voos. Não viu jamais a natureza alguma ave (e menos a arte) tão resoluta, que desamparada do caçador saia da alcândora a fazer presas para ele. El-Rei
Dom
D.
Filipe, dando crédito a seus conselheiros, se conformou com a satisfação da Casa de Bragança; e segurando com baratos favores sua conformidade. É desapiedada a pena que se introduz a tentar o coração dos príncipes, impondo com outras transferências a malícia dos autores nas acções.
Então foi o duque encarregado da moderação dos lugares, e de seus delinquentes, porque, suposta sua autoridade e seu nome, seria instrumento e fiador de perdão aos culpados.
Uma grave doença o havia por muito tempo apartado dos olhos do povo. Este mal lhe impetrou a vida logo e a Coroa depois; porque, sem dúvida, vendo-o presente, benigno e forte, como lhe parecia, se ajustaram os sediciosos a sonar a voz de seu nome.
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Nunca o fogo do relâmpago é tão eficaz como a do raio. Estava Deus querendo aliviar aos povos castelhanos e portugueses do raio que lhes tinha preparado o aviso desta alteração que parou em fácil concórdia a troco de leve castigo.
Quase por este tempo, com louvável apetite, chamou o conde-duque de Itália a Espanha o marquês Virgílio Malvesi, então celebrado pelo melhor político de Itália, cuja reputação procedia antes dos seus escritos que de suas acções. O conde-duque se fundava nele, qual se entre as flores de vistosa eloquência talvez se não dissimulasse o veneno do artifício. Esta vez se conheceu mais a diversíssima afinidade que no ânimo dos homens tem as obras com as palavras.
Entre as máximas que este político introduziu ao valido foi uma não ajudada mais da natureza que da fortuna, aquela que ensina a distinguir nos ofícios assim as matérias como as inclinações, provando com a Filosofia que um acto não pode compreender duas qualidades incompatíveis; porque a qualidade quente se há-de extinguir primeiro que a fria se introduza.
A esta causa se arguia que o governo das armas e da República eram de qualidade opostas convinha se encomendassem a diferentes sujeitos, como se no governo de dois não houvesse mais contradição pelo número que pela disparidade.
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Custou erros o desengano poucas vezes aceito dos espíritos de grande eficácia. Viu Itália o marquês de Laganhez armado e
Dom
D.
Francisco de Melo arrastando a toga; depois Milão o cardeal Triblucio que empunhava a espada, velho e sagrado, obrigado do conde de Servilla mancebo e galhardo, interpretando os foros do município. Assim Flandres, depois, entre o marquês de Castelo Rodrigo e o duque Saja Celominé.
Não a esta incitação mas a este conceito que como se bem logrado foi o concelho aos casos próprios, ordenou El-Rei pelo valido que o duque de Bragança viesse governar as armas do reino de cuja polícia só tratasse a princesa de Mântua. Dos que menos censuraram esta acção foi julgada por leve, de outros por maliciosa. Mais me confirmo com haver sido casual. Porém, como no céu não se vêem sinais que não interpretem os noticiosos, assim nos príncipes se reputam por de grande providência os mais descuidados movimentos. Saibam aqueles observadores da fortuna que também correm acaso as estrelas.
Seguiam a eleição do duque grande tropel de inconveniências (nunca sem dilúvio se encontram os maiores luminares), mas o conde-duque que insensivelmente traçava um labirinto, achou modos de sentir que concertassem ou a razão ou a vaidade
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do Bragança, com o respeito que se devia a quem ocupava o lugar soberano. É fama que na última visitação feita pelo duque à princesa sobre a tacha das preeminências que de Madrid veio feita, lançaram afectuoso contraponto os dependentes de ambos.
Dom
D.
Lourenço de Sousa, capitão da Guarda Real, que servia com a princesa com zelo (se indiscreto) constante, apartou a cadeira que estava posta ao duque, atrasando-a um passo, em que logo, com mais resolução que modéstia, a melhorou Tomé de Sousa, filho do vedor que fora da Casa de Bragança. Ambas as acções tiveram depois a sua devida consequência, àquele de desgraça, a este de prémio.
Obrigaram a grande cuidado as armas de França em terra e mar, por se oporem aquele ano doze exércitos contra o poder de Espanha; mas Portugal acrescentando o esforço de seis mil homens pagos a sua defensa ordinária, se foi dos ameaçados não foi dos referidos.
É a história uma criatura proporcional de rigorosa simetria; sua alma, a verdade, seu corpo, a narração, a cabeça, o herói de que se escreve, braços, os episódios que dela tem dependência; e como fora monstruosa a pessoa em quem faltasse alguma destas partes é grande defeito para a história onde elas faltam.
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Por esta causa, em benefício de sua compostura, será além de força obrigação recorrer ao progresso de alguns estranhos acidentes que não só adornam mas explicam, manifestando a origem dos casos propínquos a referir-se, não porque o tirador destro que faz a seta no arco procure atrasar seu curso, quanto mais a puxar atrás no tiro se adianta.
Corria já de sessenta anos entre os portugueses uma opinião ou seita civil que a muitos teve crédulos em que vivia peregrinando pelo mundo El-Rei
Dom
D.
Sebastião. Estes eram com nome alegre os amados sebastianistas. Estendeu-se não só aos antigos vassalos, mas se deduziu a filhos e netos cujo engano compreendia homens virtuosos e sábios.
Muitos destes filósofos, perfilhando ao entendimento os erros da virtude, fundavam na Escritura e nas letras sua esperança, interpretando-as de Esdras, Daniel, Ezequiel, Isaías, lugares do Apocalipse em favor do seu encoberto. Explicaram nele algum oráculo da Sibila, não poucos de Santo Isidoro e do abade Joaquim. Porém deu nova luz à sua cegueira os escritos apócrifos, ou sejam verdadeiros, de um homem dito Bandarra, de virtude incógnita, crassa ignorância, sangue suspeitoso, porém de longos tempos havido por vaticinante.
Preferiram a todo o discurso suas quimeras; e desarmado o tempo daquela poderosa chave com
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que abre e descobre todos os humanos segredos, quiseram que, apesar seu, por tantos anos estivesse encerrado. Foi tão notável a opinião e deu tanto que entender ao mundo, que não será ocioso trabalho manifestar-lhe sua origem.
Dom
D.
Diogo de Sousa, velho e prudente capitão, foi encarregado do governo da frota real em que El-Rei
Dom
D.
Sebastião passou, com duas mil velas, dizem alguns, de Portugal, afirmam que contra a ordem pública de El-Rei que era que três dias o esperasse. De outra parte a disciplina militar requeria não maior demora no porto por salvação das relíquias do exército.Dizem que admoestado
Dom
D.
Diogo à detença de alguns grandes, respondera que ele estava certo de que não tinha que esperar já nas praias da Barbaria. Até aqui chega o verdadeiro caso; mas degenerou logo a fama dele, inserindo-se fábulas a que a verdade do sucesso deu crédito como a ocasião.
Disseram que de noite recebera
Dom
D.
Diogo o general em seu navio a sete pessoas que, em grande segredo, se lhe descobriram e fizeram levantar; que era El-Rei
Dom
D.
Sebastião e alguns validos em que mais o pejo que a mágoa da perda havia impresso tal resolução que, sem novo ceptro não tornaria a assentar-se no trono que deixara.
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Mas aquele capitão, enquanto viveu, afirmou sempre sua resposta demonstrando que a certeza da morte de El-Rei fora a principal ordem com que desamparara a empresa.
Este caso vestido de tantas ficções, como cada dia lhe acomodavam seus sequazes, os proveu por tantos anos de mistério para dilatarem seu delibério.
A muitos servia de pretexto o exercício de suas paixões; e como então era grande o número dos descontentes, por consequência se aumentava a dos sebastianistas, como se não fosse ímpia medicina aquela que para curar os interesses particulares descompõe os comuns.
O mérito e a virtude envergonhados haviam fugido da República; em seu lugar pesavam as praças e não se dominava o Capitólio sem o interesse, com vício. Não viu o mundo idade tanto de ouro e de ferro.
Os mais sábios, suspensos da glória do silêncio, se lhe entregavam, para que de um voo subissem a imortalidade melhor que Ganimedes sobre as asas de Júpiter Aquilino. Outros inutilmente com fraquíssimos braços opostos à corrente da adversidade da pátria, procuravam rompê-la, ao menos para salvar-se.
Difícil é nestes tempos dar regras a obrigação do verdadeiro repúblico. Ver arder Roma e ajudar o incêndio, tirania é que Nero não quis repartir
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com outro bárbaro. Contentar-se de não ser cúmplice do estrago quem devia ser autor dos remédios é confirmar as obras do tirano e oferecer e lançar no fogo que se não apaga com uma só vida, parece desesperação em vez de zelo. Tantas e mais diferenças de ânimos concorriam em Portugal estes dias; muitos solicitavam seus danos, os mais o ocasionavam, os menos o preveniam.
Depois que os povos transferiram em os príncipes a acção de seu domínio a troco da sua conservação, só para se livrar de que eles tornassem a cuidar dela se deram os príncipes por inteiramente entregados da República. Concederam os homens livres no pago da sujeição pelo benefício da paz, justiça e defensa. Porém se do mesmo a quem se sujeitaram para eles compadece na discórdia, iniquidade e dano; qual a razão lhe evitasse tornem a investir a liberdade natural que é serva da natural conservação. A santíssima lei da natureza obriga ao homem à sua própria guarda, foi havida e é tesouro do céu que lhe entregou a providência de que lhe deu a razão livre. É a lei civil oposta à natural quando os direitos reciprocamente se perseguem.
Agora arrependidos e mal lembrados alguns príncipes fizeram crime aos vassalos do uso da razão. Ela pede emenda, aos racionais que se emendem
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com o cuidado próprio com que são governados, mas os príncipes, interpretando este preceito, julgam por usurpadores da República todos aqueles que em si recolhem o poder que eles enjeitam, ou esperdiçam.
Entre os mais que em Portugal viviam queixosos, juntaram em uma vontade, à semelhança das fortunas, alguns fidalgos de melhor qualidade no sangue que na sorte. Entre estes, o primeiro por anos
Dom
D.
Miguel de Almeida, descendente dos antigos condes de Abranches. Perigou
Dom
D.
Afonso que era de larga idade que sem ocasião pública havia passado, e entre os que viviam naquele tempo, o mais prático da corte antiga dos portugueses cujos últimos reis servira no Paço, nos anos da puerícia.
Dom
D.
Antão de Almada só nos avós inferior a este. Pedro de Mendonça de semelhantes qualidades. António de Saldanha, igual aos outros, com maior cabedal de serviços militares.
Dom
D.
João Pereira, ilustre sacerdote.
Dom
D.
António Mascarenhas, maior que todos no descontentamento.
Nenhum havia provado a delícia do mando, em a maior razão de apetecê-lo. Olhavam a muitos ocupados na administração pública e se julgavam mais dignos, se ascendia ardentíssimo fogo em seus ânimos contra os conselheiros de El-Rei, e por consequência ao valido e ao príncipe.
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Os homens que se não podem vingar dos astros celestes, se é certo que eles infundem nossas infelicidades, tornam-se facilmente contra os ministros; porque são astros humanos e tão capazes de exercitar o ódio como o de padecer a vingança.
Quando os reis levantavam os melhores da República a seus mais altos postos toda a República se satisfaz. Os prudentes por verem exercitada a prudência, os bons por verem premiada a virtude, os vãos porque estimando-se em muito se têm por uns daqueles.
Ao contrário se fora esperdício e não crime entregarem os magistrados os ter em ruína. Mas é péssima a consequência, dar ousadia aos mais, vendo a outros engrandecidos. Padece o príncipe que destes se cerca por mais justificado que se mostre. Aquele certo perigo de que fugiu Diógenes no certame dos tiros às censuras e detracções que se tiram a estes não sem providências, fazendo ordinário aos príncipes que se acompanham de pessoas interiores ao aplauso comum.
Descontentava-se a nobreza de Portugal do Governo presente porque dois ministros ambos árcades em sangue um só interesse e espírito haviam usurpado o mando universal do reino de Portugal Miguel de Vasconcelos; o de Castela Diogo Soares. O primeiro a secretarizar-se ao Governo; o segundo ao Conselho.
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Não julgo ou descrevo algum que nem o requer a história que em memórias e manifestos tem assaz inculcado seus nomes edificando as gentes da Europa.
Estas eram as pedras do escândalo público cultivado por seu contínuo desprezo aos que das alturas do ar olharem o plano da terra, lhe pareceram átomos os gigantes.
Não faltaram subtis políticos que observassem consigo, antes em arte, que a soberba a está a severidade daqueles ministros. O interesse como Proteu muda de formas, segundo lhe compete. É tal o mundo destes veniais que sem a modéstia do gesto pede a paga. Outros mais sublimes, vivendo em perpétua melancolia para os pretendentes, vendem primeiro a graça, depois o favor.
Consolavam em princípio suas queixas os ofendidos, com a distantíssima esperança da melhora dos tempos. Como se sendo sempre um mundo, um homem ficasse a emenda a cargo de outra coisa que não há.
Começou na prática dos sebastianistas a decente ocasião aos congressos destes malcontentes; de tal sorte ficou cisma para o fim determinado que quanto mais desprezada aquela doutrina tanto mais foi menos suspeitosa.
Não disputando em suas juntas de qualificar opiniões só porque depois de introduzida seria fácil
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qualificá-la, tratavam de introduzi-la sem ver quanto de lícito nos fica, ou quando vinha crível de servir-nos este encoberto prometido.
Este tardar depois de nós sacrificados com a manifestação ao perigo que devemos fazer, será caso lícito casar com o nosso príncipe nossa República, ou entregá-la como adúltera ao esposo.
Assim discorriam, assim temeram largos anos, sem que da prática se passasse jamais ao efeito. Disseram os poetas que seu Sezifo carregado de um imenso penhasco sempre subia por outro donde jamais chegava. Assim os negócios árduos no ânimo do homem não são somente aquele monte que carrega àquele que sobe.
FIM DO LIVRO TERCEIRO
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Livro Quarto
Contavam depois os observadores do Estado já perdidas quatro ocasiões, onde o Reino pudera quebrar as cadeias da violência.
A primeira no Capítulo de Tomar, quando ao primeiro
Dom
D.
Filipe se entregou a guarda de suas chaves. A segunda entrando em Lisboa todo o tesouro do novo mundo, a cargo do marquês de Montes Claros. A terceira fazendo corte em sua cidade
Dom
D.
Filipe
II
2.o
, com a maior parte da família real. A quarta poucos anos antecedentes ao tempo que ministros castelhanos, entre os quais o mais ocasionado
Dom
D.
Fernando de Toledo, mestre-de-campo-general de seus presídios, concentraram entre si o ódio popular de seus réus e depois de sua fúria até geral dos excessos.Outra mais é esta (então os queixosos):
Dom
D.
Duarte, príncipe da Casa de Bragança, neto dos nossos reis, se acha agora entre nós, vindo de Germânia, e quem negará que a Providência o levou insensivelmente 72
a estudar, naqueles exércitos, nossa defensa. Tínhamos Reino, tínhamos príncipe, tínhamos capitão, tínhamos causa, agora que nos falta?
A este modo fora tentado
Dom
D.
Duarte, reduzindo-se segunda vez a Alemanha; porque acharam, não sem política, que as empresas grandes mais se devem obrar pelos homens de mediana fortuna que pelos engrandecidos; por ventura assim o choraram os Epites na caída da Epopeia, quando só sinalaram por heróico o varão que por si mesmo desprezava o diadema; não o príncipe, que floresceu com iguais triunfos.
Dom
D.
Duarte que se achava sem esperança, ou motivo de tão grande empresa quanto mais conheceu o animo dos que lha insinuaram pôs mais artifício em mostrar que os não entendia.Saiu logo do Reino, chamado do imperador
Dom
D.
Fernando, com o regimento da banda negra sobre o posto que o esperava de sargento-mor de batalha, onde se empregam príncipes do Império. Voou, caminhando fora de tempo, à maneira que a garça se despede do laço do caçador em que havia topado. Àqueles congregados, não sei como lhe chamaremos, se zelosos ou atrevidos.
Agora, vendo o duque
Dom
D.
João, armado e vizinho, que por causa do seu exercício existia em Almada a quem só o Tejo divide de Lisboa, diziam 73
entre si, pois esperamos sem falta falar às escuras, nossa miséria não consente mais paciência. Se este é oprimido, Deus ajudará nossas obras; se outro, no-lo dirá pela língua dos sucessos. A providência se guardou outro, cedo colocará suas obras sobre nossos intentos; basta que obremos justificados se nos desamparar a sorte, fique-nos sempre a justiça. Será menos custosa a contingência.
Copiosos volumes informaram a Europa. Persuadiram indiferentes, conformaram amigos e confundiram émulos, assim na justificação como com o progresso deste grande negócio. Tantas razões indesculparam se antes o supusesse que referisse; mas por ser a principal acção do sujeito de quem escrevo, desproporcionada temperança seria, e ainda injurioso, ofício cronizar o menos.
À maneira do antigo Bizâncio, glória e injúria dos famosos Constantinos, que o Helesponto divide da pequena Gálata, o Tejo interposto faz divisão da Grão Lisboa e Almada vila breve, situada, dizem que pelos Anglos, com o nome de Vemadel, na ourela meridional do mesmo rio.
Foi costume dos duques de Bragança, depois de mudarem a Vila Viçosa sua assistência, quando convinha acudir à Corte de Lisboa, alojarem-se em Almada, quase como em bairro da Corte onde chegavam menos confusos os acidentes dela.
74 O duque
Dom
D.
João, havendo de fazer jornada a exercitar o mundo das armas do reino, veio à imitação de seus passados, vencendo maiores inconvenientes, quanto excede a pessoa pública a particular posto que grande. Acomodou em Almada seu assento.
Aqui fundou a negociação dos descontentes sua maior esperança, porque vendo e tratando ao duque, mais facilmente que em outra ocasião, houve muitas de lhe tentar o ânimo e suficiência.
Pudera sua observância ser de grande perigo, se acaso foram outros os que observassem, porém como a indestreza era recíproca, nem ele penetrou quanto faltava nos súbditos, nem eles quanto no senhor não achavam.
É verdade que como só aspirassem a príncipe natural, nessa só condição punham os olhos por amor, experiência ou engano, era consequência infalível de ser rei português e ser perfeito.
Dizem que por coroa de um largo discurso das misérias que o Reino padecia, se introduziu a prática do remédio, donde todos os circunstantes eram os três principais cabeças da facção da liberdade, não recearam dizer ao duque quanto em consciência lhe tocava tornar pela restauração de Portugal.
Dom
D.
João, com algum artifício, os ouvia, qualificando o queixume com o zelo e amor da Pátria, 75
mais como filho dela e a chegou a pôr a caminho até penetrar os fins de todos os segredos, promessas e esperanças dos interessados. Eles, da mesma sorte, por fazerem o seu pouco uso cúmplice de seus intentos, nenhuns lhe recatavam, persuadidos que nestas matérias não há atenção que não seja contentamento.
Estes actos muitas vezes repetidos e por muitos foram as primeiras alvíssaras do bom sucesso. Então, com louvável prudência se fez pausa. Julgando que os corações não podiam ser vistos em melhor maneira, já agora conferiam, só faltava dispor a obra, pois nos desenhos dela estavam conformes.
Tinha por este tempo os negócios de Bragança a seu cargo, em Lisboa, com título de agente João Pinto Ribeiro, professor de Direito, homem erudito com infelicidades como mostram seus apensos escritos em Haia. (Amava) ao Senhor e não menos ao Reino em cujo obséquio foi o primeiro assunto que fez público um discurso contra os portugueses que por nenhuma esperança serviram coroa castelhana. Confesso nos opusemos a esse seu parecer, como a outros que depois com maior autoridade era tomada do tempo que a razão estampou contra a proeminência das armas; contudo, em parte, o confessamos mestre por ouvirmos dele na Academia que chamaram Augusta a explicação do
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Sepetriácio Tertuliano, livro alto que ele bem penetrava.
Como João Pinto, por ocasião dos negócios que manejava fosse escutado de grandes ministros, era a esta causa conhecida dos maiores. Seu zelo também não ignorado. Tanta consideração o habilitava por idóneo instrumento, não só a lembranças e rogos, mas também as advertências que se continuaram ao duque, o qual não desagradado do mais proporcionado, respondia por sua intervenção tão formalmente que os interessados conheceram bem o acerto da sua eleição por ser constante entre os artífices que os metais soberanos, lenhos ilustres, com nenhum outro material se lavram e pulem tão bem como com suas próprias partes.
Fácil e seguro, mas sempre recatado, já o comércio entre Vila Viçosa e Lisboa, houve lugar de que se tratasse com clareza pertencente a tão grande causa. Pedro de Mendonça Furtado, senhor de Mourão e da Casa de Bragança não só amigo mas conjunto, foi enviado para que distintamente oferecesse o Reino ao duque. Levava memória dos parciais já muitos e grandes; e o que mais era certeza, de que o Povo seguiria sua voz com lágrimas e ostentosas promessas de vidas e fazendas que uns e outros constantemente se ofereciam sacrificarem em obséquio de príncipe natural e recuperação da liberdade portuguesa.
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Mais vezes se viu no mundo que os príncipes desprezassem as Coroas que possuíam que não aceitar as oferecidas. Porém, sobre que seja este comum costume dos humanos, aqui parece não interesse, sendo diversa a glória que só traz consigo o nome de Rei só pela alta divindade que pela forçosa obrigação.
Não se ofenderam os homens fazer deuses aqueles que tantas vezes os quis persuadir a lisonja; porque quanto mentiu a adulação diante de Alexandre, que os influía, desmentiu logo a seta que o molestava; porém como o coração do homem seja altivo e estranho da nobreza da alma, coisa natural parece que pois se não pode fazer divino, nunca se escusa de soberano. Tal é a observação de outras morais que opulentas concorrem a causa física desta apetência a aceitação e as causas que todos atribuem à sublimidade quando a fortuna lha apresenta.
Foi fama que
Dom
D.
João vacilara à vista da oferta e que de fora contemporizaram aquela temperança com que antes havia ajustado. Dizem histórias que desta perplexidade o resolvera a duquesa sua mulher, persuadindo-o que consentisse na vontade do Reino. Nem nego nem afirmo esta acção, sendo certo que não é novo nos homens desamparar pelo conselho das mulheres o próprio ditame; e sendo as varonis acções desta princesa, confirmaram se devia a 78
ela o valor para que estoutra sem disposição se lhe adjudicasse.
Achava-se a parcialidade com número de quarenta nobres da primeira ordem mais firmes que úteis ao fim proposto; porém quanto se avizinha à execução, tanto se enfraquecia o segredo com que ela se dificultava. Viam-se poucos os resolutos comparados com os indiferentes; menos ainda se os contrários se equiparassem e não por se livrarem de um tão grande perigo davam em outro maior; porque se não fosse o preço do segredo não tinham prémio com que comprar novos sequazes. O qual preço a uns seria de valor, a outros de vitupério, sendo a todos de risco.
Vimos, contra o costume da natureza, o secreto reverenciado de muitos. Ou porque todos eram interessados e lhe convinha; ou porque o destino enfraqueceu aquela vez a malícia, servindo-se como costuma de impossíveis em seu domínio fáceis.
Contudo eu perguntara a Platão e a Aristóteles porque razão o segredo se guarda melhor em muitos que em poucos, como aqui, com outras acções notáveis, foi observado; mas, enquanto os filósofos não respondem, tenho opinião que o segredo em poucos a essa causa forceja contra os curtos termos que o compreendem, como faz o rio apertado
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dos montes próximos e robustos; porém quando a causa oculta se estende a muitos, já não contente com a opressão, pois cada coisa tem sua esfera determinada e nenhuma imensa, quase como a água derramada no campo que, em molhando o que pode alcançar, pára e não discorre porque não apetece mais largueza. Excedeu toda a credulidade os progressos deste segredo em que se fundou a glória do sucesso.
Determinado o dia considerado o modo da obra, todos os acidentes a contradiziam, que a alguns foi motivo de inconstância disfarçada nos trajes que costuma usurpar da prudência. Viu-se em outros vontade animosa de vinganças particulares. Assinava-se a morte aos inimigos com pouca mais causa que a ocasião. Porém os advertidos disseram que nas aras da sagrada liberdade se não sacrificaria outro animal que o tirano.
A todos pareceu devia morrer Miguel de Vasconcelos, secretário e valido, universalmente odiado e odioso por muitas causas, porque, derrubando em seu ministro a estátua do príncipe, faziam o delito incapaz de reconciliação com que se certificavam de arrependimento temerosos, (davam) satisfação ao Povo, dando-lhe a beber o sangue daquele que lho bebia, amedrontavam aos menores confidentes de Castela, vendo-se atreveram ao
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mais alto, e quando menos (prorromperam) se não ficarmos com príncipe ficaremos sem flagelo.
Junto o dia memorável que foi o primeiro de Dezembro, sábado, já com grande aclamação de mistério, tiveram a antonomásia dos dias do ano da saúde universal de 1640. Às nove horas da manhã, entrando no Paço Real os parciais, pronunciaram duas altas sentenças ao povo português e à monarquia espanhola. Foi
Dom
D.
Miguel de Almeida, velho de oitenta anos, quando desembainhando tremulamente a espada disse: - Valerosos Lusitanos: viva El-Rei
Dom
D.
João o quarto de Portugal, até agora duque de Bragança. Viva! Morra El-Rei de Castela que nos arrebatou a liberdade! A este tempo foram, com pouca resistência, superadas as guardas castelhanas e tudescas, reclusa a princesa regente em seus aposentos próprios; os do secretário inadvertido logo entrados; ele morto, morte de golpe de bala que se entende lhe disparou
Dom
D.
João de Sá, filho do conde camareiro-mor, que adiantado aos outros não receava o perigo.
A morte foi crua, a vingança bárbara, e contudo maior o espanto que o escarmento, porque, sendo tão antigo no mundo o ferro como a tirania, não vemos que sobejando tragédias faltem tiranias.
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Discorria pela grande Lisboa a nova voz que denunciava o novo príncipe, sua inteligência causava vários efeitos; uns ânimos inflamava no amor da Pátria e alvoroçada liberdade, outros no ódio de seus autores. Não debalde, disseram os antigos, nasceram de um mesmo parto estes dois afectos dominadores do mundo. Assim também vemos que pelas várias disposições dos objectos um mesmo sol endurece o barro e derrete a cera.
Dom
D.
Álvaro de Abranches, a cavalo, com a bandeira da cidade, discorreu por ela. Muitos dos parciais armados o acompanhavam, sem que alguma outra palavra ou movimento se opusesse. Conhece-se logo que as obras de Deus quanto de mais débeis instrumentos se servem mais felizmente correspondem.
Em duas horas a cidade, em sete dias o Reino, e em mais seis meses as conquistas mudaram senhorio. Sem dúvida faltou resistência. Sessenta anos de domínio castelhano, exercitado de três príncipes, se esqueceu em um instante. Entregaram-se os povos, não sem maravilha, a um Senhor que os visinhos jamais tinham visto, nem ouvido quiçá os distantes.
Gloriai-vos Portugueses de que não há visto o mundo outra nação restaurada por semelhantes passos. Pessoas particulares sem participação de
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algum príncipe, sem socorros premeditados de outras partes. O Reino cingido de seu agressor, sem outra vizinhança de que poder valer-se, seguro com treze presídios, em outras tantas fortalezas, conquistas distantes, governadas por ministros obrigados aos benefícios do príncipe presente, e o admirável sucesso que tudo se conformasse de sorte que, entre o aceno e a execução, entre o aviso e a obediência, não houvesse intervalo. Ó admirável sucesso!
Logo se abraçou a paz e a justiça e o furor de tantos não custou a vida de um só, ficando no mesmo dia a República tão serena como se debaixo daquele mesmo império houvesse vivido sempre. Alguns interpretaram feliz o repouso. Não se estranha, diziam, o novo principado, porque não é novo de pais e avós. Vassalos somos deste rei e de seus antepassados.
Os ministros castelhanos de política e guerra foram postos em custódia competente, melhor tratados do que se esperava de gente tumultuosa. Aos mais oprimia grão temor que se regulasse pelo mérito no perigo, não fora grande sendo certo que o Reino se achava mais ofendido da ambição dos naturais que da soberba dos estranhos, não faltando esta ou aquela.
O duque avisado por instantes do sucesso se dispôs a vir receber a coroa, e entretanto tomou posse
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com aplausos dos povos e senhores circunvizinhos. Era grande a alegria dos seus, vendo-se tão barata a subida do Senhor a quem serviam e também esperavam engrandecer-se. Diminuía contudo a dúvida o contentamento; e também serviu de generosidade porque havendo-se com a glória como incrédulos o receio passava por modéstia.
Dom
D.
Álvaro de Portugal, que por sua autoridade foi dito o Senhor
Dom
D.
Álvaro, irmão do duque
Dom
D.
Fernando, deu alta baronia à Casa de Ferreira, fazendo-a tão proximamente participante na de Bragança, depois repetida por novos casamentos que celebrou um filho segundo do marquês de Ferreira com uma filha do duque
Dom
D.
Jaime e da duquesa
Dona
D.
Joana de Mendonça, manteve sempre os senhores deste estado com igual amor que é devido com os duques até o presente.O marquês
Dom
D.
Francisco de Melo foi o primeiro que se ofereceu em serviço do duque
Dom
D.
João que agradecido à sua leal correspondência lhe deu o ofício de mordomo-mor da Casa da Rainha, e à marquesa sua mulher o cargo de camareira-mor, com que o novo Paço ficou enobrecido de sorte que logo aos maiores do Reino custou mais desejo que escrúpulo a ocupação de outros postos.
Entraram os novos reis em Lisboa aclamados novamente, seis dias depois da aclamação, suas pessoas,
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florentes de idade, sua família florecida de três herdeiros, Teodósio, Joana e Catarina. Pouco depois, em público teatro, e seguindo-se as cerimónias antigas, com outras cautelas dos juristas, se celebrou solene juramento, confirmando-se a voz da aclamação conforme o Direito porque visse o mundo que ela era não furiosa mas justa, não acidental, mas premeditada, não popular, senão ilustre.
Conta-se ser estranho o modo de manifestar a seu rei o conde-duque a perda de Portugal. Entrou, disseram, pedindo alvíssaras da nova que lhe levava porque naquele dia tinha Sua Majestade mais um grande Estado dentro de Espanha que possuir ou dar como fosse servido.
Deram os validos dos príncipes em lhe escusar por todos os caminhos a paixão da ira, como se quando insta ela não fosse a vida da fortaleza. Os reis de Espanha, por comunicação do sangue de Germano participam da fleuma daquela nação. A esta causa, El-Rei
Dom
D.
Filipe, de natural mansíssimo, saciado do artificioso domínio dos ministros, quanto não sentia ignorava da ruína do Império. E esta foi a mais urgente causa de armá-lo e diminuí-lo.
Ninguém acode a curar a chaga cuja dor não experimenta. A falta de sentimento é signo instrumental da falta de vida. Por esta causa creio que
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o tacto é o mais nobre sentido do homem. Sem vista vive; sem ouvidos, sem olfato, sem gosto. Sem tacto não há vivente, porque a vida está mais formalmente em este sentido que em outro.
Nem por isso deixavam de sentir os tribunais e ministros castelhanos os sucessos de Portugal; mas enquanto a verdadeira causa dele se continha nos dependentes do conde-duque, era diverso o conceito que o pouco estudo fazia. Chegaram as notícias gerais, beberam todos a informação, deu aquele negócio em o ânimo de El-Rei que não fez pequena operação os discursos que acerca dele, não sem malícia, lhe introduziam seus familiares.
Quem mais livre referiu o sucedido foi a princesa Margarida que a esse efeito, concedendo-se em Portugal, enviou à Corte de Madrid
Dom
D.
Pedro da Mota Sarmento, seu mordomo. Onde chegando, tão depressa se viu preso como ouvido por se lhe não ouvir a prática com que justificava a Alteza a que servia.Com pretexto de parcial aos interesses ou desculpas do Reino, o recolheram à cadeia pública, avançando assim tacitamente, com áspero descontentamento, o enviado da princesa a fim de que mudasse estilo. Mas El-Rei de Portugal, se outras contradições o não impugnaram dando esperança de liberdade, como logo deu a Margarida, grande matéria de Estado empreendera quanto a resolução
86
da fortuna do conde-duque que, neste ponto, fez pausa infelicíssima.
Dom
D.
Turíbio Manrique, conde de Feliciana, foi o primeiro cabo que se mandou a Badajoz porque tivesse conta daquela cidade, se da de Elvas os portugueses intentassem ofendê-la. Porém, uma e outra estava em tal estado que o primeiro que cometesse ao vizinho se faria senhor dela. Esta observação era conhecida de ambos os partidos e porque nenhum podia superar ao outro se deram ambos por satisfeitos e não superados.
Havia El-Rei
Dom
D.
João tomado o exercício do governo que lhe foi entregue pelos dois arcebispos regentes a quem a nobreza encarregou logo que dele depuseram a princesa Margarida. Eram
Dom
D.
Rodrigo da Cunha, metropolitano de Lisboa,
Dom
D.
Sebastião de Matos Noronha, primaz de Portugal e Espanha, se Toledo e Tarragona não prevalecerem.
Os reis antigos portugueses, com excelente exemplo, nunca admitiram, em paço e corte, guarda ou valido, ficando do amor dos vassalos a segurança da sua vida e da verdade dos ministros e da sua consciência. A esta causa era e foi sublime o ofício de Secretário de Estado que, antes ocupado de grandes sujeitos, deixava ao tempo presente o defunto Vasconcelos.
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Nesta forma julgavam os nobres que dando a El-Rei secretário capaz lhe ofereciam valido suficiente. Achava-se então em Lisboa, ocupado no pequeno ofício de secretário das Mercês, Francisco de Lucena, ministro antigo, que trinta e seis anos exercitara no Conselho de Portugal, em Madrid, o posto de Secretário de Estado, com mais intercadente opinião no procedimento que na suficiência; este foi posto, indo todos os parciais a buscá-lo a sua casa para que aplicasse ao sucedido de El-Rei e bem público seu grande juízo.
Fora filho de Afonso de Lucena, de profissão jurista, criado antigo de Bragança e que a
Dona
D.
Catarina, senhora daquele estado, servira de secretário, desembargador e conselheiro, em todo o tempo das alterações. Era contudo fama, entre os criados daquele tempo, que este antigo Lucena recebera de El-Rei
Dom
D.
Filipe, à custa dos interesses do seu senhor, grandes vantagens. Creio que, com alguma causa de curar barata a inclinação de Afonso de Lucena a seu serviço para que trouxesse ele a vontade de
Dona
D.
Catarina, donde procedia haver anos depois nomeado por Secretário de Estado no Conselho a Fernando de Matos, irmão de Afonso, a quem sucedera Francisco de Lucena, seu filho.
Passava adiante o queixarem-se que talvez compreendesse aos mesmos duques diziam que, esquecidos
88
um e outro secretário Matos e Lucena da honra e princípios que deviam à Casa de Bragança, se lhe mostravam em sua valia pouco afectos.
Esta regra de contemporizar com o serviço de dois senhores não tem achado até agora, nem a prudência dos filósofos nem a indústria dos políticos, nem há para que esperar o ser achado depois de haver negado, que a haja, não menos que a verdade divina.
São tantas as causas que tenho de referir fundadas nos serviços destas matérias que não julgo haver quebrantado a lei da brevidade, dilatando tanto a notícia de uma ausência por ventura julgada por desigual da atenção que lhe devemos.
Havia, como vemos, em El-Rei, razões para amar e temer a Francisco de Lucena, que achou introduzido Secretário de Estado, mas nele não havia alguma que o desobrigou de amar e servir a El-Rei. Um novo incidente se interpunha que foi o mais violento nas tragédias que depois sucederam. Era que Afonso de Lucena, primogénito deste secretário, se achava nesta Corte requerendo ao tempo da aclamação, ao qual como o pai muito amasse, sem dúvida muito desejaria valer e ajudar para vê-lo livre e gozá-lo presente, sendo no Reino casado à puridade e juízo competente, companheiro no exercício do Rei.
O primeiro negócio do novo rei foi o aviso que, por várias partes, se remeteu de seu reinado a seu
89 irmão
Dom
D.
Duarte que a este tempo não só se ocupava no serviço do César, mas assistia atentíssimo ao governo de seu regimento aquartelado então no país de Francónia, distante da Corte Imperial e por essa causa do comércio das Germânias.
Com ser este o primeiro negócio mostrou a experiência se lhe tardara resolução, ou errara no modo, nome e cartas soltas se despacharam e todas perdidas por Flandres, Hamburgo, Holanda e Veneza, devendo reduzir as cartas a menos enviadas que, como cartas missivas, pudessem calar ou dizer o sucesso, segundo a ocasião o pedisse. Acaso o alvoroço mais que a malícia foi o culpado desta inadvertência, quando depois com outra maior foi punida como maldade e não como inadvertência.
Diremos como se achava o Reino quando El-Rei
Dom
D.
João entrou no governo dele. Governava a Índia o vice-rei conde de Aveiras, João da Silva Telo. O vice-rei marquês de Montalvão tinha de pouco tempo o regimento do Brasil.
Dom
D.
Jorge Mascarenhas em África, tinha as praças de Ceuta, Tânger e Mazagão.
Dom
D.
Francisco de Almeida,
Dom
D.
Fernando Mascarenhas e Martim Correia da Silva, cujo pai, Henrique Correia, governava o reino do Algarve; o Porto, Manuel da Silva Sousa. Nas ilhas, a Madeira, Luís de Miranda Henriques; São Miguel, o conde de Vila Franca. Cabo Verde, João Serrão 90
da Cunha. Angola, na Etiópia, Pedro César de Meneses. Assistiam nas presidências,
Dom
D.
Francisco de Castro, bispo da Guarda e no Geral do Santo Ofício; no Desembargo do Paço e Misericórdia, o arcebispo de Braga; da Mesa da Consciência, o conde de Castanheira; o conde de Cantanhede no Senado da Câmara de Lisboa.Não menos convém à História a relação dos príncipes convenientes. Pontificava Urbano
VIII
8.º
a cadeira de
São
S.
Pedro; a Imperial possuía-a Fernando
III
3.o
. Reinava em França Luís 13, cognominado o Justo. Em Espanha, Filipe
IV
4.o
, dito dos seus o Grande. Em Inglaterra o trágico Carlos
I
1.o
; em Dinamarca, Cristina, filha de Henrique Gustavo Adolfo. Nos Estados de Holanda e Florença, o príncipe de Orange Frederico.
El-Rei, aconselhado do secretário Lucena, elegeu pela primeira e mais conveniente máxima não tirar o ofício nem fazer mercê. Como primeiro lhe parecesse, assegurava os ânimos dos ocupados; e, com o segundo, que seria mais fiel a esperança que a conformidade dos súbditos. Confiava que os portugueses antes sofreriam lhes tardassem as mercês que as julgariam por bem repartidas, por ser gente que por aquela emulação que os leva a sentirem mais o proveito alheio que o próprio. Era prática constante dos reis e ministros: defendamos todos a capa e, depois, partamo-la.
91
Proveram-se os negócios em termos; e porque os da defensa precediam a quaisquer outros, foi enviado
Dom
D.
Francisco de Portugal, conde de Vimioso, por capitão-general da província do Alentejo, fronteira principal do Reino. O conde de Óbidos ao Algarve. Fronteiras, Martim Afonso de Melo ; Entre Douro e Minho,
Dom
D.
Sebastião. À Beira,
Dom
D.
Álvaro de Abranches, Rui de Figueiredo a Trás-os-Montes. Uns com os títulos de fronteiras, outros de governadores, segundo o lugar valia, ou a rudeza daquela disciplina que o aconselhava.
Não era de menos consideração que importância a matéria das embaixadas. Porém, como elas se expediram tão próximas do sucesso, não houve lugar de pedir mais suficiência aos eleitos que a fidelidade.
Para Roma foi nomeado o bispo de Lamego
Dom
D.
Miguel de Portugal, em quem sangue, valor, pessoa e juízo não faltava, suposto que faltasse a experiência de negócios grandes. Deu-se-lhe por companheiro Pantaleão Rodrigues Pacheco, doutor e ministro de boas letras e eloquência.
Não conheceram que os príncipes se escusavam de enviar a Roma embaixadores e eclesiásticos, pela especial sujeição que estes têm à Igreja ou, por ventura, se conheceram, haveriam maiores razões para desamparar esta comissão máxima do Estado. Carlos
92
V
5.o
, promovendo da embaixada de Veneza à de Roma a
Dom
D.
Diogo de Mendonça, pessoa até então eclesiástica, em a mesma carta em que o mandou passar à Corte Romana, lhe ordena se mude logo ao hábito secular para que assim o sirva em inteira liberdade.
Direi mais que os portugueses tão alheios ou contrários foram desta observação que sempre manejaram por pessoas da Igreja os negócios da Cúria até que, repreendidos de alguns custosos sucessos, tarde revogaram esta resolução; porque a sangria que no princípio da manhã é salutífera, sucede ser mortal na declinação do dia.
Para França se determinou o monteiro-mor, Francisco de Melo, de mais bondade que requeria o ofício para que foi elegido; e porque El-Rei
Dom
D.
João se havia aclamado ou restituído, se ordenou que os legados fossem sempre dois, cavalheiros e letrados. Porque em os primeiros se não podia achar a suficiência dos segundos. Foi a este fim, com Francisco de Melo, António Coelho de Carvalho, doutor da legacia e, já a este fim, desembargador do Paço. Para Inglaterra,
Dom
D.
Antão de Almada, cuja família procede do antigo
Dom
D.
Ligel dos famosos anglos que ajudaram a ganhar Lisboa. A este acompanhou Francisco de Andrade, do Supremo Senado da Justiça.
93
Com despachos a Dinamarca e Suécia e cidades austríacas, partiu Francisco Sousa Coutinho que, como já dissemos, em os negócios externos da Casa de Bragança fora sempre ocupado. E, porque lhe não faltasse justiça, se introduziu na secretaria desta embaixada António Rodrigues de Carvalho, professor de Leis, moço, até então sem exame dos estudos em suficiência pela razão dos interesses do Reino e da destreza da nação.
Era a mais importante que todas a embaixada de Holanda, onde, menos por concurso de vontades que por facilidade de artigos, se introduziu Fernando de Mendonça. Tinha valor e liberalidade capaz de grandes efeitos, antes para o exercício militar que para o político que de todo não só ignorava, mas aborrecia. A este fim, se procurou temperar a imperícia do embaixador com a prudência dos companheiros e lhe foi nomeado Luís Pereira de Castro, insigne doutor em ambos os direitos, por igual, e António de Sousa e Miranda, inferior ao primeiro por ministros dos papéis e documentos que continha a embaixada. Não eram só aqueles que justificavam, como aos mais príncipes, a justiça de El-Rei em sua restituição, mas a do Reino em todas as guerras, posses e represálias entre Portugal e Holanda, assim no antigo como no novo mundo.
94
Fosse sorte ou artifício, Luís Pereira ficou em Lisboa e Tristão de Mendonça, por Inglaterra, em companhia do Almada, passou à corte do Alteza a tempo que os Estados estavam resolutos a enviar embaixador a El-Rei de Portugal, oferecendo-lhe a própria paz e socorro que, agora, El-Rei deles necessitava.
Que político houve jamais no mundo, que por regras de humana prudência, alcançasse o estabelecimento do Estado? Vemos que uns negócios se ganham por benefício de pureza, outros por ela se precipitam. Por esta causa aqueles famosos antigos denotaram na seta e âncora, no delfim e remora, aquela mistura de presteza e ponderação própria dos príncipes; mas eu vejo que nem todos os que acertaram a pintar as misteriosas empresas, acertaram a empreender e conseguir as glórias. Ambas creio que Deus quis esconder na nuvem desta vida os fins das causas, por temperar a ambição dos soberanos com a incerteza, e humilhar sua soberba, deixando-os tão dependentes dos sucessos que eles vêm a ser na opinião dos homens, contra a dos sábios, a pedra de tocar as humanas sabedorias.
Do Papa só pretendia El-Rei de Portugal a bênção apostólica, ou quando lha duvidasse conceder fosse a justificação do seu direito, a fim de que se entendesse, não de que se julgasse.
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Com El-Rei Cristianíssimo eram diversos os intentos: dava-se-lhe conta do sucesso, inteirava-se da razão dele; e, fundando na comunidade dos interesses, a humilhação da potência de Espanha, se propunham vários meios de sua ofensa. Pediam-se alguns sujeitos práticos na arquitectura militar, e se oferecia cómodo e prémio aos voluntários que quisessem vir a servir na nova guerra.
Da Grã-Bretanha, como amigo de El-Rei de Castela, não se desejava mais que a continuação da paz com Portugal, segundo até àquele dia observavam.
A paz de Holanda continha maiores efeitos. Por isso maiores dificuldades. Quanto a coligação de ambos os poderes de Portugal e os Estados não se oferecia dúvida. Eram muitas pelo tocante as conquistas do Oriente e Ocidente e livre navegação dos mares. Porém, depois da última ventilação dos negócios, se veio a supor em maior obstáculo que os passados; porque os holandeses, mostrando zelo da sua religião, pediam mais liberdade ao uso dela, estando no reino do que nenhum rei católico podia conceder-lhes.
Esta prática veio depois a perturbar o tratado que já em Inglaterra estava concluído. Porque El-Rei
Dom
D.
Carlos, sendo sem dúvida o primeiro que recebeu os ministros de Portugal, como de rei legítimo, 96
estribando-se defensor da sua crença sobre os mais professores dela, intentou distratar o capítulo da religião; e com ele o acordo inteiro. Porque os embaixadores de Inglaterra haviam limitado em termos estreitíssimos tudo o que tocava aos exercícios da Consciência Livre. Pelo contrário, o de Holanda, com mais largueza ou menos conselho, mostrava conceder aos Estados quase tudo o que nesta parte perdiam, donde El-Rei de Inglaterra pretendeu ser preferido quanto mais igualado.
Foi depois, para uma e outra pretensão, o cómodo difícil; mas, acudindo Deus por sua causa, deu meios para a celebração das concórdias. Em Inglaterra, uma paz pacífica, firme e perpétua. Em França, coligação por benefício de recíprocos socorros, com estabelecimento de trégua geral por tempo de dez anos, troca de hostilidades a amizade a seus bons efeitos; prometimento de mútua solenização de paz, perpétua posse e esperança de socorros.
Francisco de Sousa, embaixador aos senhores setentrionais, arribando acompanhou a Corte de Dania, conseguindo daquele rei familiares audiências e convites sumptuosos. Não pôde alcançar a entrada pública, escusando-se com a nova liga da Casa de Áustria; porém tacitamente assentou o processo dos comércios; e deixando-o com as cidades de Hamburgo, Lubeque, Dansi, e resto do Círculo
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Austríaco, conforme o mesmo tratado, subiu a Península Setentrional, aonde com breve assistência da Corte de Estanislau, digo Estavo Lácio, celebrou paz e assentou interesses com a Coroa da Suécia e rainha Cristina e seus tutores.
Com os príncipes e Repúblicas de Itália se ventilou no Conselho de Estado de El-Rei se convinha fazer os mesmos ofícios de manifestação por via de embaixadas; porém a todos pareceu que, por intervenção de ministros portugueses que estavam em Roma, se observasse primeiro a inclinação destas potências; porque, como delas o reino não podia receber outra utilidade que os comércios, os quais lhe eram tão úteis a elas como a Portugal, bem se entendia que não faltariam a elas sem mais razão que seu próprio interesse. Assim o confirmou a experiência, porque Veneza, Génova e Florença, da mesma forma que antes, foram remetendo seus negócios a Lisboa, sem alguma alteração, antes por bons meios deram a entender que toda a Itália queria a majestade do mesmo rei de Portugal e entendia sua satisfação sinceramente; e faziam a demonstração de pública amizade, logo que o Pontífice se declarasse em favor do Reino.
El-Rei de Espanha, por seus ministros e dependentes, se opôs ao recebimento da embaixada do bispo de Lamego. Porém o Papa Urbano Oitavo, de
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singular valor e prudência, não receou de admitir a audiência secreta, com prelado. Então, não só mostrou contentamento, ouvindo-o, e a justiça de El-Rei
Dom
D.
João, mas a erudição como varão sábio, adiantando-se talvez a explicar os direitos que se lhe expunham.
O negócio pedia maduro conselho; mandou que se informasse o Sacro Colégio, e então o bispo seguisse a Cúria. Por não ser novo, antes obrigação corroborada com Direito, visitarem os prelados, por si os seus núncios cada três anos ad limina apostolorum.
Destas premissas, inferindo os ministros espanhóis aquele fim que podia esperar-se do grande apreço do príncipe, pretendiam por violência, despicar-se da ocasião deste perigo.
Corria fama em Roma que o bispo de Lamego havia de ser assaltado nas ruas da Corte Santa, por ministros e soldados católicos, como padeceria, com maior razão, nos desertos da Arábia pelas cáfilas dos bárbaros. Porém o bispo, não embargado deste receio, continuava, com pompa de legado real, todas as acções convenientes.
Foi fama que da Corte de Espanha veio escrito o modo da empresa; e de Nápoles os instrumentos. Alguns entenderam que o marquês de los Velles, embaixador que então era de Espanha, por seu
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movimento, resolvera aquela cilada; mas que quem conhecesse sua temperança, não dará crédito a esta calúnia. Havia mais entre o marquês e o bispo não remota afinidade, sendo o marquês casado com
Dona
D.
Maria da Ribeira, filha do duque de Alcalá que fora genro do marquês de Castelo Rodrigo,
Dom
D.
Cristóvão de Moura, cujo genro também era conde de Vimioso, irmão do bispo.
Outros cuidam fora o caso o terrível encontro que, com escândalo da Europa, sucedeu em Roma entre o marquês e o bispo, assistido aquele de armas e soldados e assassinos de Espanha, Nápoles, Milão e Sicília; e este de franceses, catalães e portugueses, com sua família e do embaixador de França que, com atenção e valor, ajudou a conservação da autoridade de Potugal em seu ministro. A notícia do sucesso deu por papéis e discursos dos políticos, mas nem os inimigos dos portugueses deixaram de confessar sua vantagem.
Discursavam os que presumiam que o Papa, estimulado da soberba de Espanha, a castigasse, admitindo logo a Embaixada de Portugal. Viram-se diferentes efeitos porque nem o Pontífice se mostrou tão queixoso dos castelhanos, nem tão propício dos portugueses cuja causa se representou pelos desafeiçoados menos justificada.
O bispo manda-o sair da corte. Dilatou com razão os termos dos retiros, fazendo-os até Portugal,
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deixando a Roma suspensa e porventura temerosa da súbita ausência cujo receio fora mais certo para com outra nação. Mas os portugueses, por devotos ou confiados em demasia, não souberam aproveitar-se do valor daquele.
Sabemos que nossa lei é mansa, clemente, e aquele grande preceito dela que nos obriga a perdoar as injúrias, não nos obriga a não senti-las, antes fará menos por observância da lei aquele que perdoar o que não sentir maior mérito, logo tem ao contrário aquele que sentindo muito a injúria se reduz a perdoá-la por reverência do preceito.
FIM DO LIVRO QUARTO
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Livro Quinto
A este tempo padeciam quase todos os príncipes de Europa intestinos e perigosos movimentos. Ao Papa não faltavam discórdias com Parma e Placência. Veneza, se não as intestinas, se via ameaçada da grande guerra presente, ainda viva com o rei dos Turcos. A França tinha revolvido e escandalizado o conde de Soisson e duque de Brulhou, com os mais descontentes aquartelados em Sédan e dispostos, como costumam, contra a obediência de El-Rei. Entre o príncipe de Orange e as Províncias Unidas se praticavam receios e cautelas que sobre douradas do artifício, anos depois, em vida do sucessor vieram a abraçar a paixão descoberta.
Inglaterra começava a flutuar nas guerras civis, donde espirou a Majestade de seus antigos reis pelos progressos do levantado Lesle. Este escocês de sua facção, morte dos Vigeris de Irlanda Tomaz e reclusão de Velião Laud, arcebispo de Cantuária
102
a respeito de El-Rei
Dom
D.
Carlos. Espanha, não mais serena que os vizinhos, além da poderosa guerra da Catalunha e nova oposição de Portugal, a que se preparava, começou a padecer outro terrível acidente.A poucos tempos do reinado de El-Rei
Dom
D.
João, entrou em Portugal pelo Algarve
Frei
Fr.
Nicolau de Valasco, religioso observante que dizia ser confessor do duque de Medina Sidónia,
Dom
D.
Gaspar Afonso Perez de Gusmão, irmão da rainha de Portugal, a quem mostrava dirigir a mensagem de importantes negócios.A fama deles tão notória que não receou ser
R
R.
de sua manifestação, antes espero emendar em parte os erros do juízo público que, neste caso, resvalou notavelmente a malícia.
Os portugueses diziam que a indústria castelhana fora tão poderosa que fizera armar laços de enganos nas palavras e afectos daqueles de onde mais se esperava a sinceridade; porque, diziam eles: assim como os reis não têm parentesco para que se possa preferir o Estado, assim os vassalos não têm parentes que pelos reis se não devam desamparar. Que será, acrescentariam, se a Casa de Medina, por obséquio ou obediência, faça do sangue névoa com que pretenda cegar os nossos portugueses? Quem duvida que propondo-nos, por
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ventura, alguma empresa sua e nossa, trace assim nossa ruína e seu aumento debaixo da espécie de Religião, assim como introduziram os troianos o fraudulento Paládio em sua República.
Não direi se entre El-Rei e os ministros teve lugar a prática deste temor; ou se tinham documentos para convencê-lo.
Poucos dias depois de ouvido,
Frei
Fr.
Nicolau foi despachado a Holanda e França, com título de embaixador extraordinário,
Frei
Fr.
Diniz de Lencastre, da Ordem dos Pregadores, com as honras de sobrinho de El-Rei cujo parente era.Destas embaixadas não resultou outro fruto que uma moral contestação das calúnias que os émulos e criados do duque de Medina haviam introduzido entre El-Rei de Espanha, sendo o principal autor
Dom
D.
Lourenço de Avelar, secretário do duque.
Disseram que ele, estimulado de agravos e influído da irmã, pretendia levantar-se com o título de Rei da Andaluzia para cujo efeito se passariam à ilha de Cádis, onde pretendia assentar sua Cadeira. Que desde aquela cidade, assistido das armas de Portugal, França e Holanda, com quem por meio de Portugal se tinha confederado, daria calor aos amigos e vassalos que, com o resto das províncias, se lhe entregariam logo. Prova não ser grande e
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igual amor e reverência que todos aqueles povos tinham à Casa de Medina; e pedindo instantemente o remédio, fizeram que El-Rei
Dom
D.
Filipe se adiantasse com a prevenção do dano ao crédito da suspeita; mas tão moderadamente que nunca pareceu mais digno de grande império que quando mostrou o pouco que estranhava a diminuição da sua grandeza.França, mais oficiosa que os outros coligados, remete sua armada de vinte navios a cargo do marquês de Boreza, sobrinho do cardeal valido, que com o ofício de general e embaixador se presentou breve a El-Rei
Dom
D.
João, cujo poder naval, governando António Teles que então chegava de governador da Índia, encorporado com o de França, partiu de Lisboa em demanda de Cádis, onde as quinas e lises, aparecendo arneses de suposta amizade, acharam todas as demonstrações de resistência que de uma praça guerreira e bem defendida podiam esperar-se.
Pouco depois chegou outra armada auxiliar de Holanda, igual à francesa, em número de navios, não na nobreza e galhardia dos aventureiros; e por seu general, também com vezes de embaixador Adrião, o qual, sabendo da antecipação da jornada, procurou ir ser companheiro nela, onde já todos, desocupados de outra empresa, procuravam esperar
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os galeões de prata que, por Novembro, costumavam vir reconhecer o Promontório Sacro.
Com pouca tardança se seguiu à armada de Holanda outra de nove navios de guerra e dezoito regimentos de cavalaria que El-Rei
Dom
D.
João mandara prevenir naqueles portos, a qual regia
Dom
D.
António Manuel retirado em Flandres.Foi este o maior socorro que veio ao Reino. Continha, fora as embarcações, algumas compradas para El-Rei, um regimento de cavalaria de quinhentos cavalos, cujo coronel era Lamberto Wanflorestil; outro de infantaria à sua mesma ordem, de mil infantes. Quinhentos dragões ao cargo do capitão Estácio Pie; inumeráveis armas de fogo, pólvora, artilharia e engenheiros, com duzentos infantes veteranos portugueses, que
Dom
D.
Francisco em Holanda ajuntara dos retirados de Flandres, Alemanha, Itália e Catalunha; e alguns que foram rendidos em Ceilão, quando se perdeu a fortaleza de Gale.
O fogo de intestina discórdia que abrasava as outras nações de antigos e pacíficos reinados, mais propriamente podia prender nas vontades e humores de um novo senhorio, fora mais maravilha se Portugal não experimentasse estes movimentos quanto admiração de haver perigado neles.
O marquês de Vila Real, possuidor daquela ilustre casa que, com apelido de Noronha conserva a
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baronia de dois reis Fernando, o Fermoso de Portugal e Henrique, bastardo de Castela, não se achava interiormente satisfeito da confiança que dele fazia El-Rei
Dom
D.
João. Era, vendo-se por idade e juízo, o primeiro dos grandes do Reino. Em nada se via dos inferiores preferido, nem aos iguais igualado. Dizem que desta queixa fazia participante ao duque de Caminha, de ânimo nobre e assaz moderado, do qual, por ventura com estranheza repreendido, declarou sua queixa ao arcebipo de Braga que, sobre ministro de Estado e presidente de um tribunal, vivia em profundo descontentamento, o que interpretando o povo (porque as paixões da alma são logo reveladas dos sinais exteriores) publicamente clamava contra sua fidelidade.
Esta paixão, como se disse no primeiro livro, começou em aquele antigo queixume que o arcebispo, estando em Elvas, tivera de El-Rei, quando duque de Bragança, a tempo de suas bodas, a qual conservada sempre em um coração altivo e incitada agora por novos motivos, andava, como o ar violento nas entranhas da terra, acometendo a saída à custa de algum público terramoto.
Conferidas as queixas do arcebispo e marquês, passou a prática livre, e depois a conferência, que compreendeu, além dos autores, ao inquisidor-geral,
Dom
D.
Francisco de Castro, ao duque de Caminha, 107
Dom
D.
Miguel de Noronha, conde de Armamar, Rui de Matos,
Dom
D.
Agostinho Manuel, seu confidente, e outras pessoas mais, entre os quais era o mais útil para seus intentos um mercador de grande riqueza, dito Pedro de Baeça, que, em serviço de El-Rei de Castela, oferecia assistir com dinheiro necessário a qualquer empresa.A igualdade da história não consente que com mais silêncio seja gabado o ânimo de El-Rei, pelo que será necessário referir a razão com que se justifica a desvalia destes grandes.
Dom
D.
Duarte de Meneses, conde de Tarouca e neto daquele famoso conde de Viana, de seu próprio nome, era cunhado do marquês de Vila Real, além de parente desta Casa e de proluxa ou indecente negociação na Corte, fora nomeado, antes da aclamação de El-Rei, governador de Tânger, cidade antiga da Mauritânia e não moderna colónia dos portugueses em África, e de presente a tinha
Dom
D.
Rodrigo da Silveira, conde de Sarzedas, e largo tempo manteve a devoção de quem lha tinha dado.
Semelhantemente estava provido do governo de Ceuta, chave de África e Espanha, João Soares, que, aos méritos de sua pretensão, havia junto a oferta de dez mil cruzados pelo governo de três anos.
Entre os dois capitães de África se concertou a fuga para Castela, por serem os dois primeiros
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que livremente, a fim da jornada de seus governos, saíram do Reino. Porém, como esta deliberação fosse tão grande e com ela convidassem a outros, é fama que em todos os acidentes deste negócio intervieram com muitos interessados o marquês e arcebispo, servindo-se no manejo desta fábrica da indústria e autoridade de
Frei
Fr.
Manuel de Macedo, religioso domínico, de grande discrição e aplauso da nobreza.Este, não satisfeito com só haver executado sua comissão, passou adiante, persuadindo a outros homens de grande estado, por moços excessivamente resignados em seu conselho, deixassem a pátria e se pusessem em Castela, dando com a brevidade maior valor à sua deliberação. Foi
Dom
D.
Pedro Mascarenhas, que era vedor de El-Rei, e quinto herdeiro do marquês
Dom
D.
Jorge, o mais afectuoso desta empresa, de quem persuadido o seguiu
Dom
D.
Jerónimo seu irmão, já sacerdote e ministro acreditado por seu talento e letras; e o mostraram melhor seus escritos do que agora a eleição de sua ausência. E
Dom
D.
Lopo da Cunha e seu filho único herdeiro. Era
Dom
D.
Lopo senhor de Assentar, por qualidade e partes pessoa a quem não podia tardar muito o mando que em Portugal esperava e em Castela não alcançou, Luís da Silva, filho único de Lourenço da Silva, proprietário do grande 109
ofício de Regedor das Justiças de Portugal, cuja confirmação já havia alcançado.
Juntos todos, com aplauso e persuasão dos conjurados, puseram, não sem risco, sua fugida em efeito, embarcando-se quase à vista do povo que os foi seguindo em um navio que levava às ribeiras de Barbária os dois governadores de Tânger e Ceuta que, com largas famílias, deixavam a pátria para sempre.
Terríveis efeitos produziu esta acção. O primeiro foi reclusa
Dona
D.
Francisca de Vilhena, marquesa de Montalvão, mãe de
Dom
D.
Pedro e de
Dom
D.
Jerónimo, como cúmplice na fuga dos filhos; e o marquês que no Brasil obrara com grande confidência se mandou logo depor do governo que quase com inocência deixou aos sucessores. Preso o remeteram ao Reino, porque entre alguns papéis secretos que se acharam e a seu filho
Dom
D.
Pedro, trazido por raiva dos pais à vista dos trabalhos, injúria e morte, havia muitos onde inconsideradamente a marquesa e o filho persuadiam ao marido e pai entregasse o Estado do Brasil às armas castelhanas que cedo se lhe ofereciam para esse efeito.Da mesma sorte foi recluso
Frei
Fr.
Manuel de Macedo, e asperamente atormentado; porque para o crime de traição nenhum privilégio permanece. Tantas ocasiões haviam dado ao enojo de El-Rei 110
aqueles que agora o tomavam por ocasião de lhe fazer novos desserviços, de onde não parando e parecendo-lhes seriam já manifestos em Castela tais desígnios, trataram de os pôr em obra.
Alguns políticos, ou cegamente piedosos ou incrédulos se persuadiram a negar todos estes princípios. Fácil é de interpretar e ainda de satisfazer qualquer acção antes de contratada pelos primeiros sucessos. Porém quando estes se lhe seguem, como infalível consequência, parece antes injúria que piedade querer admitir as escusas dos criminados.
Contudo me persuado não só foi aqui a malícia, mas o temor um dos cúmplices da conjuração, porque muitos dos interessados nela eram de espírito tão sossegado que se considerassem seguro o novo estado se conformaram com a fortuna presente. Porém, tendo por certa a perda e não menos o favor de El-Rei antigo, em caso de se oporem ao moderno, se acomodavam a participar os perigos da contingência com a firme esperança do prémio seguro.
Havia o conde de Vimioso, que governava as armas do Alentejo, acudido à Corte a tratar delas, porque até então só o nome havia de guerra e exército de uma e outra parte.
Vendo-se com este conde, o marquês, arcebispo, e inquisidor-geral, como ministros que todos eram
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do Conselho de Estado, houve lugar de se informarem da força da resistência e esperança que havia em Portugal. Achava-se que o Vimioso, fazendo o próprio juízo os induziu a desesperar da conservação, mais dúvida coube no ânimo do conde que na resposta justificava-se depois com voz de artifício a fim de entender os desígnios de que perguntavam. Mas eles se justificavam também dizendo: não era muito cair em o próprio medo, onde viam caído aquele que era obrigado a levantá-los dele.
As penas dos históricos que tão liberalmente rompem pelos corações dos homens, de ordinário levam todo o ânimo dos seus autores aquelas tintas com que costumam descrever os ânimos. Poucos históricos havemos visto que deixassem de fazer tintas de amor e ódio que só em ministrar aqueles infiéis, cambiantes de que as histórias se envilecem quando atendem que se lustram.
Quem será tão atrevido que interprete as subtis linhas da humana simulação e queira introduzir a linha do seu juízo? Eu não serei este.
Depois de algumas conferências representou o conde a El-Rei o ânimo daqueles grandes de cujo segredo participante Francisco de Lucena que, por confidência e ofício, era cofre dos secretos de El-Rei, lhe deu a entender que a tardança deste aviso
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o fazia suspeitoso. A este fim acautelado quis antes fazer pela pessoa do conde guerra aos inimigos secretos que aos públicos; e condenar traições de grande satisfação e assim o escusou o governo das Armas pelo ter junto de si, onde lhe aconselhasse a direcção deste negócio.
Então o Vimioso, que sempre aspirava a mais grandeza, julgando que quem mandava a Corte imperava nos exércitos sem receio de cautela, com a cevada valia tragou o anzol da desconfiança (sucedendo-lhe na direcção) das Armas, Matias de Albuquerque, que infelizmente governava as do Brasil, onde à custa de lastimosas tragédias aprendera o que sabia de soldado.
Procuraram conjurados engrossar seu partido, sem examinarem profundamente o ânimo daqueles a quem se comunicavam. Destes saíram alguns que, por honra, interesse ou temor, deram parte a El-Rei da fulminação que se tratava. Os prémios revelaram depois quais foram estes que, por então, notavelmente, encobriu o artifício.
Em um próprio dia foram presos em suas casas, e logo trazidos a diferentes terras, o duque, o marquês, o arcebispo, o inquisidor-geral, o bispo de Martíria seu dependente, eleito de Malaca, os condes de Armamar, Val de Reis, Castanheira, António de Mendonça, comissário-geral da Bula,
Dom
D.
Agostinho 113
Manuel Gonçalo Pires de Carvalho e seu filho Lourenço Pires, com grande ofício e entrada na Casa Real, alguns prelados das Religiões, o mercador Baeça, Belchior Correia, soldado, criado do marquês, e outros confidentes do arcebispo, que como mais activo e escandalizado, mais que os outros se empenhara na fábrica de sua ruína.
Foi breve o processo e nem de luz impresso. Os culpados atónitos com o súbito golpe, entendendo que sem manifestação da verdade se não procederia a causa tão grande, toda a sua indústria puseram em desculpar a tenção, confessando a obra, com que foram os primeiros que assinaram na sentença da sua morte.
Entre os mais culpados pareceu mais inocente o duque de Caminha, que em tudo obrou como fiel, se não prevalecesse aquela sentença de Bártolo, tão reprovada de Baldo, que obriga aos filhos e pais, contra a Lei da Natureza, delatarem ao príncipe uns e outros em caso de conspiração. Funda-se em que a sua eternidade da Pátria e vida universal que no Rei padece, é mais sagrada e importante que a conservação da vida do pai ou filho, por ser benefício de interesse particular que deve pospor-se ao comum. Porém aqueles a quem a ignorância das retóricas legais e o devido respeito e reverência dos pais ou amor dos filhos se forem mais observantes
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do foro natural que do civil parece que não são dignos de clemência.
Conforme esta doutrina de vinte juízes, dez letrados e dez fidalgos que ao duque e marquês foram previstos, só Duarte Álvares, doutor em Leis, votou de vida ao duque. Disseram depois que este se fundava no interesse da mesma conspiração pela qual alguns anos depois foi condenado à morte que remetiu por grossa soma de dinheiro, a perpétuo cárcere comprou. Mas não escapou à vida que na prisão perdeu brevemente.
O dia 29 de Agosto do ano de 1641, em que a Igreja celebrava a degolação do Baptista, foram degolados na praça pública do Rossio, do grão povo de Lisboa, em gradual teatro armado, o duque de Caminha, o marquês de Vila Real, o conde de Armamar e
Dom
D.
Agostinho Manuel; e em a mesma hora, em diferentes forcas padeceram afrontosa morte Belchior Correa, Pedro de Baeça; sendo fidalgos de El-Rei
N
N.
Nabo e
N
N.
Cogominho, todos com mais espanto que lástima dos circunstantes.Havia o secretário Lucena por várias vezes animado El-Rei a esta deliberação, persuadindo-o que se danaria ele próprio mostrando temor do que intentavam daná-lo seus inimigos; e afirma-se, por certo, chegou o próprio ministro a dar a forma do cutelo por outro semelhante com que vira na Corte
115
castelhana padecer suplício a
Dom
D.
Rodrigo Calderon, marquês de Sete Igrejas. Oh providência! e como no próprio cutelo incorreu depois a vida do mesmo ministro! El-Rei, com moderação, mostrava castigar o delito, não a queixa; pareceu que as prisões dos mais criminosos se deviam deferir. Assim foi cumprido, até que o tempo trouxe alguns novos acidentes que provassem a culpa ou a desculpa.
De ordinário perecem nos naufrágios aqueles que, ou impacientes da salvação se lançam às ondas como a desafiar a morte, ou aqueles em que ela faz o primeiro emprego. Muitos pareceram depois menos culpados, não por menores culpas, mas porque se averiguaram em tempo de menor ira. A estes segundos por valia, diligência e ventura foi alcançado o perdão.
Com ânimo de perpétua reclusão foram deixados nela todos os eclesiásticos, dos quais o primeiro que se salvou foi o inquisidor-geral, cujo grande ofício, sendo invejado de muitos poderosos, a troco de uns se não verem preferidos de outros na sucessão dele, aconselharam todos a El-Rei o restituísse à sua graça por ser de tal condição que assim como nele não havia de fiar, não havia de temer.
Pelo próprio motivo não alcançou esta diligência o arcebispo, cujo ânimo era vingativo; e porque,
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como se não praticou com sua dignidade a pretensão que houve ao ofício de inquisidor-geral, nunca os émulos deste como daquele serviram mais que o de conservar aborrecível a lembrança de El-Rei, até que a morte, como a outros, lhe cortou a vida com as cadeias.
Enquanto estas coisas se passavam no Reino, também os portugueses que se achavam fora dele padeciam seus movimentos. O primeiro,
Dom
D.
Duarte irmão de El-Rei, sendo chamado do imperador por
Dom
D.
Luís Gonzaga, irmão do duque de Mântua, à Corte de Viena de Áustria, foi nela detido e pouco depois enviado a Gratze-Passau, onde por ímpio acordo, entre o imperador e El-Rei de Espanha, a título de vassalo compreendido no crime de conspiração, houve de ser entregue às armas castelhanas, contra a liberdade do Império e seus clamores; que de mandado de seu rei o reduziram a estreitas prisões na Roqueta de Milão.Eram passados vinte e seis dias depois que na Corte Imperial corria a nova do novo rei português, sem que
Dom
D.
Duarte se determinasse a obrar como quem dela sabia. Não sobejou aqui tanto a fatalidade que o destinava a um trágico termo, quanto faltou a resolução; mas não é estranho aos homens errarem aquelas acções onde o exemplo, nem o conselho podem socorrê-los.
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Achavam-se naquela sazão em Alemanha vários ministros de Castela. O marquês de Castanheda, embaixador ordinário, o de Fuente, que de Veneza acudira a várias ocorrências de seu cargo, o secretário Nomário, com negócios particulares. Mas precedia a todos
Dom
D.
Francisco de Melo, que de Sicília onde vi-reinava tinha subido à Alsácia a fim da recuperação de Brizec que o seu conjencial Bavier havia ocupado com terras das Germânias.O silêncio de
Dom
D.
Francisco, neste caso, culpavam os castelhanos, recorrendo às razões de parentesco e de confidência que outro
Dom
D.
Duarte e
Dom
D.
Francisco se observavam; mas ele sendo avisado de fulminação de ambas, ou porque esperasse do imperador tomasse algum receio, mas isento, ou que
Dom
D.
Duarte houvesse tomado outro mais seguro, propôs ao César seria justo segurá-lo até aviso de El-Rei de Espanha. Nesta diligência fundaram depois todas as queixas públicas e secretas dos portugueses contra
Dom
D.
Francisco, pelas quais se arruinou em Portugal sua casa e memória.Pouco depois aconteceu semelhante ruína sobre a casa do conde de Linhares que se achava em Castela, título antigo e célebre, não menor que nos passados, na pessoa de
Dom
D.
Miguel de Noronha, último conde que a possuía. Este, com o de Medelim, se não grande, dos grandes de Espanha, 118
se apresentara a El-Rei
Dom
D.
Filipe, pedindo satisfação das mortes do marquês de Vila Real e duque de Caminha, seu genro de um, sogro e cunhado do outro, primo e sobrinho do Linhares, por ser este neto dos condes de Gijon e sua própria varonia, como eram o marquês e o duque.Resultou desta considerada acção maior dano que utilidade; porque o prémio foi lá patente e a pena foi cá real. Ao Medelim se conferiu o título de duque de Caminha cujo estado se anexou ao real por El-Rei
Dom
D.
João, e Linhares satisfizeram deixando-o chamar conde de Gijon, pequeno lugar das Astúrias, nas ribeiras do mar Cantábrico. Da qualidade não tirou mais que a vaidade de se manifestar por neto de
Dom
D.
Afonso, antigo conde de Gijon, filho de
Dom
D.
Henrique, o Bastardo; honra que ninguém lhe duvidava antes, nem invejou depois. Em cujo troco perdeu em Portugal vinte mil cruzados de renda, bons lugares e nobres comendas.
São as demandas das monarquias como as grandes tempestades. Não só se padecem aonde se experimentam, mas muito ao longe impelem as ondas tão levantadas que fazem perigar as mais distantes.
Acharam-se em Cartagena do Novo Mundo algumas relíquias da poderosa armada com que o conde da Torre,
Dom
D.
Fernando Mascarenhas, navegou ao Brasil, em demanda da conquista de Pernambuco; 119
e como pelo sucesso de nenhum ignorado e por outras penas escrito, foi tão violenta a divisão deste poder, os melhor livrados foram aqueles galeões que em Cartagena tomaram porto ou se ajuntaram nele.Grande parte da nobreza de Portugal se ausentava como costuma em aquela jornada que El-Rei
Dom
D.
João logo que tomou posse do Reino, sendo advertido procurasse reduzi-la à prática, mandou pôr em efeito.
A este fim se despacharam avisos secretos a
Dom
D.
Rodrigo Lobo e ao conde de Castelo Melhor, João Roiz de Vasconcelos e Sousa, que de uma e outra antiga família gozava boa parte de sangue e estado. Só lhe manifestava El-Rei sua posse, encarregando-lhe pelo modo possível reduzissem ao Reino todo o poder que dele tinham a cargo, a fim de que tão bons vassalos chegassem a tempo de ser partes na defensa e conservação da Pátria.O conde que por sua condição e bondade era a quem todos obedeciam, sendo certo que as faculdades e graças da natureza são mais poderosas que aquelas dos príncipes repartidas aos vassalos, tomando sobre si o segredo e a execução do negócio, não sem participação do general
Dom
D.
Rodrigo, começou a se empregar na disposição ainda de maiores coisas das que se lhe haviam encomendado.
120
Via-se cercado de parentes e amigos de grão valor, obedecido de oficiais destros, aplaudido de três mil soldados portugueses, parecendo-lhe aspirariam não só a reduzir ao Reino as forças marítimas que aí haviam, mas em caução das que com elas lhe tinham diminuído ocupar por El-Rei de Portugal a mesma Praça de Cartagena.
Este intento próximo e certo, sem que por algum efeito temporal parecesse duvidoso, se frustrou logo com universal perigo, sendo o trato descoberto por dois capitães portugueses que tudo revelaram ao governador e ministros castelhanos; donde procedeu a prisão do conde e seus confidentes que todos depois asperamente atormentados passaram a constância com que negaram aquele valor prevenido para o que empreendiam.
Sem embargo dos efeitos da prova o
R
R.
foi sentenciado à morte de que, dando-se aviso e apelação a El-Rei de Castela, o conde foi antes por modo estranho sublevado da prisão e transferido com alguns soldados que o guardavam à embarcação que de Portugal estava prevenida a este efeito; depois caindo em mãos de corsários, ele os reduziu até subministrarem o próprio benefício de donde havendo experimentado todos os descrimes, e infortúnios, entrou em Lisboa aos dois anos do reinado de El-Rei
Dom
D.
João.
121
Bem quisera o Rei e ministros castelhanos se achassem suas armas em tal estado que de súbito se convertessem contra Portugal; bem julgavam utilíssima a presteza, mas ela não lhe era menos impossível que inconveniente.
O Exército que Espanha dentro de si havia levantado com igual dano que se outro inimigo o penetrasse, se ocupava na moderação da Catalunha. Foi esta guerra, ao princípio, voluntária, mas já porfiosa, porque os franceses não perdendo ocasião alguma de dano a seus émulos, não tanto haviam acudido à defensa da Catalunha quanto ao cobro do estado de Ruiselhon, com aquela província unido.
Em Flandres campeavam florentes as lises nas bandeiras dos duques de Anguiça e Molharey de Esdevi e Arras, opulentas cidades de Artuais, fronteiras de Picardia. Os holandeses não menos afortunados que guerreiros haviam ganhado a Ust e dado calor ao progresso das armas francesas.
Itália, igualmente oprimida de ruins sucessos, despediu em sua desgraça ao marquês de Laganhez que com poderoso exército não correspondera às esperanças que Europa concebera de tal capitão e soldado.
Contudo, fazendo-se grandes esforços, se juntou gente capaz de guarnecer as fronteiras, mas incapaz de obrar com ela outras maiores causas.
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A guerra não era igualmente grata a todos os espanhóis grandes, porque alguns deles sendo interessados em o sangue de El-Rei e Rainha de Portugal, não lhes desprazia sua sublimidade; e a todos por ter um rei católico tão vizinho de quem se socorressem em aqueles casos que a fortuna traz consigo maiores e menores.
O povo, sobre não amar aos portugueses, olhava contudo alegre seu movimento porque lhe parecia que pois, por sobeja carga fora levantado, era essa a razão bastante para que Castela fosse aliviada de semelhantes pesos. Já que não pelo amor pelo perigo.
O conde de Monte Rey que, de vice-rei de Nápoles, não havia muitos tempos que descansava na Presidência do Conselho de Itália, foi nomeado general do novo Exército e província da Estremadura; e porque nele não havia para a guerra outra suficiência que a autoridade, se lhe declarou por majestade do corpo general a
Dom
D.
Rodrigo de Giray, estimado pelo melhor soldado de Espanha que então tinha El-Rei em seu Serviço, mas o Geray que, por queixa ou capricho, se achava em Biscaia, sua pátria, descansando do largo tempo dos serviços pior gratificados, duvidou aceitar o posto até um de dois termos, qual primeiro elegesse: ou prémio ou castigo. Este foi mais diligente repartido 123
em diferentes comunicações de que estimulado aceitou, em chegando a unir-se com o Monte Rey que desafiado esperava. Obraram ambos o que obraram por aquela maneira que costumam ministros contrários.
O primeiro movimento das armas foi contra Olivença, vila antiga, mas praça moderna e que, em aquele tempo, se defendeu melhor como vila que depois como praça.
De onze mil combatentes acompanhado a intentou ganhar por entrega
Dom
D.
João de Giray. Chegou fora de tempo, e sendo afrontosamente rebatido, experimentou a fatalidade daquela sentença onde se afirma: vale mais o exército da ovelha capitaneado por leão, que o de leões capitaneado por ovelhas.
Logo crescendo as empresas em Castela, o Geray chamado delas e aborrecido da guerra tão desigual às que experimentara, deixou as fronteiras do Reino; e, pouco depois, o conde de Monte Rey, sucedendo-lhes outros cabos.
O mesmo sucedia em todo o círculo de umas fronteiras e outras, onde reciprocamente se viam diferentes cabos, não só todos os anos, mas em todas as empresas.
Mal aconselhados são os príncipes que indistintamente mudam seus generais, só pela razão do
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desigual sucesso. Induz, ou menos confiança no sujeito ou menos prudência na eleição, um tal arrependimento. Quando os reis elegem um general deve ser com toda a ponderação; mas, depois de eleito, se deve tolerar qual saiu, com toda a constância, porque são mandados a servir, não são mandados a vencer. Nem há indústria humana que valha mais que a providência divina. Como o capitão não errar por falta de valor ou disciplina; às vezes é melhor aquela que, por uma vez, perdeu; porque, com novos estímulos em demanda da vitória, a vida despreza.
Fosse ou não cúmplice, desvario é esta máxima de Estado. Antes de um ano se viu Alentejo governado por três cabos diferentes. O Vimioso que sempre retinha o título de general; Matias de Albuquerque que só alcançou de governador de armas; Martim Afonso de Melo que com o próprio passou de Cascais ao mando delas na fronteira, depois que Albuquerque, por calúnias de inconfidente, foi recluso.
Os reinos de Espanha, em seus princípios, não foram dos mais cerimoniosos do mundo, por ventura por serem no assento os últimos dele. Aconselhavam-se os reis indistintamente com as pessoas maiores e mais práticas que os seguiam. Donde procedeu que com os condes cujo título se interpreta
125
comes, os companheiros, fossem inseparáveis das pessoas reais. Eram eles os conselheiros dos reis, dos quais por comunicação de privilégios se derivou aos bispos esta própria graça que hoje só tem em título e não retém o exercício.
Passou esta dignidade a outro termo; e se viu não ser necessário para aconselhar a prerrogativa de conde ou bispo. Porém como estes elegidos ao Conselho, El-Rei se aconselhava em todos os casos que se ofereciam.
Ainda aqui não parou o ofício de conselheiro, porque do número deles foram os reis dividindo com atenção a seus talentos, estudos e experiência, uns para aconselharem na justiça, outros no Estado, outros na Guerra, outros na Fazenda.
Até ao tempo de El-Rei
Dom
D.
Sebastião não tinha havido em Portugal o nome de conselheiros de Estado, os quais como florecessem com El-Rei
Dom
D.
Filipe de Castela, seu tio, entre cuja corte e a portuguesa havia grande comércio. Alguns embaixadores portugueses que de Castela vieram, induziram a El-Rei que aquela imitação separasse uns conselheiros de outros porque participassem eles do título de maior utilidade.Contudo a guerra nunca foi dividida do Estado (quiçá por se entender que o Estado sem a guerra não se pode conservar); desta sorte, por todo o
126
reino de El-Rei
Dom
D.
Sebastião, os ministros de Estado, eram de guerra juntamente.
Sucedeu por sua morte a entrada de El-Rei
Dom
D.
Filipe e, como desde então a guerra, a paz não corria por conta de Portugal, mas do príncipe que o dominava as direcções ordinárias das conquistas que era a guerra do Reino se faziam por intervenção do Conselho da Fazenda que, como constasse de pessoas grandes e poderosas, se foi abrogando toda a jurisdição da guerra em que permaneceu a falta de não haver parte queixosa.Informado destes antecedentes, El-Rei
Dom
D.
João constituiu um novo Conselho de Guerra. Dizia-se que mais a rogo daqueles que o pretendiam que por seu próprio ditame, porque como o Conselho de Estado era o último onde chegavam os maiores, aqueles que logo o seguiam, digo o não seguiam e podiam conseguir, desejavam ter um tribunal em que se capacitassem para o Supremo; e entretanto exercitassem a ambição do mando, comum a todos os homens, e mais aos portugueses que lhe provém do coração de que são animados.
Contudo mostraram os tempos que este tribunal lhe fora sempre a El-Rei desagradável, ou porque naturalmente aborrecia a guerra; ou porque em sua criação fosse constrangido. Donde procedeu que os conselheiros, penetrando o desgosto de El-Rei,
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sempre serviam sem gosto que foi causa de mui custosos inconvenientes.
Uma das primeiras acções do Conselho de Guerra, foi propor a El-Rei a fortificação de Lisboa para conseguir sua defensa. A obra parecia imensa e mais imenso o dispêndio. Muitos a este fim correram os lugares das histórias e ditos impertinentes dos filósofos. Mostravam ser inútil este grão trabalho porque Lisboa já duas vezes havia passado, como mostram as duas cercas de muros que nela se vêm. Diziam com Platão que os melhores muros de uma cidade eram os peitos dos seus cidadãos e que já o salmista cantara se Deu não defendia a cidade, em vão a muravão seus moradores.
Contra estes os homens sisudos e práticos, não com menos autoridade, que razões se opunham dizendo que os tempos se variavam com os homens e que os presentes de tanta indústria viam talvez render as cidades defendidas e fortificadas quanto mais as abertas e livres, que a natureza valerosa dos portugueses, ajudada da arte, faria maiores efeitos, que Tebas e Roma se haviam murado e o próprio Deus fora arquitecto da castramenção de seu povo e engenheiro da Arca de Noé, como se lia no Génesis e Êxodo.
Dificultava-se pelo dispêndio, o qual repartindo-se pelo grémio dos moradores, não se julgava
128
impossível; mas saindo deste obstáculo se dava em outro, então quase impossível, pela falta que havia de peritos na fortificação. Eram três os que se achavão no Reino a este tempo.
Monsieur
Mons.
Legarte, francês, única pessoa que El-Rei de França mandou a este efeito, entre grande número de franceses que, com voz de engenheiros soldados, vinham buscar o interesse que em sua pátria não podiam conseguir; e em Portugal, depois de alcançado, com ingrata soberba, mostravam desprezar.
João Gilós, que o príncipe de Orange mandara de Holanda; mas este era um mancebo estudioso de arquitectura militar, sem experiência dela, e que por valia e informação afectada, fora de seus valedores inculcado ao príncipe.
João Cosmandre, padre da Companhia, natural de Brujas, o qual em sua pátria se chamava João Pascácio, com voz de vir embarcar-se para as missões do Oriente, fatalmente deu à costa. Por eminente nas fortificações, foi rogado para mudar de intento, o qual mudou por facilidade ou artifício, para seu último dano e grão perigo dos portugueses, dos quais sendo favorecido em tanto grau que se noutra malícia o favor era bastante a perdê-la, perfidamente os deixou passando-se a Castela, onde contraminando as armas contra Olivença que
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ele fortificara. Pagou com horrenda morte à vista dela os delitos exteriores de uma e outra rebeldia, acabando a vida apóstata, em hábito não diverso mas odioso a seu estado, como a seu próprio exercício.
Cada um dos três delineava diferente recinto e fortificação a Lisboa que também mostravam com via diversa alguns sujeitos naturais, mas por isso mesmo atraiçoados. Ultimamente resolutos, quiçá o menos conveniente, que o mais impossível, continha trinta e dois baluartes, se começou a traçar com fervor tão desordenado que este foi o primeiro sinal, não faltando outros, de que a obra não permanecia.
FIM DO QUINTO LIVRO
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Livro Sexto
O conde-duque formou em Castela uma junta, a que deu o título de Inteligência Secreta; o nome encontrou ou destruiu, em parte, seu exercício porque muitas pessoas tratando negócios que lhe pertenciam se desviavam dos ministros desta inteligência, a fim de se não declararem.
Contudo, nem por ver esta contradição a seu efeito, deixava o conde de lhe chamar esquadrão seu do qual vivia tão satisfeito que afirmou mil vezes havia com este de conquistar a Portugal primeiro que com os flagelos do seu príncipe.
Porque não faltam no mundo mãos, não faltam calúnias contra inocentes que são aqueles como obrigados a pagar a malícia dos malévolos. Se castigada a maldade prevalece, que fará premiada? Prometiam-se grandes prémios aos que descobrissem qualquer obra de infidelidade. Maravilha foi e providência, não perigarem todos.
132
Viram-se injustas prisões, não trágicas contudo.
Dom
D.
Francisco Mascarenhas que fora vice-rei da Índia e conselheiro de Estado na Corte, e
Dom
D.
João de Meneses, já governador por El-Rei
Dom
D.
Filipe na Madeira, foram presos na cadeia pública. Saindo de Madrid na volta de Lisboa, mais resolutos que prudentes, Álvaro de Sousa também conselheiro de Estado, em grande segredo, foi recluso. Afonso de Lucena, filho do Secretário de Estado de Portugal, desapareceu aos olhos da Corte, com semelhante violência. Sucederam coisas maiores a pessoas de inferior fortuna, e a todos alcançou a desgraça.
Das fazendas que muitos tinham em aqueles reinos se fez cômputo e ordenou que, mandando-os El-Rei cobrar por ministros seus, repartisse os réditos pelos portugueses que eles diziam fiéis que se achavam na Corte; e suprisse a Fazenda Real a falta destes efeitos.
Assim se pôs em execução, acudindo os títulos, fidalgos e nobres cada mês com suas pensões proporcionadas que não passavam de oitenta mil réis aos maiores, nem aos inferiores desciam de sessenta. Porém este socorro foi brevemente incerto; e pouco depois faltou, parecendo se deferia a empresa do Reino para mais largo tempo. El-Rei
Dom
D.
João, semelhantemente, em Lisboa, mandava alimentar os ministros castelhanos de que 133
alguns se escusaram, não com menor vaidade que incómodo.Entre os castelhanos de mais brio, que em Portugal se achavam prisioneiros, ou aquele o era só verdadeiramente por ser tomado por força de armas, vindo de Cádis com socorro à fortaleza de
São
S.
Gião, foi
Dom
D.
Sebastião Manrique, o qual, passando El-Rei pela praça de Santarém onde
Dom
D.
Sebastião estava, lhe serrou a janela. De que, avisado El-Rei, mandou-lha não abrissem mais. Durou em trevas, em sua prisão, dois anos, até que, sendo El-Rei por parte do preso informado que aquela acção fora de modéstia e não de ódio, como se lhe interpretava, foi restituído à luz do dia e pouco depois à liberdade da pátria.
A esta razão juntas algumas que ao Reino não pareceram desconvenientes, lhe foi concedido aos prisioneiros a liberdade a cuja acção El-Rei cada vez mais se inclinava; nem os que ao comum parecer se julgavam importante deixaram de alcançar a seu tempo este benefício.
Antes de acabado o primeiro ano do reinado de El-Rei
Dom
D.
João, chegou por via de Mazagão um mouro andaluz, enviado de El-Rei de Marrocos que por ele desejava informar-se do sucesso de Portugal, com ordem também de lhe fazer oferta de suas correspondências.
134
Foi bem ouvido e despachado favoravelmente porque os ministros portugueses com maior temperança que prática dos negócios dos bárbaros, entenderam lhe seria fácil alcançar deles algumas senas de cavalarias de que o Reino necessitava. Logo os desenganou a contradição, sendo-lhes pelo mouro manifesto como sua pesada lei lhe proibia comércios semelhantes como contrários dela.
Entretanto nas fronteiras de Portugal se ia obrando mais do que temiam os émulos e os mesmos portugueses esperavam.
Dom
D.
Gastão Coutinho, ao posto do reino da Galiza, e Rui de Figueiredo, ao de Cádis e Leão, fizeram atrevidas entradas, abrasando lugares e cativando moradores com crédito e utilidade de seus soldados.
Beira e Algarve porque não tinham alguma contenda passavam com quietação; mas em a província do Alentejo, como mais disposta e opulenta, jamais sossegaram as armas, talvez tímidas e resistidos também algumas vezes dos contrários, os quais primeiro estimulados mais do exemplo que da ira, procuravam com correrias impedir ou vingar as que padeciam.
Permanecia em sua defensa
Dom
D.
Álvaro de Viveiros, governador do castelo da Terceira, que por onze meses, com igual valor que disciplina, resistiu ao proluxo cerco que os moradores da ilha com menos disciplina que valor lhe haviam posto.135
Em Lisboa, com boas razões, se havia entendido que aquela empresa, se não à falta de cabeça a sobejo de conselhos, era presestida e que suposto a
Dom
D.
Álvaro foram tomados alguns socorros, poderia entrar-lhe algum de maior ventura ou força que com muito tempo se dificultasse.
Teve fim chegado de Holanda o embaixador Tristão de Mendonça; e com ele a Armada que trouxe
Dom
D.
Francisco Manuel. El-Rei nomeou por general daquela guerra ao mesmo Tristão de Mendonça e por segundo-cabo a
Dom
D.
Francisco. Para que, com a própria armada, fossem ambos obrar o que faltava. Porém
Dom
D.
Francisco, por razão ou fatalidade escusado do posto, entrou nele
Dom
D.
Sebastião de Vasconcelos, mestre-de-campo do terço da Armada Real.
Eram já princípios de Janeiro quando Tristão de Mendonça e sua frota navegou em demanda da ilha. Não há empresa fácil quando o tempo a contradiz.
A poucos dias de navegação foi esta armada combatida de grande tempestade cujo rigor caiu sobre os cabos dela aonde não só deixaram as vidas, mas a opinião em opiniões, havendo-se salvado o navio depois de desarranjado dos que o governavam em demanda da própria salvação.
Foi o terceiro caso semelhante que sucedeu a portugueses. João de Barros escreve o primeiro
136
em sua Primeira Década, acontecido na Ásia a
Dom
D.
Afonso de Noronha sobre Sofala; e em nossa lembrança se acha segundo de Henrique Henriques de Miranda, no ano de 1637 sobre a ilha de Cádis. Praza a Deus que seja este o último.
Vários príncipes da Europa, África e também da Ásia procuravam informar-se do estado em que se achava Portugal, a opinião do poderoso rei que tinha por contrário e militava por ele, mais que suas armas contra a estabilidade do Reino. Eram a este fim agudos e encobertos os preceitos com que se introduziram nesta observação.
César de Vandoma, ilegítimo filho de Henrique quarto de França, vivia retirado em Inglaterra, cúmplice ou criminado em os movimentos da rainha mulher de Médicis e mãe de Luís, o Justo, que a este tempo também se achava em Londres, a fim de acordar-se por meio de Portugal, com El-Rei seu irmão. Solicitou mais do que se esperava de príncipe tamanho a correspondência de embaixadores portugueses e por eles a El-Rei
Dom
D.
João.
Julgou-se mais a mistério que a necessidade ou esperança o despachar-se-lhe um enviado, pessoa eclesiástica (italiano, disseram, de nação) e ele com acordo a dissimular todo o artifício.
Era pequeno e quase fácil o caso da mensagem donde alguns o interpretaram a diligência política
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traçada pela rainha viúva que, ou por mais amiga ou dependente que então era da rainha de Espanha (onde queria passar-se) procurava ter agradável aquela coroa, como até então lhe fora suspeitosa, como havia de mister menos. Porém da viagem do enviado, fosse justa ou cautelosa, não resultou dano a Portugal, nem utilidade alguma contra a coroa.
Quase ao modo referido foi El-Rei informado da Índia Oriental que o imperador do Japão cujo trato e portas estavam com Portugal serradas havia muitos anos, se abriria a título de embaixada, se do Reino pomposamente lhe fosse dirigida; e como o Japão seja o Pará do Oriente de cuja parte depende o comércio universal daquelas províncias, foi esta notícia a El-Rei de desigual aplauso ao que esperava. Andando os anos do reinado que escrevemos chegará ocasião de referir o sucesso desta embaixada.
O principal interesse do Reino se divide pelas conquistas, em as quais sendo primeiros os portugueses, escolheram ou possuíram por direito ou por ventura as melhores do mundo, mais ricas e opulentas. Por isso também as mais invejadas das outras nações. Entre todos os holandeses que enterrados entre as ilhas e as ondas do Bélgico, este ano nem riquezas nem terras possuíram estimulados do ódio concebido
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contra seu senhor El-Rei
Dom
D.
Filipe, então dominador de Portugal; não só vingaram em os portugueses as injúrias recebidas dos castelhanos, mas desabriram em suas conquistas caminho aberto de cevar sua ambição e engrandecer sua República.
Havia-se pela nova paz ou nova trégua acordado tempo já largo por seu artifício, para se deixarem as armas de Holanda expostas aos portugueses. Mostrou o sucesso que com aviso da trégua foi a ordem das empresas que haviam de obrar antes de prescrito o termo da concórdia.
Pelo Brasil fizeram movimento pretendendo ocupar e defender nossas fortalezas o que lhe foi avisado pelos generais daquela província, repelindo os intentos e obras dos vizinhos pela força das armas. Mais desprevenidos ou menos poderosas as de Angola, Fosso, Laperda, Luanda, cabeça do reino por Andreson, enviado da Onista. A esse efeito, assim o Maranhão e
São
S.
Tomé, este mal defendido do seu governador e depois melhor restaurado dos seus moradores.
Por este tempo veio também a seu poder a antiga e famosa Malaca, praça ilustre da áurea Cresoneso, a qual, se com a variedade juntara a ventura, fora a única que no mundo se defendeu de trinta e seis sítios, sendo ocupada pelos holandeses ao trigésimo sétimo.
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Da parte de El-Rei
Dom
D.
João e seus ministros não se inovava nada à violência e cautela com que os novos amigos interpretavam por sua desculpa as palavras do novo tratado; antes mostrando-se satisfeitos de sua observância, deixavam para melhor tempo a emenda, abstendo-se por todo o Império Lusitano das acções, dos queixumes e das hostildades.
Perdido Tristão de Mendonça e por essa causa derrotado o socorro que se enviava ao sítio da ilha Terceira, logo El-Rei pôs em prática o despacho de outra armada para aquele efeito.
Foi encarregada a António de Saldanha, conselheiro de Guerra e governador presente da Torre de Belém. Por segundo-cabo, Manuel de Sousa Pacheco, que ganhada ficaria governando a ilha. A um e outro foram dados grandes poderes. Ao primeiro porque tinha autoridade para se lhe não negar, o segundo porque teve indústria para fazer crer lhe eram necessários.
Com ser breve o aviamento e jornada de António de Saldanha, chegou já depois de rendido aquele grão castelo
Dom
D.
Álvaro de Viveiros, seu governador e a gente com que militava as governanças e a Francisco de Ornelas e João de Betencourt, seus maiores, se entregou com honestos partidos. Sentia depois Viveiros a honra que 140
perdera em não ser rendido de armas reais; e o Saldanha a que não ganhara não vencendo com elas. Mas o que consideravam de uma parte a imperícia militar e da outra a militar constância que em ambos partidos havia, a ambos julgou venturosos.
António de Saldanha se deteve na ilha mais do que parecia pediam os negócios que, depois da vitória, se deviam acomodar ultimamente. Sublimado o valor conforme o do Reino à moeda daquelas partes, recolhendo o interesse real com algumas companhias de cavalos que levantou, se veio ao Reino aonde se achou menos desagradado de El-Rei pelos seus serviços do que por cartas lhe parecera.
Ficou o governo militar e civil da Terceira a cargo de Manuel de Sousa que obteve três anos, os quais sendo todos de descanso, desagradou o jugo àquelas gentes que nem por isso deixaram de impedir a sucessão de outro semelhante, sendo poderosos para alcançar de El-Rei um novo modo de regimento que não há em outro estado algum da República Portuguesa, que uma cidade distante, breve e sujeita em que se tem conservado, não sem grandes inconvenientes da autoridade e justiça.
Martim Afonso de Melo que governava as armas do Alentejo, não contente de melhorar a sorte com
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as ordinárias correntes daquela fronteira, intentou fazer entradas mais importantes por Castela.
Instando a nossa gente que não desarmasse as praças do seu cargo, foi sobre Valverde, vila pequena em bom assento, quase fronteira a Olivença, a quem um pequeno rio servia de enganosa defensa. Recebeu do sítio onde se achava edificada mais reputação que de outra circunstância, e foi bastante esta só para que os generais castelhanos elegessem para segundo quartel de seu exército. Como tal escolhida, mas não como tal guardada.
Foi por isso, em breve, investida das armas portuguesas, com maior valor que disciplina, e das castelhanas defendida com maior disciplina que valor. Até que, entrando o arrabalde, ardeu pelo fogo do inimigo e a despejaram seus moradores, com perda de alguns mortos e outros presos.
Custou esta sombra de vitória a vida a muitos soldados portugueses, entre os quais foi mais sentida que para sentir a perda de Francisco Rebelo de Almeida, comissário-geral de cavalaria, a quem se adjudicou a culpa do tardo e curto movimento. Porém, como fosse dos primeiros bons sucessos das armas, ele se celebrou em Portugal como costumam ser todos os que da desconfiança passam a vitória.
Esta animou de sorte que, pouco depois, se resolveram aquelas armas contra o castelo de Codiceira
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que, cingido de uma pequena vila, está fundado léguas por Castela dentro, em terras de Albuquerque, povo grande e forte que ja foi de Portugal, e, por casamentos e alianças, do domínio castelhano ao português. E, depois, tornou ao castelhano, deixando-se em Portugal seu nome por nobre apelido.
À semelhança de Valverde se ganhou a Codiceira. Todo o lugar menos o castelo que, por tardança de um petardo, deixou de ser entranhado, depois de serem ocupadas duas portas pela infantaria bisonha. Donde a alguns capitães famosos pareceu que as defensas dificultosas se conseguem mais certamente pelos soldados velhos que pelo hábito dos perigos recebem a virtude da constância; mas para as empresas árduas são mais acomodados os imperitos porque, ignorantes do perigo, se deixam levar sem lei da cega ousadia.
Também Marvão, infauto às armas de El-Rei
Dom
D.
João, por aquele tempo.
António Teles, com sua armada naval de doze navios, encontrou vinte e dois de hamburgueses os quais se puseram em defensa. Não se havia com Hamburgo sentado alguma concórdia, tão-pouco discórdia assentada, neste enleio que os hamburgueses não podiam vencer com força ou justiça. O general português mais moderado que artificioso,
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elegeu o melhor, trazendo consigo os navios a El-Rei que sua causa determinasse.
Receberam mal os soldados esta resolução e ainda os políticos e jurisconsultos, porque da frota constantemente se entendia passava a Castela com generosos prémios. É certo que os mais criminosos se ocultaram, levando ocultamente pólvora, bala e instrumentos militares; mas não se ocultou breu, enxárcia e mais géneros.
Sobretudo os convencia o passaporte com que intentavam defender-se; porque já de muitos dias El-Rei de Espanha, a fim de evitar confusões no contrabando, constituiu um ministro flamengo, dito Gabriel de la Rey, de quem todos os do Norte receberam despacho para serem qualificados em Espanha. Deste Gabriel de la Rey barbaramente ofereciam seus despachos porque justificavam serem hamburgueses. Mas, em Lisboa, ignoradas dos nossos ministros estas matérias, neste e em outros vãos fundamentos assentaram sua sentença os juízes que foram dados à causa, julgando livre a frota.
Murmurava-se que não fora rude ignorância, antes parecia que no caso interviera; mas El-Rei que cometia a algumas pessoas de que tinha mais satisfação de que pouco conhecimento, entendeu logo que aqueles nem podiam errar nem enganá-lo.
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Alguns políticos bem informados e zelosos representaram a El-Rei que a matéria de Estado pedia ao revés todos aqueles procedimentos e que a mesma vontade, que El-Rei mostrara de a dar livre a frota, devia mostrar de que a condenassem; porque diziam eles: melhor era mostrar ao mundo que dava o seu e não restituía o alheio.
A frota foi livre por tal modo que em vez de obrigar sua República, com a liberalidade, ela se deu por enojada e, por alguns tempos, se absteve de dar navios a Portugal.
Porém El-Rei que, nem amava nem conhecia o artifício, como não soube usá-lo a tempo, tão-pouco sentiu ao depois o havê-lo desprezado. Ou não sabia ou não estava por aqueles ditos de outros príncipes: o que um deixou de fingir deixou de reinar o outro. A lição é para reis e o fingir para tratantes. Em breve disseram alguns que depois se emendara El-Rei destes descuidos da irresolução, demitindo-a em os negócios sucessivos. Os que melhor conheceram seu natural sabem porventura coube nele aquela suspeita de homem; mas não outra destreza de príncipe.
Platão disse ser harmonia a formosura. As acções dissemelhantes afeiam a República, mas que será se a fortuna como ciosa do bem parecer de uma bela monarquia, costuma derramar pelo semblante
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de sua fama, talvez atrozes sucessos que dominam a concórdia que a ilustra .
A coroa de El-Rei
Dom
D.
João não podia aqueles dias queixar-se na falta de ocorrência de fervorosos intentos. Em quase todos se viram proporcionalmente suas bandeiras vitoriosas.Quando em Alentejo se obravam as enterpresas referidas, Fernando Teles que sucedeu no governo da Beira a
Dom
D.
Álvaro de Abranches, ganhou à viva força o castelo de Botão viu logo Lisboa. Não só os despojos, mas os mesmos rendidos que armagosamente confessavam o trânsito com lágrimas e cadeias.
Rui de Figueiredo, oposto em Chaves aos reinos de Leão e Galiza, fez em ambos entrada. Abrasou em grande cópia lugares copiosos e se recolheu, não menos rico de opinião que os soldados de despojos.
Dom
D.
Gastão Coutinho obrou com valor e sorte semelhante a execução de seus golpes. Ficou em provérbio que durará ministrando suas glórias para sempre.No Algarve, por ocasião do sítio, se obrava menos que em outras fronteiras; contudo, de uma bateria oposta ao quartel de Alcoutim, foi mortalmente ferido de bala de artilharia o mestre-de-campo
Dom
D.
Francisco de Castelo Branco. Precisou-o a uma 146
cura a maior vista no mundo. É digno de escrever-se. Durou esta cura três anos e tantos meses a perigo de vida que Deus amezinhou, pagando a universal mezinha que
Dom
D.
João, pai de
Dom
D.
Francisco, ministrou com igual arte, sorte e piedade a toda a Lisboa e Reino, a dias de sua vida, com aquele admirável bálsamo de ouro, remédio grande e santo, vernáculo aos portugueses, do qual
Dom
D.
João, se não foi o inventor, foi restituidor e principal observante.
António Teles da Silva, filho de Luís da Silva, grande ministro do Reino, sendo dos interessados da aclamação de El-Rei, foi o primeiro que derramou sangue em seu serviço, da pátria e sua liberdade. Por estas causas, e outras de grande qualidade e opulência de irmãos e parentes era nomeado mestre-de-campo-general do Alentejo para exercer o posto com o conde de Vimioso.
Nenhum dos dois se acomodou a este exercício, aquele porque necessitava de quem na disciplina o ajudasse e este porque nem para si, nem para administrá-la a outro a possuía. Servira quando moço na restauração da Baía; passou inda depois por capitão-mor, donde tornou a Portugal, com maior riqueza que aplauso, se uma sem outro se consegue.
Certo António Teles de que não alcançaria a posse de seus postos, prudentemente os não pretendia, conservando o direito dela só a fim de trocar
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por outro. Ajudava o valor de suas pretensões a valia de
Dona
D.
Maria Ana de Lancastre, sua mãe, aia dos príncipes, a quem princesa das aias chamavam naquele tempo, por sua grande estimação e autoridade de muitos julgada por soberba.Fora filha de
Dom
D.
Francisco de Faro, neto do conde
Dom
D.
Afonso, irmão de
Dom
D.
Fernando II, duque de Bragança.
Havia já o marquês de Montalvão melhorado sua fortuna, livre entretanto das calúnias que padeceu em vida e morte. Achava-se introduzido, não só no governo do Reino, mas na graça de El-Rei que, como ao mais experimentado ministro daquele tempo, o queria e estimava.
O marquês, obrigado da confiança que no Brasil lhe mandara o mestre-de-campo Joane Mendes de Vasconcelos, quando outros súbditos lhas não guardaram, fazia deste sujeito grande conta e era dela merecida, ao menos pela suficiência que pela amizade. Diremos mais adiante, pois tantas vezes há-de prover de matéria a esta escritura.
Como a guerra do Brasil cessou pela trégua, e a de Portugal, à maneira de Castor e Polux, se levantara na declinação daquela, Joane Mendes de Vasconcelos passou ao Reino, aonde foi bem recebido e olhado com aqueles favoráveis olhos com que do povo é vista qualquer novidade.
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Ajuntou o marquês a inclusa abonação da sua pessoa, sublimando a sua disciplina militar, que nele havia valor, temperança e indústria, digno tudo de grande ocupação a que El-Rei, mostrando inclinar-se, nomeou logo a Joane Mendes de Vasconcelos conselheiro de guerra e, pouco depois, mestre-de-campo-general do Exército do Alentejo.
Opunha-se a esta determinação o direito que António Teles da Silva tinha àquele posto. Foi necessário compor-lhe primeiro, não só a razão mas a queixa, sobre que os méritos de António Teles eram de grande preço, aumentando-lhos esta consideração, como a luz esclarece mais espaço quanto mais alto se constitui.
Poucos eram os lugares que lhe podiam dar cómodo e satisfação. Já se achava conselheiro de guerra repetidas vezes. O que disseram os pitagóricos das almas sentem os estadistas das venturas aquelas que, na esfera civil, costumam desprezar a uns e animar logo a outros.
Fora o marquês de Montalvão, como fica dito, sucedido no governo do Brasil por três governadores: eram o bispo
Dom
D.
João da Silva que ministrava a autoridade, Luís Baracho que entrou por parte da disciplina militar, havendo sido cabo felicíssimo de algumas armas portuguesas, Lourenço de Brito entrou a subministrar o aplauso e segurança 149
da Baía, donde era natural. Os quais juntos constituíssem o governo com os próprios poderes, revogados ao marquês, de vice-rei que de seu excesso veio muito queixoso. Não tanto criminava diante de El-Rei o procedimento que contra ele tiveram, como reprovava a todos os procedimentos daquele governo, comprovando sua opinião com outras de igual força.
El-Rei, já resoluto na mudança, mandou acomodar ao Baracho no governo do Rio de Janeiro, o bispo em seu exercício. Chamou e prendeu depois a Lourenço de Brito, que esteve longo tempo na desgraça real, até que depois chegou o dito Lourenço de Brito a tempo de alcançar as mercês. Tão vária é a sorte, a vida tão importante?
Então foi declarado António Teles governador do Brasil, e ele vendo-se rogado com maior satisfação daquela a que porventura aspirava, quis aceitar condicionalmente, propondo a El-Rei convinha à sua honra exercer primeiro o cargo de mestre-de-campo-general.
Mas a resposta de El-Rei, ministrada ou advertida (inventada diziam os queixosos) pelo secretário Lucena foi: "que ou aceitasse o posto do Brasil, ou perderia ambos. Que o exercício que nomeava era impraticável pelo haver El-Rei já encomendado a outro sujeito. Que, se só pela opinião o pretendia,
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era também ociosa diligência, porque todos conheciam não tocava a falta em infelicidade, e se, em insuficiência, essa não podia suprir El-Rei nem o vão aparato do exercício em poucos dias".
Não quis El-Rei achar-se presente aos efeitos desta resposta; e saiu por alguns dias à caça, recomendando ao secretário o cómodo destes negócios. Estes pararam em que António Teles ficou engrandecido, e ainda queixoso, El-Rei servido, e Lucena odiado.
Por ser este o costume de alguns príncipes, não será injusto nos detenhamos a ilustrá-lo. Note-se pois se não julga a vergonha nem é novo que, segundo o modo porque se usar, será virtude ou vício, que já de ociosa vergonha houve um sábio que escreveu sabiamente, porém logo nos príncipes, pejo repreensível é desviar seu semblante de qualquer das suas resoluções, que com ele altamente se qualificam; mas dissera que é certo que depois que os príncipes fizeram coisas indignas de que se estranhassem por obras suas, se dissuadiram de as rubricar com sua presença.
Tibério, mestre das artes de reinar e alguns dos monarcas que teve por discípulos, reservou para si a comunicação das mercês, deixou aos ministros a comunicação, digo a notificação do castigo, porque os súbditos o amassem como o único autor
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de seus bens e aos ministros aborrecessem como instrumento de seus males. Nestes, sem dúvida, a ambição ou desconfiança do universal aplauso procuram ser somente amados à custa do ódio alheio. Nem porque os estóico chamam ao seu Júpiter poder se indignavam contra os planetas superiores, reconhecidos também a seu benévolo influxo.
Esta censura em que têm incorrido os poucos decorados do mundo, parece que se apouca pela inclinação de clemência para a ruína, porque ao próprio algoz se agradece cerrar os olhos ou virar o rosto quando ministra o golpe.
Dom
D.
João desejava dar forma a seu exercício; e ainda mostrá-lo em campo ao inimigo se a ocasião o pedisse. Por melhor execução deste desígnio passou a governar no Algarve, e do Algarve veio o seu regimento, o conde de Óbidos,
Dom
D.
Vasco de Mascarenhas, cujo sangue, disciplina e aplauso parecia estaria pedindo aquele posto, ou aquele posto àquele homem.
Servira quando mancebo em Flandres cuja escola foi de tanta opinião ao mundo que as horas dela se reputavam mais que os anos de outra milícia. Nela fora capitão, na do Brasil mestre-de-campo. Se todavia ignorava os preceitos militares, poucos tinham ocasião de haver sido mais cientes que ele.
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As armas portuguesas padeceram em seus princípios grandes abusos, ocasionados igualmente da indestreza que da credulidade dos que as mandavam. Haviam corrido vários estrangeiros a Portugal, os mais com pouca notícia da guerra, outros com falidas e incertas observações destes tomavam os usos ou arbítrios, e resultava grande perturbação. Fora menor dano valer-se dos antigos costumes, ou racionalmente, segundo a ocasião, introduzia alguns de novo, porque quando depois se houvesse de praticar a verdadeira disciplina, houvera menos trabalho em emendar os erros que os horrores.
Neste estado se achava o Exército ao tempo que o conde de Óbidos e Joane Mendes de Vasconcelos, primeiro e segundo-cabo, tomaram posse do governo dele. Sua boa disciplina lhe fora menos custosa a prevalecer então aquela sentença do Filósofo onde se verifica é a alma do homem tábua rasa disposta a todas as imagens que nela se debuxa para havermos a doutrina. Então não foi menos custoso desterrar as ignorâncias que introduzir as artes. Porém em breve as Musas pertencentes às milícias foram tomando as virtuosas formas e perdendo os vícios.
Assim padeceram as armas cuja melhora cada dia instava a muitos nobres e pessoas de grande conta e recado que, sem outra ocasião ou preceito que seu gosto, fossem servir e merecer.
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Tratava-se então de nomear aio do príncipe
Dom
D.
Teodósio; e fora certo que se o Vimioso se entregara, o conde se dera por satisfeito, e El-Rei não só houvera obrado uma eleição aplaudida, mas de todos justificada. Era o conde instruído nas Ciências, artes e línguas pertencentes a um senhor. Havia sobretudo, com vantajoso estudo, criado seus filhos, que a primeira condição que os reis devem fazer porque mal criara bem os filhos alheios quem os próprios criou mal.
El-Rei foi assim advertido de pessoas zelosas, mas o Lucena, procurando imprudentemente merecer o ódio do Vimioso que até então padecera injustamente, dissuadiu facilmente a El-Rei daquela escolha. Esta diferença fazem as matérias que nascem: ou se introduzem nos ânimos dos príncipes contra aqueles que delas procedem ninguém tem valor, contra as que outros lhe introduziram pode sempre a razão do mais favorecido que soe ficar, nestas contendas, vitoriosa.
Repulsado o Vimioso, procederam à consideração de outros sujeitos. El-Rei se mostrava inclinado a Francisco de Melo, monteiro-mor do Reino, que depois de embaixador de França pediu e aceitou postos militares, sendo dos velhos o primeiro e único que por aquele modo se empregou no serviço do Rei e da Pátria, exercitando muitos anos o ofício de general de cavalaria.
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Mas o Lucena que, como mais confidente e essencial ministro o era só destas consultas, fazia inculca da pessoa de
Dom
D.
Antão de Almada em quem menos o interesse da coroa era quem menos aspirava àquela confiança e a quem menos pertencia.
Outras pessoas foram propostas e excluídas porque a sorte havia determinado que aquele príncipe saísse também por si mesmo que escusasse e escurecesse as doutrinas alheias, ou porque, como se não criava para os homens, à volta de receber as doutrinas, não recebesse também deles os defeitos.
Em reino breve e onde todos pretendem ser grandes, não pode haver observação de estado tão oculta que aos príncipes não seja manifesta. Daqui procedeu que os não admitidos, não agradecendo ao Lucena a inculca ou deixada lhe demandaram a reprovação.
El-Rei tudo sabia. Parte pela que destas práticas lhe davam outros criados, parte pela que delas lhe referia o mesmo ministro. Mas, sendo diversos os fins, vinham ambos a conformar-se nos meios, porque Francisco de Lucena procurava mostrar a El-Rei, por seu próprio interesse, como pelo de El-Rei era malquisto. El-Rei, por sua conveniência, não se desagradava de ver encaminhados a outrem os queixumes que puderam fazer dele. Ao Lucena dava e confortava mau remédio, e ele que antes desejaria
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o prémio que o conforto da desafeição dos poderosos, fazia méritos para grandes mercês.
Estavam sentadas Cortes segundas, depois do reinado de
Dom
D.
João. Nas primeiras se consideraram as importantes matérias que se haviam de discutir, convocadas e propostas. Foram sem artifício nomeados para procuradores de Lisboa, como é antigo uso dos portugueses,
Dom
D.
Antão de Almada pelo círculo da nobreza, e Gregório Mascarenhas, ministro de Letras, pela esfera do povo.
Constam as cortes de Portugal de comum congregação dos três estados do Reino, eclesiásticos, fidalgos e populares. Depois do solene dia da proposição que só por pessoa real e não por algum outro presidente podem ser insinuados outorga El-Rei poder aos três braços para que se juntem em postos sinalados a tratar do bem do Estado que representam e do serviço do príncipe, com quem por comunicação podem consultar várias conferências que entre si e os três braços compõem por via de deputados.
Junta-se, em
São
S.
Domingos, o estado eclesiástico que compreende bispos e arcebispos. Em
São
S.
Roque, o estado da Nobreza. Em
São
S.
Francisco, o estado dos povos. O primeiro, como não compreende grande número, por não chegarem a vinte os prelados do Reino, continua inteiro todas as cortes.156
O segundo, que consta de títulos, senhores conselheiros e alcaides-mores, se reduz a trinta votos, entre os quais se elege um secretário que sempre costuma ser ministro de grande lugar e suficiência. O terceiro se reduz também a número certo de definidores, em quem se compromete toda a generalidade do povo, advertindo que nem são todos nem todos os grandes do Reino, mas os mais antigos. Esta é a forma das cortes portuguesas das quais contam por primeiras as celebradas em Lamego, em tempo de El-Rei
Dom
D.
Afonso Henriques.
Havia já grande ruído de que a nobreza e povo conformados faziam a El-Rei importantes advertências e rogos, e não faltavam sinais de que muitos desejavam se mudasse a forma do governo presente. Receavam todos os ministros, particularmente os adventícios que por serem estranhos ou desiguais às ocupações, eram mal avaliados dos grandes e povo.
Nunca vem grande tempestade sobre a terra a que não precederam sinais, merecedores de emenda ou reparo. Tão justa como divina é a providência que nos governa. Tão-pouco aqui faltaram da moléstia que preparavam à República príncipes e ministros, mas ou fosse que a facilidade lhe dificultasse o remédio ou que o temor lho desconhecesse, nem os mais ameaçados foram prevenidos.
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Algumas vezes cessava a lisonja à malícia do receio com que é recebida; e passa com menor estrago, como vemos que o touro, no meio do seu furor, receia ofender ou perdoa àquele que antecipadamente se lhe derriba; e se embravece contra o tronco, que não sabe humilhar-se. Se a este fim não olhara as demonstrações dos mal contentes naquele tempo, eles se haviam solicitado contra si mesmo o ferro que forjaram para outros; porém os reinados, seguindo os corpos humanos, não tem tanto vigor e prudência no princípio como na virilidade.
FIM DO LIVRO SEXTO
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Livro Sétimo
Tocaremos agora a resolução das armas e das calúnias; ou não trocaremos senão as armas por que as calúnias é o arnês que os homens esgrimem uns contra os outros.
Sebastião César, bispo eleito do Porto e ministro de igual valia, mérito, grandeza e desgraça, exercia naquelas Cortes o lugar de secretário da nobreza, entre os trinta de que se forma. Achava-se em seu tribunal, incitando aos circunstantes arbitrassem tudo o que fosse conveniente ao serviço do Príncipe, conservação do Reino e aumento do Estado da Nobreza.
Então foi interrompido pelo conde de Vimioso que, com razões de grande gravidade, dizia: "Que em vão os nobres, Igreja, e Reino se cansavam em buscar meios de suas prosperidades, se tão junto a El-Rei, como se achava seu secretário e valido, Francisco de Lucena, todos perdiam o valor; que
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este ministro era o piloto pérfido que, a tempo de meter pela barra dos ouvidos do Príncipe, os ricos tesouros dos desígnios de seus vassalos, ele mesmo lhe subministrava o naufrágio. Que este lançava peçonha na fonte do Povo, de que tudo resultava inficionado, introduzindo no ânimo de El-Rei venenosas informações; e que destas procedia o descrédito em que se odiavam os maiores do Reino. Que ele seria de percuciente inteligência. Que com aguda espada se lustra o malicioso. Que fundara na miséria alheia sua prosperidade, porque necessitados de sua intervenção lhe comprassem o que El-Rei lhe dava e já a preço de méritos haviam feito próprio. Que seus fins ainda eram mais preversos, que a ambição, soberba e iniquidade. Que bem se podia inferir, por infalível silogismo, desejado o Reino em mãos de El-Rei de Castela quem por este modo o arrebata das mãos de El-Rei de Portugal. Que nenhum dos presentes se cansava em odiosas meditações de Estado, enquanto se não viam livres deste grande impedimento; e que o mais fiel seria aquele que mais cedo e resoluto oferecesse meios para tirar tão grande obstáculo entre El-Rei e o Reino
".
."
Alguns sentiam diversamente porque o ódio, à maneira de raio de sol pode ser dissimulado, porém não desmentido. O que mais se determinou opor-se
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a esta resolução se deu por satisfeito em não segui-la; os mais abraçaram indistintamente, porque nestes havia igual queixa e invejas que em seu autor.
Pareceu que o primeiro passo convinha comunicar aquele ponto com os estados eclesiástico e popular; entre os quais estava já bem assentada esta opinião. Em o primeiro, porque como os sujeitos de que consta pertenciam ao próprio estado da nobreza, participavam alguns do mesmo escândalo. O segundo, com menor desculpa, seguiu seu erro, se não se recebe o exemplo por desculpa. Muitos dos procuradores populares, instruídos nesta opinião, à força de promessas dos grandes, se converteram em suas próprias paixões, sem outro zelo que lisonjear àqueles de quem, por sua vontade, se faziam dependentes.
Constante entre eles a forma da conspiração, acudia cada um com documentos particulares que a comprovassem: uns ajuntaram que vissem os outros impossíveis. Não se duvida porém que entre tanto émulo e diversões houvesse algumas injustas e muitas de antiga interpretação aplicadas sempre a pior parte.
Uma das culpas capitais se fundavam no excesso da jurisdição divisando a regalia. Será bom informar delas ao juízo público.
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Costumavam os reis da Europa e os de Portugal com grande frequência ouvir em público os seus vassalos, que por papel lhe apresentam a informação de seus negócios, pedindo o remédio deles. E como nos novos reinados os súbditos têm mais constância e os príncipes maior paciência, era sem número o número das petições que a El-Rei acudiam, para cuja compreensão, quanto mais despacho, não bastavam os dias inteiros.
Reparando El-Rei neste inconveniente e consultando com o secretário o remédio, tomaram forma que, recolhidas as petições que se davam a El-Rei, o secretário as visse em seu ofício; e por ele, debaixo de sua forma, em nome de El-Rei, as remetesse ao tribunal aonde tocassem; donde vistas e examinadas as matérias, subiriam a El-Rei votadas e dispostas de sorte que compreendendo o ser das coisas as podiam resolver fácil e justamente. Tal era a usurpação do ofício de reinar, criminando a equivocação que havia dos mandos do Rei e do ministro, porque sendo este o que mandava e assinava os decretos, os adjudicava aos decretos, digo ao império, do seu senhor
:
dizendo: Manda El-Rei. E como seu secretário não fosse a seu príncipe tanto vox como império.Fora largo e alheio processo referir as importunas calúnias, tão bárbaras, tão maliciosas, que contra
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aquele ministro se fabricaram. Contudo, como verdadeiras e importantes foram de grandes pessoas abraçadas.
Dom
D.
Rodrigo da Cunha, arcebispo de Lisboa, de quem já falámos, se interessou nesta conspiração, além do que pedia o seu estado e vida. Disseram que por queixas particulares. Era o arcebispo homem dócil, repreensível e repreendido, o maior de sua família, na qual inserida por afinidades pouco conjuntas à Casa dos Saldanhas, de tal maneira se quis fazer partícipe de seus interesses, que não só aos justos patrocinava, mais ainda aos vãos desígnios que por alguns se entendiam.
Sucedera que havendo El-Rei feito eleição dos bispos para prover as igrejas do Reino, pretendera Manuel de Saldanha, reitor de Coimbra, o bispado de Viseu, em o qual saíra provido
Dom
D.
Pedro de Meneses, homem de igual guia e bondade; e Manuel de Saldanha na mitra de Miranda, inferior à de Viseu. Sendo já publicada esta resolução por decretos reais, foi tanto o queixume e poder do seu parente contra o secretário, de quem diziam que por amizade com o Meneses, trocara o acordo a El-Rei, que o mesmo Rei e secretário houveram de satisfazê-los, revogando, à vontade dos queixosos, os primeiros decretos, acomodando a
Dom
D.
Pedro de Meneses em Miranda; e que compuseram com razões e esperanças.
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Nem por esta emenda se deram por satisfeitos; como juiz que perdoa a culpa, mas não a pena. Por tal causa e outra pouco mais justificada, entraram uns e outros no desejo de vingança, a que o arcebispo não negava o consentimento nem a autoridade. Por ventura se lhe representavam estes intentos cobertos daquela infelicíssima investidura do zelo que a tantas paixões deu o mundo crédito e a tantas ignorâncias estrago.
Francisco Manso, religioso da Companhia, público confidente do Reino, tanto que viera de Castela, disseram que por eles era enviado. Foi a este fim recluso na Torre de Belém por pouco tempo. Ruim contudo, nele mais o escândalo que o estímulo. Agora achando as portas tão abertas para a vingança, entrou por elas sem receio, inculcando quanto sabia dos malefícios e traições do Lucena, pelas notícias que na corte castelhana alcançara e que antes de sua prisão lhe não tinha lembrado.
Formou-se entre todos um papel de culpas capitais, conspirações, infidelidades e latrocínios. O qual, assinado dos nobres e alguns populares, foi o arcebispo com os de sua facção publicamente oferecer a El-Rei. Muitos lhe deram forma e autoridade a este papel, que os dias passavam de sua reza e as noites de sua conversação. Aos bravos leões domam
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os benefícios; aos homens, em vez de os obrigar, os enfurecem.
Vira-se El-Rei mais confuso, nesta novidade, se já lha não houveram prevenido por avisos que não creu ou desprezou. Com isto, apartando as propostas, a que a inclinação e perigo o levaram, julgou por qual era o espírito que animava aquela diligência.
Saiu a aconselhar-se em público e secreto com o mesmo arcebispo, com os marqueses de Montalvão e de Gouveia, com o visconde residente do paço, mas em nenhum achava liberdade e inteireza para comunicar-lhe esta acção, os mais por inficionados do mesmo ódio. Só o marquês de Gouveia, homem incorrupto e independente, lhe disse convinha primeiro averiguar a inocência ou delito do criminado, não havendo no mundo justificação perfeita nem culpa indesculpável.
O Lucena, sendo já certo da conspiração e suas obras, entregou todo o ânimo à ira e se apartou da prudência. Seus maiores amigos lhe aconselharam entregasse logo os selos a El-Rei e se retirasse; mas ouviu indignado este conselho. É maravilhosa a prudência que basta a suster o ânimo de um homem quando cai da valia do príncipe.
Mas como a consideração obrasse seus efeitos, brevemente se apresentou aos pés de El-Rei, dizendo-lhe
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com lágrimas a que suas cãs faziam poderosas e graves:
"Senhor, antes de nascer vos servi no mérito de meus pais e avós que aos vossos serviram sempre. Chegastes ao reinado, e os mesmos que vos conduziram a ele me conduziram a mim também. Aos vossos pés, porque sendo tempo de dar a cada um o que era seu, não era razão se vos deixasse de dar o reinado que era vosso. Trinta e seis anos havia que exercitava por esta coroa o ofício de secretário, nas partes a que me mandava o rei que então a possuía, já em Madrid, já em Lisboa. Porém aquela honra e proveito que para o ministério me havia granjeado eu a escusara já bem; em particular de ser vosso vassalo tudo sobeja. Ou porque em sessenta anos de idade sobejam tanto os negócios que o resto deles é só bem empregado no negócio da salvação. Tudo depus e me sacrifiquei alegre para morrer em vosso serviço, julgando que em vos servir me não divertia do serviço de Deus. Obrei como soube, trabalhei como pude. Mais ponho com tudo por meus desejos que por minhas obras. Ainda assim foram tão venturosas minhas acções que vos tem por testemunha, se vos tem por juiz. Dois anos há que vos sirvo na penosa ocupação dos papéis. Vossa clemência esforçou minha debilidade, pois vós à vossa custa experimentastes,
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sendo tão invencível de forças como de coração, espírito, quanto foi o trabalho padecido na direcção de uns e outros negócios. No fim de tudo não contentei aos sátrapas. Muitos dos grandes estão queixosos de mim porque, dizem, sou contrário à sua grandeza. Se, por minha humildade, dizem bem, se por minha ambição dizem mal. Porque com o mesmo ofício, duas comendas e uma quinta, com que entrei a servir-vos, vos estou ainda servindo, sem mais pedir outro prémio que acertar a vos servir, nem contraste nem tesoureiro posso eu ser dos méritos alheios. Dizem que eu lhe retenho os prémios que vós lhe quereis dar-lhes, ou taxo diante vós o valor de suas obras e suficiência. Mais sinto eu aqui o queixume que só deles pudera ter vosso entendimento em maior lucro da razão. Eu sei quão bem expressas estão as partidas de cada um destes queixosos. Bem quisera eu estar hoje tão vigoroso e forte que servisse de escudo ao erro e demasia destes golpes, porque não houve algum tão atrevido que se desmandasse a ofender vossa justiça e providência. Mas que farei eu se sou débil e desigual instrumento! Que farei se é tal a minha desgraça que só valho para o vosso desserviço? Esta tão alta razão me traz, Senhor, à presença de Vossa Majestade a cujos pés prostrado, por último benefício, vos peço acomodeis outro
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sujeito neste mesmo exercício; e me deis licença para me retirar a alguma parte aonde me cheguem as novas dos vossos triunfos
".
."
Ouviu El-Rei com afectos de grande piedade e respondeu, não sem mostras de afeição: "Que aos reis se pedia mais que aos homens não para sua malícia; e não era novo que esta com o mérito tivesse rota guerra. Conhecia as razões da fidelidade qualificadas pelos serviços passados e presentes. Os retiros de ministros eram sempre suspeitosos, ao tempo da calúnia, interpretado a temor ou desengano. Agora que eram mais os negócios e não menos árduos os internos que os exteriores, mais havia mister neles ser bem aconselhado. Era ruim termo para qualquer homem; e mais malíssimo para com um rei acompanhá-lo no descanso e deixá-lo na fadiga. Fiasse dele lhe valeria em qualquer tempo e quando fosse de repousar o convidaria, com honrado sustento. Havia por bem que continuasse seu ofício; e que, passada brevemente a onda daquela correcção, o mar ficaria sereno
".
."
Quem observasse a variedade das seguintes acções a este discurso a julgaria de profundo artifício; mas os que de mais perto viram o ânimo de El-Rei bem conheceram que sempre obrara com amor por inclinação e com desfavor com violência.
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A prudência humana não alcança tão largos termos que seja invencível. Erra desculpável quando espera racionalmente. Da presença de El-Rei avisado, não seguro, mas soberbo; com que foi um tácito aviso aos contrários para que esforçassem a oposição. A tirania começa procurando o mal alheio, mas acaba solicitando a ofensa própria.
Contudo se interpôs grande pausa entre esta negociação. Os conspirantes chegaram a apalpar sua ruína. Confiavam em ser muitos e grandes. Os mais interessados nela foram fáceis de reduzir-se em a pessoa do ofendido. Consideraram aquela disposição e concórdia que em as suas deles havia para a reconciliação faltavam os instrumentos porque os culpados não eram suficientes e os que eram sem culpa antes desejavam o castigo dos culpados que a paz de todos; ou, por cevar o ódio que entre os mais ardia, ou para que reclusa a estrela Castor é necessário que a de Polux se escureça.
Tornaram-se com novas forças a animar as negociações sem reprovar por ilícito algum meio com que conseguisse o fim pretendido. Alguns disseram desordenadamente que se El-Rei, por amparar a um ruim ministro, não queria ouvir os brados dos nobres e povos, com aquele só se acharia nas ocorrências futuras. Afirmavam que sabiam até donde chegaria a causa da fidelidade e fariam tudo
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o que não fosse transferi-las. Nas práticas e conversações dos indiferentes sempre se misturam algumas daquela opinião que notavam os outros; e pessoa houve de grande valor e juízo que disse a El-Rei, notando profundamente as demasias de suas paixões: "Que aquele templo em três dias se podia destruir e edificar outro mais próprio
".
."
Não chegou cego á orilla do perigo. Porém, conhecendo o seu parecer um e outro dano, se acomodou a receber o de menor inconveniente julgava por ventura o que lhe seria mais fácil no último risco perdoar antes o castigo que se encaminhava a um só que dá-lo a muitos.
Assim resoluto avisou ao secretário era tempo que se retirasse; porque dando acesso aos rogos e petições que se lhe haviam feito, por mais justo e bom termo queria qualificar sua inocência.
Então, não só temeu a El-Rei mas aos inimigos; e, sendo-lhe permitido elegesse o lugar para o seu retiro, tendo o Reino todo por limite, elegeu o menos conveniente, por aqueles que para mais não valem ou querem valer aos afligidos, costumam provê-los de ponderação de seu perigo.
Persuadido o Lucena destes tais que em qualquer parte não estava segura sua vida das cavilações e poder de seus contrários, escolheu antes como couto que distrito, a fortaleza de
São
S.
Gião, 171
célebre praça na entrada do porto de Lisboa em que era governador
Dom
D.
Jorge de Meneses de quem dizemos adiante.
Vendo passar um ministro da casa de El-Rei em que vivia a uma torre onde se costumam reclusar aos mais delinquentes do crime de inconfidência, cuidou o povo cego, mas nunca menos, lhe estava já provado o crime de que fora acusado. Tal foi a voz que se levantou inculcando sua ruína, não desmentida com as mostras da liberdade que na fortaleza exercitava, saindo a passear cada dia pelos lugares vizinhos; porque a primeira acção foi mais pública do que eram estas.
Se mais composta, não foi menor contenda, a que se seguiu sobre inculcar um novo secretário a El-Rei que houvera em lhe desviar o amigo, porque como os poderosos tinham observado que para príncipes que não admitem valido aquele vale mais que mais tem que fazer com ele. Julgavam que o mesmo era oferecer-lhe o secretário que mostrar-lhe a pessoa a quem haviam de favorecer; e porque todos aspiravam a pretender dele para suas pretensões, desejavam que fosse algum seu dependente.
Sucedeu aos improvidos discursos dos homens o que às furiosas tempestades. Aonde a vontade, vagando por todos os rumos, surge o orbe sem saber em qual deles se firme.
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Enquanto estes assim variavam outros mais maduros fizeram memória a El-Rei da suficiência dos papelistas que pelos tribunais o serviam com suficiente satisfação; mas ele dando crédito e ouvida à proposição de António Pais Viegas que, no estado particular de Bragança, o serviu de secretário muitos anos, e agora, por grandes males que padecia, poderia só de sua língua valer-se como de oráculo. Aceitou a inculca de Pedro Vieira, doutor em Leis, procurador que então era da Fazenda Real. Interveio a grande abonação do marquês de Gouveia que serviu de confiar a El-Rei mais do que persuadi-lo. Era Pedro Vieira entre os ministros de sua ordem um dos mais modestos e já por algum negócio tocante à liberdade do Reino padecera no governo castelhano trabalho e espólio.
Aos mais aprovavam e não satisfez a eleição; mas deu-se-lhe a entender não era firme e que somente enquanto El-Rei se não deliberava, mandava entregar os papéis ao novo secretário. Aqui tornaram a temer, persuadidos que sem dúvida o antigo tornaria a tempos. Com que também tornaram a fulminar contra este desvio, porque vendo-se faltos dos justificados documentos de que necessitavam para provar as importunas calúnias que haviam articulado, cada qual julgava já sobre o peso da ruína.
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Quando o artificioso Tibério renovou em Roma a dura Lei da Majestade Leza que os tempos e inconvenientes tinham sepultada, não se fulminava em Roma com maior ânsia que então em Lisboa; nem eram mais iníquos aqueles decretos e ficções com que compravam os escravos para testemunharem contra seus senhores, que cá as torpes diligências com que se subornavam ao mesmo fim criados e dependentes do sangue e amizade se atreveu o coração. Tão solto andava o veneno.
Ainda assim os juízes da Inconfidência publicamente nomeados, sendo os mais a este caso suspeitosos e impuros não davam mostras de se poder conseguir aquele fim que as partes e os mesmos juízes desejavam; de que El-Rei se mostrava interiormente satisfeito. Como confusos os interessados todos procuravam achar modo de que lhes assegurasse El-Rei não tornar à sua graça aquele ministro, porque se davam de seus erros com essa segurança por contentes.
Porém El-Rei não só do Lucena fazia escudo, mas espada de cujo temor aprazia, dando-se por mal seguros os queixosos, desejando vencê-los com a força alheia.
Esta matéria de Estado fora mais conveniente quando alguma inocência não correra perigo, sendo costume das batalhas padecerem primeiro os que
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vão diante, antecipando-se a receber o golpe dos inimigos; donde procedeu, como veremos, que El-Rei não ficou vingado, nem a razão satisfeita.
Achando-se as coisas nestes termos desconformes, aconteceu por estranho e fatal modo um acidente que a todos trouxe ao último dano.
Servia no Exército do Alentejo, com o posto de ajudante-tenente, que já foi lugar inferior do que este se reputa, um mancebo generoso dito
Dom
D.
Pedro Bonete cujo pai foi João Baptista, castelão de nação. Tivera uma das companhias no presídio do castelo de Lisboa, pátria de
Dom
D.
Pedro.
Era de atrevido natural, de agudo engenho, prático nos estilos militares, cujo exercício seguira em armadas e exércitos castelhanos; mas a parte em que mais se estremava, era singular escrivão por cujo meio viera a cair em tantas infâmias, contra fazendo sinais, como pudera subir a honras seguindo justamente aquele exercício.