I. Proponho ao Mundo um dos maiores homens de Portugal, e proponho a Portugal o maior homem, que em muitas idades ele deu ao Mundo.
O Padre ANTÓNIO VIEIRA, glória da nossa Nação, inveja das estranhas, lustre imortal da Companhia de
A pátria lhe deu o título de Grande, o Mundo todo o admirou ainda maior, e será seu nome em todos os séculos ocupação da fama.
Detiveram-se até agora os ânimos, e tremeram as penas desta escritura; ou medrosos da variedade dos sucessos, ou da grandeza do sujeito.
Julgaram que só o silêncio era o maior brado do imortal VIEIRA; ou que a escrever-se de um Varão tão sublime devia ser com os raios do sol, ou com a sua pena.
Não merecia menos estatuário, que
Nós porém, não para dar luz, mas para a receber do mesmo argumento, oferecemos aos desejos da pátria este pequeno retrato, que dirá em mudas vozes ao Universo ser a Lusitânia região tão feliz, que em todas as idades costuma produzir homens gigantes.
II . Em termos concisos (como em mapa abreviado) lerão aqui os curiosos uma temerosa alternativa da fortuna, ou para melhor dizer da Providência.
Lerão um possante báxel sulcando vitorioso as ondas; e logo quase soçobrado feito ludibrio delas.
Lerão uma Águia remontando-se sobre as nuvens; e logo metida em trevas, como se fosse crime fitar mais fortemente os olhos no Sol.
Lerão um elevado entendimento, já tido por néscio, já venerado por Oráculo.
Lerão
Lerão um espírito Apostólico divulgando a Fé entre a Gentilidade; e logo pelos Cristãos à vista dos mesmos Gentios caluniado.
Lerão um raro Herói adornado de virtudes sumas, por elas invejado, e injustamente perseguido.
Lerão enfim uma Vida, que correndo larga entre as rodas da fortuna vária, descansou aclamada por santa com o portentoso brado de uma língua do Céu.
Este o tosco desenho, do que já entro a escrever.
III. Por muito tempo andou em opiniões a pátria deste grande Astro, fingindo com maior fábula, do que a de nascer o Sol em Delos, os entendimentos, quanto o seu afecto, ou a sua inveja lhes ditava.
Menos foi contenderem por Homero sete Cidades em Grécia, quando pelo Grande VIEIRA contendeu a terra, e o mar; assinando-lhe uns o primeiro berço neste elemento, outros naquele.
Entre as terras foi a peleja mais dura; mas cederam todas à maior, e melhor de Portugal.
IV. Aos
Foi seu pai Cristóvão Vieira Ravasco, Fidalgo da Casa de Sua Majestade, e de cuja nobre ascendência daremos depois notícia; sendo que para imortal glória do Padre ANTÓNIO VIEIRA ficam demais as fumosas imagens de quaisquer Maiores.
Sua mãe Dona Maria de Azevedo teve também por pátria Lisboa, ocultando-nos a mudança da pátria para tão longe a sua venturosa ascendência: mas para serem contados estes ditosos progenitores entre os da mais elevada graduação, bastavam as qualidades de tão ilustre Filho.
Dos mais, que tiveram, faremos depois particular, ainda que de alguns lastimosa memória.
V. Aos
Hoje cedendo toda a sua venerável autoridade, e Metropolitano lustre à nova, e Santa Igreja Patriarcal, se intitula Basílica de SANTA MARIA.
Foi padrinho neste
VI. Nos tenros anos de puerícia (não obstante, o que adiante referirá a história da menos aptidão, com que se sentia para os estudos) reluziam nele algumas vivezas, que como faíscas rebentavam de alguma interna mina de fogo, e de luz.
Vendo-o um Cónego no adro daquela antiga Sé lhe disse: De quem sois meu menino?
Respondeu-lhe: Sou de Vossa mercê pois me chama seu.
Refere-se mais, que perguntando-lhe outra pessoa, donde era, lhe respondera: Vossa mercê não me conhece.
Eu (tornou o curioso) conheço metade do Mundo.
Pois eu, Senhor, (respondeu o menino) sou da outra metade..
Esta a fama, que depois de tantos anos não pôde ser averiguada; mas ficou na memória dos homens, como aquele rastro de luz, que deixa a Estrela, que vai correndo.
VII . Ainda não contava perfeitamente
Tomado porto, e assento na Bahia, não foi mais clemente a terra, que o feroz Oceano.
Acometeu-o ainda na ternura dos anos uma grave doença, e parecendo chegar com pequena carreira ao acaso aquela vida, deu o Céu na voz de um profético espírito (como se crê) o primeiro prognóstico do grande giro, que em dilatada esfera tinha que fazer.
O sucesso passou assim.
VIII . O Padre Fernando Cardim da Companhia de JESUS era na Bahia de particular agrado na casa de Cristóvão Vieira Ravasco, e de sua mulher Dona Maria de Azevedo; e como o perigoso mal, com que lutavam os poucos alentos do menino ANTÓNIO, os tivesse em temeroso sobressalto, o Padre, ao que parece, com a alma cheia de superior ilustração os assegurou e disse: Que não morreria o menino; porque Deus o guardava para coisas grandes, para crédito da Nação Portuguesa, e para honra da Companhia de JESUS.
Esta foi a voz do Venerável Padre Fernando Cardim (apelido, que em Portugal, e no Brasil nos serve de despertador de virtudes heróicas em ilustres Varões.
Este o foi no Colégio da Bahia, onde foi nono Reitor, e décimo Provincial daquela Província Religiosíssima; nela se conserva o seu retrato, história muda, mas forte, para a imitação de seus exemplos.
IX. Não foi único este presságio, com que o Céu se empenhava em prognósticos da futura grandeza de ANTÓNIO; porque ao conferir-se-lhe o Sacramento da Confirmação, que recebeu ainda em Lisboa na Igreja de Nossa Senhora dos Mártires, onde então o administrava o Ilustríssimo Dom Miguel de Castro; havendo ali muitos meninos, não podia aquele grande Prelado desapegar-se deste; nem lhe quis dar a bofetada costumada nas cerimónias daquele Sacramento, dizendo: Tenham-me muito cuidado deste menino.
Assim começou o Grande VIEIRA como Sol, o qual logo no seu Oriente os primeiros, em quem dá com a sua luz, são os montes.
X. Chegados os anos da puerícia, e empregados nos primeiros rudimentos, houve de passar nos estudos de boas letras no Colégio da Companhia.
Aqui entre a competência dos condiscípulos sentia com generosa índole não poder decorar as lições, nem compor com tanta certeza, como outros seus iguais.
Uma espessa nuvem, que lhe ofuscava o entendimento, o tinha até então menos hábil para aprender; mas no meio desta escuridade o Céu o ensinou felizmente a buscar a fonte do Sol; porque na inocência daqueles anos todos os dias, ao passar da casa de seus pais para o pátio dos estudos da Companhia, entrava a venerar a Imagem de Nossa Senhora da Fé, ou a das Maravilhas, que
XI. Aqui orando um dia, inflamado todo em desejos de saber, pediu à Soberana Mãe novo subsídio de resplendores, quando de repente lhe deu a cabeça um estalo; e como se quisesse a Graça com o sonoro do estrondo dar sinal do resplendor do Céu, que descia, sentiu que lhe arraiava naquela mais nobre região da alma uma nova luz dissipadora das trevas, que até então a oprimiam.
Foi tal o abalo, que naquela ocasião experimentou na cabeça, e tão excessiva a dor, que (como referia, quem lho ouviu) lhe pareceu, que morria.
Sem dúvida, que a mão Onipotente do Artífice Divino, que reformava, e afinava aqueles órgãos no vivente, não quis, para recordação do favor, impedir um efeito tão natural ao sensitivo.
Desde este ponto ficou com aquela clareza de entendimento, agudeza de engenho, e capacidade de memória, que na facilidade de perceber, e tenacidade de conservar, o que lia, em todas as idades admirará o Mundo.
XII. Sossegado então aquele interior tumulto, partiu para a classe, e reconhecendo em si uma aptidão mui nova, disse ao Mestre, que queria argumentar com qualquer dos condiscípulos: saíram contra ele os melhores, e todos com assombro do Mestre, que reconheceu grande novidade, ficaram contra
Prosseguiu dali por diante o menino ANTÓNIO os seus estudos com novos brios; e como o seu espírito era talhado para altas empresas, quis buscar um estado de vida, em que tivesse por exercício
Tanta luz tinha já no entendimento, como fogo no coração.
XIII. Acendeu-lho em ardentes desejos de fugir do Mundo o caso, que se refere do Santo Frei
Daqui fez um tal discurso, tantas, e tão maduras ponderações o seu profundo juízo, que com heróica resolução se determinou a buscar aquela formosura tão antiga, e sempre nova; sendo este caso, o que por testemunho seu o fez ser Religioso.
O dia feliz desta vitória, o lugar, e instrumento dela, nos deixou nos seus Fastos assinalado de seu punho este incomparável homem.
Aos
Assim o lemos nos fragmentos de um Comentário breve, em que apontou os dias notáveis de seus sucessos, para render por ele a Deus
Não podemos porém dissimular a dor, assim pelo conciso deste Comentário, como pelo não termos completo.
XIV. Era viva naquele tempo a fama, e fresca a memória dos singulares Varões, com que nas conquistas de Portugal, e da Igreja se ilustrava a Companhia de JESUS.
Ainda falava, e respirava chamas no alento do Venerável Padre João de Almeida (como no seu
Estes dois Capitães triunfadores da América, e outros, que lhe seguiam os espíritos em todo o Brasil, com as novas dos Louros, e Palmas do Oriente, regadas com os suores, e sangue de tantos, e tão estremados Heróis, assim como faziam sombra a qualquer outra glória, assim o inquietavam, e excitavam a ele a seguir por semelhantes passos a conquista das almas.
XV. Determinou-se pois a alistar-se na Companhia de JESUS, onde para cultivar seu engenho tinha oportunidade, para empregar seu espírito ocasião.
Uma noite foi só, a que viu este desígnio; porque no silêncio dela, e fiando-se só dos olhos das Estrelas, fugiu de sua casa para a da Companhia de JESUS; ou porque conhecesse em seus pais oposição a seus intentos, ou porque a temesse.
Assim se despediu, e despiu do Mundo
Por extremos começam, crescem, e caminham sempre ao termo mais alto as almas heróicas.
XVI. Receberam-no no Colégio os Padres com o devido alvoroço na noite de
Admitido ao Noviciado, reconheceu nele o quieto porto, porque suspirava; mas aquela ditosa estância, onde só zéfiros assopram, se lhe converteu em proceloso mar.
Por meio dos parentes assoprou o Inferno os ventos, e moveu as ondas, que o combateram na Vocação; mas o seu forte espírito assim rebatia estes assaltos, como o penhasco oposto, a quem não abalam, antes nele se quebram os mares furiosos.
XVII. Por este tempo (ou pouco depois) em que se coroava de vitórias esta nova flor, que logo pareceu gigante, quis o Céu confirmar-lhe as forças com um novo benefício.
Foi mandado à antiga aldeia de São João, que do sítio, em que então estava, se passou, e confundiu com a do Espírito Santo, cujo título prevaleceu: dura hoje, e dista da Bahia sete léguas.
Nesta jornada errou o caminho, e foi dar alta noite em um rio.
A passagem era impossível, o lugar horroroso, e para
XVIII. Nestas angústias tratou de retroceder, e levantando os pensamentos ao Céu, voltou encomendando-se ao seu Anjo da guarda.
Já tinha andado algum espaço, quando viu diante de si a um menino, que saía do mato, o qual lhe perguntou, para onde ia?
Respondeu-lhe o errado peregrino, que para a aldeia de São João, mas que não acertava com o caminho.
Ofereceu-se-lhe este novo Rafael para o guiar, e indo adiante o pôs à vista dela, e desapareceu.
Chegado à aldeia, e referindo o sucesso, encheu a todos de admiração, julgando-se que não podia ser homem aquela guia; porque nem na aldeia tinha faltado pessoa alguma, nem o lugar do rio, por ser mal assombrado, e para todos medonho, o permitia.
Com que ficou entendendo dever ao seu Anjo da guarda tão singular desvelo, benefício tão oportuno.
XIX. Acabado o Noviciado, que foi aos
O engenho admirava-se nele sem igual, a memória suma, a compreensão portento.
Estudou, e leu com assombro as letras humanas, sendo eminente não só nos metros Latinos, senão também nos vulgares: e como os dotes daquele entendimento se remontavam tanto
XX. Pouco tinha sobre os
É emprego este, em que se dá notícia ao Reverendíssimo Padre Geral de todo o memorável, que tem sucedido na Província: envolve sucessos mui vários, casos diferentes, e pede assentado juízo, e mui destra pena, em quem os há de escrever.
Tudo se achava nos poucos anos de VIEIRA, venerando-se nele em idade tão verde a excelência de sábio, a madureza de varão.
XXI. Aos
Com ele apareceu em país tão formoso o grato coro das Musas, as quais ouvindo tão doce canto na amenidade daquele sítio, banhado por uma parte do mar, e por outra parte do rio Beberibe entre perpétua, e grata verdura, puderam então esquecer-se do seu elevado Pindo, e ter por menos clara a fonte de Hypocrene.
XXII. Cresceu com tal Mestre o ardor nos discípulos, e desejando ver ilustradas as Tragédias de Sêneca (de que ainda então não havia no Brasil Comentos) ditou-lhe neste ano um Comentário sobre elas, obra, que se lhe
Assim anelava a se comunicar a sua imensa erudição com a presteza de luz; nem podia ter sossego aquela pena, que havia voar pelo Mundo com tanta, e tão portentosa escritura.
XXIII. Preso tinha o forte império da obediência em tão curtos estudos ao imenso entendimento de VIEIRA; até que a sua grande alma, que amava todas as letras por génio, e as Divinas por mais alto destino, mostrou que não podia conter-se na breve esfera das humanas.
Ainda antes de contar
Mas se bastara só esta notícia para admirar o Mundo, e para colocar este raro Varão entre os mais altos entendimentos, que produziu a Onipotência; no que agora diremos, o reconhecerá o mesmo Mundo em mais superior esfera, cedendo nele as luzes de sábio às virtudes de santo.
XXIV. De quase
Por este mesmo tempo cremos, que
Logo então declarou a seus Maiores os intentos, e o voto, que tinha de gastar a vida entre os boçais, e incultos Brasis, deixando a profissão das letras; mas não foi então admitido, nem ouvido.
Agora não o prendendo a aura do aplauso, antes crescendo em zelo, teve por suspeitosa a glória das escolas, e pediu com repetidas instâncias, que o houvessem por escuso de mais graves estudos.
XXV. Propôs com ardente espírito, que o Céu o chamava a viver, e morrer no ensino dos Índios rudes; e que tendo feito este sacrifício de si à Divina Majestade, não parecia justo lhe impedissem seguir tamanha glória: que as Palmas, e alfanges da Ásia levavam de Portugal, e Europa com esperanças do triunfo a tantos Varões Apostólicos, ficando cá tão perto, ou desprezadas, ou fatalmente esquecidas as setas da América.
Que o deixassem ficar no último grau dos estudantes da Companhia, cujas aulas, como via o Mundo, estavam tão cheias de engenhos singulares, como incultas ainda muitas searas de Cristo.
Que as brenhas, serranias, e covas, onde metera tantas almas de Gentios a inscrutável Providência, eram as palestras; e o convertê-los, e salvá-los, eram as mais altas, e gloriosas
XXVI. Admirou resolução tão heróica, e ver quebrar com tanto desengano aqueles dourados grilhões, com que as esperanças de luzir sábios cativam a altos entendimentos.
Como porém a oculta Providência de Deus lhe tinha determinado por teatro Europa, em que o queria propor ao Mundo por exemplar vivo de Varões constantes, negou-lhe o mesmo, que lhe fazia pedir; e assim foi mandado ouvir Filosofia, em que teve por Mestre ao Padre Paulo da Costa Sénior, sujeito grande, e que teve a fortuna de poder gloriar-se de ter um tal filho de sua doutrina.
XXVII. Aqui se remontou a Águia sobre si mesma.
Viu-se nas escolas um novo Aristóteles.
A presteza, com que percebia as dificuldades, a agudeza, com que as penetrava, a sutileza, e viveza, com que arguia, foi assombro nas aulas da América, e o fora nas mais celebradas de Europa.
Não pudemos alcançar casos particulares de suas vitórias nestas campanhas de Minerva, em que muitos engenhos poderiam hoje contar por triunfo ter contendido, e cedido ao incomparável de VIEIRA. Jazem debaixo do peso de um século com tantas luzes.
XXVIII. Não puderam porém os anos apagar da memória dos homens a maior: e agora referiremos, entre outras suas, uma
No mesmo tempo, em que como discípulo era mandado ouvir Filosofia, compôs ele um Curso Filosófico para si; não tendo lugar luzes alheias em um entendimento, onde morava todo o Sol: excesso, em que começou a ver claramente o Mundo, que este raro mancebo era mandado aparecer entre os homens, como resplendor particular do Divino Saber.
XXIX . Consumado nesta ciência, entrou ao vasto mar da Teologia, em que com exemplo nunca visto lhe mandaram os Superiores, que não tomasse os ditados, ou postilas de outrem, quando viam os tratados, e questões Teológicas, com que ele frequentemente saía, testemunhas irrefragáveis da sua compreensão, e brados fortes, que o aclamavam Mestre daquela ciência Divina.
XXX. Voando assim na aplicação das letras, e cortando sempre com zéfiros aqueles mares, que outros navegam com o remo em punho, pudera entre as venerações de sábio ser altivo; mas como a César as armas não impediam a ciência, assim ao Grande VIEIRA a ciência não impedia as virtudes.
Dele se refere, que no mesmo tempo, em que todos o olhavam com admiração, e respeito, ele se abatia a si próprio, confessando-se por um rude discípulo dos demais, Virtude tão rara,
XXXI. Ornado com estas, e outras virtudes, foi promovido ao Sacerdócio dia de Santa Luzia no ano de
Não pudemos averiguar o dia, em que celebrou a primeira Missa: cremos que seria no mesmo Dezembro.
Qual porém fosse a devação, qual a preparação, com que subisse ao Altar, facilmente se pode inferir, de quem viveu sempre como Anjo.
Apto assim para todos os ministérios, e vendo os Superiores a este novo Sol coroado com tantos raios de saber, quiseram dá-lo a conhecer ao Mundo, e lhe mandaram ocupar uma Cadeira de Teologia no Colégio da Bahia; mas a fortuna de Portugal, que depois de tantos anos de pranto tomava novo semblante, queria por alto destino da Providência ao Padre ANTÓNIO VIEIRA na Corte de Lisboa para instrumento glorioso de altas empresas.
XXXII. No feliz ano de
A dar-lhe o parabéns de ter empunhado o Cetro, e a trazer a notícia, de que já todo o Brasil ficava rendido à sua obediência, mandou Dom Jorge
XXXIII. Aos
Eram
Acalmaram enfim os ventos, e mal depostos os sustos na quietação de tão traidor elemento, vieram navegando entregues à Providência, até que
XXXIV. Aqui, onde esperavam porto fiel, e seguro asilo dos Naturais as quebrantadas forças, foi mais que desfeita a tormenta, e sobre todo o horror mais que espantoso o nublado.
Intentaram aqui fazer os homens, o que não puderam acabar conjurados os ventos, e a fereza das ondas.
Amotinou-se o povo contra os novos hóspedes; e como se tinham passado a Castela os irmãos de Dom Fernando Mascarenhas (o que ele totalmente ignorava) tiveram-no também a ele por suspeitoso.
A não se opor ao furioso povo o Conde de Atouguia, que se achava governando Peniche, acabaria ali (e já tinha recebido uma ferida na cabeça) Dom Fernando, o qual com o Marquês de Montalvão, seu pai, tinha sido glorioso instrumento de se sujeitar a Bahia, e todo o Brasil à primeira voz da aclamação do nosso felicíssimo Restaurador.
XXXV. Não se crera insolência tão precipitada; mas não podemos alegar com mais incorrupto documento, que do abreviado Diário do mesmo Padre VIEIRA, escrevendo assim de seu punho: Aos
Aos
Não diz mais o abreviado documento.
Tais eram naquele
XXXVI. Chegado a Lisboa, em breve reconheceu em VIEIRA o Augustíssimo Rei um proporcionado instrumento a suas altas ideias.
Em poucos tempos, ou séculos logrou o Mundo juntos dois portentos tão raros.
Um coração tão animoso, e vasto, como o do nosso invicto Libertador; e um entendimento de tanta compreensão, e luz, como o do incomparável VIEIRA, nunca os teve Portugal.
Não pôde esconder-se tanta grandeza, e começou Lisboa a ouvir este novo Túlio: e a uma sabedoria tão portentosa, que não tinha parte, que não fosse suma, não podia corresponder menos eco, que o assombro, e a admiração das gentes.
XXXVII. A primeira vez, que pregou na Capela Real, foi no primeiro de Janeiro de
Falou com tanta elegância, e novidade, tão discreto, e ajustado com o lugar, e tempo, que se houve Hércules, que com cadeias de ouro prendesse aos ouvintes, foi este incomparável Orador.
Ouvido pelo Augustíssimo Rei, viu-se neste dia ficar presa a liberdade Real; porque logo determinou, que o
Nos anos seguintes não só não diminuiu, antes se aumentou o alto brado de sua fama, sendo o alvoroço da Corte, todas as vezes, que havia de falar em público.
XXXVIII. Eram os concursos tão numerosos, que nunca bastavam os mais capazes Templos; e nos Sermões tal a eficácia, e valentia do dizer, que quando discorria em pontos morais, deixando com a evidência das razões o entendimento convencido, caiam vítimas de seu fogo desfeitos os corações de bronze, derretidos os de cera.
Muitas ilustríssimas Senhoras, que eram Damas de Palácio, deram de mão a todas as esperanças do século, ouvindo-lhe pregar o seu primeiro Sermão do Juízo: triunfo tão cheio de glória, quanta só podia conseguir um coração tão cheio de fogo, e de luz.
XXXIX. Tem nesta parte Portugal matéria de tanta glória, que pode, sem controvérsia, jactar-se, de que num filho seu logra o maior Orador, que viu o Mundo, entrando os antigos Gregos, e Romanos.
A aceitação, que teve do Augustíssimo Rei, e da mais qualificada nobreza, se provou repetidas vezes no excesso da honra, e quase veneração, com que as Estrelas da Fidalguia o respeitaram na eloquência, e sabedoria por Sol.
No ano de
XL. Não só do Rei da terra, mas também do Céu, recebeu neste mesmo ano um singular favor: aqui o damos pelas suas mesmas palavras, com que o escreveu no seu brevíssimo Diário.
Aos
Assim guardava a alta Providência do Céu aquela vida, de que se havia de servir em ilustres empregos de sua glória.
Mas se o livrou deste golpe, quis-lhe dar o merecimento, de que padecesse outros: pedradas verdadeiramente mais desumanas.
XLI. Contra esta celebridade de nome, e aplauso, saiu intrepidamente a emulação, tão cega na própria infâmia, como na honra alheia: não puderam sofrer tanta luz, os que a tinham menos ativa; e viu-se em Portugal aquele portento dos Etíopes, que costumam praguejar o Sol.
Os elevados conceitos, propriedade das Escrituras, notícia universal de todas as ciências, e luzes novas, com que falava, ou pregava, sendo (como o Mundo hoje está vendo) um singular esforço da Onipotência, pareceu a muitos Pregadores, e sábios, indigno de tantas aclamações.
Não só a muitas cabeças, que por púlpitos, e cadeiras tinham encanecido, pode subir este mal.
Outras
XLII. Foram neste particular muitos, e muito públicos os tiros, com que a inveja o procurou desluzir; mas o seu coração imenso tinha por leves estas contendas, e eram para a sua invencível paciência, e magnanimidade todas as sátiras pueril jogo.
Assim calou a tudo; e tal foi entre perseguições a modéstia deste heróico Varão, que veio a deixar, entre os que em Portugal o trataram, o conceito, de que ainda era mais santo, que sábio.
XLIII. Crescia neste tempo o alto conceito, e confiança, que do seu profundo juízo, e vastíssima compreensão fazia o Augustíssimo Rei: comunicava com ele os mais árduos, e ocultos negócios, que naquele tempo oprimiam a Monarquia, como logo referiremos; e esta privança, e favor em Palácio, deu ocasião ao zelo a julgar, que o Padre ANTÓNIO VIEIRA intentava com o Soberano introduzir novidades na Companhia de JESUS, sempre nela, e em qualquer Religião de muito
Uma voz na música, e uma só corda no instrumento fora do seu ponto, faz dissonância.
A união, e teor, com que se fundara esta Província, na consideração de alterado, fez tal impressão em muitos ânimos, que se temeu o religiosíssimo coração de VIEIRA, que a Companhia de JESUS o demitisse de si.
XLIV. Chegou esta vez a fúria dos ventos ao mais alto do Olimpo.
Ouviu ElRei este rumor; e imaginando aquele Augusto Príncipe, que o Santelmo desta tormenta poderia ser uma Mitra, mandou-a oferecer ao Padre ANTÓNIO VIEIRA pelo Secretário de Estado, com promessa de o elevar a outra mais opulenta, que cedo se esperava vagasse.
Maior tormenta foi o favor, que a tormenta; mas com imortal pregam daquele heróico peito, nem a tempestade, que assoprava do porto lhe pode fazer mudar as velas, nem o riso, com que o chamava o mar, o pode levar a si.
XLV. Respondeu: Que não tinha sua Majestade tantas Mitras em toda a sua Monarquia, pelas quais ele houvesse de trocar a pobre roupeta da Companhia de JESUS; e que se chegasse a ser tão grande a sua desgraça, que a Companhia o despedisse, da parte de fora de suas portas se não apartaria já mais, perseverando em pedir ser outra vez admitido nela, senão para Religioso, ao menos para servo dos que o eram.
Não se contentou
XLVI. Esta foi a resposta, que deu ao Secretário de Estado Pedro Vieira da Silva, depois meritíssimo Bispo de Leiria: e esta é a isenção, com que lograva as estimações do seu Soberano o Grande VIEIRA, deixando-nos em dúvida o seu procedimento, se era mais heróico o Príncipe, se o Vassalo.
Viu sem dúvida nele o Mundo um coração tão sublime, que manejando tantos negócios políticos, e de Estado, nada o pode divertir das atenções de Religioso: assim servia ao Príncipe, e à pátria, que com diferente culto, dos que idolatram nas Majestades, queria só por prémio do valimento o viver pobre.
XLVII. Sossegou-se enfim a tempestade (mais temida, que formada) porque as primeiras apreensões do zelo, mais de fogo, que de luz, em breve observaram no Padre VIEIRA um novo, e resplandecente Sol, lustre imenso da Religião, que o gerara, e não Cometa infausto de suas ruínas, e estragos.
Assim o foi mostrando nos diversos modos, com que a Divina Providência o provou; porque além da valorosa constância, com que levava os tiros dos émulos, assim no estupendo
No primeiro de Março de
Quais porém, e quantas fossem entre tantos contrastes as empresas, a que pôs os ombros, para ajudar como Hércules ao venturoso Atlante da Monarquia, agora o dirá a História.
XLVIII. Achava-se o Reino de Portugal exausto de forças, como o que acabava de sair de uma doença mortal; e as guerras com Castela, e Holanda, assim como ameaçavam cruel recaída, assim necessitavam para a sua oposição de alentos vigorosos.
Correndo pois o tempo, e sossegado aquele animoso orgulho do nosso valor, e primeiro alvoroço da doce liberdade, já começávamos a ver com sobressalto as dificuldades da nossa conservação.
Buscavam-se os meios para ela; e como para a primeira empresa conspiraram os corações, assim agora o faziam os entendimentos, desvelando-se os mais elevados em investigar os meios, com que o Reino renascido se fosse criando nos braços da ventura.
XLIX . O primeiro Argonauta deste golfo,
Sugeriu primeiro que todos a Sua Majestade, e deu por escrito em tantos oráculos, quantas letras, um eficaz meio para cobrar sangue o corpo enfraquecido de Portugal: e foi o instituir-se uma companhia Oriental, e outra Ocidental.
Reduziu-se a praxe para esta segunda, de que resultou a restauração de Pernambuco, e Angola, e adquiriu com o comércio novos espíritos o Reino.
Não chegou a se executar a primeira, com sentimento universal dos mais inteligentes, e zelosos; porque sem dúvida seria o instrumento glorioso de restaurarmos a Índia, ou quando menos de fixarmos um cravo na roda da fortuna, impedindo-lhe o precipitado curso de nossas perdas no Oriente.
L. Mas não só ao lado do Príncipe concorreu para as glórias de Portugal o Padre ANTÓNIO VIEIRA.
Saiu do Reino, e começou a voar esta Águia, verdadeiramente Real, por mais dilatada esfera.
Por mandado delRei passou a França, e Holanda, para assistir à composição da paz, e principalmente para informar a Sua Majestade da verdade, e estado, em que se achavam os negócios de Portugal cometidos aos dois Embaixadores naquelas Cortes.
Eram dali os seus avisos, e resoluções tão adequadas, que no labirinto de pareceres, naquele perigoso tempo, quase sempre prevalecia no grande juízo delRei o parecer do Padre VIEIRA.
LI. Aos
Empregado ali na comissão, que levara, passou aos
Quiséramos referi-los um por um, mas de todos na falta de documentos só podemos deixar à posteridade as memórias da nossa dor.
De Ruão saiu para Caléz, onde chegou aos
Ia já raiando a Aurora do dia
Aos
LII. Informado em França, e Holanda do estado dos negócios de Portugal, explorados os intentos, os génios, os Ministros daquelas Nações, pesando tudo com maduro juízo, e procurando alcançar com aquilina vista o mais profundo da sua política; para abrir caminho às conveniências da pátria, voltou a Lisboa a dar a verdadeira notícia a ElRei,
Não parou muito tempo na Corte, sem que fosse preciso o girar outra vez por Europa, já manifesto, já disfarçado este ligeiro, e sábio Mercúrio; servindo-se dele o Augustíssimo Rei, e fiando muitas vezes só dele em relevantes segredos a Coroa, novamente com tanta glória adquirida.
LIII. Partiu pois o Padre ANTÓNIO VIEIRA para Inglaterra, França, e Holanda.
Aos
Estava este país infeccionado com peste; mas este heróico Varão, como se esperasse cortesia nos males, tendo naquela conjuntura de tempos pelo maior de todos os perigos a dilação, desprezado ousadamente o contágio, meteu-se à terra.
Não se jacte a soberba Romana do seu famoso Pompeu, quando por acudir com trigo a Roma, se meteu no mar com uma tormenta em Sicília, falando intrepidamente aos seus (que repugnavam embarcar-se) com aquela ousada contradição de termos:
Navigare necesse est, vivere non est necesse:
LIV. Foi caminhando por França, levando passaportes seguros, para lhe não impedirem as entradas, por ir de lugar infecto; e depois
Nesta Corte, escola grande de Estadistas, se houve nos negócios, a que ElRei o mandou, verdadeiramente como Águia.
Era o principal intento entrar Portugal em liga com França; e para este fim não havia meios conducentes, que pudessem fugir à sua perspicácia, como também nenhuns omitia Castela, para impedir esta união.
LV. Aqui em Paris foram as batalhas de entendimento a entendimento.
Contendeu com o Cardeal Massarini, primeiro Ministro daquele Governo, contra cujos desígnios impediu o Grande VIEIRA a vinda do Príncipe de Condé a Portugal.
Desta resolução, e vitória formaram juízo os maiores políticos, avaliando-a por tão relevante, que não importara menos, que ficar ilesa a soberania da Coroa.
LVI. Até com os amigos teve encontros; porque, ou os ciúmes de mais atendido do próprio Príncipe, ou o ser homem tão grande, e cuja inteligência se remontava, pode talvez acender zelos, e excitar oposições, em quem, quanto ao público, tinha o carácter de primeiro.
No fervor daquela gravíssima negociação, como se dividiram os pareceres, taxaram-se por exorbitantes as promessas, que fazia ao Cardeal o Padre ANTÓNIO VIEIRA.
Assim o vemos escrito com elegante pena: mas não se escrevem, quais fossem.
Se elas aparecessem
LVII. Exorbitância parecia, querer-se ajustar com o Cardeal Massarini a liga entre Portugal, e França com promessa de entrega de praças; mas contra este ditame (que tinha pela sua parte a opinião de muitos políticos em Paris) se opôs, como Argos de vigilantes olhos, o Padre ANTÓNIO VIEIRA; o qual de Holanda, para onde já tinha voltado por ordem delRei, como logo diremos, constando-lhe que isto se metia em prática, escreveu com sua invencível pena assim ao Embaixador em Paris, como a ElRei em Lisboa, um discurso tão convincente, que pôs silêncio a tal projecto: tão eficaz sempre, e tão forte, assim ao perto, como ao longe, em influir zeloso no maior decoro, e felicidade da pátria.
LVIII. Obrando com tanto acerto em tão enbaraçado labirinto, foi nomeado por companheiro de Dom Luiz de Portugal, para ir à embaxada de Munster; esperando-se nas suas diligências pronta a fortuna, e da sua rara compreensão feliz estabelecimento (com a paz geral, em que Portugal procurava entrar) à nossa adquirida liberdade.
Não teve efeito aquela jornada.
LIX. Teve pois aviso delRey, como dizíamos, que deixada França, voltasse a Holanda; como se fosse precisa em todas as partes
Saiu de Paris, e atravessando terras, chegou outra vez à empesteada Caléz.
Aqui com animoso valor, e maior que todos os perigos, se demorou dez dias, livrando-o Deus do fogo do contágio, porque o tinha reservado para maiores, e mais altas empresas de sua glória.
Aos
Dia de Santa Luzia enfim tomou terra, e no mesmo Dezembro chegou, apesar de tantos contrários, a Haia.
LX. Neste já conhecido país se excedeu a si mesmo, e foi Holanda um raro teatro de suas acções heróicas: não tem a nossa pena cores bastantes para exprimir vivamente as eficácias de tão elevada alma; porque passando as raias de todos os outros entendimentos, pareceu habitar naquele corpo algum espírito Celeste.
LXI. Como era incomparável o seu zelo em servir a pátria, não perdia instante, nem lhe fugia dos olhos coisa, que pudesse contribuir à sua conservação, e glória.
Estando aqui em Holanda, vendo como estava Portugal destituído do preciso para a guerra, mandou despoticamente por via de Hamburgo, e Amsterdam cinquenta mil cruzados de munições em uma de três fragatas de guerra, que também
Então veio aquela feliz artilharia, que depois defendeu o Reino no sempre memorável cerco, e vitória das linhas de Elvas.
LXII. Quanto ao demais da comissão, que delRei levava naquela Corte, ele a tratou com tão sublime compreensão, e conveniências de Portugal, que Sua Majestade lhe mandou carta de crença, para ficar no lugar de Francisco de Souza Coutinho: mas aquele Grande homem, trono excelso da moderação, e verdadeiro Religioso da Companhia de JESUS, vestido (por necessidade do negócio, e do país) em trajes de secular luzidamente, vivendo, e tratando-se entre Cavalheiros ilustres, assistindo às funções políticas, a que o precisava o tempo, e mais circunstâncias, assim triunfava de todo vão, e mundano, que com grato rendimento se escusou do exercício de Ministro público do seu Príncipe, dando por causa ser uma tal ocupação coisa muito alheia de humildade, que professava.
LXIII. Não produzem todos os séculos almas heróicas.
A do Grande VIEIRA ainda se não contentava com rebater estas lisonjas da fortuna: outros conflitos teve mais ilustres, vitórias mais gloriosas, como agora diremos.
Como aquela pedra, que vizinha à peçonha se enche de calor, assim o zeloso peito do Padre ANTÓNIO VIEIRA cresceu em chamas da Fé no meio da perfídia herética.
Deu-se ao estudo
LXIV. Teve muitas em todo o tempo, que andou entre os Hereges, com os quais eram as batalhas cotidianas, e públicas; mas ao número das batalhas eram as vitórias, e os triunfos da Fé; porque aquele portentoso entendimento saía aos argumentos contrários com tanta luz, e agudeza, que as soluções, sobre muitas serem novas, eram evidências, a que se via vencido todo o poder das trevas.
LXV. Em Amsterdam disputou diante de muitos Hebreus com o seu Mestre chamado Manassés, e com fortíssimos argumentos o convenceu.
Não satisfeitos eles da ciência do vencido Mestre, apelavam para outro chamado Mortera.
Pediu-lhe o Padre, que lho trouxessem também, e que escolhessem o dia, e lugar para a disputa; mas nem os discípulos tiveram bastante eloquência para persuadir ao Mestre saísse à campanha, nem ele valor para aceitar o duelo.
LXVI. Escondeu-nos o tempo, e o descuido dos homens as mais notícias dos casos singulares, que em Holanda lhe sucederam; mas nesta escura cerração ainda pode a nossa diligência achar socorros à memória, e descobrir pessoas de incorrupta fé, que nos segurassem de um sucesso raro; espectáculo então não
LXVII. Achava-se o Padre ANTÓNIO VIEIRA em Holanda em ocasião de umas festas públicas. Concorreu a elas de todas as hierarquias gente inumerável, e entre este concurso um Nigromántico, que se fazia obedecer pronta, e acertadamente de um bruto. (dizem alguns, que era um cão)
Tinha a novidade aplauso sumo, e eram recebidas com alvoroço grande do povo, e dos que o não eram, as destrezas do animal, que mandava, e do que obedecia.
Uma foi mandar ao cão, que levasse certo prémio a um homem, que entre os do concurso excedia a todos no beber.
Obedeceu prontamente, e rompendo pela multidão, chegou, e deu o prémio a um, a quem a Cidade toda avaliava pelo mais esforçado atleta de Baco.
Ao sucesso seguiu-se o aplauso, como aquele rumor, e riso, com que nos grandes concursos costumam sair afectos diferentes.
LXVIII. Esperava-se segunda jornada, quando com segundo prémio saiu o libréu a entregá-lo por mandado de seu senhor, aonde achasse a mais estremada formosura.
Cresceu com a qualidade da matéria a curiosidade; e podendo ter o juízo de Páris em tanta multidão indecisa a sentença, este novo árbitro sem demora, levando sobre si os olhos da ansiosa turba, fazendo caminho por entre as mais presumidas flores, e atropelando invejas infinitas,
LXIX. Logrados tão felizmente estes dois empregos, terceira vez houve de usar do seu império o Nigromántico.
Mandou ao seu solícito ministro levasse um livro (que lhe entregou) ao homem mais sábio, que se achava naquela multidão numerosíssima.
Esta foi a mais vitoriosa cena daquele teatro; e como a experiência qualificava as primeiras duas, era suma a expectação da terceira.
LXX Partiu com o livro o bruto em busca do maior homem entre tantos homens; e com mais feliz empenho, que o de Diógenes nas praças de Atenas, deixando a entendimentos raros, e cultíssimos engenhos, chegou aonde estava o disfarçado VIEIRA, e a este entre o festivo aplauso, e cuidadosa atenção daquele abreviado mundo, entregou o livro: logrando assim justos triunfos fora da pátria aquele, que por grande não cabia nela.
LXXI. Começaram os maiores engenhos a estimá-lo com respeitosa veneração.
Muitas vezes o ouviram falar em público; e de tal sorte os suspendeu, que em uma junta de sábios mereceu a sutileza do seu discurso, e recôndita erudição, que naquele consistório ficasse colocado em eloquente pintura o seu retrato.
Ainda passaram avante; e dando mais culto a um tão raro portento da eloquência, não consentiram
Mas agora se remontará a pena a mais alta esfera, e verá o Mundo as luzes, em que se inundava a grande alma de VIEIRA.
Refiro um caso digno dos primeiros Heróis.
LXXII. Na volta, que fez de Holanda para Portugal, vinha na conserva da mesma frota um navio velho, e nele embarcado um grumete Português.
A idade perigosa de 16 anos, o descuido do eterno, com que semelhantes vivem, a companhia de Hereges, e o mal de peste, com que vinha ferido, fazia tudo recear, que com a vida perdesse a alma.
Chegou esta notícia ao Padre VIEIRA, que com agigantado coração estimava sem distinção de pessoas todas as almas por si mesmas, nem tinha no seu ardente zelo balizas o fogo: e temendo agora, que a perfídia herética apagasse naquela alma a luz da Fé; sem o deter o fraco da embarcação, nem a valentia dos mares, nem o temeroso do contágio, com resolução Apostólica, e maior que todos os perigos, voou intrépido, e se passou da sua forte embarcação ao meio estroncado navio, em que vinha o desamparado grumete.
Buscou-o, consolou-o, animou-o, e sem lhe sair do lado, já lhe servia de enfermeiro para o corpo, já de pai espiritual para a alma; alternando a caridade os empregos, ao passo, que dava oportunidade a ocasião.
LXXIII.Assim iam seguindo sua derrota, quando às fúrias do vento se levantaram os mares.
Formou-se uma horrível tormenta, e a soberba das ondas se atrevia aos mais reforçados baixéis.
Viu-se em perigo de ser comido, e metido no fundo o débil lenho, que nos mesmos mares envelhecera, e em que agora navegava o seu enfermo o Grande VIEIRA; mas nem esta tempestade, nem mais duas, que o assaltaram, o puderam intimidar, a que se voltasse à sua mais segura embarcação, enquanto durou a vida ao miserável.
Foi continuando o heróico enfermeiro com a assistência daquele já feliz grumete, a quem a Providência do Altíssimo queria levar a mais seguro porto, dando-lhe entre ventos tão contrários da fortuna piloto tão destro.
LXXIV. Durou a enfermidade vinte dias; e não havendo remédios, que contrastassem a valentia do mal, chegou a última hora, entrou em agonias, e nos braços do Padre ANTÓNIO VIEIRA, que lhe sugeria os mais enternecidos afectos, dando as últimas respirações, acabou a vida catolicamente aquele mareante, a quem dera nascimento a Cidade do Porto, e agora sepultura o mar.
Quais fossem os actos particulares de abatimento, e humildade, que aqui exercitasse o nosso Herói, bem o infere o discurso, ainda que os não pode individuar a notícia: mas de tão ilustre façanha ficou entre as gentes a memória, senão distinta, sempre gloriosa.
LXXV. Laureado com tantas vitórias, assim nas conveniências do Reino, como nos triunfos da sabedoria, e da Fé, voltou de Holanda a Portugal no ano de
Disséramos que a Majestade do seu Augusto Príncipe o recebera nos braços, a não ofendermos o excelso da soberania, que de todos os serviços é a credora, a nenhum obsequiosa.
Foi porém tal a satisfação naquele Grande Rei da destreza, e fidelidade, com que obrara tudo em França, e Holanda o Padre ANTÓNIO VIEIRA, que em breve tempo debaixo de mui diversos pretextos o mandou passar a Roma com novo desígnio.
Assim se servia da sua Águia o Júpiter do Céu Lusitano, querendo vencer agora com raios de luz, os que depois foram vencidos com ferro, e fogo.
LXXVI. Dez anos corriam, desde que a Divina Providência ordenara, que Portugal, depois de 60 anos de alheio domínio, se restituísse ao seu natural Senhor: e atendendo o Augustíssimo Rei Dom João
Tinha Filippe
Pública, e muito livremente o diziam assim, os que de nenhum modo queriam que casasse fora.
Soavam os ecos destas vozes gratamente em Portugal, e esforçados com outros ocultos assopros, e políticas inteligências, determinou o magnânimo Libertador da pátria solicitar este casamento para o Príncipe Dom Theodósio seu filho.
LXXVII. Oferecia a fortuna outra importantíssima empresa, com que (a conseguir-se) podia abrir-se a porta à nossa última felicidade, trazendo a paz; ou mitigaria a guerra, precisando a Espanha, a divertir suas forças de nossas fronteiras, por acudir ao que possuía em Itália.
Era isto uma secreta sublevação de Nápoles; porque descontentes do governo de Castela aqueles vassalos, significavam, por inteligências ocultas, quererem entregar-se a Portugal; eram gravíssimos ambos os negócios, e necessitavam de um Varão cabal, e de talentos relevantes, em quem se competissem destreza suma, e profunda inteligência.
Para sondar a altura deste escuro negócio, que corria mais oculto, que a fonte Arethusa por baixo do mar Siciliano, valeu-se de caminho ElRei da indústria, e prudentíssima destreza do Padre VIEIRA, que também sabia navegar por baixo das ondas, para que ele com sua perspicácia explorasse o estado, e o ânimo dos Napolitanos, e avisasse de tudo.
LXXVIII. Mandou-lhe entregar instruções
António Vieira: De mais dos negócios, que vos mandei declarar nas Instruções públicas, com que passais à Corte de Roma, reservei para esta secreta os principais, para que mais particularmente vos escolhi, fiando da muita experiência, que tenho do vosso juízo, amor, e lealdade, os encaminheis de maneira, que possa depois com o bom sucesso deles aliviar o mais pesado dos cuidados, em que vivo, depois da minha restituição à Coroa deste Reino.
LXXIX.Aqui vos mandei comunicar o estado das coisas de Nápoles e o que sobre elas mandei prover na Instrução secreta da embaixada, com que vai a França Luiz Pereira de Castro: dar-se-vos-ha uma cópia dos capítulos, que tocam a este negócio, e estes guardareis, como parte desta Instrução, em tudo, o que se vos puder aplicar: mas porque a execução dela pode ser de alguma indecência ao vosso estado, e ter inconvenientes para a vossa Religião, e sobre tudo o perigo para a vossa pessoa, e impedimento para o negócio principal, de que logo se tratará; mando ordenar a Manoel Rodrigues de Matos, que até agora me serviu de Agente na praça de Liorne, passe a Roma em vossa companhia.
LXXX. Até aqui o Augustíssimo Rei de tão sublime coração, como elevado entendimento, atendendo igualmente à importância da Coroa própria, como ao decoro, e segurança do Vassalo.
Agora diremos o sucesso desta jornada, e da empresa.
Tem o primeiro lugar a do casamento intentado do Príncipe: logo relataremos, como impedido este, não teve também efeito, o que intentavam os Napolitanos.
LXXXI. Aos
Apontou o mesmo Padre VIEIRA este dia entre os memoráveis da Divina Misericórdia; e assim o reconheceu toda a vida com obsequiosa gratidão ao poderoso braço de Deus, que o livrara.
Amansada já a braveza de tão furioso elemento, aos
Soltou de Barcelona aos
E temos ao Grande
Daremos desta negociação, que não teve efeito, com documentos certos indubitável notícia.
LXXXII. Era em Roma Embaixador o Duque do Infantado, e Assistente de Espanha na Companhia o Padre Pedro Gonçales de Mendonça, seu tio, bom, e doméstico intérprete.
O prólogo, com que com sutil, e disfarçada política, entrou na negociação, já fazendo-se neutral, já por ambas as partes interessado, o Padre VIEIRA, foi lamentar-se, como de Religioso para Religioso, do muito sangue Espanhol, e Católico, que se estava derramando nas nossas fronteiras, triunfando, e crescendo em poder com uma tal diversão os Hereges.
LXXXIII. Daqui passava, com dolorosa reflexão, a ponderar, como as campanhas de Flandres, pouco antes pacificadas, se viriam encruecer em Espanha com guerra tanto mais perigosa, quanto mais de portas a dentro.
LXXXIV. Esta foi a primeira, e sentida voz deste prólogo, introduzida nos ouvidos, e passada ao coração de um homem tão grande, como tio do Duque Embaixador.
Seguiu-se segunda conversação, em que além do Padre Assistente Pedro Gonçales de Mendonça, se acharam outros dois grandes sujeitos, e também
Veio à prática o casamento da Princesa em Espanha, e o Padre VIEIRA, não como quem buscava, mas encontrava a ocasião, lançou os três famosos Espanhóis esta suposição oportuna.
LXXXV. Se as coisas estivessem no estado antigo, pouca dúvida podia haver na eleição do esposo.
O sangue Real da Casa de Bragança é o mais unido à mesma Princesa; porque ela, e o Duque de Barcellos são netos dos mesmos Avós, e ele sobretudo pelas virtudes, e qualidades pessoais, merecedor do maior Império, como reconhecido, e celebrado no Mundo pelo Príncipe mais perfeito de toda a Europa.
Assentiram todos a este parecer com aplauso, reconhecendo sobre a preferência do sangue os dotes relevantes, e excelentes virtudes do Príncipe, que não tinha igual.
LXXXVI. Então como a água represada, tirado o impedimento, que a detinha, sai com corrente irresistível, e inunda tudo, assim o eloquentíssimo, e sábio VIEIRA, concedida esta evidente premissa, tirou da bainha o seu argumento, e com toda aquela força da sua nativa eloquência disse formalmente assim.
LXXXVII.Pois se o Primogénito de Bragança, só como Duque de Barcellos, e filho de seu Pai, é o mais digno de toda a Espanha, para
Dizer que tudo isto se há de conquistar, é fundamento fundado só no desejo; porque tendo mostrado os Portugueses, que eles por si sós se podem defender, é certo, que os émulos de Espanha os hão de assistir e ajudar, como fizeram a Holanda invencivelmente.
Mas quando a contrária apreensão tivesse alguma probabilidade, quanto sangue se havia de derramar, quantos tesouros se haviam de despender, quantos anos se haviam de esperar os fins dessa contingência?
Não é melhor, e mais seguro conselho, assim como tudo se perdeu em um dia, recuperar tudo em um dia, sem golpe de espada?
Por ventura foi mais decente a paz com os Holandeses, dando-lhes o domínio de sete Províncias, do que será a Paz com os Portugueses, não se lhes dando coisa alguma; mas recebendo de contado, quanto possuem dentro, e fora do Reino?
Onde se deve muito notar, que o que é Portugal só dentro de si, são partes, e membros da mesma Espanha, com que ela, e a Monarquia se tornará a repor na sua total inteireza.
Finalmente com esta reunião, e Portugal restituído, ficará Espanha em muito mais poderoso, e florente estado, que quando o tinha sujeito.
Porque ela agora o tem cingido, e sitiado com seus exércitos, e ele se defende com os seus em um cerco de
LXXXVIII. Assim disse este Demóstenes Português, estando mudos os três Espanhóis, olhando uns para os outros.
Mas o fim, e condição de todo este projecto era, que no tal caso havia de ser Lisboa Cabeça, e Corte de toda a Monarquia.
Difundiu-se a notícia desta prática até chegar às maiores cabeças da facção Espanhola, que havia em Roma.
Assentiam a ela geralmente todos, e entre os maiores o Eminentíssimo Lugo, em cujo juízo tiveram grande peso as razões alegadas.
Reforçavam-se com ponderação política, que se fazia sobre a Capital de Espanha, e os membros, que dela se regiam.
LXXXIX. O erro (diziam) que tem causado muitos em Espanha, é estar a Corte em Madrid.
Por isso ElRei Dom Filippe
A este fim se começou a edificar aquela parte do Palácio, a que chamam o Forte, obra verdadeiramente Real.
Tendo Espanha tanta parte de seus domínios no mar Mediterrâneo, tanta no mar Setentrional, e tantas, e tão vastas em todo o mar Oceano, havia de ter a Corte, aonde as ondas lhe batessem nos muros: e dependendo
LXL. Assim discorriam os políticos: mas nem o projecto, nem as suas razões, que na política Romana era atendível, o foi na escandalizada Madrid.
Como estava altamente ferido aquele Monarca da nossa separação, e desembainhada a espada nos ameaçava estragos, e ruínas, teve por música no luto a prática de amor.
Ou fosse por esta razão, ou por se pressentir Castela dos movimentos de Nápoles, diversão, que desde Roma poderia fomentar Portugal, instava ElRei Dom Filippe em todos os correios ao Duque seu Embaixador, que com todas as forças fizesse sair de Roma a ANTÓNIO VIEIRA.
Tomou o grande Ministro com tal empenho a execução deste preceito, que disse ao Padre Geral da Companhia de JESUS, que se ele Geral não mandasse logo sair de Roma ao Padre ANTÓNIO VIEIRA, ele o havia de mandar matar.
Assim se fazem árbitros das vidas os poderosos, e passa além das balizas da Cristandade a cega providência dos políticos.
LXLI. Aquela vida, que estava reservada para o ser de muitas almas, soube resoluta
LXLII. A segunda comissão, que levava, era sobre o oferecimento dos descontentes em Nápoles: e sendo este negócio dos maiores, que podia ter uma Monarquia, o fiou o animoso Rei inteiramente da inteligência, e indústria de um só homem; mas era VIERA, entregando à absoluta disposição do seu juízo, que ele o pudesse resolver por si só, sem outro conselho, ou recurso.
Para tudo achou já em Itália seiscentos mil cruzados com ordem ao Tesoureiro, que os despendessem à sua disposição, e que por um simples escrito do Padre ANTÓNIO VIEIRA se lhe levariam em conta.
Nem a animosidade deste Augusto Rei, nem a capacidade deste Vassalo, tiveram igual.
LXLIII. Chegando a Itália, tratou logo o Grande VIEIRA com profunda indústria de saber, o que passava em Nápoles, e sondar, como destríssimo Argonauta, aquele perturbado mar.
Ponderou os fundamentos, as forças, as qualidades, e disposição, dos que queriam apelidar Portugal contra o jugo, em que os tinha
Assim o escreveu a ElRei: de cuja resposta cheia de benevolência, e dignação Real, damos formalmente o seguinte.
LXLIV. Por carta do Residente Cristóvão Soares de Abreu entendi o progresso da vossa jornada; e por outra, que me escrevestes com data de
Diferente conceito fazia das coisas de Nápoles, antes de partirdes desta Corte; porque eram diferentes as informações, que me davam; e posto que receando as falências, que podiam ter, não quis mandar obrar nada, senão depois de vós irdes, verdes, e pesardes, cada um dos particulares de negócio tão grande.
Se tivera entendido, o que agora me avisais, houvera de mandar proceder nele ainda com maior cautela, do que se proveu nas Instruções, que levastes, que não foi pequena; porque fazendo juízo dos inconvenientes, que apontais no princípio desta carta, me parecem mais certos, que as utilidades, com que me posso animar a mandar continuar esta empresa: e no princípio me tivera dado grande cuidado, se a não houvera entregue ao vosso juízo, amor, e fidelidade.
Até aqui o Soberano
LXLV. No meio deste labirinto de humanos empregos, a que obrigou ao Padre VIEIRA o seu Príncipe natural em proveito comum da pátria, justa reflexão deve fazer o leitor na vasta esfera deste raríssimo homem.
Era tão largo o seu coração, tão animosos, e tão capazes de altas empresas os seus espíritos, que fiando dele o seu Monarca os negócios, que temos referido, nem a diferença de tais cuidados, nem a variedade daqueles empregos, nem as cautelas, com que em Roma havia de tratar políticos, lhe puderam afogar, ou apagar o zelo do serviço do Rei do Céu.
LXLVI. Entre estas ocupações ainda sobrepujava o coração; porque no mesmo tempo ia dispondo um memorial para apresentar à Santidade de Inocêncio
Cortou estes heróicos intentos a repentina, e violenta retirada deste ilustre Varão, tão valoroso, e destro nos negócios da pátria, como Apostólico, e ardente nos aumentos da Fé.
LXLVII. No mesmo ano chegou a Lisboa (que era o de
Trazia consigo este favor da fortuna o agrado da Augustíssima Rainha Dona Luíza, e do Príncipe Dom Theodosio.
(Aquele Sol, que ostentando no seu Oriente raios do
Seguia a Corte aos seus Príncipes; e a mais ilustre Nobreza em particulares, e públicas demonstrações, honrava ao Padre VIEIRA, reconhecendo em homem tão grande talentos não vulgares.
LXLVIII. Esta aura da fortuna, e de Palácio, que a tantos Cedros dobrou os troncos, e voltou à terra aqueles ramos, que pareciam avizinhar-se com as Estrelas, e buscarem só o Céu, nem levemente moveram a grande alma do Padre ANTÓNIO VIEIRA; quando se viu colocado no mais alto da estimação, e valimento, mostrou ao Mundo ter coração mais sublime, que as torres de Palácio; e que só anelava aos valimentos daquele Rei, que demora muito além de todos os sublunares.
LXLIX. No meio pois de tantos aplausos, começou a lidar com o pensamento de os fugir, deixando a Corte, e Portugal.
Aquele antigo voto (ainda que pelos Superiores irritado) em repetidos brados lhe trazia à memória as almas, que se perdiam, e as que podia ganhar.
Corria com o discurso pelos Sertões da América, e na consideração de tão extremo desamparo
Resolveu-se com coração, e desengano heróico a cortar por tudo de um golpe, trocando a Corte pelas brenhas, e passar-se, e dedicar-se para sempre às Missões do Maranhão.
Digam agora os Varões de espírito, e ainda o mesmo Mundo, se fizeram mais os Antónios, e os Arsênios; um rejeitando a Corte de Constantino, o outro fugindo do valimento, e Corte de
C. Antes porém, que o Padre VIEIRA nos desse tão extremado exemplo, não quis ter ocioso o fogo, que lhe ardia no peito; e como quem começava a ensaiar-se a fugir da Corte, ordenou ir em Missão à notável Vila de Torres Védras.
Tomou por seu companheiro ao Padre João de
Escondeu-nos o tempo os casos particulares, com que nesta campanha derrotou o partido do Inferno o nosso Guerreiro forte.
Só se diz em geral, que não só no povo daquela Vila, mas nos circunvizinhos, por onde correu, foi grande o abalo, muitas as mudanças de vida, e notáveis as conversões. Na sexta parte das suas obras se lê um Sermão, que ali pregou, que é um mar de sabedoria, e de fogo.
CI. Acabado o tempo destinado a esta Missão,
Mas assim como nos deu nesta Missão de Torres exemplo de fervor em sair a socorrer espiritualmente o próximo, assim o quis dar de sua humildade no Elogio, que fez de seu companheiro, de cujo espírito escrevendo ao ilustre, e zelosíssimo Padre Nuno da Cunha, diz em carta de
CII.Eu na minha Missão passei bem; e só me faltou acompanhar a Vossa Reverência na sua, para nela aprender do zelo, e espírito de Vossa Reverência o modo de empregar o trabalho com maior fruto: mas nesta falta supriu o Padre João de
CIII. Recolhido o Padre VIEIRA ao Colégio de Santo Antão de Lisboa, e resoluto à empresa, entrou num labirinto de cuidados sobre o modo de a executar.
Previa as contradições, que havia de ter, e que em ambas as Majestades, e no Príncipe Dom
Terras liquet (inquit) et undas Obstruat... Omnia possideat, non
O conhecer porém, que descobrir o intento da partida era excitar à mesma impedimentos; e que ausentar-se oculto, e sem o dar a saber a ElRei, seria tão feio no Mundo, como quem deixava ultrajados os respeitos da Majestade de um Soberano, em cujo coração fora com tanta particularidade admitido; e era o torcedor, em que se via a grande alma de VIEIRA, que sabia conhecer o delicado do respeito, e da gratidão.
CIV. A parte, que neste problema escolheu, não a poderíamos escrever, senão com temerosa pena; mas aqui o referirá o mesmo Padre VIEIRA, que por esta História de suas façanhas irá, sem a vaidade de César, sendo repetidas vezes argumento, e Historiador de si mesmo. Diz formalmente assim na cópia da que escreveu ao Padre Provincial; carta, que inteiramente demos à luz no livro intitulado: Vozes Saudosas do mesmo Padre VIEIRA.
CV.Disposta assim a Missão, (diz) e tomado no navio o mais largo, e cómodo lugar, que pode ser (o qual também deu ElRei) em
Chegados a São Paulo soubemos, que partindo os demais, só o do Maranhão ficava por ordem do Conselho Ultramarino, para poder levar um Sindicante, que dois dias antes se despachara. Estava ElRei aquele dia na Quinta; fui lá,
CVI.Indo já para ele com tão bom despacho soubemos, que os Capitães mores do Maranhão, e Pará, não estavam embarcados pela mesma causa.
Torno a Lisboa ao Conde de Odemira, dou-lhe notícia de nova ordem de ElRei, e conforme a ela se mandou aos dois
Mas posto que geralmente sucedeu assim, não faltou, quem entrasse em suspeitas, e desse ponto ao Paço, donde em amanhecendo me veio recado, que fosse falar a Sua Alteza.
Fui, e porque estavam para o sangrar, disse-me que esperasse para depois da sangria, tudo a fim de me deter; mas eu me saí, e fui embarcar a toda pressa.
Chegando ao navio soube, que ElRei tinha mandado chamar o Mestre, de que os Padres estavam desconsolados, entendendo o que podia ser.
CVII.Não havia já em todo o rio para partir mais que uma nau, que estava em Paço de Arcos: pedi ao Padre Francisco Ribeiro, que quisesse ir saber, se havia de tomar a Ilha da Madeira, e se levaria um passageiro; e eu com o Padre Luiz Pessoa tomei mulas em Belém, e me parti a Lisboa: à porta do Paço achei o Mestre do navio do Maranhão,
Também aqui soube, que tinha mandado Sua Majestade ao mesmo navio o Padre Bispo do Japão, e o Capitão do Pará: o Bispo, para que me trouxesse, e o Capitão com ordem, que tanto eu lá não estivesse, partisse logo o navio.
CVIII. Com estas notícias tão declaradas, entrei a Sua Alteza, (porque ElRei estava comendo) e lhe disse resolutamente, que eu ia, e havia de ir para o Maranhão, procurando reduzi-lo, a que o houvesse por bem, com todas as razões, e extremos, que em semelhantes ocasiões costuma ensinar a dor, e a desesperação; mas nenhuma bastou, antes me desenganou Sua Alteza, que me não cansasse, porque ElRei estava na mesma resolução, e nenhuma coisa haveria, que o apartasse dela.
Sobre este desengano considerei, que se falasse a Sua Majestade, me poderia deter muito, e perder a nau de Paço de Arcos; e juntamente, que partindo, sobre ElRei expressa, e preferencialmente me negar a licença, ficaria a fugida menos decente, para quem a não quisesse escusar com a justificação da causa.
Pelo que sem lhe falar, me tornei a Belém, onde também chegava de volta o Padre Francisco Ribeiro com resposta, que a nau partia para a Bahia, que havia tomar a Ilha da Madeira, e que me levaria.
CIX.Passei-me logo à fragata, deixando em terra aos dois Padres, os quais ambos me disseram, que
Bem conhecia eu, que o que ditava a prudência nas circunstâncias presentes era, o que me diziam os Padres; mas eu não podia acabar comigo haver de desistir da empresa, tendo chegado àquele ponto, nem a deixar aos companheiros, que o quiseram ser nela; e muitos dos quais por essa causa se determinaram mais a esta Missão, que a outra; e como o reparo dos Padres, que me aconselhavam, era só o pôr a perigo a graça delRei, também me parecia, que quanto eu mais a arriscasse, e perdesse pelo serviço de Deus, tanto mais penhorado ficava o dito Senhor a favorecer os intentos, porque o fazia; e assim o mostrou depois o efeito.
CX.Enfim cheguei à nau em tempo, que queriam levar a última âncora; mas no mesmo ponto cresceu de tal maneira o vento, que toda a gente da nau (que eram 60 homens) em muito tempo não puderam dar uma volta ao cabrestante, com que se dilatou a partida para a madrugada seguinte.
Passei aquela noite com o corpo neste navio, e a alma no do Maranhão, traçando como na Ilha da Madeira me havia de passar ocultamente a ele, sem saber, o que no mesmo tempo se traçava em Lisboa contra mim.
Foi o caso, que ao chegar à nau de Paço de Arcos, me conheceu o Provincial de São João de Deus, que passava por ali em uma fragata, e chegado ao Convento, foi visitar sua vizinha a Condessa de Obidos, onde achou ao Padre Ignácio Mascarenhas, e lhe contou,
Mandou logo o recado o Padre ao Conde de Cantanhede, o Conde ao Príncipe, e Sua Alteza a ElRei: e informando-se Sua Majestade de quantos navios havia para partir no rio, e sabendo que só três, mandou logo três Ministros de Justiça com três Decretos seus, que mos fossem notificar a qualquer navio, onde eu estivesse.
CXI.Ao amanhecer íamos já navegando por São Gião fora, quando chegou a nós um Corregedor, o qual subindo à nau me meteu na mão um Decreto, assinado por Sua Majestade, no qual lhe mandava me dissesse da sua parte, que logo lhe fosse falar, porque importava muito; e que em caso que eu dificultasse ir, notificasse ao Capitão, e Mestre do Navio, que sob pena de caso maior desse logo fundo, e não partisse.
Como a ordem era tão apertada, e às torres se tinha também mandado outra, que não deixassem sair nenhum navio, sem constar, que não ia eu nele, foi força obedecer, e arribar, antes de partir.
No caminho tomei o navio do Maranhão, que também já ia à vela, a despedir-me dos Padres; e porque achei em terra o Padre Manoel de Lima, pelo que podia suceder, encomendei a Missão ao Padre Francisco Velozo, tendo-o por mais antigo, posto que depois soube, que o era o Padre João de
CXII.Mais adiante encontrei em uma gôndola aos Padres Manoel de Lima, e Manoel de Souza, que a vela, e a remo, iam seguindo o navio; mas ainda assim nos abraçamos, e choramos, certificando-lhes
Enfim cheguei ao Paço, onde Sua Majestade, e Alteza me receberam com graças, zombando da minha fugida, e festejando muito a presa; mas ajudou-me Deus a que lhe soubesse declarar o meu sentimento, e as justas razões dele, que afirmo a Vossa Reverência foi o maior, que tive em minha vida, com me ter visto nela tantas vezes com a morte tragada.
Ao amanhecer do dia seguinte me bateu à porta do cubículo o Padre Francisco Ribeiro com um escrito do Padre Manoel de Lima feito nos almazens, em que o avisava, como sem embargo de passar a uma barca pescareja, e haver seguido o navio quase todo o dia muitas léguas pela Barra fora, o não pudera alcançar, e ali estava prevenindo uma caravela para dentro em vinte e quatro horas se embarcar até a Ilha da Madeira, e tomar lá o navio do Maranhão.
Vinha o Padre muito sentido com esta arribada dos Padres; mas ela me animou de maneira, que no mesmo ponto se me assentou no coração, que eu havia de ir com eles; e assim o comecei logo a intentar, metendo o negócio em consciência a ElRei, e descarregando sobre ele, e Sua Alteza a condenação, ou conversão de muitas almas, que de eu ir, ou ficar se podia seguir.
Sua Alteza estava doente, e nestes dias com suspeitas de perigo, e foi mais fácil de persuadir, o que importou muito, para que também se viesse a render ElRei, o qual me levou à Rainha nossa Senhora, para que me dissuadisse; mas como a piedade em ambas Suas Majestades é tão grande, ao fim puderam
CXIII.Se algum sacrifício fiz a Deus Nosso Senhor nesta jornada, foi em aceitar a licença a ElRei, quando ma concedeu; porque o fez Sua Majestade com demonstrações mais que de pai; e assim eu a não tive por segura, até que ma entregou por escrito, e firmada de sua Real mão na forma da cópia, que com esta remeto, em que tenho por particular circunstância ser passada em dia das onze mil Virgens, Padroeiras deste Estado.
Mostrei-a aos Padres, e os poderes, que nela Sua Majestade nos dá em ordem à conversão; e assentamos todos, que o não partir o navio do Maranhão com a frota, havendo seis meses, que estava esperando por ela, e descobrir-se a minha jornada, o não se poder levar a âncora, o mandar-me ElRei tirar do navio, o ficar em terra o Padre Manoel de Lima, e o arribar depois, e tantas outras coisas particulares, que neste caso sucederam, tudo foi ordenado pela Providência Divina, que queria que eu fosse, mas que fosse com aprovação, e beneplácito delRei, e com tão particulares recomendações suas aos Governadores, e Ministros daquelas partes pelo muito, que estes meios humanos podem ajudar, e facilitar os da conversão;servindo-se deles a graça Divina, como na Índia se experimentou pelos favores, com que ElRei Dom João
Informados estamos, que em todos os lugares
CXIV. Esta foi a valorosa resolução, com que o Padre ANTÓNIO VIEIRA cortou por tudo, o que a tantos prende; mostrando ao Mundo com generoso coração, quanto mais podia com ele o preço do eterno, do que tudo, o que os homens tem por felicidade.
A licença, que Sua Majestade lhe deu para se embarcar, e os poderes sobre a conversão das almas, consta da Provisão seguinte.
Padre António Vieira: Eu ElRei vos envio muito saudar.
Tendo consideração, ao que tantas vezes me representastes sobre a resolução, com que estais de passar ao Estado do Maranhão, para prosseguir nele o caminho da salvação das almas, e fazer se conheça mais nossa Santa Fé, me pareceu não estorvar tão santo, e pio intento: e sem embargo do que antes tinha ordenado acerca da vossa viagem, mandando-vos tirar do navio, em que estáveis, concerder-vos
E para que melhor se acerte, vos encomendo muito a continuação da propagação do Evangelho, que vos leva àquelas partes; e que para isso levanteis as Igrejas, que vos parecer nos lugares, que para isso escolherdes, e façais as Missões pelo Sertão, e paragens, que tiverdes por mais conveniente, ou por mar, ou por terra; ou levando os Índios convosco, descendo-os do Sertão; ou deixando-os em suas aldeias, como então julgardes por mais necessário à sua conversão: do que tudo terei grande contentamento pelo muito, que desejo, que aquelas terras se cultivem com a nossa Santa Religião Católica: e para melhor o conseguirdes, ordeno aos Governadores, Capitães mores, Ministros de Justiça, e Guerra, Capitães das fortalezas, Câmeras, e Povos, vos dêem toda a ajuda, e favor, que lhe pedirdes, assim de Índios, canoas, pessoas práticas na terra, e língua, como do demais, que vos for necessário; para o que lhe mostrareis esta, ou cópia dela, que guardarão inviolavelmente, e como nela se contém: e fazendo o contrário, me dareis logo conta, para mandar proceder contra, os que assim o não fizerem, como for justiça.
Escrita em Lisboa a
CXVI. Com esta Provisão, e licença, parece ficava de todo aberta a porta, e franco os mares; mas logo veremos convertido em
CXVII. Com o Padre Francisco Ribeiro, além dos dois, que não puderam tomar o navio do Maranhão, ficou violentada em terra aquela grande alma, para quem todas as tormentas do bravo Oceano, eram por amor de Cristo suave trago de leite; mas o vento, que enchia as velas aos companheiros, que navegavam, acendia as chamas no coração de VIEIRA retido na Corte.
Não se remitiu o seu fervor, nem se abalou a sua constância à forte bateria do encantador Palácio, dando aqui asas a remora, e os mesmos grilhões estímulos à ligeireza.
No pouco espaço, que se deteve o Padre VIEIRA, sem partir para o seu suspirado Maranhão, alcançou do Augustíssimo Rei novos favores, e novas leis (como na Provisão se lê) todas as conducentes à conversão daquela perseguida Gentilidade; quando porém se considerava vitorioso, e sem oposição na terra, então se viu com a guerra instaurada, e em novo campo de batalha.
CXVIII. Nasceu este grande homem para espelho do valor.
Não intentava empresa, a que não achasse dura oposição, sendo princípio de uma contrariedade a passada vitória.
Incrível parecerá ao Mundo, o que agora diremos; mas para alto pregão do Grande VIEIRA, verá agora o mesmo Mundo, que os
CXIX. Chegado o tempo da monção, começou outra vez a excitar diferentes afectos no coração delRei o sentimento, de que Portugal perdesse um Varão incomparável, como o Padre ANTÓNIO VIEIRA.
Batalhava naquele Real ânimo a licença já dada para o deixar ir: por outra parte se opunham os altos talentos de um Vassalo, a cuja compreensão agigantada cometera sempre os maiores negócios da Monarquia, e fiara em íntimos segredos a sua Coroa.
Davam calor a isto as diligências, e os desejos do Príncipe Dom
CXX. Cedeu pois desta vez a Majestade a si mesma; e revogando privadamente o primeiro Decreto, teve por menos indecente, o que podia ter visos de inconstância, que de benevolência.
Em secreto ordenou ao resoluto Missionário, que no público procedesse, como quem havia de partir; mas que soubesse, que ou antes do embarque, ou à mesma nau, lhe mandaria ordem, para que ficasse em terra: (ou fosse isto traça para totalmente o divertir, ou atenção ao perigo dos temporais, por ser no coração do Inverno).
Assombrou ao Padre VIEIRA
CXXI. A tão expressa, e declarada vontade delRei, e do Príncipe; determinou sujeitar-se, e dar tempo ao tempo, julgando que a demora não era faltar à empresa, como do Divino Capitão dos Missionários disse um Profeta:
Si moram fecerit, expecta illum, quia veniens veniet, et non tardabit;
nem era largar o arado, a que tinha metido a mão; e que em tais circunstâncias o obedecer era forçoso respeito à prudência, à Majestade devido culto.
CXXII. Mas Deus, que também para mais altas empresas queria no Maranhão a este valoroso Ministro seu, de tal sorte demorou as ordens, ou mudou o coração delRei, que chegada a hora, meteu-se na embarcação o Padre VIEIRA, e em feliz maré deu primeiro à vela, que a ordem chegasse.
Com um leve vento dissipa o Rei dos Reis máquinas humanas.
Assim deixou a saudosa pátria, e se levou do Tejo com extraordinária edificação, e exemplo de sólida virtude, para viver, e morrer entre brenhas, e Bárbaros, o mais polido Orador, e heróico espírito, que viu no seu século, e não verá tão cedo em muitos outros a Corte Portuguesa.
CXXIII. Contavam-se
As brenhas do Maranhão, e toda aquela imensidade de Nações bárbaras, sobre quem desejava com o
Era a embarcação uma caravela, ou barco grande de Alfama, incapaz de resistência a qualquer inimigo, a não defendê-lo a Providência Divina, como quem em tão pequeno lenho levava depósito glorioso de mais alto destino.
Por noite alcançaram cinco navios, que naquela madrugada
Com esta conserva navegaram os primeiros dez dias, e indo já avante da Ilha da Madeira, começaram os trabalhos, que por mar, e terra desafiaram sempre; mas acharam Hércules no Grande VIEIRA.
CXXIV. Nesta paragem em um Sábado à tarde avistaram três velas, duas das quais se arrasaram em continente postas as proas na caravela: não o pode fazer a terceira, por demorar muito a sotavento.
Eram de Pichilingues (nome que, em Lisboa então se dava a estes piratas, que eram de Flecinga) vasos pequenos, mas bem artilhados, e guarnecidos de gente.
Com a noite teve refúgio a caravela, e voltando a outro rumo, velejou quanto pode a bom largar.
Amanheceu o alívio com o dia, e explorado em roda
O Padre ANTÓNIO VIEIRA, que desde menino teve a seu favor a Mãe de Deus, fez que logo se começasse a cumprir o voto, que todos fizeram, de rezar por toda a viagem o Terço do Rosário.
Nos Domingos se rezava alternadamente a coros, ouvindo-se saudosamente por aqueles mares entre o sonoro dos ventos, e fuga das ondas, aquele Divino canto, mais verdadeiro, e grato, que o de Arion entre os delphins.
CXXV. Evitado assim o primeiro trabalho, entrou o segundo.
Na segunda noite, véspera do Sol do Oriente, e grande Capitão de Missionários São Francisco Xavier, aos assopros de um furioso Sul, se começaram a alterar temerosamente as ondas.
Mares desmedidos, e da costa de Portugal, para onde tinham descaído na retirada, embarcação pequena, sepultura a cada instante aberta, tudo metia horror, tudo espanto, e nos corações menos fortes afogou-se logo a esperança de remédio.
Confessaram-se todos para morrer; uns geralmente, outros como se fosse a última.
Os votos, as expressões de sentimento, o orar, e implorar ao Senhor dos elementos, formava uma representação lastimosa.
Três dias, e três noites durou esta contenda de ventos, e mares: abonançou enfim, compôs-se tudo, e tomado rumo, se puseram na altura das Canárias.
CXXVI. Aqui entrou de novo, e terceiro conflito,
Ficou por todo este tempo presa em enfadosa malacia a caravela; e nem com o socorro, e açoute dos remos, de que usaram, puderam vogar avante, ou despertar uma aragem, que os lançasse daqueles Canais, sítio infame com a frequência de cossários.
Foram finalmente rodeando a Gomeira, e Ilha de Palma, e sulcaram com recordação saudosa, e reverente aqueles mares santificados com o sangue dos quarenta Mártires do Brasil.
CXXVII. Tomaram o Padre ANTÓNIO VIEIRA com seus companheiros à sua conta os exercícios espirituais daquela nadante povoação, não obstante irem outros Religiosos nela.
Todas as tardes cantavam a Ladainha: todas as Domingas do Advento, e todas as festas principais pregou VIEIRA, digno de que parassem as ondas a escutá-lo.
O Padre Manoel de Lima fazia as doutrinas, se o tempo, e os seus achaques o permitiam.
Fizeram da caravela um mapa de Províncias, e se repartiram Missionários por várias estâncias, onde a gente da embarcação se costumava ajuntar às noites, evitando com isto as práticas, em que ordinariamente
O mesmo Padre Lima tomou o rancho da popa; o Padre Manoel de Souza, e
Ali se repartiam livros espirituais, ali se falava do que pertencia à salvação, ali se tiravam antigos erros, influindo cada Missionário no seu distrito nova luz, e sabedoria.
CXXVIII. No dia da imaculada Conceição da Mãe de Deus, e em outros, toda a gente se confessou.
Com o regalo dos doentes foram raros os exemplos da caridade, e humildade: virtudes, em que nos deixou o Padre VIEIRA despertadores para a sua imitação.
A primeira porção, que se tirava da mesa dos Padres, era a dos necessitados.
Esmerou-se com todos os enfermos o incansável Padre
CXXIX. Já neste tempo picava um estímulo, e penetrava um solícito cuidado os corações dos mareantes a cerca do fim da navegação depois de tantas demoras.
Consultaram os mais práticos o ponto, e comunicados os temores dos mais prudentes, resolveram os do governo da caravela, que visto ignorarem que ventos
Aos
CXXX. Apenas se soube nela, que vinha ali o Grande VIEIRA, despediu o Governador à caravela o Sargento mor da praça com primeiro, e segundo recado, oferecendo-lhe sua casa, a que resistiu constante; tendo ajustado todos os Padres de não tomarem outra casa, senão a caravela, não pedindo o contrário algum serviço de Deus.
Saiu porém à terra com os mais companheiros a agradecer ao Governador a oferta da hospedagem.
Já se retiravam para a sua caravela, quando os Capitulares daquela Sé fizeram as mesmas instâncias, singularizando-se entre todos o Reverendo Tesoureiro mor Diogo Furtado de Mendoça: alegou fortes, e vivas razões de amizade antiga, e a posse de ter hospedado em outra ocasião os da Companhia, que ali aportaram.
Pode satisfazer as instâncias de tanto amor a eloquência do Padre VIEIRA: só se não pode, nem quis negar à petição de pregar no dia seguinte na Sé, o que aceitou.
CXXXI. Era a quarta Dominga do Advento: e para que também África ouvisse a voz daquele Apostólico Missionário, e eloquentíssimo Orador, subiu ao púlpito da Catedral de Cabo
E para que o Sermão (diz referindo este sucesso) pudesse ser de algum fruto, tomei o Tema a São João
A comoção, e abalo, que fez no atentíssimo auditório o zelo, e a intimativa daquela Divina voz, foi tal, que de nenhuma sorte consentiram os ouvintes, que os Padres voltassem para o mar; e assim os levou para sua casa o Tesoureiro mor.
CXXXII. O Padre ANTÓNIO VIEIRA porém, que não levava outros intentos por aqueles mares, e terras, senão fazer guerra ao Inferno, não perdia ponto de sua fortuna.
Saiu de tarde a fazer doutrina, e a este acto saíram também a acompanhá-lo os antigos discípulos dos Padres, que ali tinham habitado; e com os discípulos vieram também seus pais, renovando-se em todos as saudades de seus antigos Mestres, de quem nunca perderam a memória, e agora a avivaram oficiosos, e gratos.
CXXXIII. Quatro dias unicamente se demoraram naquela Cidade; mas neles trabalhou o Padre VIEIRA, e seus companheiros com a presteza, e eficácia de espíritos Angélicos, influindo logo fogo, e luz em tantas almas, que as tornaram Celestes.
Tanto foi o fruto desta compendiosa seara, que depois cheio de gosto escreveu do Maranhão o mesmo Padre VIEIRA, que dava por bem empregados todos os trabalhos do mar, só pelo que se obrou nos
Não fizeram outra coisa, senão ouvir confissões, querendo quase toda a gente fazê-las gerais.
Repartiram-se por diversos lugares: já pelas Igrejas, já na casa, onde assistiam, já nas cadeias, já nas casas particulares de doentes, e gente impedida.
Era voz pública, que fora particular Providência aquela arribada para remédio, e salvação de muitas almas.
Não ficou pessoa de conta em toda a Cidade, que não se quisesse aproveitar de tão oportuno subsídio.
Todos os Reverendos Capitulares com edificação rara, dando exemplo aos demais, se confessaram muito de espaço com os Padres, santificando-se mais o sagrado, para que se purificasse o profano.
A corrente, que vem do monte, fertiliza ditosamente os vales.
CXXXIV. O fruto particular, e oculto, lá ficou fechado debaixo das chaves do tribunal da Penitência: do que saiu a público, se viram os efeitos da Divina graça, que no Sacramento se recebeu.
Públicas foram muitas amizades, restituições, votos, que logo nas Igrejas, nos altares, nos adros, e pelas ruas se faziam; não podendo dilatar as almas unidas a Deus, o que deviam ao mesmo Deus, e ao próximo.
Tal foi o fogo Divino, que ali excitou o Padre ANTÓNIO VIEIRA, e tanto se comoveram todos os corações com a não esperada vinda destes quatro Missionários.
CXXXV. Reconhecendo a Cidade o bem,
Então por despedida tornou a pregar o Padre ANTÓNIO VIEIRA, lançando nesta última fala os fervores primeiros, e parecendo que nunca os tivera mais abrasados.
Exortou com íntimos afectos à perseverança na graça recebida.
Grande parte do Sermão dirigiu aos Capitulares, representando-lhes com estranha energia a obrigação, em que estavam de acudir a tantas almas, das quais eles, Sede Vacante, eram Pastores: intimou-lhes, que em falta de outros Sacerdotes idóneos, que não havia, deviam eles mesmos visitar aquelas desamparadas Ilhas, e as terras sujeitas àquela Mitra, que estavam todas infelizmente em extrema necessidade espiritual.
Enfim soltou toda a eloquência, e espírito em rios de fogo: falou como falaria Paulo Doutor das Gentes, e Mestre do Mundo; concluindo, que se para este socorro deixassem as Cadeiras, e o coro da sua Sé, seria este canto muito mais agradável a Deus, e faria incomparavelmente maior harmonia ao serviço, de quem derramou o sangue, e deu a vida por tantas almas.
VXXXVI. Naquela tarde se embarcou com os seus o Grande Missionário, deixando de si na terra íntima dor, terníssimas saudades.
A estes afectos igualou também a ternura, e a glória, que a mesma terra lhe deu; porque durava ainda vivo naquela Cidade o grande nome, e edificação, que nela tinham deixado os antigos Padres, que ali viveram, cujos exemplos, e religiosa vida, deixando de si fama ilustre, granjearam daquele povo para com estes Missionários suma benevolência, e amor.
Estes, com o que ali obraram, não o desmereceram, antes o acrescentaram: os futuros (se a Providência Divina lá levar outros) tem para as mesmas virtudes novos estímulos em repetidos exemplares.
CXXXVII. Não sossegaram ainda as instâncias; e desejosos de ter consigo aquela pequena, mas valerosa esquadra; e ao passo que viam por o pé na prancha, e entregar-se ao mar aqueles Anjos velozes, lhes deram multiplicados combates para os render.
Veio em nome do Clero o Reverendo Vigário geral, e em nome da Cidade os Juizes, e Vereadores em forma de Câmera a pedir, que dos quatro Missionários ficassem dois: ofereceram aos Padres uma petição por escrito muito larga, em que expunham a grande necessidade, que em toda a terra, e suas Ilhas havia de doutrina: a perda de tantas almas: o amor, que sempre tiveram aos da Companhia: a pontualidade, com que até então lhe conservavam a casa, e fazenda, que os Padres deixaram: a prontidão, com que estavam para edificar-lhes Igreja, e assistir-lhes
CXXXVIII. Tudo isto continha o papel daquele nobre Senado, e zelosíssimo da sua República, expressado com termos de tanto sentimento, respeito, e estimação da Companhia, que apenas pode o humaníssimo coração do Padre ANTÓNIO VIEIRA não ceder à suavidade de uns afectos envoltos em salvar almas, emprego, que tanto lhe arrebatava a sua.
Cheio pois de igual sentimento de deixar, aos que tão fortemente o prendiam, respondeu com expressões de agradecido, e maduras razões de sábi, dizendo: que se apartava com a mágoa de se não poder partir, e multiplicar; que a todos levava no coração, ficando tão grata hospedagem em sua memória eternizada: mas que os deixava, porque ele, e seus companheiros vinham mandados para determinada Missão, e tão necessitada, que não tinha, quem a tivesse a seu cargo: que todos os quatro Missionários pertenciam à Província do Brasil, e que Cabo Verde pertencia à Província de Portugal: finalmente que a sua primeira vocação, para onde os chamara Deus, eram os desamparados Índios do Maranhão.
CXXXIX. Esta foi a resposta, que deu o Padre VIEIRA, e com ele os mais Padres, magoados
Ajudou a mitigar esta dor a promessa, que o Padre ANTÓNIO VIEIRA lhes fez de solicitar com Sua Majestade, e com os Superiores da Companhia o socorro, que pediam.
Ali deixou logo uma carta, para que junta com a nova súplica daquele Cabido fosse ao Reino; e do Maranhão o tornou a fazer cheio de fogo, e de zelo.
CXL. Na tarde enfim de
Já iam navegando ao largo, e reconhecendo com os olhos desde o alto mar aquelas terras, e montes, que lhe fugiam, quando Simão Ferreira (benemérito desta memória pela fidelidade) Capitão da caravela, começou a referir as muitas instâncias, que ocultamente toda a gente lhe fizera, oferecendo-lhe interesses consideráveis, e prometendo-lhe muitas pessoas principais daquela Cidade, que logo lhe dariam em patacas muito mais, do que ele poderia lucrar na jornada, se fingindo naquela última noite, que lhe estalara a amarra, se levasse com a brisa, que corria, deixando os Padres
Tinha ele para isso oportunidade, pois toda a gente pernoitava a bordo: tudo porém rejeitou com fidelidade Portuguesa.
CXLI. Foram navegando com o costumado trabalho, não faltando na passagem da Linha as calmarias, ainda que menos detençosas.
As primeiras terras, que avistaram da desejada América, foram os baixos de São Roque, sobre os quais se acharam com trinta braças de fundo em um Sábado à meia noite.
Demora dali mais de trezentas léguas o Maranhão; mas é tal a corrente das águas, que em três dias com pouco pano se puseram sobre ferro à vista da Ilha de São Luiz: ali se dilataram desde a terça à noite até a quinta, por causa dos muitos baixos, e todos alagadiços daquele insidioso sítio tão infamado de naufrágios.
Entraram finalmente a Barra, e deram fundo naquele tão suspirado, e desejado porto na tarde de
CXLII. Como da terra se avistou embarcação do Reino, foi grande o alvoroço nos Padres, que tinham chegado adiante.
Era alma da Missão o Padre ANTÓNIO VIEIRA, e por ele suspiravam todos; mas incertos entre a esperança, e o temor, se acaso o mesmo poder soberano, que o tirou do navio, quando ele
CXLIII. Lidando com estas ondas, mais que com as daquele mar, metidos em uma canoa arribaram velozmente sobre a caravela os Padres Francisco
Quando se viram com o Grande VIEIRA no Maranhão, e ele com os seus amados companheiros entre os braços, dos quais com tantas lágrimas se apartara na Barra de Lisboa, foi tal a mútua alegria, e excesso de gosto, que o mesmo Padre VIEIRA querendo exprimi-lo, escreveu estas palavras formais: Se a alegria de entrar no Céu tem na terra comparação, foi esta.
CXLIV. Nunca desterrado algum teve tal gosto, quando chegou do desterro à pátria, como o Padre ANTÓNIO VIEIRA, quando deixada a pátria, se viu por amor de Cristo no desterro.
Saiu então para o Colégio, onde o receberam os outros Padres, solícitos sempre na esperança, na posse alegres.
Ali lhes referiu então os estorvos, que tivera; as dificuldades, que vencera; contando pela maior de suas façanhas a vitória triplicada da vontade do Augustíssimo Rei, Rainha, e Príncipe: como finalmente partira; os inimigos, e tormentas, de que escapara; a derrota, e instâncias de Cabo Verde; vindo a ser toda a jornada um conflito continuado com repetidos certames com Majestades, piratas, mares, ventos, e o mais
Ali enfim se congratularam o Capitão com os Soldados, e os Soldados com o Capitão daquela animosa, e Apostólica empresa; e lançando o cômputo ao tempo, acharam, que uns, e outros gastaram cinquenta e dois dias na sua viagem.
Aqui deixaremos descansar ao nosso Herói, ouvindo também recontar aos primeiros sua viagem, e como foram recebidos na terra, enquanto damos uma breve, e vária notícia do país, jucunda aos curiosos, e em parte aos eruditos nova.
CXLV. O Estado do Maranhão é parte da América Portuguesa, à qual deu o glorioso título de terra de Santa Cruz seu descobridor Pedro Álvares Cabral em
Obedece aquela ditosa conquista ao Império Português por mais de mil léguas.
Da parte do Norte a divide do domínio de Castela o vastíssimo rio das Amazonas; cujo país, e navegação foi reconhecido pela mesma Espanha, e França pertencer a Portugal nos Tratados de Utrecht de
Da parte do Sul com a Nova Colónia do Sacramento, e seu território a divide com quarenta léguas de boca o rio da Prata.
Tudo adiante se dirá. Deixada porém a narração daquele vastíssimo corpo, escreverei só daquela parte, em que o Grande VIEIRA empregou o fogo do seu agigantado espírito, e com trabalhos imensos, e fadigas sem
CXLVI. Começa o Estado do Maranhão desde o rio das Amazonas debaixo da Linha Equinocial; e compreendendo seis Capitanias, Pará, Maranhão, (que dá o nome a todo o Estado) Ceará, Rio Grande, Paraíba, Itamaracá, corre da Linha para o Sul por mais de quatrocentas léguas de costa.
O Sertão (a quem parece não pode ainda penetrar todo, ou o valor, ou a cobiça) é sem dúvida imenso em terras, e Nações.
CXLVII. Neste dilatado distrito pôs o Autor da natureza uma variedade rara de criaturas, que como brados do seu poder Divino, serão sempre despertadores do nosso assombro.
É o terreno fertilíssimo: que a ser diligentemente cultivado, pagaria muitas vezes em dobro o benefício da cultura; mas compete com a sua fertilidade a preguiça de seus naturais, e habitadores.
Produz canas de açúcar, cravo em muita abundância, não como o das Molucas, mas em grossa, e comprida casca à semelhança de canela: cacau, de que se carregam navios: frutos todos, com que a liberalidade do Criador quis até com delícias para o gosto enriquecer a Nação Portuguesa.
CXLVIII. Nasce ali o algodão, gergelim, mandioca, milho; e é tão natural naquele clima o arroz, que em algumas partes nasce, e brota por si mesmo.
Além destes subsídios para
Também se acha abutua, e a casca chamada Preciosa.
Há uma miúda semente, que no cheiro parece almíscar; e para quem nem este faltasse, apareceu finalmente o café; e algum mais grosso, do que o que produz Arábia feliz, e por tantas terras de África nos chega à Europa.
CXLIX. Não só no que se vê sobre a face da terra é fértil, e ditosa aquela conquista: dentro das entranhas da mesma terra a presente mais rica a cobiça dos homens.
Tem sido repetida fadiga de muitos Governadores as minas de ouro: tem-se revolvido montes, queimando pedras, e perdido vidas, e parece vir chegando nos nossos tempos a hora de aparecer este encantado metal.
Por mais anela ainda ali a sede ansiosa do ter; porque não só esperam os homens minas de ouro, senão também de prata, e de cristal.
É temor justo dos práticos, e prudentes, que quando estas veias aparecem, e se picarem, acabará a terra no comércio, e atenção a outros frutos.
CL. Tem montes, e serras altíssimas; e em partes se espraia em planícies, tão alagadas todas, e cobertas de água corrente, e doce, que por espaço de cento, duzentas, e mais léguas, o que se vê, são bosques, palmares, e
Esta são as estradas, por onde se penetra aquele Sertão, navegando-se em canoas por entre árvores espessíssimas, que por uma, e outra parte formam ruas, travessas, e praças, que a natureza deixou livres, e desimpedidas do continuado, e embaraçoso arvoredo.
CLI. Há por outra parte matos fechados, e bosques vastíssimos, e impenetráveis a toda a humana indústria.
Criam-se árvores de espécies, e cores diferentes, cuja madeira lavrada, nas ondas, que forma, dá como natural pintura, um espectáculo ao ânimo jucundo, aos olhos grato.
O cedro, o pau roxo, o pau amarelo, jacarandá, jacarié, angelí, e bacorí, e outros, são entre muitos os mais usados.
A fortaleza destas madeiras é tal, que algumas (como se fossem ferro) lançadas no fogo não levantam chama.
A grandeza, e proceridade de lenhos, e troncos, é tão portentosa, que de um só pau se fazem muitas vezes canoas (que são as embarcações, em que navegam) de largura, e comprimento raro: uma se viu de dezessete palmos de boca, e cem de comprido, e depois desta se viram outras maiores.
São algumas árvores aromáticas, ou balsâmicas, brotando de si preciosos óleos, como o de cupaíba em abundância.
O de omerí, como mais perfeito, mais raro.
CLII. Criam-se nestes matos, e dilatadíssimo
Tem onças, tigres, veados, porcos, descendo muitas ainda aos lugares alagadiços, e pastando entre o lodo nas frutas, que das árvore caem.
Não é menor a produção de serpentes, cobras, víboras, e todas as mais, que há em Europa.
Há uma espécie de cobras, que fixando na terra um espigão, que tem na cauda, se levanta, peleja, e acomete aos homens.
A cobra de cascavel é de mortal peçonha.
As cobras, chamadas jibóias, não tem veneno: os naturais as comem: chegam algumas a tão desmarcada grandeza, que como se fosse um tronco movediço, se viu uma de cinquenta e três palmos de comprimento, e de tanta grossura no meio, que um homem a não podia abarcar: monstro só imaginado espantoso.
CLIII. O ar, e o mar, são também naquela região tão fecundos na abundância, como vários nas espécies de viventes, que produzem.
São piscosíssimas aquelas costas, excedendo em muitas, e diferentes espécies de peixe aos portos, e mares da Europa. Vagam pelo ar as aves, quais por todo o Brasil criou a natureza: araras, papagaios, guarazes: estes nascendo alvíssimos, se vão fazendo vermelhos, como a púrpura mais viva: aqueles variados em cores jucundíssimas, são hoje de menor admiração em Portugal; mas servem fora dele nas galarias dos Príncipes à grandeza, e ostentação, como peregrinos.
CLIV. Excedem a toda admiração os rios, com que todo aquele vastíssimo espaço se vê cortado.
São infinitos no número; na grandeza os maiores, que até agora tem descoberto os mortais. Só defronte da pequena Ilha do Maranhão se contam no continente, e correm sete: Moní, Itápicuru, Mearí, Pindaré; e três, que antes de chegar ao mar, perdendo o nome, se afogam nestes.
Entre o rio Maranhão, e o Ceará, corre impetuosamente o rio Paraguaçú, cuja distinta notícia dá aqui a nossa História com as mesmas palavras do Grande VIEIRA aos curiosos, já que lha negam as Cartas Geográficas.
CLV Este rio, (diz) sai ao mar entre o Maranhão, e o Ceará, por oito, ou nove bocas, que vulgarmente se duvida, se são rios diferentes; os quais todos eu vi, e passei.
Pela maior boca destas sai também a maior corrente do rio, que é largo de um tiro de mosquete, e mui profundo; e entra pelo mar com tal ímpeto, que em uma das viagens, que fiz por aquela costa, estando duas léguas ao mar sobre ferro, batia no costado do navio com notável força, e ruído, de que depois conheci a causa.
Donde venha este rio, não há notícia certa; mas pelas que me tinham dado no Pará os Índios Topinambazes, tenho conjectura que sai de uma lagoa, onde naquele tempo havia muitos Índios de língua geral; e pelos nomes dos peixes, que achei na boca do mesmo rio, e dos se diz haver na dita lagoa serem os mesmos, entendi, que se comunicam; e tinha
CLX. A variedade de peixes, de que se inunda, é uma, e não menor de suas maravilhas.
A vaca marinha, ou peixe boi, chamado assim pela semelhança da figura, é dos mais singulares, que ali criou o Divino Poder.
Tem indivíduos de ambos os sexos; e como se fossem moradores de um, e outro elemento, pastam pelas ervas nas margens do rio, e criam com leite dos peitos os fetos, que produzem.
Tem muitas tartarugas, muitos crocodilos, ou lagartos de medonha, e disforme grandeza.
A descrever-se enfim a variedade de viventes da água, e da terra; as espécies de árvores, plantas, e frutos, que pelas margens, e interior do Sertão se criam, tão diversos dos da Europa, portentosos na máquina dos corpos, raros na figura, medonhos uns na ferocidade, outros em cores, e qualidades diferentes, seria necessário particular História.
CLXI. Resta-nos (o que a tudo excede) a notícia das gentes, que habitam uma, e outra margem; os braços, e Ilhas, que dentro de suas águas cinge este gigante dos rios: mas dependendo todo o Historiador (quando pessoalmente não pode ver o de que escreve) de socorros alheios, de alheias mãos, de alheios olhos, de ouvidos, e fadigas alheias, aqui não de outrem, mas do mesmo Herói, e assunto grande desta História, se vale repetidamente com fortuna sem igual a nossa pena.
Escrevo, o que
CLXII.Pela muita variedade de línguas (diz) houve, quem chamou ao rio das Amazonas rio Babel; mas vem-lhe tão curto o nome de Babel, como o de rio.
Vem-lhe curto o nome de rio; porque verdadeiramente é uma mar doce, maior que o mar Mediterrâneo no comprimento, e na boca.
O mar Mediterrâneo no mais largo da boca tem sete léguas, e o rio das Amazonas oitenta: o mar Mediterrâneo do estreito de Gibraltar até às praias de Síria, que é a maior longitude, tem mil léguas de comprido; e o rio das Amazonas da Cidade de Belém para cima já lhe tem contado mais de três mil, e ainda se lhe não sabe o princípio.
Por isso os naturais lhe chamam Pará, e os Portugueses Maranhão, que tudo quer dizer mar, e mar grande.
E vem-lhe curto também o nome de Babel; porque na torre de Babel, como diz São Jerônimo, houve somente setenta e duas línguas; e as que se falam no rio das Amazonas são tantas, e tão diversas, que se lhe não sabe o nome, nem o número.
As conhecidas até o ano de
Depois se descobriram muitas mais; e a menor parte do rio, de seus imensos braços, e das Nações, que os habitam, é o que está descoberto.
Tantos são os povos, tantas, e tão ocultas as línguas, e de tão nova, e nunca ouvida inteligência.
Assim escreveu aquele Varão incomparável.
CLXIII. A polícia daquela inculta gente
Muitas Nações comem a seus mortos, e sem asco, nem horror comem os pais aos filhos, e os filhos aos pais.
Dormem, onde os apanha a noite; e como feras se metem pelos matos, e atravessam brenhas.
Habitam outros entre arvoredos em choupanas cobertas de palma, e levantadas sobre esteios, para que nas enchentes dos rios lhe passem estes por baixo sem dano.
Assim moram por aqueles alagadiços gentes populosas; e assim vivem hoje muitos Nheengaíbas,
CLXIV. A ignorância de Divindade, e de outra vida, é suma; e assim como na figura, e feições do rosto, são mui disformes, assim está neles escurecida a lei da razão, debuxando-se na simetria do corpo a brutalidade dos ânimos.
CLXV. Muito, do que se tem dito das gentes, que por aquele Sertão demoram, e bebem em tão dilatado rio, avaliam algumas Histórias por fabuloso
Nesta classe entram os Matuzus de pés virados; as Amazonas, quais as de Scithia, entre os rios Tanais, e Termodonthe: os Goajazis Pigmeus: os Curinquians Gigantes.
Entre a variedade de criaturas, que o Mundo Novo nos mostrou, não condenamos
Delas passou talvez a notícia por tradição viva de pais a filhos, e destes pode chegar aos Europeus, em cujos escritos nos ficou a memória, a uns crível, a outros suspeitosa.
CLXVI. Crédito é, do que dizemos, o novo descobrimento de gentes diversas, e entre elas o dos Gigantes.
No ano de
Passou avante, e chegou aos Oroeporáz, tão estranhos, e verdadeiramente novos, que tiveram por assombro ver homens vestidos.
CLXVII. O ardente Missionário tão venturoso no que achava, como forte no que padecia, não contente com render inimigos ordinários, passou a buscá-los maiores.
Chegou à vista de uma não aldeia, mas grande Cidade, em que reconheceu habitavam juntas seis Nações diferentes, cada uma com seu Principal.
Para os começar a render, amimou-os com donativos, língua a todas as Nações não menos inteligível, que grata.
Guararizes é o nome
Desta sorte apareceram os Gigantes, e puderam ainda aparecer os Pigmeus.
Escrevemos com testemunhas de vista, nem damos a beber por vasos menos limpos estas notícias aos curiosos.
CLXVIII. A capital de todo este dilatado Estado, assento próprio de seus Governadores, é a Ilha do Maranhão.
Aqui está situada a Cidade de São Luiz, nome, que lhe deu Luiz de Melo da Silva, seu primeiro descobridor.
Sendo porém esta parte da América mais vizinha a Portugal, a variedade, com que nossas Histórias descrevem esta Ilha, é, qual podia ser, se ela, não às nossas portas, mas na remontada Tule tivesse a situação.
Historiador há, que a estende a vinte léguas de comprimento, e sete de largo.
Outro lhe dá doze, e na maior largura seis.
Com nenhum destes ajusta modernamente uma pena elegante, que descrevendo esta Ilha de figura ovada, diz ter nove léguas na maior extensão, poucas menos de largo, e de circunferência mais de trinta.
O último, que vimos, lhe dá quase nove léguas de comprimento, e vinte e seis em circuito.
Acrescenta a variedade, quem informando-nos afirma, que a Ilha do Maranhão tem só sete léguas de comprido.
Por este modo tanto valor é necessário para escrever, como para conquistar.
CLXIX. A segunda Cidade do Estado é
Jaz quase debaixo da Linha, termo, donde (como dissemos) correndo do Norte a Sul, começa o domínio Português, terra não sei, se mais fértil de nossa cobiça, se de vitórias: o seu mar sem dúvida o tem sido de lastimosos naufrágios.
CLXX. Aberta a porta deste Novo Mundo pelo valor Português, correram outras Nações de Europa a fixar pé, ou levantar a casa em campo alheio.
Franceses, e Holandeses foram, os que em tempos diversos nos quiseram disputar a posse, do que a Divina Providência nos fizera senhores.
E como o estrondo das armas, com que se alcançam as vitórias, vai apelidando pelas gentes os braços, que as alcançaram, levando toda a voz da fama à fonte, onde se toma a água, esquecida total, e ingratamente a mina, é bem, que saiba o Mundo, que não só no espiritual, (como veremos) senão também no temporal, devem as terras do Maranhão à Religião da Companhia de JESUS a felicidade, que logram.
Daremos com sucinta pena as notícias, que ou não tiveram, ou quiseram calar nossos Escritores.
CLXXI. No ano de
Senhoreavão eles a ilha, e no continente tinham por si todo o Gentio, a maior parte dos quais eram Topinambás, inimigos dos Portugueses, e que de Pernambuco se tinham retirado por força de nossas armas.
Ião na armada os Padres Manoel Gomez, e Diogo Nunes da Companhia de JESUS, e com eles muitos Índios, filhos todos de sua doutrina nas aldeias, que em Pernambuco cultivavam.
Chegou a armada a avistar o Maranhão; e como se julgava seria senhor do terreno, quem tivesse por si os naturais, os primeiros homens, que por ordem do
Desamparada deste arrimo a ousadia Francesa, no mesmo dia cedeu à nossa fortuna, entregando a seu pesar a terra, de que o nosso descuido, mais
Esta foi a principal força, como em sua certidão confessa o
CLXXII. Não podemos calar aqui, como foi sempre invejada de todas as Nações a glória de nossos descobrimentos, chegando a embaraçar-nos em Europa o ilustre nome, que o nosso valor tinha merecido nesta parte da América, de que falamos.
Publicaram pois os Franceses um livro das Missões dos Padres Capuchos, escrito pelo Padre Cláudio Abevile, querendo mostrar ao Mundo serem eles, quem como primeiros conquistadores, deram o nome de São Luiz à capital daquele Estado.
Já dissemos, que Luiz de Mello da Silva (com quem fora também Fernando Alvares de Andrada, dois fidalgos Portugueses) fizera aquele descobrimento, e dera o nome à Cidade de São Luiz na Ilha do Maranhão.
Dos Tratados porém com os Índios, que imprimiu o mesmo Padre Cláudio (fosse involuntária incoerência, ou fosse restituição da verdade) se colige, que os Portugueses, a quem os Índios chamavam Peróz, foram, os que os descobriram, e dominaram.
CLXXIII. Ultimamente mandou pelos anos de
Daqueles Tratados resultou o Tratado Provisional, que naquela Corte se fez.
Além disto no Tratado de Utrecht do ano de
Devemos esta notícia ao Conde, que quis com o muito, que tinha visto, elevar os nossos olhos, aonde não podiam chegar.
CLXXIV. Contra os Holandeses foi igual a glória, e os instrumentos os mesmos.
No ano de
Crescia com isto a dificuldade de vir aquela praça à obediência delRei; e lavrando como contágio o medo, já no Pará havia pareceres para
Estimulavam estes golpes o ânimo ao valor; (que pode nos Portugueses dissimular-se, nunca extinguir-se) e o Padre Lopo do Couto da Companhia de JESUS, sujeito de alto coração, e em quem ardia com o zelo da Fé o generoso de nobre, determinou alentar os espíritos suprimidos, e fazer dar uma volta à roda da fortuna.
CLXXV. Era de muita autoridade para com os Portugueses, e Índios, e comunicando às pessoas de maior confiança os pensamentos, com que lidava de sacodirem o tirânico jugo dos Holandeses, declarou-lhes a traça, e indústria, que para isso tinha.
Faltava pessoa, a quem competisse ser Capitão desta empresa; porque o Governador do Estado, que então era Bento Maciel Parente, fora mandado preso para Pernambuco pelos mesmos Holandeses, quando usurparam aquela conquista.
Não gastou porém muito tempo em buscar outro, quem tinha tudo em si mesmo.
Seu sobrinho António Moniz Barreiros, que tinha sido
CLXXVI. Aceitou o esforçado António Moniz, em quem os espíritos de leal Português viviam ocultos sim, mas não quebrados; e como
Tanto amor sabem aqueles Índios lhes tem os Padres, que esta só promessa bastava para os render.
CLXXVII. Às razões do Capitão se seguiram as do zeloso, e animoso Padre Lopo do Couto; e aceitada pelos índios a proposta, começou-se a guerra, e foi correndo já com prósperos, já com adversos sucessos, querendo talvez Deus com as demoras da última vitória, ou castigar ainda pecados, ou provar, ou refinar nossa constância.
É certo, que não houve no Maranhão, quem não confessasse, que a restauração daquele Estado se devia a dois generosos Filhos de Santo Ignácio, à indústria do Padre Lopo do Couto, e às orações, e penitência do Padre Benedicto Amodey, conhecido, e venerado por santo.
Este Varão Divino abrandou, e dobrou o Céu, anteviu com profético espírito o fim do sucesso, e nos casos
Do Padre Lopo do Couto diremos por último pregam do seu zelo, que ao ver, que em certo dia se pudera tomar a Cidade aos inimigos, e por menos advertência de seu sobrinho se não tomou, contraiu de puro sentimento uma doença, cuja violência com grande mágoa de todos lhe tirou a vida.
CLXXVIII. Estes foram os instrumentos gloriosos, que Deus tomou para se restituir à Coroa aquele Estado: e se isto calaram os Historiadores, deixou-o em memória numa certidão jurada o
CLXXIX. Dada esta breve notícia, oportuna ao nosso argumento, aos curiosos grata, é tempo de vermos, como achou aquela seara o Grande VIEIRA; e logo o mostrará a História mais animoso, que o forte Catão em África, resistindo aos monstros, que naquela praia o esperavam.
CLXXX Estavam naquela conquista feiamente decaídos os costumes Cristãos: vivia-se sem temor de Leis Divinas, e humanas, sendo
Como as fontes estavam viciadas, necessariamente se bebia veneno: e um corpo tão bem achado com o seu mal, dificultosamente consentiria na cura dele.
O cativeiro injusto dos Índios era naquele Estado o pecado geral, e como original, que a todos contaminava.
Sobre o cativeiro as tiranias, opressões, e afrontas aos mesmos Índios, excediam as entranhas dos Dioclecianos, e Neros.
CLXXXI. Era tal a devassidão, e ignorância, que por falta de doutrina, e sobejo de liberdade, mais tinham os Missionários, que trabalhar entre os Cristãos, que nas brenhas entre os Gentios.
A guarda dos dias Santos, o assistir à Missa, principalmente fora da Cidade, ou estava esquecido, ou desprezado.
Os ódios, os falsos testemunhos, os roubos, e adultérios, e o mais licencioso, e estragado da vida, não cabe em pena.
CLXXXII. O culto Divino, desvelo sempre dos Portugueses, ali se via tão abatido, que muitos anos havia não tinha Matriz a Cidade do Pará: no lugar, em que estivera, apenas havia pedras, que chorassem tanta ruína; alguns esteios, que se viam em pé, eram os que clamavam; dando maiores gritos a terra; porque sendo santificada com o sangue do Divino Abel ali consagrado, agora se via profanada, e vil aprisco de recolher gado.
O Padre João
Assim renasceu de tão Apostólicos braços, e de suas mesmas cinzas como Fénix a Igreja, que hoje se vê naquele sítio: exemplo, que fez levantar algumas, e reformar outras.
Agora com melhorada fortuna se vê a Cidade do Pará enobrecida com próprio Prelado, distincto do do Maranhão; erigida ali nova Diocese pelo zelo, e magnificência do nosso Augustíssimo Monarca o Senhor Rei Dom João
CLXXXIII. Nas aldeias dos Índios livres do Pará passavam-se anos, em que se não via nos altares o Divino Sacrifício da Missa.
Muitos assim adultos, como inocentes, não estavam
Viviam casados com uma, e muitas mulheres, como Gentios.
Nenhum sabia os Mistérios da Fé, e raríssimo era, o que em sua vida se tivesse confessado.
Assim morriam como pagãos, sem pedirem, nem haver, quem para aquela última hora lhe procurasse os Sacramentos.
Ali se perdiam ao desamparo as mais preciosas margaritas, que Deus lançou com
CLXXXIV. Nas almas dos Índios, que eram escravos, ou que sem o serem, serviam aos Portugueses, corria em afronta da Cristandade o mesmo estrago: estes pela maior parte eram de língua travada, que de nenhuma sorte entendem a língua geral; e este impedimento, e o pouco zelo de seus senhores, era a causa de os deixarem (com desprezo sem desculpa) morrer Gentios.
Os que eram
Se adoeciam nas lavouras, preciso era conduzi-los às povoações, em que pudessem receber os Sacramentos; mas por evitar alguma despesa, deixavam-nos morrer sem aquele presídio; porque não havia para tais corações coisa mais vil, que as almas.
CLXXXV. Passava ainda além da morte a tirania; porque os corpos mortos dos miseráveis Índios (sem respeito ao Sacramento do
Maior foi a injúria dos mesmos corpos em vida, mais desumano o trato; porque sem diferença do sexo os traziam seus senhores totalmente despidos diante de seus olhos, e famílias, não só no retiro dos matos, mas muitos na mesma Cidade do Pará: asco da natureza, à modéstia
CLXXXVI. Esta a precisa notícia da campanha, e do temeroso estado de seus habitadores, voltemos agora a buscar o Padre ANTÓNIO VIEIRA, que deixamos no desembarque entre as congratulações dos companheiros, e com os afectos das primeiras vistas.
CLXXXVII. Lançado ferro pois no Maranhão aos
Ainda não eram passados três dias, quando de pequenas faíscas se ia levantando um incêndio, que podia trazer por consequências maiores estragos.
Daremos do sucesso precisa notícia, por todo ele servir à nossa História.
CLXXXVIII. Vaga a Catedral da Bahia por morte do Ilustríssimo Dom Pedro da Silva, cometeu o Cabido seus poderes ao Superior, que no Estado do Maranhão fosse da Companhia de JESUS, para que provesse de Vigário geral, e Provisor, e em tudo o mais dispusesse a administração espiritual, como julgasse mais conveniente ao serviço de Deus.
Chegou esta carta do Cabido ao tempo, que os Tapuias mataram
CLXXXIX. Nestes termos, suposto o poder, que tinham, nomearam os Padres, que haviam chegado na primeira monção, novo Vigário geral.
Fundaram-se todos em suporem, que o antigo era puramente Delegado; mas bem atenta a Provisão, dela se via ser Ordinário, e assim o declarou depois o mesmo Cabido.
Passou o Vigário geral excluído a Portugal a queixar-se a ElRei desta violência; e sendo ouvido, voltou com a carta de Sua Majestade, para que o Governador o repusesse no lugar, de que injustamente fora tirado.
CLXL. Ao segundo dia, que faltara em terra, apresentou a ordem Real ao Governador; mas na mesma hora o prendeu na cadeia pública, e o meteu em grilhões o Vigário geral, que estava na terra, por uma sentença, que depois de devassar dera contra ele na ausência, que fizera ao Reino.
Recorreu o preso ao Governador, para que desse cumprimento à carta delRei, e o desforçasse; e convocada pelo Governador uma junta, assistiram a ela os Prelados das Religiões, o Desembargador Sindicante, o Vigário geral, que servia, e foi também chamado o Padre ANTÓNIO VIEIRA, que em tantas outras de mais intricado
Começava já o povo a amotinar-se por parte do Vigário geral, que actualmente os governava, pessoa sem dúvida benemérita, e benquista de todos.
Escusou-se, quanto pode, o Padre VIEIRA de assistir à Junta; porque a qualquer das partes, que inclinasse, via inconvenientes grandes; mas foi força não faltar a ela.
CLXLI. Proposta a matéria, um, só dos Vogais pediu tempo para estudar o ponto: inclinaram quase todos os outros à parte do Vigário geral, que de presente era, por quem o povo estava firme, e tão resoluto, que ameaçava haver de queimar o antigo, se o quisessem repor.
Seguir este monstro, era faltar à justiça, sobre estar ela armada com a ordem, e carta delRei: não o seguir, era pôr a risco de infinitas desordens, onde aquele desenfreado povo tem tantas vezes rompido em fúrias sacrílegas, sem respeito a Leis Divinas, e humanas.
CLXLII. Entre esta
Quando lhe tocou falar, disse, que não via, de que fruto pudessem ser os votos presentes, suposto que para decisão da controvérsia não havia no Maranhão, quem pudesse ser Juiz: que lhe parecia, que os mesmos competidores o fossem; e que se lhes pedisse, que pelo bem da paz
Foi geralmente aprovado este parecer; mas todos igualmente lançaram a execução dele aos ombros daquele grande homem, que o dava, e de cuja eloquência, e espírito, gritava tantas façanhas a fama, a experiência vitórias.
CLXLIII. Saiu então da Junta, levando consigo o Vigário geral: foi à cadeia, onde estava o preso: propôs a ambos a tormenta, que se ia formando naquela República furiosa: disse-lhes, que eles, como moradores dela, conheciam, que se chegasse a soltar aquela corrente ainda represada, causaria estragos, que dessem que chorar a seus mesmos amigos: que se cada um se julgava armado de justiça, devia antes ceder o cómodo particular, do que querer consegui-lo, vendo um povo arruinado: que como pessoas Eclesiásticas, o seu mesmo estado lhes intimava o exemplo; e como sábios, o seu mesmo entendimento lhes ditava a moderação: que viviam à vista de imenso Gentilíssimo; e que se vissem as gentes tão sanguinolentas contendas entre os Ministros da Fé, como pregariam eles Missionários a mansidão do Evangelho?
Que ele VIEIRA, e seus companheiros, deixaram Europa, por virem cultivar aquela terra bravia: que da parte do Redentor lhes pedia não fizessem nascer novos abrolhos, onde havia tantos: que anuindo ambos as razões tão forçosas, dariam ao Mundo de suas pessoas recomendação ilustre, e às ovelhas,
CLXLIV. Ouviram os litigantes: e assim como a Junta entregou a empresa ao Padre ANTÓNIO VIEIRA, assim agora os dois interessados o fizeram árbitro de toda a sua demanda, e justiça.
Saiu então aquele claríssimo entendimento com a sua resolução.
Julgou, que ambos fossem Vigários gerais: o primeiro do Pará, onde tinha sua casa: o segundo do Maranhão, onde tinha a sua, dividindo-se por esta maneira o governo Eclesiástico, como Sua Majestade tinha o secular; que isto também era da mente dos Senhores Capitulares da Bahia; os quais apontam na sua carta, que se parecer conveniente dividir o governo Eclesiástico em duas Vigairarias gerais, por serem tão dilatados os distritos, se faça.
CLXLV. Compostas assim as jurisdições, e os entendimentos, dirigiu então o Padre ANTÓNIO VIEIRA a sua eloquência a compor as vontades, e com humaníssima, e divina suavidade o conseguiu.
Tão singularmente lhe falou, tão forte, e tão docemente acrisolou em breves termos eficácias, e néctar, assim representou formosa a união, e a paz, que os dois antagonistas se abraçaram logo, e se perdoaram; e o que tinha mandado lançar os grilhões, se lançou aos pés do preso, e lhos tirou de joelhos.
CLXLVI. Voltou então o heróico Orador à Junta, (que estava suspensa na expectação
Só o povo sempre grosseiro, e sempre cego, ainda que não rompeu em fúrias, lá rugia como leão mal satisfeito.
Este foi o prólogo das vitórias, com que o Grande VIEIRA naquelas regiões se havia de fazer ilustre; ou vencendo gloriosamente vontades alheias, ou dominando nos maiores encontros, e adversidades a sua.
CLXLVII. Concluído tão felizmente este negócio com os de fora, tratou logo de assentar sistema de governo interior com os companheiros em casa.
A primeira coisa foi determinar, que todos os dias, e ainda nos dias Santos, tivessem todos os Missionários lição da língua da terra, para com a pressa possível se fazerem aptos para a conversão da Gentilidade, e proveito dos que já tinham o
A esta lição ajuntou uma conferência de casos duas vezes na semana, em que se começou pelos que mais podiam ocorrer, e se dava a resolução de como todos, e cada um se devia portar; querendo nisto igualdade de doutrina, e acautelando sempre futuros a sua prudência.
CLXLVIII. Pôs silêncio à prática de se procurarem muitas coisas, assim móveis, como de raiz, que tinham sido dos últimos Padres, que ali houvera: e quando muitos seculares esperavam, que a Companhia agora quisesse procurar
CLXLIX. Esta moderação, e desinteresse causou em muitos edificação grande, inclinando-se os ânimos aos Missionários, em quem viam só um ardente zelo da salvação das almas.
Neste sossego, e a aceitação da gente ia entrando o Padre ANTÓNIO VIEIRA, e os mais Padres, quando o demónio temendo, que daquele pequeno esquadrão lhe podia vir grande guerra, levantou-a contra eles de sorte, que os pôs a risco, ou de serem mortos, ou lançados do Estado.
CC. Promulgou-se a caixas corridas, e fixou-se em público uma Lei Real, pela qual se davam por livres todos os escravos do Maranhão.
Foi isto tão mal aceito, que em motim público reclamou furiosamente o povo, arrancando atrevidamente a ordem delRei do lugar público, onde se fixara.
As vozes, as armas, a perturbação, e confusão, era a que nos maiores casos costuma haver.
Entre esta impetuosa corrente de fúrias houve, quem com suma falsidade disse, que a Companhia procurara esta ordem, querendo os Padres, por aumentar suas aldeias, tirar os escravos a seus legítimos senhores.
Deu crédito a estas vozes o monstruoso vulgo, e contra os Missionários voltou a fereza.
CCI. Já se não duvidava romper contra os Padres em demonstração exorbitante: tumultuava-se, sobre qual houvesse de ser. Resolveram, ou para sanearem o passado, ou darem cor de justiça ao futuro, fazer uma proposta ao Governador em nome da Nobreza, Religiões, e povo, requerendo-lhe, que levantasse o bando, alegando algumas coisas verdadeiras, outras duvidosas, outras totalmente falsas, e erradas.
Remeteu a Câmara aos Padres a proposta assinada já pelos Prelados das Religiões, e pelos dois Vigários gerais, para que a assinassem também.
Escusaram-se de o fazer: instaram, que respondessem.
Julgou o Padre ANTÓNIO VIEIRA com os mais Padres, que se devia responder, e na resposta seguirem as opiniões, que salva consciência favorecessem aquele povo, para que soubesse o Mundo, que só o que a ofendesse, os apartaria, do que os tumultuosos pretendiam.
Fez a resposta em papel separado o Padre ANTÓNIO VIEIRA, a qual ornaria esta História, a chegar à nossa notícia.
Levaram-na dois Padres ao Vereador mais velho, que então servia, a quem os anos, e prudência constituíam sujeito digno de maiores empregos, fazendo-se juntamente naquela pequena Comunidade novas preces ao Céu pela quietação de todos.
CCII. Na primeira hora da seguinte noite se começou a ouvir ao longe um tumulto confuso, que em breve se pôs às portas do Colégio, como rio impetuoso, que o buscava.
As
Entre o fogo das vozes reluziam as espadas, de que escaparam fugindo alguns oficiais da caravela, que tinha conduzido os Missionários, e que encontravam pelas ruas; tornando-se contra eles, como instrumentos de sua ruína, ou como se lhe tivessem introduzido peste na terra.
Cresceu o motim, como em verdes mares se engrossam as ondas, e cresceu de maneira, que temendo-se maior insulto, saiu o Governador com as companhias do presídio com bala, e mechas acesas, para afastar os amotinados das portas fracas do pequeno Colégio, nas quais nenhum se tinha atrevido a por mão.
CCIII. Afugentado o furioso povo, e desfeito o tumulto, entrou só no Colégio aquele autorizado Vereador, que dissemos.
Rogou aos Padres quisessem moderar as razões do seu papel para sossegar orgulho tão cego, tão perigoso arrojo.
Saiu então a razão, e a luz toda, a quem estava capaz de a admitir, e ver.
CCIV. Responderam, ou por todos como Superior o Padre ANTÓNIO VIEIRA, dizendo serem vindos àquela terra com grandíssima vontade de servirem, como fiéis Ministros de Deus, aquela República: que as razões do papel, que ofereceram, eram as últimas, a que
Assim disse.
CCV. Retirou-se para casa satisfeito o Vereador.
No dia seguinte voltou ele com todos os outros em forma de Câmara a darem satisfação aos Padres do tumulto da noite antecedente.
Estranharam o atrevimento de um desenfreado vulgo, monstro sempre cego, e arrebatado; e mostrando sentimento, de que no tempo
Vieram depois outros particulares dos mais graves moradores da terra, a quem ou a política, ou o amor, tinha feito parciais no justo sentimento dos ofendidos Padres.
CCVI. Calaram por então as vozes, pararam os motins; mas como os ânimos do vulgo, e de muitos, que se não tinham por tais, estavam aversos, começou outro género de guerra com testemunhos falsos.
É mal este, que infama aquele país infausto, produzindo o seu terreno tão fecundamente esta planta, que parece conatural nela: não diremos ser influxo daquele Céu, mas venenosos vapores, e exalações, que para ali sobem do Inferno.
CCVII. Não havia dia, em que não tivessem os Padres, que rebater alguma seta, impondo-lhes a malícia, o que nem havia, nem aos pensamentos lhes chegava: alguns casos sucintamente damos para crédito da inocência, e para pública infâmia de tão desbocada iniquidade.
Mais adiante contra a pessoa Religiosíssima do Grande VIEIRA dará esta História com espanto do Mundo outro maior argumento da perversidade das consciências, que entre aqueles homens tolerava o sofrimento Divino.
CCVIII. Seguiu-se depois de sossegada a tumultuária tormenta o dia festivíssimo da Purificação da Mãe de Deus, e saiu à primeira Missa, segundo o costume, a fazer doutrina aos
Era isto dar assopros ao fogo, que ia acabando, ou acrescentar mais à hidra uma cabeça.
CCIX. Ainda excede, pela qualidade da pessoa, o segundo caso, escândalo ao Mundo, e do estado Religioso monstruosa indecência.
Certo Prelado de uma Religião, passados poucos dias, por uma carta sua, escrita aos Padres, se queixava deles, estranhando-lhes a desatenção, e mau termo, com que (dizia ele) lhe tinham os mesmos Padres tomado quatro Índios, que trabalhavam nas suas obras, para irem remar numa canoa.
Fundava-se tão solidamente esta queixa, que a canoa era ainda mais fabulosa, que a celebrada nau Quimera dos jogos navais de Enéas:
Ingenti mole Chimeram, Urbis opus:
e os Índios eram tão remontados, que nem Gamas, nem Magalhães, nem Columbos, os descobriram; só daria com eles, quem se avançasse a penetrar o estado dos meros possíveis, pois tais Índios não havia.
CCX. Não tardou muito terceiro brado contra a inocência; porque o Provedor do Conselho, tão cheio de ódio, como falto de verdade, espalhou pelo povo, que um seu Índio
Assim se empenhou o Inferno a fazer odiosos uns Missionários; (e entre eles a um ANTÓNIO VIEIRA, o maior homem, que então tinha Portugal) os quais por salvar as almas daqueles Portugueses, e reduzir à Fé as de tantos milhares de Índios, tinham deixado as pátrias, o sossego, e as lustrosas ocupações, que entre seus Irmãos, e na luz da Europa, podiam gozar.
Todas estas calúnias porém, sem motins, nem estrondos, desfazia logo destramente o Padre VIEIRA com tanta evidência, e luz, quanta bastava, para que vissem as gentes a diferença dos hóspedes, e a dos moradores.
CCXI. Ainda daremos nova prova da aversão, que tinham, a quem os ia curar, aqueles frenéticos, e das depravadas consciências, que entre aquela gente havia, no caso seguinte.
Houve um homem, (não sabemos, se foi nesta mesma ocasião) que provou com testemunhas, que um Índio moço da doutrina dos Padres, era seu escravo, por ser filho de uma escrava sua, já morta.
Necessário seria ressuscitar a mãe para libertar o filho; mas os Padres, sem fazerem esse milagre, fizeram aparecer viva em juízo a Índia verdadeira mãe, a qual notoriamente era livre, e por tal conhecida de todos, e igualmente o filho.
Foi este sucesso um triunfo público da verdade aos Missionários, e confusão dos inimigos.
CCXII. Os efeitos, que tão bravas, e repetidas ondas fizeram em algum coração, que não era de pedra, entre aqueles Varões constantes, podiam ceder em perda de muitas almas: porque vendo tão porfiada contradição, e lembrado com sentimento saudoso da benevolência, e rogos, com que em Cabo Verde toda aquela afectuosa Cidade, o Reverendo Cabido, e autorizada Câmara, queriam consigo os Padres, quase esteve arrependido de se não deixar ficar entre eles, quando via, que o Maranhão tão ingratamente os perseguia; e era merecedor, de que com ele se usasse, o que Redentor do Mundo deixou no Evangelho, e São Francisco Xavier usou em Malaca: isto é, que sacudisse o Missionário o pó dos sapatos, e de tão ingrato, e malévolo país, nem levasse tão escassa memória.
FIM
I. Assim corriam alterados os mares no Maranhão contra a pequena nau da Companhia, quando do Pará avisava o Padre João de
Destinou para aquela captura o Padre ANTÓNIO VIEIRA aos Padres
Desta sorte ficava expedito o Padre João de
II. Destinado este socorro ao Pará, reservou o Padre VIEIRA para a Cidade aos Padres
Para si tomou as aldeias, onde a necessidade era muita, e se esperava daquela seara fruto copioso.
Repartidos assim aqueles animosos Missionários, poucos em número, e muitos em valor, levantou o Inferno nova contradição, apostado sempre a impedir os passos, e vir às mãos com o Grande VIEIRA.
Agora lhe apresentou uma forte batalha, cheia de perigo, e de temor.
O conflito foi travado, a vitória do Céu.
III. Chamava já o tempo a navegação do Pará: pronto o barco, e favorável a maré, estando os dois Padres
Alto destino da Providência para o bem, que intentava a mesma Providência, sempre admirável em seus meios, e fins.
Ignoravam os Padres a tal proibição: e como instava o tempo de soltar o barco, e empunhar o remo, voou com a sua pena o Padre ANTÓNIO VIEIRA, e escreveu com o maior rendimento ao
IV. Não respondeu o
Aqui o prudente Superior, e animoso VIEIRA, mandou ao Padre, que não fosse, e partiu ele a meter-se nas lanças, não deixando a memória de lhe oferecer por todo o caminho, quantos este mesmo
Perde o soberbo a vista, o ingrato a memória.
V. Era perigoso o encontro, onde o poder era despótico, e mal intencionado o querer.
A grandeza porém de ânimo, junta com uma alta prudência, sempre no Grande VIEIRA acompanhada de religiosa moderação, e domínio de si mesmo, por qualquer lado prometia vitória.
Não poderíamos escrever, ainda os actos interiores daquele coração, se a sua mesma pena nos não socorresse na narração deste sucesso.
VI. Entendi (assim escreveu) que o homem queria quebrar
As palavras, com que me recebeu, foram as do cabo.
Queixou-se, de que os Padres se embarcassem sem sua licença, a que satisfiz com não sabermos, que havia tal ordem, nem entendíamos, como a poderia haver sobre Religiosos; e em lhe dizer, e provar com os criados de sua casa, que os mesmos dois Padres naquela mesma manhã, e dois dias antes, o tinham ido buscar para lhe darem conta da sua jornada.
Sobre esta queixa vieram outras, em que nós tínhamos a razão de sermos os queixosos, que era não lhe ter o Padre
VII. Certo é, que o fez o Padre por pura inadvertência, e por ser coisa nunca imaginada, nem imaginável no Brasil, fazerem-se semelhantes
Para curar esta chaga, que era a que estava mais em carne viva, lhe disse que sem embargo de eu estar deliberado a ir passar a Quaresma nas aldeias, pregaria o Domingo seguinte na Matriz, e lhe tomaria a vénia na mesma forma, para que todo o povo conhecesse, que a falta passada fora esquecimento do Pregador, e não querer a Companhia negar-lhe a cortesia, que as outras Religiões lhe faziam.
Com isto foi a licença para partir o barco.
Até aqui a fidelíssima pena.
VIII. Soltaram de voga apressada os Missionários, e em quanto eles iam cortando os mares naquela perigosa travessa, ficava ainda lutando na areia o seu General.
No mesmo ponto, em que se despedira a licença, entraram a visitar ao
Um dos maiores, que assistiam, era mais que todos oposto aos Índios, declamando contra a sua barbaridade, e dando por boas as causas do cativeiro.
IX. Então começou a falar no Padre ANTÓNIO VIEIRA a sabedoria, e o zelo.
Foi como o Sol, que nasce, que brandamente vai ilustrando as terras, até que posto vertical, e dissipados os vapores todos, lhe imprime mais clara
Começou a propor-lhe, que matéria era a da liberdade dos Índios, com que aquele imenso Gentio nasceu: explicou-lhe ponto por ponto as resoluções do papel, e os fundamentos, em que solidamente estribava a doutrina dos Padres: mostrou, como era impossível haver salvação, em quem cometia as violências, e as injustiças tão manifestas do parecer contrário.
X. Além disto discorreu nas conveniências ainda temporais, que no papel se sugeriam, e os meios para elas se conseguirem: exposto tudo com tão alta compreensão, miudeza, distinção, e clareza, que aqueles juízos, até ali tão contrários, deram as mãos convencidos.
Declarada a vitória pela razão, e verdade, julgaram todos, que o parecer dos Padres se devia abraçar; e que o papel dado era naquele cego mar de ignorâncias a mais acertada carta, que deviam seguir, e farol claríssimo, porque se deviam guiar.
XI. Penetrou a luz tão profundamente ao
XII. Desfez-se então aquela junta, em que
Fez esta reflexão na brandura das suas palavras o
Quem esperara, que o princípio da nossa prática havia de vir a ter estes fins?
Mas isto mesmo mostra, que é coisa de Deus, e ele a há de ajudar.
XIII. Assim soube a voz heróica do Grande VIEIRA, melhor que a de Mercúrio, amansar nos homens a fereza: e aquela imortal língua suspender o fogo da ira, mais suavemente que a cítara d Orfeu, que adormeceu ao Cérbero, e fez parar o Inferno todo.
XIV. Seguiu-se o Domingo, em que o Grande VIEIRA havia de declamar, ou perorar por parte não de um homem, ou de uma Nação, mas de todas as Nações de uma inteira parte do Mundo.
Nunca o Senado Romano, ou Grego, (que tão soberbamente se jactam) ouviram Orador maior, nem em maior causa, nem que levasse mais luz, e mais fogo no coração.
XV. Chegada a hora, e posto no púlpito Padre ANTÓNIO VIEIRA, viu sobre si o Maranhão aquela nuvem fecunda, que já com correntes, e luzes, já com espantoso estrondo, já com eficácias de raio, ilustrava a uns, aterrava a outros, e comovia a todos.
Pendente estava o numerosíssimo concurso daquela
Como era o primeiro Domingo da Quaresma, e a doutrina esperada havia de ser declamar contra os interesses, porque tantas almas se condenavam no Maranhão pelos injustos cativeiros, tomou por Tema aquele texto:
Haec omnia tibi dabo, si cadens adoraveris me.
XVI. Mostrou em primeiro lugar em rios de eloquência, e de fogo, com quanta energia pode, quanto mais alto preço é o de uma só alma, que o de todas as Monarquias.
Estabelecido, ilustrado, e provado este primeiro ponto, deu logo em segundo lugar com todo o peso de luz, e de desengano sobre o auditório, e com Apostólico zelo declarou, que todos geralmente estavam em estado de condenação pelos injustos cativeiros de tantas almas de Índios; e que enquanto se não tirassem deste pecado, caiam no Inferno todas as almas dos Portugueses.
Propôs então o remédio, persuadiu-o, facilitou-o, exortou a ele com todas as forças do seu fervoroso espírito.
Prometeu enfim muitas felicidades, ainda temporais, a quem por Deus, e por se salvar, desprezasse tão perniciosos interesses.
XVII. Entre o ouvir mudava o auditório de cores, e por elas conhecia o ardente Missionário os afectos, de que se revestiam os corações.
Tão profundamente os penetrou a Divina
Rendeu a estes, abalou a todos; mas a vitória não parou na manhã , igualou o dia.
XVIII. Comovido assim aquele povo com o Sermão da manhã, convocou para de tarde o
O lugar foi a mesma Igreja Matriz.
Vieram a ela o
Tomados os lugares, rompeu o silêncio o
Foi isto dar estímulos, a quem corria, e motivos à Águia para voar.
Falou o Embaixador do Céu, e falou, como sábio, como zeloso, como Missionário, e falou meros oráculos.
Nemine discrepante, foi aprovado tudo: as resoluções, os fundamentos, a doutrina, e concedidas todas as consequências dela.
XIX. Restava descer aos meios da execução; mas tanto que se começou a ver a violência, que traz o largar, o que se logra, se viu
Cresciam dúvidas, opunham-se dificuldades; e chegou o enleio a tal ponto, que já o partido do Céu ia perdendo campo, e ficando a vitória desesperada; quando em um momento entrou a espada, e o braço de Deus, e cortou felizmente, quanto se opunha à sua fortuna.
De repente concordaram todos, em que se nomeassem dois sujeitos de conhecida inteligência; um, que fosse Procurador por parte dos Portugueses, outro por parte dos Índios.
Acordo Divino, que abriu a porta a todos os acertos.
XX. Determinou-se primeiramente, que os que fossem eleitos, tomassem em lista todos os Índios; e informando-se de cada um em particular, o Procurador dos Portugueses alegasse pelo cativeiro, o dos Índios pela liberdade.
Em segundo lugar, que os Juizes fossem os oficiais daquele Senado com assistência do Sindicante: que sem este se não sentenciasse processo algum: e que dada a sentença sem mais demora, se seguisse a execução, sendo declarado por livre todo o Índio, de cujo cativeiro não constasse.
XXI. Procedeu logo a Junta à eleição dos dois sujeitos, e saíram as duas pessoas, em cujas consciências morava a verdade, e o desinteresse.
Teve especial aceitação o eleito para Orador dos Índios, que foi o Varão de maior
XXII. Dado este sistema, ou forma de juízo, de tudo se fez logo um auto, fiscal perpétuo, que, pelo que referirá depois a nossa História, acusará em mais alto tribunal a inconstância do coração humano, e as altas raízes, que ali tinha lançado a ambição, e cobiça.
Assinaram no auto o
XXIII. Como as vozes do Grande Pregador estavam vivas, e as paredes da mesma Igreja, em que agora se fazia a Junta, parece, que as mandavam em repetidos ecos aos ouvidos, não pode por então nenhuma dureza não render-se, nem houve bronze tão forte, que se não dobrasse.
Como porém de muitos destes foi com torpe afronta da razão ultrajado o zelo, e perseguida nos Missionários a doutrina, veio a ter por muitos anos que chorar, e ainda chora estragos a Fé, cativeiros a liberdade.
XXIV. Concluído tudo, ouviu-se então o aplauso das gentes sobre os fervorosos Missionários congratulando-se todos, como numa
Diziam, que já Deus levara àquela terra, quem os alumiasse, e quem os pusesse em estado de salvação; e eram tão crescidos os elogios, que davam à Companhia, que já os não podia sofrer a modéstia religiosa, postos os olhos no chão de pejo, e cobertos de rubor os rostos: foi preciso ao modestíssimo ânimo do Padre ANTÓNIO VIEIRA acudir, e os mais companheiros, que ali se achavam, a moderar este martírio, mais custoso agora naquela publicidade, que as injúrias no passado motim.
XXV. Quiseram os Padres, que o exame começasse pelos seus Índios, para que constasse ao Mundo, que naquele pequeno Colégio não desdiziam as obras da doutrina, que se pregava.
Daqui passou, e se foi continuando o exame nos mais, em que não só Índios particulares, mas Nações inteiras, que oprimidas do poder arrastavam as cadeias da escravidão, se puseram felizmente em liberdade.
Este foi o fim desta contenda, travada, e concluída pelo ardente zelo, e forte espírito do Padre ANTÓNIO VIEIRA em o segundo de Março de
XXVI. Alcançada esta vitória, e cortado tão felizmente o partido do Inferno, tomaram alentos novos os Missionários.
O Padre ANTÓNIO VIEIRA, Superior de todos, mandou em seu lugar para as aldeias vizinhas ao Padre Francisco Veloso; e que ficassem na Cidade para pregarem na Igreja da Companhia, como dissemos, os Padres Manoel de Lima, e
XXVII. Para si (conforme o prometido ao
Era estreito o Templo para os ouvintes, maior que todo o Maranhão o zelo Apostólico do Orador.
Via-se este fervoroso espírito numa Colónia Cristã, e Portuguesa, e quase desconhecia nela o fundamento de apelidos tão gloriosos, esquecida ali a piedade, e degenerada a Nação.
Penetrado desta dor, anelava ansiosamente a tirar as causas dela, sentido, de que Portugal transplantado àquela América, tomasse o fero do país, e se esquecesse da humanidade do seu ditoso terreno.
Chegou o segundo
Como a matéria era da Glória, como ela fez suave impressão no já disposto auditório, o qual já produzia no peito racionais afectos, e mais humanos sentimentos.
XXVIII. Agora diremos suas novas indústrias, como declarou nova batalha ao inimigo, como saiu a campo com uma piedosa pompa, exército glorioso, e guerreiro, contra a maldade, e contra a ignorância; não cessando este Grande Varão de estudar para o bem das almas estímulos vivos, e excitativos novos.
No fim do Sermão publicou para todos os Domingos de tarde uma Doutrina geral, além da que nos dias Santos ao tempo da primeira Missa se fazia na Igreja da Companhia aos Índios.
Pediu a todo o auditório mandasse a ela os seus Índios, e Índias, e dispôs-se este piedoso esquadrão na forma seguinte.
XXIX. Pela uma hora da tarde saía da Igreja dos Padres até a Matriz em ornadas fileiras um vistoso, e numeroso concurso de almas a beber luz daquele coração, que era o depósito da sabedoria, e do zelo.
Ia como bandeira sagrada na retaguarda um guião de cor branca, e nele a pintura de Santo Ignácio de
Adiante iam os Índios, atrás destes as Índias, entoando a acentos harmoniosos entre aquela infantaria os estudantinhos, que já frequentavam as classes, a Ladainha da Mãe de Deus: clarins, que no suave das vozes deleitavam os ouvidos, os corações no devoto.
No fim se via o Grande VIEIRA, que por ilustrar, e polir aquelas rudes almas, tão preciosas, como as mais cultas, deixara a luz, e os aplausos da Europa.
Discorria esta sagrada pompa pelas principais ruas da Cidade, recolhendo de caminho à bandeira os Índios, que andavam dispersos, e constrangendo a alguns, a quem a ignorância fazia estranhos, o medo fugitivos.
XXX. Chegados à Igreja Matriz, dispunham-se a um lado os Índios, ao outro as Índias, passeando pelo claro, que ficava no meio; o Padre ANTÓNIO VIEIRA, dizendo primeiro as orações, que todos iam repetindo: logo perguntava os Mistérios da Fé, insistindo destramente em lhos estampa na memória.
Estava toda aquela gente pela maior parte inculta; e ainda que alguns soubessem algumas orações, que seus senhores lhes ensinavam na língua Portuguesa, não faziam o conceito devido, nem sabiam o que era.
XXXI. Quis buscar novo socorro para dissipar com mais presteza tão escura cerração, e reduziu um Catecismo grande, que corria, a mais
XXXII. Além deste Catecismo compôs outro também mui breve, para que nos casos de aperto, onde não havia Missionário, se pudesse baptizar um Índio, e se ajudasse a bem morrer um Cristão.
Como o seu zelo abarcava a todo lugar, aonde não chegava com a voz, voava com a pena, corrend por canais diversos a fecundar o país a corrente pura de sua doutrina.
De muitos lugares se começaram a pedir estes Compêndios; e para que fosse entre os Missionários uniforme o método de ensinar, remeteu aos que estavam no Pará as cópias dos mesmos Catecismos, repartindo com os companheiros a alma, ou multiplicando-se em muitos, para trabalhar com todos.
XXXIII. Esta pompa da doutrina geral para os Índios, que saía até a Matriz, nela se acabava os Domingos de Quaresma, enquanto no mesmo tempo se estavam pregando as tardes na Igreja da Companhia.
Acabada a
XXXIV. Já parecia outro aquele povo, revestindo-se a Cidade de nova face: o Padre ANTÓNIO VIEIRA, reconhecendo como o Céu dava eficácias a suas vozes e as dos seus, foi repetindo as indústrias, e buscando em novos exercícios novos alentos à empresa.
Chegou o dia da Anunciação; (aquele dia feliz, em que se abriu a porta à fortuna do Mundo) e depois de ter no púlpito empregada toda a alma nas ponderações daquele portentoso Mistério, no fim do Sermão publicou, como daquela tarde por diante se dava princípio à devação do Rosário, cantando-se a coros o Terço da Senhora naquela mesma Igreja do Colégio, em que os Padres a veneram com o título da Senhora da Luz.
XXXV. Foi isto um atractivo, e reclamo agradável àquele povo: começava-se ao fenecer do dia; e era tal ao concurso, que de ordinário se enchia a Igreja com a multidão de todos os estados.
Assistiam por lei imposta os estudantes, que frequentavam as classes.
Composto o altar com muitas luzes à Imagem da Soberana Mãe da Luz do Mundo, davam princípio
Entre os dois músicos assistia com sobrepeliz o Padre ANTÓNIO VIEIRA para apontar os Mistérios, e para os concluir com as orações competentes.
Daqui nasceu atear-se o fogo desta devação tão vivamente naqueles moradores, que pelas casas particulares formavam os mesmos coros as famílias, ouvindo-se soar harmoniosamente em partes diversas este obsequioso culto à Rainha dos Céus e terra.
XXXVI. Não parava porém aqui o fogo, que ardia no coração deste exemplar de Missionário Introduziu pregar-se em todos os Sábados um exemplo do Rosário, acudindo o povo em cardumes com tal desvelo, que tomada toda a Igreja continuava por fora da porta imensa turba, anelando todos a ouvir, o que proferia aquele Orador Divino, e perguntando ansiosamente os demais longe aos que ficavam mais avançados, que exemplo era aquele, que se contava.
Assim fez arraiar primeiro naquele Hemisfério as luzes da Aurora, para lhe introduzir pouco depois todo o Sol.
XXXVII. Como a Cidade toda era o campo, que para si tomou naquela Quaresma o Padre ANTÓNIO VIEIRA, não havia nela empenho Apostólico, que não empreendesse.
Havia em partes diferentes muitos Índios, que necessitavam de mais vagarosa instrução; e
Estes naquele perigoso estado tiveram sobre si a vigilância de um Argos, qual era VIEIRA, sobre o bem das almas; porque recebida a notícia dos principais Mistérios da Fé, e com ela o
XXXVIII. Entre o solícito cuidado das almas quis também acudir aos corpos, sendo neste Apostólico Varão o amor do próximo aquele mesmo, que no amigo fiel chama o Espírito Santo Medicamento da vida, e da imortalidade.
Foi esta virtude a alma das acções do ilustre VIEIRA, e a que o fez verdadeiramente Herói: assim o veremos com distinção maior mais adiante, quando uma por uma lhe formos divisando as luzes.
Aqui o viu logo o Maranhão entre as fadigas do púlpito acudir às cadeias, onde aqueles infelizes desvalidos acharam nele, ou a seus trabalhos alívio, ou a suas desgraças termo.
XXXIX. Desejou o seu zelo estender-se aos hospitais; mas nem este refúgio tinham naquela terra as misérias humanas.
Do púlpito se estranhou este descrédito da ternura Portuguesa, e da piedade Cristã; e com este assopro do Céu tratou a Irmandade da Misericórdia, de que se empreendesse a obra, oferecendo-se logo boas esmolas para ela.
Assim teria socorro a pobreza dos soldados, e tantos derrotados
Parou em intentos a obra, e não sabemos se chegou já ao ser daquela Misericórdia.
XL. Foi continuando o incansável Missionário o exercício da caridade com os miseráveis, inquirindo pobrezas ocultas para as socorrer, já que naquela terra, sendo tantas as misérias, não havia pobrezas públicas; e sendo tão dura lança a necessidade, era no capricho Português mais fácil padecer a pobreza, que confessá-la.
Só dos Confessionários, e da chave do sigilo se fiava com os pecados da corrupta natureza este pecado da fortuna; e ali se remediava este, para se evitarem aqueles: quais fossem mais bem chorados, não o alcançavam os homens, sendo as lágrimas indistintas.
Enfim não havia oculto necessitado, a quem o Padre VIEIRA não acudisse, nem enfermo, com quem não despendesse tudo, quanto levara de botica para o Colégio.
XLI. Dizia com aquela sua grandeza de coração, e animosa confiança em Deus, que em despender todos os medicamentos com os necessitados em terra, onde não havia botica, nem Médicos, o mesmo Senhor faria, que não tivesse necessidade deles, quem por seu amor os dava.
Desempenhou esta fé a magnificência daquele Senhor, que A dando se intitula Deus; porque sabendo-se na Cidade a parcimónia, com
Era tão pontual o Céu em abastecer aquela cidadela forte, que um daqueles animosos soldados, par saber, o que naquele dia haviam de mandar ao Colégio, ia saber do despenseiro, o que faltava.
XLII. Acabou-se enfim aquela Quaresma, e o povo daquela capital se não conhecia a si mesmo, vendo-se nele excitada a piedade tão natural à Nação, ali ou amortecia, ou infelizmente degenerada.
Reverdeceu com tão Apostólicos suores a caridade Cristã, e a tanto zelo, e trabalho, correspondeu o fruto.
As inimizades, que se compuseram; as injúrias, que se perdoaram; as restituições, que se fizeram; as almas, que saíram de mau estado; as consciências, que, dissipados antigos erros, se dirigiram, não cabem em curta narração: mas a glória, que nestes escritos falta a este insigne Varão, e aos mais Missionários, companheiros de seus exemplos, estará expressa nos livros de Deus, em que uma por uma se hão de contar suas fadigas, e vitórias.
XLIII. Mas já o socorro de todos os Índios, assim ao perto, como ao longe, já o navegar imensos rios, já o investir por incultar brenhas, e ir buscar aquelas humanas feras em suas mesmas covas, chamava pelo Grande VIEIRA.
Tinha ele conquistado naquela Quaresma principalmente as almas dos Portugueses;
As necessidades, que de todas as partes clamavam por Missionários, eram muitas, e todas quase extremas; e consultando com os companheiros negócio tão importante, resolveu-se com prudente acordo, que ele Padre VIEIRA até a partida dos navios para o Reino entendesse sobre o multidão, e misérias dos Índios da Cidade de São Luiz; pois era ali precisa a sua assistência para expedir, como Superior de todos, os avisos a Portugal, e dar conta a Sua Majestade do Estado, e das Missões, cujo cuidado lhe tinha entregue, e que os mais fossem a diversas aldeias.
XLIV. O Padre
Não estava ainda destro na língua; mas foi para administrar com a que pudesse àquela almas os Sacramentos; e para que com a sua comunicação a aprendesse, socorrendo-se com o trato mutuamente todos; o Mestre dando Pão da vida aos Neófitos na Fé, e os discípulos ensinando a falar ao Mestre (seja lícito dizermos assim) Neófito no idioma.
XLV. O Padre Francisco
Eram estes Índios de língua geral; e com estes, que ai havia, intentaram os Governadores antigos fazer descer das suas brenhas a toda aquela Nação: assim se executava já, e comporiam seis, ou sete aldeias; mas ou por agravos, ou por desconfianças com os Portugueses, se voltaram quase todos para suas terras com lastimosa fortuna de ambas as partes: os Índios, que perdiam a Fé; o Estado que perdia vassalos; só uma aldeia persistia, e ficou acampada no rio Taiqui, distante da Ilha trinta léguas.
XLVI. Destinou o Padre VIEIRA para este sítio Missionários, e deles o melhor língua, não só para acudir aos adultos, e baptizar os inocentes, que de uns, e outros morriam muitos com perda lamentável; como também para dali chamar para a luz do Evangelho o restante da Nação, que se tinha remontado para as suas terras, que distam da costa do mar sessenta jornadas de caminho.
Estavam todos aqueles Índios já abalados para se descerem dos seus matos, quando que lá lhes chegou a fama de serem chegados os Padres ao Maranhão: assim o mandaram dizer aos mesmos Padres os seus Principais por um Índio.
Tanto é o amor, que estas gentes tem aos Religiosos da Companhia, como quem os reconhece por pais, e contínuos defensores da liberdade, em que Deus os criou.
XLVII. Achou o Padre ANTÓNIO VIEIRA dentro na Cidade um Sertão.
Os Índios eram muitos, a ignorância tão profunda, como geral.
Para que nenhum lhe escapasse, seguiu a lista dos Párocos, não deixando o seu zelo meio algum, por onde pudesse beneficiar a todos.
Começou então a batalhar aquele sublime entendimento com a mais fechada, e destituída rudeza, pretendendo que desta vez chegasse a ver as covas Cimérias o Sol.
Aqui se viu a Mercúrio ir formando homens com a suavidade, que saía na sua voz.
Achou a muitos tão troncos, que para os fazer imagens polidas da Divindade, foi preciso revalidar-lhes os
XLVIII. Empregado enfim o zelo do Grande VIEIRA no remédio das almas dos Portugueses, socorridos com tanta luz de doutrina seus escravos, e buscados, e instruídos nas suas aldeias os Índios livres, anelava o Apostólico ardor daquele coração, por se ver já entre Gentios, a quem pregasse a verdadeira Fé, ou a cujas bárbaras mãos caísse vítima dela, dando heroicamente a vida por Deus.
XLIX. Ia correndo o ano de 1653, em que isto se obrava, quando determinou meter-se ao Sertão; mas com alta dor às portas dele se lhe opôs tão denso o silvado, que não foi possível o penetrá-lo.
Duas empresas destas se lhe ofereceram; uma no Maranhão, outra
No Maranhão intentou subir pelo rio Tapicuru, e descobrir os Índios, chamados Barbados, de que havia fama mais plausível, que averiguada.
O alvoroço da facção, e o ser empresa de ir buscar novas almas para o Império de Cristo, enchia de novos alentos aquele grande coração, que sempre teve por menor qualquer outro emprego.
L. Ajustou com o
Assim ficaram suspensas tantas diligências, e frustrado o zelo, ardente espírito de VIEIRA às violências da cobiça de um poderoso.
LI. Desfeita, e impedida a entrada pelo Maranhão àqueles incultos bosques, não perdeu o ânimo o alentado Missionário.
Passou do Maranhão ao Pará, donde determinou fazer outra pelo grande rio das Amazonas.
Lidava com estes pensamentos, quando soube, que
Já a dor passada, ou esquecia, ou se afogava nesta esperança; e recrescendo mais vivas as chamas, determinou pôr o peito a esta empresa, que o Céu lhe mostrava: mas este grande homem, a quem Deus quis por tantos modos provar, não dava passo para as facções da glória Divina, que ardentemente desejava, em que não encontrasse uma rêmora, e quem não pusesse tropeço a seus destinos.
Tratou com todo o calor de ir buscar às brenhas estas gentes imensas, que se lhe estavam vindo às mãos; e tomando por companheiros aos Padres Francisco
LII. Era o intento do Padre ANTÓNIO VIEIRA trazer aqueles Índios, dispô-los por aldeias, e alojá-los em sítios, onde, como almas livres, vivessem como os mais vassalos daquele Estado, e fossem instruídos, e
Esta era a ordem, e os poderes, com que o Augustíssimo Rei Dom João
Por mais que o Padre ANTÓNIO VIEIRA mostrou ao
LIII. Partiram pois em demanda dos Póquiz, e o dito Cabo, cheio de crueldade, e de traição, deliberado com a ordem oculta do
Correspondeu sem discrepância a esta instrução o efeito.
Chegaram ao termo; e vendo o Padre ANTÓNIO VIEIRA, que o Cabo, sem respeito ao que devia, despoticamente se metia governar a empresa, reclamou, requereu, mostrou-lhe a ordem, que tinha
LIV. Feriu altamente este golpe o zeloso coração de VIEIRA; e deixados os outros dois Padres em companhia dos Índios para socorro oportuno de suas almas em qualquer incidente (que ainda assim se reduziram mais de oitocentas) partiu daquelas brenhas com o Padre Francisco
Chegou à presença do
Este foi o sucesso das duas primeiras entradas, que quis fazer ao Sertão o Padre ANTÓNIO VIEIRA; aquele Grande VIEIRA, que desprezando as estimações dos Príncipes da Europa, se tinha retirado por salvar almas àquele canto do
LV. Com desenganos tão manifestos cresceu à vista de tantos males no coração de tão heróico Missionário o ardente desejo do remédio.
Ponderava, que a terra toda era uma sentina de vícios, e com verdade tão injuriosa, como incrível, serem os Portugueses os lobos, e os Gentios tão infamados de bárbaros as ovelhas.
Via, que os cativeiros injustos eram sem conto, e que este pecado levava àqueles moradores do Inferno.
Experimentava, que o poder, e o interesse, eram ali tão desenfreados, que lhe impediam o fruto, que podia colher, ainda nas aldeias já Cristãs; e que buscando nelas aos Índios, até no tempo da Quaresma as achava desertas; porque os tais Índios eram constrangidos por suma injustiça às lavouras dos tabacos, ausentes em distantes matos de suas famílias por oito, e nove meses, vivendo, e morrendo sem Sacramentos, sem Missa, sem doutrina, como se fossem Gentios: e morrendo também à fome suas mulheres, e filhos, por não poderem acudir os maridos às suas roças, de que provinha a tantos miseráveis o sustento.
LVI. Ainda ponderava outras maiores opressões, e tiranias, cuja narração lastimosa só pode tomar crédito da mesma pena do Padre ANTÓNIO VIEIRA, sempre incorrupta, agora dorida.
Acrescenta-se (escreveu ele) a este
Até aqui o formal, e sentido testemunho do Grande VIEIRA.
Esta era a benevolência, com que se acariciavam os Catecúmenos, e o amor, com que se tratavam aqueles, que pouco tempo havia se tinham sujeitado à Fé.
LVII. Os efeitos desta opressão ainda eram mais lastimosos, que a causa.
Uns Índios deixavam as aldeias, e sendo livres, se metiam com os escravos dos Portugueses; ali se casavam, querendo antes viver escravos com mais sossego, que na sua liberdade com trato tão desumano.
Outros, a quem mais altivos espíritos animavam, voltavam-se outra vez aos matos, perdendo o Rei vassalos, a Fé filhos: e como nestes ia apelidada por aquelas Nações a tirania, dos que se chamavam Cristãos, se impossibilitava a redução de muitas almas ao grémio da Igreja.
LVIII. Pediam tantos males remédio pronto; e como o grande coração, e alma do Padre ANTÓNIO VIEIRA tinha tanta luz, como fogo, posto este negócio em consulta dos Missionários, todos votaram, que fosse ele, o que viesse ao Reino, como Superior de todos os Missionários, a declarar a Sua Majestade os estragos, que iam nas almas do Maranhão, para que tirados os impedimentos, que punha o Inferno, pudesse correr o sangue de Cristo a inundar gloriosamente todas aquelas Nações com triunfo da Fé, e aumento do Império Português.
LIX. Tomada esta resolução com todo o segredo, voou o Padre VIEIRA como Águia veloz do Pará ao Maranhão, onde se foi dispondo para a viagem.
O curso do tempo lhe parecia tardo, enquanto não soltava as velas a embarcação; porque via, que em um corpo
Lastimava-se da perda de todas as almas, tão pio para com as dos Portugueses, como zeloso para com as dos Índios, e sentia de umas, e outras o cativeiro.
Não chegara o mal de todas a ser tão desesperado, se o Grande VIEIRA, e a Companhia toda, não tivera naquela conquista contra si outros púlpitos, e outros Confessionários, donde, como em viciadas fontes, bebia o povo peçonha por vasos diferentes.
Evitar tanta infecção, e impedir, que não corresse tão desenfreado o veneno, eram os suspiros, e ânsias do Padre VIEIRA: mas como não tinha naquela mísera terra, quem lhe desse poderoso remédio, por isso determinou buscar-lho, mas que fosse por baixo das ondas.
LX. Chegou enfim a monção; e três dias antes de desferir as velas para o Reino, pregou este Oráculo dos Pregadores aquele divino Sermão de SANTO ANTÓNIO, em que com estremada alegoria, falando aos peixes, pregou aos homens umas verdades tão importantes, como mal recebidas daquele povo ingrato a tanta cultura.
Aqui a discrição contendeu com o devoto, a erudição com o zeloso: pregou com espírito Apostólico, e com elegâncias de Orador.
Aqui o fogo, que lhe ardia no peito, o fez sair fora da mesma alegoria, e com apóstrofe elegantíssimo, voltando-se dos peixes aos homens, na ponderação do peixe aberto
Abri, abri estas entranhas, vede, vede este coração!
Mas ah sim, que me não lembrava: eu não vos prego a vós, prego aos peixes.
Aqui finalmente com equívoca Retórica se despediu daquela terra, da qual saiu com dois companheiros no Junho de
LXI. Em nenhum lugar desdizem de si os Varões heróicos: o Padre ANTÓNIO VIEIRA, quando navegava, não remitia nas naus, sendo de Católicos, os exercícios espirituais da terra, públicos, e particulares.
A devação da Rainha do Céu era a âncora, em que confiava entre aquele bravo elemento; introduzia sempre rezar-se publicamente todos os dias o Terço do Rosário com outros empregos santos, vivendo nos navios com a regularidade dos Colégios com campa corrida, e observância religiosa.
LXII. Desta sorte navegava agora, quando depois de sessenta dias de mar, indo já tão avante, como à Ilha do Corvo, se levantou uma tormenta desfeita, em que pareceu se arruinavam as esferas.
Subia o navio às Estrelas, e já descia ao profundo com tão furioso ímpeto, que o não ser comido a cada instante, pareceu mais
Qual fosse o alarido, e confusão, di-lo o caso, não o sabe expressar a pena.
Ficou com o bordo direito debaixo das ondas, e recostado no mar até o meio do convés, passando-se a gente ao costado oposto em tropel confuso.
O pranto feria os ares, feria o Céu: o assoprar do vento, o bater das ondas, a fúria de ambos pareceu desencaixar os pólos com perigo novo, e ruína sem remédio.
O Padre ANTÓNIO VIEIRA neste apertado trance, igual a todos no perigo, maior que todos no acordo, depois de dar a todos a absolvição geral, levantou a voz, e como quem levava na alma os seus Índios, bradou assim: Anjos da guarda das almas do Maranhão, lembrai-vos, que vai este navio buscar o remédio, e salvação delas.
Fazei agora o que podeis, e deveis, não a nós, que o não merecemos, mas àquelas tão desamparadas almas, que tendes a vosso cargo; olhai, que aqui se perdem também conosco.
LXIII. Assim disse: e depois de ter exortado a que fizessem voto à Rainha dos Anjos, a quem mares, e ventos obedecem, de rezarem todos os dias da vida o seu Terço, se os livrasse daquele perigo, dizendo todos, que sim;
LXIV. Recolhidos já todos no convés, renderam prostrados de joelhos as graças à Soberana Mãe de Deus obsequiosos, e gratos: o Piloto porém, e os mariantes mais destros, que entre o açoite das ondas, e fúria dos ventos, tinham aprendido a infedelidade destes dois elementos, não saíam do desmaio.
Julgavam, que uma tal embarcação, sem mastros, sem velas, sem exarcia, no meio de uma tormenta, e na paragem mais tormentosa do Oceano, seria em breve espaço comida do mar.
LXV. Assim flutuava o discurso com reflexão tão triste, afogadas já as esperanças de remédio; quando apareceu ao longe uma nau, que pudera chamar-se Santelmo, a não esmorecer em flor esta luz; porque a nau, que ia correndo com a mesma tormenta, fugiu-lhe dos olhos, e com ela o dia, ficando o desmantelado báxel no horror da noite, e da morte, balanceando sobre as ondas á mercê do mar, e do vento.
LXVI. O Padre ANTÓNIO VIEIRA porém,
Assim o mostrou o Céu, ordenando, que a mesma nau se fizesse naquela noite em outra volta, e direitamente viesse topar com o errante lenho, de quem de dia não tinha dado vista, por estar raso com o mar; e muito menos o poderia ver de noite, se milagrosamente se não viesse atravessar nele.
LXVII. Esta foi a prancha, que Deus lhes lançou, em que pondo o pé seguro pudessem salvar-se.
Era o navio um pirata Holandês, que cruzava aqueles mares engolfado em seus insultos; e sendo escândalo de roubos, serviu agora de instrumento à Providência para o resgate de tantas vidas.
Gritaram os naufragantes, ouviram os brados os do navio, e pairando para reconhecer o que era, achou desta vez a miséria humanidade nas feras, brandura nos penhascos.
Recebidos todos dentro naquela baleia, como Jonas, reconheceram cheios de assombro, mas já com mais desafogado ânimo, os poderes de Deus, e da Soberana Mãe de Misericórdia.
Ficou o destroçado navio presa dos Hereges, depois de o ter sido das ondas, passando de uma voracidade a outra; e como dos passageiros não tinham mais que tirar, como peso
Aqui se fez publicamente acção de graças pelo milagre na Igreja do Santo Cristo, sendo cada passageiro um pregão vivo do poder Divino, então ao agradecimento, hoje nestes escritos à memória.
LXVIII. Quarenta e uma pessoas vinham nesta embarcação: entre elas quatro Religiosos do Carmo, e uns, e outros totalmente roubados, e destituídos de tudo; acompanhando a tantas vidas um continuado infortúnio, ou sucedendo a um naufrágio outro naufrágio.
Neste desamparo acudiu a ardente caridade do Padre ANTÓNIO VIEIRA, Varão, a quem esta História se não cansa de chamar heróico; coração verdadeiramente maior, que o Mundo, a quem nenhum perigo acovardava, nem adversidade oprimia.
Sendo tanto o número da gente, com o grande crédito, que em toda a parte tinha a fama de seu nome, a todos acudiu.
Aos quatro Religiosos deu hábito, e toda a roupa interior: a todos os mais camisas, sapatos, meias, e outras peças de vestidos, de que necessitavam.
Escolheu dois homens de respeito; um entre os mariantes, outro entre os passageiros, aos quais entregava dinheiro sem limite, para que nada faltasse a toda aquela esquadra; durando este dispêndio na Ilha Graciosa por espaço de dois meses, e depois na Ilha Terceira, à qual passaram todos:
LXIX. Socorridos assim os companheiros de sua fortuna, restava resgatar as preciosas jóias de seus papéis, e livros, que levavam tomados na presa os inimigos; memórias temos da mesma letra de VIEIRA, em que desde a Ilha Graciosa dá ordem, e manda créditos, para que um Jerónimo Nunes da Costa dê quanto for necessário para virem de Amsterdã resgatados os tais papéis; pondo neste negócio tal eficácia, que ordenava se mandasse alguém a Holanda, sendo preciso, para a restauração de tudo, e que só se fiasse a entrega das fragatas do comboio.
Tanta era a perda, e tantos os quilates daqueles escritos.
LXX. Da Ilha Graciosa passou à Terceira, e desta à de São Miguel, como se quisesse a Providência ir mostrando àqueles retalhos de terra espalhados pelo Oceano, como portento, homem tão raro.
Por todas estas terras, e mares foi ele semeando ardentes chamas na devação, e culto da Rainha do Céu, vendo-se naquelas Ilhas um novo incêndio, que podia ser reparo contra o subterrâneo, em que ardem; e ouvindo-se novas vozes, que podiam fazer parar atónitos os montes na fúria dos seus costumados terremotos.
Na Ilha Graciosa deixou plantada o seu zelo a devação pública do Terço do
Na Terceira a introduziu com tanto fogo, que em três Igrejas diferentes se começou logo a rezar, sendo os primeiros mestres desta Capela os moços do mesmo navio perdido, chamados, e premiados para isso pelo fervor de pessoas, que tomavam à sua conta tão piedoso exercício.
LXXI. A Ilha de São Miguel teve nesta passagem maior fortuna.
uviu no seu púlpito a este Divino Orador, como Creta, e Malta ao Grande Paulo, Mestre do Mundo, e Pregador das gentes.
Darei da ocasião abreviada notícia, qual pode alcançar de testemunha de vista a nossa diligência.
LXXII. Por voto, que tinha feito em uma doença mortal á Seráfica Madre Santa Teresa, lhe celebrava todos os anos festa João de Souza Pacheco, cuja ascendência nobre ditosamente se ilustrou, casando depois com
Fazia-se esta solenidade no Convento de Santo André de Religiosas de Santa Clara, agora, não sei porque circunstância, se fez na Igreja do Colégio da Companhia.
Achava-se nele o Padre ANTÓNIO VIEIRA, cuja portentosa eloquência cansava
Pediu-lhe João de Souza Pacheco com a mais respeitosa eficácia quisesse aparecer no púlpito, dizendo com todas as línguas da fama, que poucas palavras suas formariam da Seráfica Madre o mais alto elogio, do seu voto o melhor complemento: que toda a Cidade, e toda a Ilha se abalava para ouvir um Missionário, que por baixo das ondas vinha buscar remédio para as almas: que de ouvir da sua boca o Evangelho: que agora cresceriam aqueles montes, e seriam cultas aquelas praias, quando por elas se ouvisse repetido o eco de suas vozes: que queria deixar aos herdeiros de sua casa a glória, de que a seus rogos pregara naquele púlpito o Padre ANTÓNIO VIEIRA.
LXXIII. Preso de tanta urbanidade um coração, em quem tinha augusto trono a benevolência, a gratidão centro, não pode negar-se o trabalho.
Correu fama, só pareceu vagaroso o tempo; porque os dias pareceram tardos à expectação dos desejos de ver, e ouvir aquele Oráculo peregrino.
Chegou enfim a hora, pôs-se no púlpito o Grande VIEIRA, como se disséssemos no seu
LXXIV. Disse com tanta elegância, e sublimidade de conceitos, falou tão ponderosa, e Apostolicamente; ajuntou tão divinamente
Os eruditos, que o lêem, terão por curto este juízo, por longa esta narração, quando bastava dizer, que pregara VIEIRA.
LXXV. Concluída de manhã com aplauso nunca ali ouvido a solenidade, seguiu-se de tarde outra.
Saiu a fazer doutrina na Sé daquela Cidade o Padre ANTÓNIO VIEIRA: iam em procissão as classes dos meninos; adiante o Padre Pedro Barrozo tocando a campainha, e atrás de todos com a cana da santa doutrina o Apostólico Missionário: o povo em multidão confusa concorreu sem número, sendo estreitos os limites de um Templo a levar gente, que enchia uma Cidade.
LXXVI. Aqui posto no seu lugar, feita toda ouvidos a ansiosa turba, começou-se o acto.
Então o heróico Pregoeiro do Céu, entre os elementos, que pertenciam aos meninos, foi com ardente espírito largando divinos, e sólidos documentos para a reforma dos costumes: e como o seu intento era introduzir naquele povo a devoção da Mãe de Deus, soltou por fim neste ponto toda aquela sua nativa eloquência, e envoltas as vozes em chamas, de tal sorte acendeu os corações, que as mesmas ondas,
Ficou enfim plantada na Capela de Nossa Senhora do Rosário a devação pública do Terço: padrão perpétuo, que levantou à Rainha dos Céus o Grande VIEIRA; multiplicando em tantas vozes a memória do benefício, que desejava, e não podia gravar na soberba do fluído Oceano,
LXXVII. Deixadas estas faíscas do seu fogo, e chegados os
Metido no Oceano, como se o esperasse no campo para outra vez assaltá-lo aquele bravo elemento, saiu contra ele com represadas fúrias.
Talvez temiam os espíritos malignos a guerra, que lhe havia de fazer aquela vida; e como não puderam afogá-la no primeiro naufrágio, intentaram o segundo.
LXXVIII. Desenfrearam-se os ventos, engrossaram-se as ondas, e trocadas em montanhas contendiam, qual delas havia de ser a vitoriosa: assim cerravam umas com outras, e assim reforçadas se lançavam ao navio, que batido por todos os lados, e feito ludibrio de ventos, e mares, a cada assopro se temia virado, a cada onda engolido.
Aqui se viu aquela variedade de efeitos, que depois doutrinalmente
Os Hereges, como gente sem fé, preza a vela, tratavam de comer alegremente, sem temer o que deviam: os Católicos, como quem cria na outra vida, repetidamente se confessavam para morrer.
Os músicos pássaros, que daquelas Ilhas se trazem, como irracionais, ao som, que fazia pelas cordas da nau o vento, desfaziam-se em cantar; quase tão brutos os primeiros, como os últimos.
LXXIX. Como a Divina Providência tinha no Padre ANTÓNIO VIEIRA um forte Soldado, e Ministro de seu Evangelho, não permitiu, que em tantas tormentas acabasse uma vida, de quem pendiam tantos milhares de almas; por isso apesar dos bramidos, e fúrias do nunca domado Oceano, de suas tempestades sempre espantosas, e medonhas, e por entre mil inimigos, e contrariedades, chegou no mês de Novembro, deu fundo no saudoso Tejo, e apareceu outra vez com universal aplauso, e alvoroço na Corte de Lisboa.
Deixara ele a pátria o viu dentro de si, tendo ainda mal enxutas as lágrimas da sua falta, rompeu em igual alegria à dor, e saudades, com que o perdera.
LXXX. Achava-se neste tempo no retiro de Salvaterra gravemente enfermo o Augustíssimo Rei Dom João
Obedeceu sem demora o Padre VIEIRA, e achou com íntimo sentimento seu ao Augustíssimo Rei por juízo dos Médicos com poucas esperanças de vida, e a Augustíssima Rainha em profunda dor.
Todo o Grande VIEIRA foi aqui preciso; e os espíritos do seu coração, que tanta alma deram em outro tempo às empresas do seu Rei, agora com sua presença o alentaram naqueles desmaios últimos, em que com aquela vida precisa recair, e sepultar-se a Monarquia toda.
LXXXI. Não quis por então o alto conselho de Deus deixar sem Pai em anos tão tenros ao Reino de Portugal, pois contava só catorze de restaurado.
Fez termo a doença, e apenas se conheceu dissipado o mal, renderam-se a Deus as graças, pregando naquele repentino aplauso o Padre ANTÓNIO VIEIRA com aquelas elevadas luzes, a que só alcançava o seu discurso.
Convalescido aquele incomparável Príncipe, alentaram-se de novo os corações dos vassalos, reverdeceram as esperanças, e tornaram aquelas Reais mãos com a antiga felicidade ao leme do governo.
Foi um dos primeiros empregos ouvir a grande causa, que arrancara das suas Missões a um tal Pregoeiro do Evangelho; e concedida com grata atenção particular audiência,
Declamou altamente pelos seus Índios; e o zelo Apostólico da salvação de tantos milhares de almas, que à vista da sua perda o tinha profundamente ferido, o fez falar mais chamas, que palavras.
LXXXII. Expôs como por seguir a Divina inspiração deixara a pátria; pelo Maranhão Lisboa, pelas brenhas a Corte.
Disse, que a esperança de converter infiéis, e sujeitar novos Mundos à Igreja, o obrigara a lançar-se outra vez ao formidável Oceano, não temendo nele a morte, onde tantas vezes a vira, nem entre os Tapuias, onde a desejava: que pelo amor de Deus deixara o amor de um Rei tal, o favor de uma Rainha, e de um Príncipe, que no Mundo não tinham iguais; e que fora experimentar, e ver entre Portugueses, perseguida a pregação da Fé, desprezados os Missionários, quebradas as Leis Divinas, e atropeladas, e ultrajadas as humanas: que quando se dedicara à pregação da Gentilidade, fora crendo, que às portas daqueles Sertões imensos tinha Portugueses, que lhas abrissem, mas achara bárbaros nascidos em Portugal, que lhas fechassem: que voltando das campanhas de Cristo desejava mostrar as feridas, que por sua Fé recebera; mas que não lhas abrindo os Bárbaros no corpo, os Cristãos lhas fizeram na alma, de que a Deus tomava
Que Sua Majestade podia ali fundar um Estado vastíssimo, e ter vassalos a milhares; mas que a cobiça, cativando injustamente a um, afugentava mil, morrendo estes na sua Gentilidade, e vivendo o pobre cativo pouco menos que Gentio, sem Sacramentos, sem doutrina, e depois de morto sem sepultura: que o título, porque os Reis de Portugal possuíam aquelas regiões, era para propagar nelas a Fé, o conhecimento de Cristo, e estender os limites à Igreja Católica; e que ele em nome daquelas vastíssimas terras vinha a propor a Sua Majestade esta tão apertada obrigação de justiça: que fosse servido acudir àquelas almas, que em cardumes podiam vir às redes da Igreja, se os Portugueses, que ali viviam, as não espantassem, e ainda tiranizassem com desonra da Fé, e escândalo do Mundo.
Que ali havia um pecado original, que era o cativar Índios; e que Sua Majestade devia acudir a tantas misérias; nem lhe seria novo o ofício de Redentor: que as entradas, que faziam os poderosos ao Sertão, eram só para cativar sem justa causa os miseráveis corpos, e não para lhe converterem as almas; e fazendo sempre os Reis de Portugal mais caso de almas sujeitas à Igreja, que de domínios à Coroa, naquela parte da América, Igreja, e Coroa, ambas perdiam.
Que assim como o amor das almas daquelas cegas Nações o arrancaram de Portugal, assim agora a sua necessidade, opressão, e
Enfim, que era preciso refrear com novas Leis a insolência, a cobiça, a desumanidade: que só assim teriam os Missionários livre o campo, a Fé triunfos, o Reino vassalos, e todas aquelas imensas Nações reconheceriam Pai, a quem os protegia com o poder de Rei.
Assim falou aquele Demóstenes Português, e não temos por improvável seria ainda maior nesta ocasião a eloquência dos olhos.
LXXXIII. Comoveu esta poderosa voz, o coração, os afectos, e a piedade Real daquele Augusto Príncipe, sempre avaliador justo do alto entendimento de VIEIRA, agora muito mais de seu Apostólico zelo.
Qual fosse o efeito, e os despachos deste forte memorial da justiça, e da Fé, a seu tempo o referirá a História: agora diremos, o que obrou o Padre VIEIRA nos meses, que como peregrino se demorou na pátria.
LXXXIV. Como Lisboa se viu de posse do seu Orador, e soavam ainda na Real Capela os antigos ecos da eloquência de VIEIRA, cresceu no Palácio, e em toda aquela grande Cidade, a ânsia de ouvir ao seu incomparável
Logo na Dominga da Sexagésima (que então foi a
LXXXV. Deram-se alguns Pregadores por ofendidos daquela sábia, e inocente voz; e como se um portentoso Orador, como era VIEIRA, não pudesse dar voto na selecção dos estilos de pregar, (ponto, em que se tocou no Sermão) saiu em breves dias, e se ouviu contra ele naquele mesmo Real teatro um infeliz Orador, a quem seguiram outros por toda aquela Quaresma em diversos lugares, com escândalos dos púlpitos, da caridade, e da razão.
Toda esta tempestade de desenfreados ventos não tirou da boca deste grande homem uma só queixa, como quem vivia em esfera mais alta, ou como robusta árvore, a quem nem descompõe os ramos, nem rouba qualquer tormenta uma só folha.
LXXXVI. Seguiu-se a primeira Dominga da Quaresma, em que segunda vez havia de pregar.
Concorreu à Capela Real de todas as hierarquias da Corte gente sem número: era estreito
LXXXVII. Como a Dominga era, a chamada das Tentações, o zelo das almas ardentíssimo, empenhou-se o forte, e eloquentíssimo Orador em mostrar ao auditório a nobreza, e alto preço de uma alma.
O peso das razões, os argumentos, os meios, os inventos, as semelhanças, as eficácias, de que usou, foram, e são o esforço último, a que podia chegar um engenho humano, e o mais abrasado coração de qualquer Varão Apostólico.
Como tinha vindo a representar, como dissemos, ao Augustíssimo Rei, e a implorar o remédio para a Gentilidade dos miseráveis, e desamparados Índios, foi tal o fogo, com que declamou, que (atónito, e assombrado o auditório) rompeu a concluir o Sermão neste vivo apóstrofe, voltando-se já para Deus, já para ElRei alternadamente.
LXXXVIII. Senhor, estas almas (falava então particularmente dos Índios) não são todas remidas com o vosso sangue?
Senhor, estas almas não são todas remidas com o sangue de Cristo?
Senhor, a conversão destas almas não a entregastes aos Reis, e Reino de Portugal?
Senhor, estas almas não estão encarregadas por Deus a Vossa Magestade com o Reino?
Senhor, será bem, que estas almas se percam, e vão ao Inferno contra o vosso desejo?
Senhor, será bem, que aquelas almas se
Não o espero eu assim de Vossa Majestade Divina, nem da humana.
Já que há tantos expedientes para os negócios do Mundo, haja também um expediente para os negócios das almas; pois valem mais que o Mundo.
LXXXIX. Nisto rompia o abrasado incêndio, em que ardia VIEIRA: e ainda que estas notícias se lêem nos livros impressos deste raro Varão, não pudemos omitir aqui estas luzes, para com elas se matizar sua mesma História, e molhar-se em resplendores nossa pena.
LXL. Na quarta, e quinta Dominga, subiu o nosso Orador ao mesmo teatro, não se satisfazendo nunca os Augustíssimos Reis, nem toda a famosíssima Lisboa, de ver, e ouvir no púlpito a um Crisóstomo Português, ou a um Paulo, Mestre das gentes, e Clarim da Fé.
Tinha o Padre ANTÓNIO VIEIRA fugido da Corte a primeira vez, e só para remédio, e em favor dos Índios voltado a ela: agora dispunha segunda vez partir-se, e dar repetido Vale às estimações do Mundo, como quem tanto o conhecia.
Era isto sabido na Corte.
Posto pois no púlpito, e aproveitando-se, como sapientíssimo Orador, das circunstâncias de tempo, lugar, e ouvintes, e do que lhe oferecia o Evangelho daquele dia, em que Cristo segunda vez fugira das turbas para o monte, foi o seu Tema aquele Divino texto propríssimo do seu caso: Fugit iterum in montem ipse solus
, e com igual
LXLI. Disse tão erudita, sólida, e esquisitamente: disse com tantas luzes de discrição, lição de Padres, histórias sagradas, e documentos ascéticos: disse, e intimou com tanta energia, quanto importava fugir dos homens, e do trato do Mundo, que ao mesmo passo, que mostrou aos homens o desengano profundo, que tinha na alma, encheu aos ouvintes de dor, e de saudades; vendo que tão depressa haviam de perder um Varão incomparável, que o mesmo discurso, com que provava, e se resolvia a fugir do trato dos homens, obrigava aos mesmos homens a se prenderem a ele.
LXLII. Não foi menor no Domingo seguinte o fervor de espírito, com que no mesmo Real sítio declamou contra a crença daqueles, que não ajustam as obras com a Fé; e provando-lhes, que a tinham morta, lha quis ressuscitar, introduzindo-lhes vital; calor com todo o fogo do zelo, que lhe ardia dentro no peito.
Pregou sem dúvida com Apostólica liberdade tantas verdades à Corte, que só lida aquela famosíssima Oração, parecem nela vozes as letras, trovões as palavras, raios as sentenças, e invectivas.
Aos Reis, aos Grandes, à numerosíssima turba, igualmente convenceu os entendimentos, e rendeu as vontades; admirando cada vez mais as gentes a portentosa sabedoria, e talentos, de que Deus enriquecera aquela alma
Com o mesmo aplauso, e assombro foi ouvido em outras muitas ocasiões, e lugares, enquanto não chegou o tempo de dar à vela para o seu querido Maranhão.
LXLIII. Entre estas fadigas da Corte levava-lhe toda a alma o aumento da Missão.
Procurava com todos os alentos prostrar por terra à força da verdade os inimigos da liberdade dos seus Índios.
Viu no Maranhão contra esta causa tanto de Deus armada contra Deus a cobiça, a ambição, e a impiedade dos homens; e estes mesmos inimigos achava em Lisboa nos subornos, nas dádivas, nas mentiras.
Pôs-se o valoroso Antagonista em campo, e como a força do seu espírito, e da verdade tinha fácil a entrada com o seu Soberano, e nos Tribunais, a que pertencia a qualidade dos seus requerimentos, (suposto que de alguns Ministros padeceu contradições) investigou os meios mais eficazes, que lhe ditou o zelo, para que se aplicassem os remédios à perda de tantas almas, que em cardumes caiam no Inferno por tirania, dos que naquela conquista pisavam Leis Divinas, e humanas.
LXLIV. Mandou a Cidade do Pará seu Procurador, e mandou o seu a de São Luiz do Maranhão: dois teatros, em que se viam cativas liberdades, e mais cativos, os que se chamavam senhores.
Alegaram, e foram vistas suas razões; mais o Grande VIEIRA mais valoroso, que Hércules contra dois, pelejava armado de
LXLV. Veio de Coimbra o Doutor Marçal Casado, Lente de Prima de Leis.
Veio também o Lente de Prima de Cânones, e a não estar impedido, viria também o Reverendo Padre Frei Luiz de Sá, Doutor, e Lente de Prima de Teologia; mas em seu lugar foi chamado o Padre Doutor Miguel Tinoco da Companhia de JESUS, sujeito grande, que leu na Universidade de Évora as ciências todas, até concluir com Magistério da Cadeira de Prima.
Achou-se também aqui o Abade de Cedofeita, que era Confessor, e Mestre dos Príncipes.
Assistiu também Pantaleão Rodrigues Pacheco, Presidente do Conselho geral da Inquisição, Doutor em Cânones, e nomeado depois Bispo de Elvas.
Presidiu a todos o Duque de Aveiro, que naquele tempo era Presidente do Paço.
LXLVI. A esta escolhida Junta de sábios, de cuja resolução seria temeridade julgar desacertos, propôs o Padre ANTÓNIO VIEIRA a matéria da liberdade dos Índios, e rogou a todos, que pesado maduramente, o que alegavam os Procuradores do Maranhão, e Pará, decidissem o que, salva Indorum libertate, fosse mais favorável aos Portugueses.
Mas procedia
LXLVII. Com esta decisão, em que choveu luz sobre a ignorância, e fogo sobre a malícia, aquele concurso de benéficos Astros, triunfante o zelosíssimo VIEIRA, foi continuando na expedição, e mais dependências da sua amada Missão, por quem suspirava.
LXLVIII. E para que acabemos com estas batalhas de entendimento nas Juntas, onde se busca o acerto, e aparecem as luzes da razão, e verdade, fez que se convocassem a um congresso os Provinciais dos Religiosos, que tem Conventos naquela conquista, para que à vista do que se decidia no juízo dos maiores Letrados do Reino sobre a liberdade dos Índios, ordenassem a seus súditos as opiniões, que deviam seguir, e executassem à risca as ordens Reais.
Desta sorte anelava o Padre ANTÓNIO VIEIRA pela união, e conformidade dos entendimentos, e das vontades nos Ministros do Evangelho; sendo até então a oposição, e contrariedade dos Eclesiásticos entre si a total ruína das almas dos Índios, e dos Portugueses.
LXLIX. Não descansava ainda com tantas
Via para o expediente temporal, e bom governo da República, tantos Tribunais, Conselhos, Mesas, e Juntas, cada uma com seu privativo emprego para as conveniências da vida, e para a polícia, e civil direcção das gentes: e sugeriu, e conseguiu do imortal, e Augusto Rei Dom João
C . Deu com seu conselho os primeiros passos esta ideia: nomearam-se por Deputados alguns Senhores, e outras pessoas Religiosas, e graves, e com todos estes se instituiu na Casa professa da Companhia de JESUS de Lisboa a Junta das Missões, ou propagação da Fé, debaixo da protecção de São Francisco Xavier.
Mudou depois de lugar este congresso, tirando-se do seu natural berço, por não haver, quem pesasse este ponto de glória, e reclamasse pelo direito de ser solar de um tal conflado de Heróis aquela Casa, que nasceu com Estrela predominante em Missões no seu primeiro Propósito o ilustre Padre Gonçalo da Silveira, valoroso Mártir de Cristo, e ínclito resplendor da Fidalguia Portuguesa nos Excelentíssimos Condes da Sortelha.
Bem podemos dizer nestes descuidos, que mais prudentes são os filhos do século, que os da luz.
CI. A se formar com ordinária, e perfeita autoridade, e jurisdição este Tribunal, seria um abreviado, e presentâneo expediente, em que teriam refúgio os Missionários, freio suas injúrias, o zelo, e a Fé protecção.
Assim se congratulava desde o Maranhão, escrevendo a certo Ministro o Padre VIEIRA, porque considerava na nova Junta estável, e eficaz poder para este fim; mas não sabemos, que dela possam dimanar decretos de tanto vigor, cuja força rebata culpados, influa ânimo, e alentos aos zelosos.
CII. Com estes desvelos sobre o bem das almas da conquista, donde viera, esperava o Padre VIEIRA do seu Monarca o remédio de tantos males, e que o Cetro Português se estendesse dominante, e forte; contra os rebeldes freio, e para os perseguidos amparo.
O Augustíssimo Rei (que tinha ouvido declamar a eloquência toda no seu estimadíssimo VIEIRA, como dissemos) com aquele zelo, que lhe ardia nas veias, e em quem a púrpura, que o buscara, oferecendo-lhe o Império, achara já outra no sangue verdadeiramente Real, despachou a um tal Ministro do Evangelho, como pedia.
CIII. Mandou à vista das exorbitantes injustiças, e violências feitas aos Índios, que todas as aldeias dos mesmos naquele Estado fossem governadas, e estivessem debaixo da disciplina dos Religiosos da Companhia; e que o Padre
CIV. Mandou que no cativeiro dos Índios se seguisse inviolavelmente o parecer, e opinião, em que assentara toda aquela ilustre, e sábia Junta dos Letrados, que mandara para esta decisão convocar.
Não podemos porém calar aqui os homens degenerados em monstros, com quem iam lutar naquelas praias as Leis, a justiça, e a razão; houve naquelas quatro palhoças, trevas tão espessas, que resistiram, ou zombaram de tanta luz.
Um dos Procuradores daquele povo, que assistiu nas Juntas, que consentiu, e que aprovou as novas Leis, em chegando ao Maranhão, foi a causa principal dos rompimentos, a que depois se arrojou a rebeldia, a impiedade, e a fereza.
CV. Mandou apertadamente aos Governadores, e mais Ministros, dessem toda a defensa e favor aos Missionários, para que tivessem livre o campo para a propagação do Evangelho; facilitando tudo o necessário à conversão daquelas almas, que querendo vir à Fé, as tiranias passadas as tinham afugentadas, e remontadas da Igreja.
CVI. Mandou contra as violências, que se faziam aos Índios Gentios do Sertão, que os Missionários tivessem um voto nos exames dos
Com a mesma compaixão, e piedade Real para com os Índios Cristãos das aldeias, com quem era o trato desumano, e as injustiças, mandou o Augusto Rei, que ninguém se atrevesse a constrangê- los a servir, mais que seis meses cada ano, e estes meses alternados de dois em dois: que se lhes pagasse duas varas de pano de algodão por cada mês: e que nas aldeias se não pusessem Capitães; mas fossem ali governados pelos Principais das suas Nações juntamente com os seus Párocos.
CVII. Armado com estes, e outros despachos, que contra a tirania, e ignorância alcançou na Corte o Grande VIEIRA, chegou o tempo de se aprestar para a partida.
Muitos da Companhia, a Corte, e sobre todos as Majestades Augustas delRei, e Rainha, mostravam sentimento nesta resolução: mas o abrasado Missionário, negando os ouvidos às Sereias, e dando ambos aos brados dos seus Índios, tratava de ajuntar companheiros à sua empresa; não sabendo já, quando levantasse âncoras do Tejo, e cortasse outra vez ousado as ondas do soberbo Oceano.
CVIII. Assim andava solícito, e engolfado nestes importantes cuidados, quando se lhe explicou declaradamente a guerra; porque o Soberano Rei, que com alto entendimento, e
CIX. Celebrava-se naqueles dias na Casa Professa de São Roque a Congregação trienal, que não havendo impedimentos relevantes, se convoca nos tais anos para negócios, e bom governo desta República Sagrada.
Ajuntam-se nela todos os Reitores dos Colégios desta Província com os mais antigos Professos, e formam todos o número de quarenta.
A esta Junta mandou o Augusto Monarca, que se propusesse, e ela resolvesse, se era, ou não conveniente deixar ir para o Maranhão, ou ficar na Corte, o Padre ANTÓNIO VIEIRA?
Ainda restava a este coração forte um tal exército, por onde romper.
Até agora o vimos requerer Juntas para a liberdade dos Índios, agora vemos outra Junta, que ventila, e lhe põe em questão a sua.
CX. Convocaram-se os Vogais, e juntos todos no lugar destinado, sabendo o Padre VIEIRA ser ele a matéria da consulta, não lhe
Pediu licença para entrar ali, e antes dos votos falar.
Se algum dia se viu VIEIRA ser mais que Túlio, e Demóstenes, foi então.
A mesma eloquência, se se revestira de todas as figuras, seria feiamente balbuciante, e todo o fogo dos Oradores frio.
Falou com aquela sua nativa, e predominante intimativa, de que Deus com o esforço da sua Omnipotência o dotara; e disse não com palavras, mas com chamas.
CXI. Que ele perante aqueles gravíssimos, e Religiosíssimos Padres abertamente declarava, e protestava ser chamado por Deus para aquela Missão, donde viera, e que os homens se lhe opunham: que inclinar à vontade humana, e muito mais à de um Rei, sempre ficava suspeitoso, ou de ambição, ou de lisonja; vícios tão alheios de um coração livre, como próprios de um covarde.
Que soubessem estar toda a Companhia atenta à decisão de seus juízos; e que conforme aquela, se formaria o conceito destes, ficando desta vez, ou na veneração, ou na censura.
Que o voto, que fizera nos primeiros anos de viver, e morrer entre os Índios, fora uma particular inspiração do Céu: que dado, que estivesse irritado pelos Superiores, sempre lhe ficara viva aquela chama, a qual não devia agora morrer às mãos da Companhia de JESUS, que tanto professa estas empresas.
Que estes brados lhe
Que vissem, que esta resolução não nascia de se ver perseguido das invejas dos homens; porque estas, ou se viam já instintas, ou envergonhadas.
Que ao presente corriam para ele na Corte ventos favónios, e que rejeitar estas venturas, era força manifesta de outras inspirações mais altas.
Que o modo estranho, com que a primeira vez fugira, bem denotava ser vontade de outro Príncipe, que tem por vassalos todos os Reis do Mundo.
Que olhassem para as consequências da sua ficada em Portugal, que não podiam ser mais ponderosas.
CXII. Que dirão (e aqui se acendeu em maior fogo) que dirão, os que eu alentei, e levei ao Maranhão, vendo que os meti no trabalho e que me recolho ao descanso?
Que dirão aqueles, a quem fiz trocar a pátria pelas brenhas, se eu os deixo nas brenhas, e fico na pátria?
Que dirão os Índios, que me tem por seu escudo, a quem disse, que vinha buscar seu remédio, sabendo que me fico na Corte, e lhes falto à palavra dada, de que muito cedo estaria com eles?
Oh como se carpirão desconsolados, e se terão por homens no extremo infelizes!
Oh como talvez os já convertidos (como gente tão inconstante) largarão a Fé, e se voltarão para os matos, levando por todas aquelas imensas Nações
Não falo nas muitas almas, que este indigno instrumento poderá converter à Fé.
Pesa isto, ou não pesa?
Não falo no exemplo, que deste meu desengano, de deixar tudo por salvar almas, poderão tomar, os que hoje se estão criando nos Noviciados, e crescendo nos Colégios?
Tem, ou não tem vigor esta reflexão?
Não falo do que motejará do meu retiro a gente do Maranhão, e Pará: nem no que os mal afectos da Corte hão de morder.
É bem, que leve a Companhia entre muitas outras estas afrontas?
O juízo, o zelo das almas, o amor às empresas de nossa Companhia, e sobre tudo isto, a luz do Espírito Santo inspire a uma tão santa, e Religiosa Junta, o que for mais acertado à maior glória do Altíssimo.
Disse, e saiu do congresso.
CXIII. Ouvido o eloquentíssimo, e Apostólico Varão, correu entre os assistentes um surdo murmurinho, admirando uns o fogo do dizer, outros o peso das razões, todos o espírito.
Presidia ali o Padre Bento de Sequeira, então Provincial; e vendo alguns dos Padres mais graves a resolução, com que homem tão grande metia debaixo dos pés o Mundo; e que saindo da Corte perdia nele a Companhia um imortal lustre, postos de joelhos diante do Provincial, e desfeitos em lágrimas, se ofereceram a ir para o Maranhão em lugar do Padre VIEIRA, com tanto que o não deixassem sair de Lisboa.
Mas o Provincial, não menos
CXIV. Correu o escrutínio, e examinados logo os votos, achou, que a maior parte dos Vogais convinha em ser de maior proveito das almas, e glória de Deus, deixar partir o fervoroso Missionário, do que detê-lo; e que o privar-se dele por esta causa a Companhia, era sacrifício, pelo qual merecia a Deus em novos filhos novo ornamento; e em sujeitos esclarecidos, que lhe traria a Providência, novo esplendor, como tantas vezes, pelos que tinha dado ao Oriente, se tinha experimentado.
CXV. Ouvida pelo Augustíssimo Rei a decisão desta doméstica Junta, entendeu, que devia ceder ao Céu, e que Deus queria servir-se de um tal Missionário, ou de um tal Ministro do Evangelho naquela vastíssima seara.
Quebrado pois este obstáculo, e desembaraçada a campanha, ficou senhor de si aquele generoso coração de VIEIRA.
Deu ao Céu graças pela vitória; e não omitia ponto, nem diligência para a expedição da sua partida.
CXVI. Os contrários, com quem batalhou nesta sua vinda a Portugal, foram muitos, a quem moviam juízos encontrados, afectos diferentes.
A uns levava-os, ou a prudência, ou a política humana: a outros arrastava-os, ou a emulação, ou a cobiça, cedendo tudo em ruína espiritual dos Portugueses, e estrago dos Índios.
Diremos por força da verdade, que achou oposição em grandes Ministros, nos Donatários das Capitanias, nos Senhores das terras, nos pretendentes, nos mercadores, e em todos os interessados no Maranhão, e Pará: batalhando neste conflito o poder, a valia, a cobiça, e a impiedade, reforçada, e revestida da sempre vencedora escolta dos subornos.
Sendo tão fortes estes contrários, não necessitava aquela mísera gente de menor defensor, que de um gigante, qual era o incomparável, e animoso VIEIRA; tão zeloso em buscar Gentios nas brenhas, como em lhes defender a liberdade contra outros gigantes na Corte.
CXVII. Não pôde nesta ocasião conseguir para os companheiros de sua fortuna gloriosa mais que dois sujeitos, quando com toda a ânsia suspirava por muitos.
Bem pudera haver então maior número de Apostólicos aventureiros, pois entre os perigos levavam consigo a César; mas nestas empresas os alfanges, e fogueiras dos tiranos excitam aos Missionários a buscá-las com intrépido coração: quando porém há Cristãos, que lhes impedem (com lhes afugentar os Gentios) o salvar almas, ou conseguir gloriosa morte na conquista delas, detém
Nem calaremos aqui em comprovação desta verdade, que não faltou, quem dissesse, que o Grande Xavier no Oriente se remontara ao Japão, e à China, deixando mais perto imensa Gentilidade, por se ver em terras, onde não houvesse, dos que se chamam Fiéis, quem lhe pusesse tropeços à conversão, como experimentou em nossas conquistas com repetida dor.
CXVIII. Concluídos finalmente todos os negócios, e compostas as coisas pertencentes à Missão, vencidas as tormentas da Corte, mais formidáveis, que as do medonho Oceano, chegou o tempo de se levar do Tejo o nosso Herói.
Estando quase para partir, deixou, e deu o último Vale à pátria escrevendo a Carta seguinte, pregão sonoro de sua sólida virtude, e desengano.
Não sabemos, a quem a escreveu; porque faltando-nos o sobrescrito, não fez menção dentro dela, a quem a dirigia: foi sem dúvida a Padre, a quem devia particular atenção.
Faço esta uma hora antes de me embarcar para o Maranhão; e posto que a juízo de muitos me devia deter mais para bem da mesma Missão, há causas, que me obrigam a não dilatar a viagem, que quero dar a Vossa Reverência para que Vossa Reverência as comunique ao Padre Provincial, e ao Padre Nuno da Cunha, pedindo por mim a benção a Suas RR: e esta é a única carta, que deixo nesta minha partida.
CXIX. A primeira causa é; porque importa muito a minha presença para a aceitação das ordens, que vão de Sua Majestade, e a explicação, e inteligência, e razões delas, de que depende muito o aceitarem-se bem.
Segunda.
Porque sei de certo, que se não for nesta ocasião, não irei depois; porque nesta mesma frota se escrevem várias cartas ao Padre Provincial do Brasil, a que ele é força, que defira, e lhe pedem, que me revogue a licença, que me deu para a Missão.
Terceira.
Porque alguns, que foram comigo para o Maranhão, ficaram muito desconsolados com a minha vinda, e quase duvidosos da vocação; e não faltou, quem me dissesse, e escrevesse, que se eu não tornar, lhe mande licença para se vir.
Quarta.
Porque assim para os de lá, como para os de cá, e para todos, não
Finalmente, segundo posso entender, Deus chamou-me para o Maranhão, e lá espero com mais confiança, que me há de salvar, livre das inquietações, e perturbações da Corte, das quais não pode escapar, senão quem foge dela: espero, que Vossa Reverência aprove estas razões, e que o sucesso as confirme; servindo-se Deus, de que por este meio se consiga, o que tantos estorvos tem tido até agora.
Não passe esta de Vossa Reverência nem dos Padres, a quem peço a Vossa Reverência a ofereça por mim pela razão, que acima digo.
E Vossa Reverência me encomende a Nosso Senhor, que me dê graça, para que acerte a servi-lo.
Lisboa
Servo de Vossa Reverência António Vieira.
Advirta o leitor, que como naqueles anos estava a Província de Portugal dividida em duas, por determinação dos Superiores maiores; uma intitulada Transtagana, outra Lusitana, o Provincial, a quem manda o Padre VIEIRA na sua Carta dar notícia da sua partida, e causas dela, não é o Padre Bento de Sequeira, que presidiu na referida Congregação, e a quem tudo constava; mas o da segunda, que era o Padre
Ainda que as Províncias eram duas, havia muita comunicação entre ambas.
CXX. Levantadas as âncoras do Tejo, e dadas as velas ao vento, saiu, e deixou a pátria com universal edificação, e se engolfou no Oceano o Padre ANTÓNIO VIEIRA, meado Abril.
Foi tão feliz esta segunda viagem, quão trabalhosa tinha sido a primeira.
Depôs desta vez as fúrias aquele elemento bravo, que tantas vezes se lhe atreveu feroz, correndo galernos os ventos, sem que um só instante tocassem as velas os contrários.
Em vinte e cinco dias avistaram terra, e aos trinta e um ferraram o desejado porto em São Luiz do Maranhão.
CXXI. Logo em aportando, e antes de pisar a praia, tiveram os dois Missionários novos, que levou do Reino o Padre VIEIRA, uma enternecida vista, que docemente lhes derreteu o coração.
Referiu-o depois em Carta sua o mesmo Padre VIEIRA formalmente assim: Pareceu muito bem a terra aos dois Missionários, que nos deu esse Santo Colégio; mas muito melhor lhe pareceram os naturais pela simplicidade, e desamparo, em que viram os primeiros.
Eram dois meninos da terra, que estavam pescando no meio do rio: o barco era uma casca de pau, a amarra um vime grosso, a fateixa uma pedra; eles estavam nus, e com uma inocência contente, como se conheceram a riqueza do seu estado.
Fez tanto abalo a vista nos Missionários Reinóes, que não puderam ter
CXXII. Quanto que da terra se reconheceu a embarcação, e se soube ser chegado outra vez ao Maranhão o Grande, e suspirado Padre VIEIRA, correram logo a buscá-lo às praias desvelados aqueles antigos companheiros.
Chegaram a ele, e o tomá-lo nos braços era receber espíritos novos; infundindo aquele grande homem em tão saudosos, e fiéis corações com novos alentos alma nova.
CXXIII. Vieram depois os oficiais da Câmara em corpo de Senado a congratular-se com ele na felicidade da viagem, e a render-lhe as graças pelos bens, que negociara na Corte para aquele povo.
Tão gratas foram como isto as primeiras saudações do Maranhão, trocando-se os ódios antigos em benevolência, e amor.
Em breve porém se mudou a cena, e mudou a fortuna, o que parecia jucundo teatro, em campanha medonha.
Tão leves são os afectos humanos, e tão inconstante o reconciliado inimigo.
CXXIV. Como se começaram a publicar as ordens do novo Regimento delRei, e o valoroso Governador André Vidal de Negreiros as fez executar, pondo com elas freio à cobiça, à tirania, aos insultos, não pode a sede do sangue dos Índios conter-se no lícito, e como a de Tântalo à vista das fontes, e rios, se aumentava.
CXXV. Tomou o Padre ANTÓNIO VIEIRA posse, como o piedosíssimo Rei lhe mandara, de todas as aldeias dos Índios daquela conquista, e com solícita diligência entrou no primeiro, e grande trabalho de repartir pelas precisas estâncias a todos os valorosos Soldados da sua obediência, e o fez pela ordem seguinte.
CXXVI. Na Casa do Maranhão em classe de Latim, ler, e escrever, pôs o Padre
Nas aldeias desta Ilha, que eram seis, em distância de dez léguas, o Padre
Nas aldeias de terra firme, que eram três, em distância de vinte e cinco léguas, o Padre Pedro Pedroza, e o Irmão António Soares.
Nas aldeias de Gurupi, que eram duas, em distância de vinte léguas, o Padre Bento Álvares com o Padre Manoel Pires.
Na Casa, e Missão do Pará o Padre Manoel Nunes, e o Irmão Simão Luiz.
Nas aldeias do Camutá, que eram sete, em distância de quarenta léguas, o Padre Francisco
Nas aldeias do Pará, que eram seis, em distância de cinquenta léguas, o Padre António .... (não lhe traz o sobrenome a notícia, que seguimos) com o Irmão Francisco Lopes.
Nas aldeias da boca do rio das Amazonas, que eram vinte e oito, em distância de cento e cinquenta léguas, o Padre Manoel de Souza com o Irmão Amaro Luiz.
Nas aldeias do Camuci, que eram quatro, cuja distância não pudemos ainda alcançar, o Padre
Na Missão dos Araós, Nheengaíbas, Anajazes, e
CXXVII. Estes são os Filhos de Santo Ignácio, que de dois em dois (como os Discípulos de Cristo) se apostaram a levar por aquela inculta região, e barbaridade cega, os resplendores da doutrina, e da Fé.
Depois pelas ocorrências do tempo teve em parte alguma mudança este sistema.
O espaço desta campanha de Norte a Sul é de mais de quatrocentas léguas por costa: as Cristandades, e aldeias, que nelas se contavam, eram cinquenta e quatro; as almas mais de duzentas mil.
Não se contém nesta resenha com estância determinada, porque queria estar em todas o Capitão, e Cabo de todos, o Padre ANTÓNIO VIEIRA; porque disposto primeiro o seu exército para a parte do Norte; isto é, do Maranhão até o rio das Amazonas, reservava-se para passar ao Sul até a fortaleza do Ceará (que são
CXXVIII. Neste espaço do Sul havia muitas, e populosas aldeias, das quais intentava ir tomar posse, assisti-las, e doutriná-las no tempo possível; e dali com aquele seu agigantado espírito passar ao Brasil, e dar conta de tudo ao seu Provincial, e a pedir-lhe mais segadores para a messe.
Este foi o primeiro destino, e repartição dos companheiros: como porém foi socorrido com novo subsídio, ainda que pequeno, ficaram uns nas estâncias presidiando as aldeias; outros, que estavam aplicados a elas, acometeram intrépidos, e valorosos pelos Sertões dentro a buscar novas almas a Fé, ou a arrebanhar brutos para os converter em homens.
De tudo dará logo oportuna notícia esta História.
CXXIX. Não cessava entretanto o Inferno de jogar as armas contra este pequeno, mas glorioso esquadrão.
Os mais vigorosos contrários, como instrumentos mais opostos a ruína, eram Eclesiásticos, acendendo-lhes a inveja o fogo contra a Companhia de JESUS; porque viam todas as aldeias debaixo só de sua disciplina.
Assim podia queixar-se a Igreja, e a Fé naquele infeliz terreno, que não seus irmãos, mas os filhos de sua Mãe pelejaram contra ela.
CXXX. Cala o decoro, e calará sempre as causas, porque unicamente se entregou então
CXXXI. Nos seculares ardia em fúrias a ambição, e cobiça; porque como pelas novas Leis se lhes lançavam grilhões aos pés, proibindo-lhes as entradas livres ao Sertão, onde a crueldade triunfava licenciosa nos cativeiros injustos; e como aos que podiam mais se lhes lançavam algemas às mãos, coarctando-lhes o mando, do qual abusavam com escândalo da humanidade, e da razão, era para todos intolerável coisa a rectidão, e a justiça, por eles sempre desconhecida.
Por isso mal diziam agora as Leis, e mordiam, como leões presos, e enfurecidos, as suas mesmas cadeias.
CXXXII. Deteve-se por então represada a corrente entre o medo do resoluto Governador André Vidal de Negreiros; e a esperança de conseguirem na Corte mudança daquelas mesmas Leis, que a Majestade delRei com tantas Juntas, e Conselhos, tão santa, e acertadamente acabava de decretar.
Tropeça em seus mesmos intentos a cobiça; nem atende a respeitos soberanos o dissoluto.
Adiante diremos
CXXXIII. Achadas as aldeias, e povoações dos Índios Cristãos, pelas violências da cobiça em grande desordem, padecendo uns a ausência de sua família, por andarem em remotos sítios no trabalho, e lucro das fazendas alheias; padecendo outros geralmente a fome, por não haver, quem fizesse as roças para o sustento, tratou o Grande VIEIRA de acudir a tudo, executando o novo Regimento delRei.
Repartidos os Missionários por determinados distritos, como dissemos, e começando as coisas a tomar novo semblante, pareceu acometer animosamente ao Sertão, e buscar novas almas para o rebanho de Cristo.
CXXXIV. Foi a primeira empresa buscar os Índios Topinambazes: são estes Índios a Nação mais nobre, e valorosa daqueles Sertões, e por isso a mais temida, e respeitada de todas.
Pelo rio dos Tocantins se fez esta entrada, e valoroso acometimento; e começou a ver o Pará, e o Maranhão, quanto mais vencia o zelo das almas, que a mesma cobiça.
Foram
Passaram muitas correntes furiosas, venceram forte, e felizmente grandes despenhadeiros de água, e dificultosos passos: avistaram muitas, e bravas Nações sem dano; fizeram pazes com os Índios Garajús, e Cátingas, até que chegaram aos desejados Topinambazes.
Falaram-lhes, deram-lhes notícia das novas Leis, do melhoramento do trato, que haviam de ter; e que à sombra do governo dos Padres seriam vassalos de um Rei, que os amava, como aos seus Portugueses; e que vivendo entre eles aprenderiam eles, e seus filhos a Lei de Deus, que os criara para os fazer felizes, e gloriosos depois da morte em eterna vida.
CXXXV. Abalaram-se a esta prática, e comoveram-se como homens já dóceis, aqueles até agora silvestres sátiros.
Sem dúvida se renderiam todos a este reclamo do Céu, se o inimigo de suas almas não tivera entre eles um fatal instrumento de sua maldade.
Havia entre os mesmos um Índio, que estivera no Pará: este, como oportuno ministro de Lúcifer, abominou a resolução precipitada dos seus, e a facilidade, com que se iam meter entre gente, de cuja crueldade se queixavam
CXXXVI. Esta infernal voz ia detendo aos Missionários a corrente da vitória: ainda lhes tirou algumas almas das mãos, detendo-se alguns Índios a não sair das suas brenhas, a ou por mais tímidos, ou porque eram aqueles do Evangelho, que sendo chamados para o banquete do Senhor, não quiseram vir.
Rebateram os Padres esta lança infernal, e insistindo no começado, renderam naquele combate à veemência de seu fogo mais de mil Topinambazes: entre eles havia trezentos homens de armas destemidos, e valentes, que para qualquer empresa do Estado podiam ser alma de um exército inteiro.
CXXXVII. Sujeito este numeroso esquadrão, e determinado o dia da partida, arrancaram do seu antigo sítio os Topinambazes, seguindo os dois Capitães, e Embaixadores de Deus.
O trabalho, que estes tiveram na condução da tal gente, já em lhes compor as vontades, e desconfianças, já em fazer fabricar grande número de canoas para o transporte, excede a todo o encarecimento.
A alta Providência de Deus foi tão propícia nesta ditosa empresa, que
CXXXVIII. Vista a terra na Oitava de todos os Santos, não é crível a festa, e gritos, em que romperam alvoroçados os Índios, soltando altas aclamações, a seu modo festivas, a nós bárbaras.
Vinham todos pintados, ou guarnecidos de penas de várias cores, dando de si uma agradável vista, sendo a singeleza dos corações outro maior espectáculo à admiração.
Desta sorte uma frota de sessenta canoas tomaram porto, e saltaram na praia.
Aqui saiu a recebê-los com todo o Pará o Governador, e Capitão Geral André Vidal de Negreiros, Soldado de coração tão valente, e duro para a guerra, como agora com lágrimas enternecido Católico, vendo um rebanho de feras convertido em ovelhas, e submeter o pescoço ao jugo de Cristo a ferocidade.
O Padre ANTÓNIO VIEIRA com excessivas expressões recebeu nos braços aos dois Padres, como a irmãos, como a filhos, e como a heróicos companheiros de sua glória; acariciou com ternura de pai aos Índios, acendendo-lhes estes a sede, com que suspirava reduzir à Igreja toda a Gentilidade daqueles Sertões imensos.
Dividiram-se logo em duas aldeias de sua mesma Nação, onde instruídos pelos Padres, foram em breves meses
CXXXIX. Não foi só esta vitória, a que alcançaram estes dois fortes Missionários nesta investida ao Gentilismo: por todos aqueles bosques foram plantando Palmas, ou cortando Louros, com que a Igreja de Cristo se coroasse.
São os Índios Cátingas Nação de língua geral, e vivem nos Sertões do rio dos Tocantins, a quem muitas vezes fizeram guerra os Portugueses, sem nunca os poder cortar de todo o nosso ferro.
Estes, indo os Padres mais avançados adiante na demanda dos Topinambazes rio acima, deram uma noite de improviso sobre o restante das canoas mais retardadas, temendo-se de alguma invasão inimiga: quando porém entenderam dos Índios, que nelas estavam, que aquela tropa não era de Portugueses, nem de guerra, mas dos Padres Obunás, (assim lhes chamam na sua língua pela cor preta do vestido) e que eles não vinham a cativá-los, mas a dar-lhes o conhecimento do verdadeiro Deus, para depois irem ao Céu, aonde vão os mesmos Padres; de tal sorte lhes conciliou os ânimos, e humanou os afectos a sinceridade desta informação, ou Deus por ela, que os Cátingas foram por muitos dias em seguimento dos Padres, até os alcançarem no mesmo rio: ali com não esperada cortesia, e desmentindo a sua mesma barbaridade, se ofereceram a ser seus filhos, e abraçarem sua doutrina.
Assim mostrava Deus a disposição, em que estava aquela Gentilidade; e que agravo fazia ao
CXL. A consolação, e gosto dos Padres, vendo que em cardumes se lhes metia nas redes a pesca, não cabe em pena.
Assentaram então pazes estes dois Anjos anunciadores da paz com estes Índios (a cujas setas tinham caído em sucessos repetidos tantos Portugueses).
Foi este encontro nas vizinhanças dos Índios Poquiguarás, com quem os Cátingas tinham viva guerra com a oposição de confinantes; mas os dois afortunados Missionários, que desejavam unir a Cristo aquelas almas, foram primeiro unindo-as entre si; e cedendo a fereza destas duas Nações ao ardente zelo, ambas ficaram amigas, e com promessa dada de se descerem dos matos.
CXLI. Na volta, que os Padres fizeram com os seus reduzidos Topinambazes, se lhes agregaram alguns Principais dos Catingas, a quem o Governador, e o Padre ANTÓNIO VIEIRA receberam no Pará com todas as demonstrações de agrado; e premiados depois com vestidos, e ferramentas, (coisa que sobre tudo estimam) os remeteram contentes aos seus, como fiéis Embaixadores, e fiadores da palavra dada.
Com estes foi um Índio Cristão antigo, a quem instruíram os Padres, e adestraram na forma do
Chegados estes Principais às suas terras, foram recebidos dos seus com grande alegria; e de tal forte os moveu o Céu, que grande parte daquela Nação correu para as vizinhanças da Capitania do Camutá: ali começou a lavrar mantimentos, e a fazer casas, em que habitar, e ali ficaram debaixo da doutrina do Padre Salvador do
CXLII. Ainda teve mais de glória esta facção animosa, enchendo de trofeus, e honra aos dois Padres Francisco
Demoram no mesmo rio dos Tocantins os Índios Guarajus, Nação de língua diferente, e que então se compunha de seis povoações.
Receberam estes aos Padres ao passar para cima com grande amor, e fiel lhaneza; achando sempre os mesmos Padres entre tanta fereza humanidade pela fama, que entre o inculto daquele Gentilismo corria, de que eles eram entre os Portugueses os defensores da sua liberdade, e justiça.
CXLIII. Não perderam os Missionários momento de nova fortuna, e conquista em ânimos dispostos.
Falaram, exortaram, prometeram a todos o novo tratamento entre os Portugueses por força de novas Leis: que viveriam debaixo da doutrina dos Padres, onde
Estas luzes lhes dissiparam as sombras, que o temor lhes introduzia; e assentindo às promessas, ficaram também estes reduzidos nesta triunfante marcha, querendo sujeitar-se todos à bandeira de Cristo.
CXLIV. Voltando depois os Padres com o seu exército de Topinambazes, trouxeram dos Guarajus um só Principal, como penhor da sua fidelidade; e como era preciso fazer primeiro mantimentos para tanta gente, ficaram estes Índios reservados para o ano seguinte; vendo-se nesta pescaria de homens romperem-se as redes pela multidão, como na pescaria dos peixes de São Pedro; sendo o sucesso da lagoa de Genezareth figura do rio dos Tocantins.
CXLV. Pelos fins do mesmo ano de
Jaz atravessada na boca do rio das Amazonas a Ilha, chamada dos
Por novas injúrias, que tínhamos recebido, se determinou
CXLVI. Preparou-se a empresa, ajuntaram-se todos os aprestos de guerra, e boca, convocaram-se os Cabos mais antigos, e experimentados daquela conquista: entregaram-se-lhes cento e vinte Portugueses, e quatrocentos Índios.
Partiram todos repartidos em duas tropas, e com eles os Padres João de
CXLVII. Quiséramos dar individual notícia deste atrevimento animoso: como desembarcaram, e pisaram terra daquele país inimigo; que falas tiveram com os Bárbaros; como rompida a guerra os investiram, e todos os mais sucessos da briga; tudo porém nos encobriu o tempo, e o descuido dos homens.
Só podemos afirmar com sentida verdade, e muito em geral, que a todas as propostas da paz
Desenganados então os nossos, de que eram inconquistáveis os Nheegaíbas pelo sítio, pela fereza, pela agilidade em acometer, e fugir; depois de três meses consumidos nesta empresa, voltaram com mortes, com feridas, com fomes, com doenças; e sobretudo sem honra, sem reputação, sem escravos; porque foram poucos, os que trouxeram.
CXLVIII. Este foi o infausto sucesso desta entrada, em que os Portugueses mais apercebidos de cadeias, e grilhões para prender cativos, que de ataduras para feridas, e golpes, deram assaz matéria à caridade dos dois Padres, os quais com eles gastaram, quanto tinham; chegando a tanto o Padre
No meio deste trabalho, e em prémio dele, tiveram a glória os incansáveis Missionários, de que entre as mãos lhes voassem à liberdade do Paraíso dois Índios pouco depois de
CXLIX. Antes de destacarem daquelas insidiosas praias as nossas tropas, pode o Padre
CL. Foi esta resolução do Padre
Assim correu a fama, e o dizia por mil bocas o tinham feito.
O que obrou porém aquele Divino filtro na vontade dos Índios, como lavrou aquela brasa escondida, e como dispôs os corações, introduzindo no centro deles calor, e espíritos de vida em penhascos, em breve o lerá nesta História a admiração.
Verá o Mundo, como a glória da conquista dos Nheengaíbas,
CLI. Perseverava ele neste mesmo tempo no Pará assistindo ao exame, e juízo dos cativeiros, para que se pusessem em liberdade, os que se provasse estarem injustamente cativos.
Nisto se detinha, e em outros empregos de grande serviço de Deus, e delRei aquele espírito de fogo, e de luz; mas dali continuava a mandar por aqueles rios, e matos aqueles pescadores, e caçadores de almas incansáveis, e valorosos.
CLII. Enviou ao rio das Amazonas, empório famoso desta conquista Apostólica na multidão de Nações, que nele bebem, e teatro também de tiranias nos cativeiros injustos, ao Padre Manoel de Souza com outro companheiro mui prático na língua.
Como nos exames dos cativos do Pará libertou a muitos o acérrimo, e perspicaz juízo do Padre VIEIRA, entrou triunfando por aquelas Nações o Padre Souza, levando consigo muitos libertados, e restituindo-os com geral contentamento a suas terras, e parentes.
Correu a fama desta retíssima justiça por todos os Índios, e foi sonoro pregão da clemência das novas
CLIII. Estas são as artes, com que o Grande VIEIRA conquistaria toda aquela parte da América; teria com isto a Igreja filhos sem conto, Portugal um novo Império, e o Sangue de Cristo sua última eficácia em infinitas almas, se a cobiça furiosa de poucos homens não afugentara com o terror do cativeiro, aos que nasceram livres, ou mais, do que os mesmos, que os tiranizavam.
CLIV. Sendo este o dano, e reconhecendo-se o proveito, talvez foi máxima do governo não desembainhar a justiça a espada, e cortar com ardente zelo pelos inimigos da conversão das almas.
Cederá muitas vezes o fogo do zelo à moderação da prudência, escusando-se o cautério, quando basta o medicamento; mas se a impunidade der forças à rebeldia, que desculpa há de achar no tribunal retíssimo de Cristo?
Quem vendo queimar Templos de Deus, deixar ainda com mãos aos incendiários?
Consinta-se esta voz à verdade, estes gemidos à dor, que nesta História se lerá, não sem assombro, quão justos são.
CLV. Andava o Padre Manoel de Souza (fundada já uma residência no Gurapá, uma das principais colónias do Estado na boca do rio das Amazonas) em contínuo giro, desde Xingú até o Gurupá, e do Gurupá até os Tapajós, chamando, e instruindo Índios.
Como
Feitos em um corpo, e amotinados todos, correram, como furioso rio, rasgaram as ordens Reais, ou o bando, em que elas se liam escritas; e voltando a corrente contra os dois Missionários, puseram as mãos sacrílegas no Padre Souza, e seu companheiro, e embarcados violentamente em uma canoa, os fizeram sair do sítio do Gurupá, e lançaram em uma praia deserta.
CLVI. Aqui foram as lágrimas, e o pranto dos Índios nas injúrias do seu Pastor; vendo-se nesta exorbitante insolência ser a barbárie aos Cristãos grata, aos Bárbaros estranha.
Deu brado, e fez este desmedido excesso grande dissonância à piedade dos verdadeiros Portugueses, e tratou o Governador de vingar a Majestade Divina, e a humana, ambas lesas enormemente por aqueles danados homens.
Foram buscados, achados, metidos em ferros, e sentenciados a perpétuo desterro daquele Estado.
Se este foi o castigo, tão lesa ficou uma, e outra Majestade no delito, como na pena dele.
Alimpou-se por então a boca daquele famoso rio, para dali por diante lhe poder entrar por ela a saúde tão livremente, como dantes por ela bebia o veneno.
CLVII. Aberto assim, e desembaraçado o caminho, foi outra vez o expulsado Padre Manoel de Souza admitido ao Gurupá; mas ele, abominando tão infame sítio, morada execranda de precitos, e teatro da crueldade, se retirou a outro lugar mais interior do rio.
Ali cheio de dor, e de zelo, se empregou todo em recolher o seu rebanho, catequizando, baptizando, e ensinando a ser Cristãos a muitos, que o tinham começado a ser só no nome.
Não parava naquele só sítio um fogo, que tinha maior esfera.
Dali mandava recados a diversas Nações de Gentios, ali os recebia de outras, que sem ser chamadas, mais que pela oculta inspiração do Criador, se queriam vir para ele.
Destas foi uma a Nação dos
CLVIII. É especial entre as mais a condição, e trato deste Gentio.
Apelidam-se
Estimam pois pela maior gentileza ter uma faixa negra, que de largura de dois dedos lhe desce desde a testa igualmente, e lhe vem a parar na boca, onde, alargando-se mais, a cinge, e guarnece toda em roda. Os que se jactam de maior fidalguia, trazem
Alcançam esta gentileza à ponta da agulha, picando a carne, e aplicando-lhe tinta, que misturada, e penetrada com o sangue, vem a parecer natureza, o que é pintura.
Assim mostram o claro da nobreza pelo escuro, em que convertem o sangue no semblante.
CLIX. São homens de corpos robustos, e estatura mais avultada, que a ordinária: nunca podem estar ociosos, coisa neste clima mui rara, e que desmentem as influências da sua mesma natureza.
O idioma, que falam, é muito diverso da língua comum; mas o zeloso Missionário a começou logo a aprender, e por intérprete foi catequizando alguns, que com pontualidade notável acudiam às obrigações de Cristãos com admiração de todos.
CLX. Neste país inculto, e remontadas brenhas, fez o Padre Souza (e o costumam os Missionários) florescer a piedade, e a Religião entre os Neófitos.
Chegou o dia de quinta feira de Endoenças, em cuja noite ordenou o Padre uma procissão.
Saiu esta devota pompa da pobre Igreja de palma, que com título de Nossa Senhora do Desterro ali tinha erigido.
CLXI. Ia adiante uma grande Cruz, árvore da nossa vida no Calvário, e agora estandarte triunfante naquele medonho Sertão.
Seguiam-se em duas alas, primeiro os Índios com
Depois destes iam as Índias também com luzes, e devoção, ou igual, ou maior.
CLXII. Viam-se pelo meio a certos espaços outros Índios com várias insígnias da Paixão, instrumentos antigamente do ódio, e agora brados da misericórdia Divina àquelas desamparadas gentes.
Acrescentava a ternura ver ali várias formas de penitência, e entre estas mais de quarenta Índios, que se disciplinavam a sangue, vestidos ao modo Português, tendo em pouco cortar pela pobreza da sua roupa, e do próprio sangue; dizendo que o queriam derramar, por quem os criara, e por eles derramara misericordioso o seu.
CLXIII. Não puderam alguns Portugueses honrados, que ali se acharam, conter neste espectáculo as lágrimas, vendo tanta piedade, e fervor em gente tão nova na Fé, e na polícia.
Quiseram para dar-lhes exemplo repartir entre si os quartos da noite, assistindo alternadamente, cantando-se Ladainhas, e outras Orações na Igreja.
Excedeu nesta parte a devoção dos Neófitos.
Alternaram-se os Portugueses; mas nem Índios, nem Índias se alternaram: firmes persistiram toda a noite, sem saírem da Igreja, e só o fizeram a correr com a procissão às outras Igrejas menores também de palma, que para este acto se tinham erigido.
CLXIV. Esta era a piedade, e o fogo Divino, que naqueles duros rochedos, e corações, até ali de feras, iam introduzindo os Apostólicos Filhos do Grande , e Fogoso Ignácio, que pelo zelosíssimo Padre VIEIRA procurava converter em chamas aqueles rios caudalosos.
CLXV. Neste mesmo ano de
Pelo famoso rio dos Tocantins acima, duzentas léguas do Pará, demoravam estes Índios; como agora se fizesse esta jornada, e acabasse o Grande VIEIRA de trazer à Fé as relíquias desta Nação, ficou-nos totalmente escondido, com a dor costumada nesta História, pelo silêncio de façanhas tão memoráveis.
CLXVI. Mas agora nos chama nova entrada ao Sertão, que sendo empenho da cobiça, dos que governavam, abriu nova porta ao mercador Evangélico.
As serras dos Pacajás, ou famosas, ou afamadas de terem minas de ouro, foram desvelada fadiga de muitos Ministros Reais, e ainda de Governadores, e também repetido fingimento de alguns moradores do Pará.
Com o pretexto de achar ouro se avançavam àquele sítio, sendo na verdade o
Aqui se acendeu esta sede, e com o especioso nome de jornada do ouro se determinou uma entrada àqueles remontados rochedos.
CLXVII. Partiram soldados, e mineiros a esta empresa, em que gastaram muitos meses.
O sucesso não correspondeu aos desejos, nem quis a terra dar, o que ela intentou desentranhar a cobiça: justo castigo do Céu, se na verdade a sede maior era buscar ouro nas veias dos Índios.
Com esta gente mandou o Padre ANTÓNIO VIEIRA, para socorro, e remédio nos casos ocorrentes, e para reduzir os Índios daquelas serras, ao incansável Padre João de
Chegaram ao fatal sítio: ali trabalharam, e suaram mineiros, e Índios, com morte de uns, e outros; abrindo muitos, por desenterrarem ouro, enterros a seus corpos, e cavando, sem o saberem estimar, um precioso desengano, mas tardio.
CLXVIII. O valoroso Padre
Meteu-se por aqueles matos, e rios
Achou-os ditosamente, falhou-lhes, e rendeu-os a largarem aquela vida brutal, e virem a ser filhos da Igreja, e vassalos do Império Português.
Dali com presteza de raio, ou de Anjo, coroado com esta vitória, voltou pelos mesmos matos a buscar o arraial, ou acampamento dos nossos, para administrar os Sacramentos aos necessitados, e procurar meios para conduzir os seus reduzidos Pirapés.
CLXIX. Pronto tudo, e ajustado o modo, voltou em busca daquele esquadrão de almas, cheio de gosto, e de glória; mas a incrustável Providência do Altíssimo quis no meio destes caminhos pagar logo a empresa, e os desejos.
Ao tomar um dificultoso passo, escorregou de um penhasco, e caiu de peitos sobre uma pedra aguda.
Foi esta queda tão infeliz, e desde aquele ponto ficou tão quebrantado, que bem mostraram os efeitos padecera lesão interna em alguma parte vital, porque foi sempre desfalecendo.
CLXX. Em forças tão lassas supriram os alentos do espírito, sempre inteiro entre tantas fadigas, e foi continuando a pé jornada tão trabalhosa; até que enfraqueceu de sorte, que não pôde mais dar um passo.
Tomaram-no então alguns Índios às costas, e pelo espaço, que restava, o foram conduzindo,
Chegou enfim à povoação daqueles seus novos filhos, que gerava para Cristo, e entre os últimos suspiros, encomendando-lhes a perseverança na Fé, e firmeza no propósito, em que estavam, com sentimento, e lágrimas dos seus Índios, acabou entre eles a vida, como verdadeiro Missionário, subindo a gozar no Céu, como piamente cremos, o prémio, e coroa de tão gloriosas fadigas.
CLXXI. Nasceu o Padre João de
Logo naquela idade pareceu Anjo, fazendo voto de perpétua virgindade.
Na devoção da Mãe de Deus era singularíssimo, e no porte de seus costumes inocente.
Contra a vontade de todos os parentes pretendeu, e entrou na Companhia de JESUS; e vendo que o não puderam render na campanha, dentro da praça, a que se recolheu, lhe continuaram a guerra.
Com estes intentos entrou no mesmo Noviciado seu segundo irmão: deu-lhe bateria forte, e não podendo persuadi-lo, a que largasse a roupeta, declarou ao Mestre de Noviços, que seu irmão João não via de um dos olhos (coisa que antes se não advertira).
Examinou-se o ponto, e conhecido o defeito, foi despedido.
CLXXII. Um ano viveu fora, todo ele como Noviço, e em continuada porfia, para que outra vez o recebessem.
Recorria à Mãe de Deus, primeira Estrela, que o guiara: tanto insistiu, alegou, e encareceu sobre a pouca falta daquela dimidiada vista, e da muita perspicácia, da que lograva, que se julgou tal fervor por extraordinário em um menino, e que para alguma coisa grande o tinha escolhido Deus; e assim foi outra vez com sumo gosto seu admitido.
CLXXIII. Admire agora o leitor um sucesso, que então se viu, e deixara de referir por triste, se não fora doutrinal.
Na mesma tarde, em que entrava João para a Companhia, saía dela o díscolo irmão despedido, e avistando-se ambos, lhe repetiu o novo Soldado de Cristo aquele pavoroso brado do Evangelho:
Nemo mittens manum suam ad aratrum, et respiciens retrò, aptus est regno Dei.
Com esta lança o quis render; mas ele se foi correndo meter no mar, quando o ditoso irmão tomava porto.
Assim diversificou a fortuna as sortes, nos que fizera do mesmo sangue a natureza.
Viveu o novo Noviço com Anjo, e depois nos estudos abrasado em desejos do martírio pediu a Missão da Índia; mas havendo para esta impedimentos, cuja relação deixamos, alcançou a do Maranhão.
CLXXIV. Este é aquele Padre
Ali mostrou o fogo, que lhe ardia no peito, e que o seu espírito pedia mais dilatados espaços, e novos Mundos.
Assim o viu obrar altas façanhas aquela parte da América; e agora, que ia cortando Louros, com que se coroava, caiu vítima da Fé, da caridade, e do zelo.
Assim suspendeu a morte o movimento àquele coração alentado, com eterna saudade dos companheiros, e perpétua inveja daqueles Irmãos seus, que acabando cá em Europa entre outras comodidades da vida, e com outra companhia na morte, morrem invejando sempre a causa, e os desamparos desta.
Mas de cada árvore daquelas brenhas forma a nossa dor um cipreste, significativo da nossa mágoa; os seus merecimentos porém o tornam Palma, expressivo imortal de suas vitórias.
CLXXV. Aqui pois ficou coberto de humilde, mas piedosa terra o Grande
Partiram por tantos Sertões, e riscos até aquele remontado sítio, e informados dos Índios, deram com o lugar da sepultura.
Mandaram cuidadosamente cavar, eis que aparecem aqueles veneráveis despojos, a que costuma perdoar a voracidade da terra, saiu deles
CLXXVI. Penetrou esta fragância os sentidos, e chegou com tal veemência à alma de todos os presentes, que arrebatados de um temor reverencial, e respeitosa veneração, prostrados por terra louvavam cheios de ternura, e lágrimas a Deus, e imploravam sua misericórdia.
Argumento verdadeiramente portentoso, com que vaporaram santidade as cinzas frias de Varão tão ilustre; recendendo de novo suas virtudes, e levantando-se dos silêncios da sepultura mais clamorosa sua fama, mais viva sua memória.
CLXXVII. Recolhidos aqueles preciosos ossos, que respiravam suavidade do Céu, como experimentaram por todo o caminho, os que os traziam, foram postos no Colégio do Pará: mas na mesma noite, em que chegaram, tirou furtivamente a cabeça seu irmão Manoel da Vide
Estava ainda tão fresca, que a recolheu em uma caixa de chumbo, e coberta de cal viva a teve mais de vinte anos fechada.
Abriu-se finalmente a caixa, e limpa daquela cal vitoriosa cabeça, ainda parece triunfadora da morte.
CLXXVIII. Nós a vimos com aquele respeito, que julgávamos merecia a grande alma,
Está coberta de pele; por cima da testa não tem cabelo; mas toda a mais cabeça está povoada dele, não pouco crescido, e de cor muito loura.
A concavidade dos olhos ainda tapada de um túnica seca.
Conserva muitos dentes, falta-lhe porém o queixo inferior.
Assim se guarda com estimação de jóia preciosa por seus nobres parentes em cofre decente entre algodão: mas quanto julgam mais estimável esta prenda, tanto mais clama ela, porque seja restituída, a quem pertence, pois consta do furto.
CLXXIX. Do lugar, em que se depositaram os mais ossos, diz assim a notícia manuscrita, que vimos daquela Província: Sepultaram-se em o sítio da primeira Igreja nossa em o Pará para a banda da epístola, algum tanto chegado para o canto da parede, entre a Sacristia, e Igreja, que quando muito distará da porta do corredor de hoje uns vinte e dois palmos, pouco mais, ou menos.
Descuido foi dos mais antigos de o não mandar tirar, para lhe dar sepultura mais honrada em a Igreja de São Francisco Xavier, que de presente há no Colégio de Santo Alexandre, pois o merece tanto.
Esta a formal notícia.
CLXXX. Daqui inferimos com grande dor nossa, que foi transportado este tesouro daqueles incultos matos; e veio a descansar em lugar mais decente sim, mas pouco menos humilde, que o primeiro. Daqui porém se levantará no supremo dia dos tempos com mais glória,
CLXXXI. Perdeu neste grande Missionário o Padre ANTÓNIO VIEIRA um alentado companheiro de suas empresas; mas quando este acabava a vida por terra, andava ele, ou já a braços com as ondas, ou lidando com os pensamentos de arcar com elas.
Tinha repartidos Obreiros pela imensa seara para a parte do Norte, restava voltar o ânimo às do Sul.
Deste intento animoso daremos agora notícia, sendo só o empreendê-lo um argumento glorioso de seu forte coração.
CLXXXII. Não calaremos porém aqui o sucesso, que teve a empresa, e infeliz jornada do ouro.
Foram a ela quarenta Portugueses, e duzentos Índios.
Destes morreu a maior parte à fome, e a puro trabalho: durou esta facção dez meses; custou perdas, trabalhos, vidas, sendo necessário mandar-lhes nova tropa de Índios com alguns socorros para a volta.
E este foi o ouro, que se tirou das minas do Pacajá.
CLXXXIII. Levavam pois neste mesmo tempo os cuidados ao Padre ANTÓNIO VIEIRA os Índios da serra de Ibiapaba, e os Gentios do Maranhão ao Brasil em busca de mais Obreiros, e representar àquele Provincial (a quem então
A empresa do mar, e da terra pareciam, ou estar já dentro, ou se a avizinhavam à esfera do impossível.
Com a que se viu depois ser impossível arrostou o nosso Herói: à outra mandou.
De ambas daremos agora grata narração.
CLXXXIV. Entre tão gloriosas Missões, como temos dito, seguiu-se a da serra de Ibiapaba.
De sua dificultosa conquista, e redução à Fé, empresa digna do grande coração de VIEIRA, e uma de suas maiores façanhas, demos já em separada obra completa relação; aqui porém a resumiremos, como parte própria do nosso argumento, repetindo para clareza seus afastados princípios.
CLXXXV. Tem sido esta Missão repetida fadiga de heróicos Filhos de Santo Ignácio.
O sangue do Venerável Padre Francisco Pinto derramado às violentas mãos dos Bárbaros Tucarijus, a santificou, e deu vozes, para que valorosos Missionários avançassem àquelas temerosas montanhas com animosa esperança de salvar almas alheias, ou de laurear com o martírio as suas.
CLXXXVI. No ano de
A ignorância porém do sagrado
Parte destes Índios eram nascidos entre Holandeses, outros militavam em seus regimentos; ali se viam Judeus, Calvinistas, Luteranos, e outros monstros de diversas seitas do Norte.
De tudo se formava um geral Ateísmo, e de escola tão famosa eram, os que fugiram para Ibiapaba: então se viu naquele sítio infeliz uma corruptíssima Genebra de maior monstruosidade nas almas, do que são as medonhas feras, que se criam nos Sertões da dilatada América.
CLXXXVII. Esta era a deplorada miséria, em que viviam aquelas aldeias com título de Cristãs, quando no ano de
O primeiro emprego deste encargo julgou-se devia ser a redução dos Índios já
CLXXXVIII. Os da serra de Ibiapaba tinham sido os primogénitos daquela conquista,
Clamava-se ao Céu, para que abrisse a esta empresa caminho; porque o estado daqueles rebeldes mais prometia obstinação, que remédio.
Deu alentos a alguma esperança o Governador André Vidal de Negreiros, em cujo coração (como tinha visto o Brasil) morou sempre o valor, e teve asilos a Fé, intentando uma fortaleza na boca do rio Camuci.
Com esta força se facilitava o comércio do pau violete, que se corta nas faldas da serra; e do resgate do âmbar, que o rolo do mar lança por aquelas praias, e delas vai recendendo por toda a Europa.
Até pelas delícias do olfacto leva a suave Providência de Deus por meio dos Portugueses aos ouvidos dos Bárbaros a Fé.