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Document Title
Cartas, Antonio Vieira
Document Author ID
Vieira, Antônio
Period by Birthdate
1600-1649
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57.088
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Author Name
Antonio Vieira
Author Year of Birth
1608
Place of Birth
Portugal
Original Text Place of Production
Original Text Place of Publication
Portugal
Original Text Title
(none)
Genre
Letters
Immediate Source Type
Transcript of original manuscript
Immediate Source Edition Level
Edited orthography
Immediate Source Title
Cartas do Padre António Vieira
Immediate Source Rights
Imprensa da Universidade
Immediate Source Editor
J. Lúcio d'Azevedo
Immediate Source Date
1925
Immediate Source Reference
VIEIRA, António. Cartas do Padre António Vieira. (coordenadas e anotadas por J. Lúcio d'Azevedo). Tomo I. Coimbra, Imprensa da Universidade, 1925.
77
CARTA II Ao Marquês de Niza 1646 - Fevereiro 25
Escrevo a
Vossa Excelência
V. Ex.a
de Paris, aonde cheguei vinte dias depois de haver partido de Lisboa, apressando quanto me foi possível as jornadas, sem perder momento de tempo para achar ainda a
Vossa Excelência
V. Ex.a
nesta côrte; mas em Orléans me disseram os padres do nosso Colégio havia
Vossa Excelência
V. Ex.a
passado por aquela cidade oito dias antes. Afirmo à
Vossa Excelência
V. Ex.a
que foi o meu sentimento muito maior do que sei declarar, assim pelo bom sucesso desta minha missão depender da presença e autoridade de
Vossa Excelência
V. Ex.a
, como pelo grande desejo que eu trazia de me ver aos pés de
Vossa Excelência
V. Ex.a
, reconhecendo-me
Vossa Excelência
V. Ex.a
pelo seu mais afeiçoado e mais obrigado criado, e logrando eu de mais perto a mercê que
Vossa Excelência
V. Ex.a
em toda parte há sido servido fazer-me. E verdadeiramente que, na esperança desta ventura, levei com melhor ânimo os trabalhos da terra e perigos do mar, 78 que foram os que costuma padecer quem, nos meses de Janeiro e Fevereiro, se arrisca às costas de França em um brulote de cem toneladas. Bem conheci eu estes riscos em Lisboa; mas ofereci-me a êles, porque tenho pelo maior de todos a dilação, e mais quando dela dependia não achar a
Vossa Excelência
V. Ex.a
nesta côrte, como me aconteceu, por mais que o quis prevenir; mas sou eu tão amante das conveniências de
Vossa Excelência
V. Ex.a
que, pela de
Vossa Excelência
V. Ex.a
se restituir mais cêdo a sua casa, e pelo que estes negócios podiam embaraçar a
Vossa Excelência
V. Ex.a
alguns dias fora dela, quási me não pesou de
Vossa Excelência
V. Ex.a
ser partido, fineza com que só posso pagar as obrigações que devo a
Vossa Excelência
V. Ex.a
e às senhoras condessas da Vidigueira, de quem, e da senhora
Dona
D.
Teresa, trazia para
Vossa Excelência
V. Ex.a
as cartas que remeto. Estas senhoras e todos os senhores da família de
Vossa Excelência
V. Ex.a
ficam com boa saúde, e particularmente o senhor
Dom
D.
Francisco e o senhor
Dom
D.
Simão, que me deram dois abraços para
Vossa Excelência
V. Ex.a
. O fim da minha jornada verá
Vossa Excelência
V. Ex.a
pelas cartas de
Sua Majestade
S. M.
que remete a
Vossa Excelência
V. Ex.a
o Residente, a quem eu as entreguei conforme as ordens que trazia; e me parece pessoa que fará tudo com grande disposição e acêrto, e não só merecedora do lugar em que
Vossa Excelência
V. Ex.a
o deixa, senão que, mais perto de
Sua Majestade
S. M.
, o pudera servir com grande utilidade do reino, que não tem muitos talentos desta qualidade. As coisas do Brasil hão tido menos felizes sucessos do que se prometeram, e do principal de todos cada vez há menos confiança nos que o deram por certo, pôsto que eu, pelas 79 notícias que tenho daquele Estado, nunca esperei mais que o que vejo, e o lembrei a tempo em que se pudera haver escusado o empenho. Quer agora
Sua Majestade
S. M.
o que
Vossa Excelência
V. Ex.a
verá; mas parece que não está capaz Holanda de se reduzir a êste modo de conveniência, segundo o que de lá se avisa; e assim entendo que se deve intentar a paz ou continuação da trégua por qualquer caminho, porque não estamos em tempo de romper uma guerra, que não podemos assistir, com gente tão poderosa nas nossas conquistas, de cuja conservação depende a do reino. E nesta resolução fica
Sua Majestade
S. M.
desejoso de que, quando menos, se consiga não haver hostilidades, com que nos livremos por agora dêste cuidado, e possamos lograr o comércio, enquanto se trata de composição mais geral. Ficamos considerando os meios por onde se poderá introduzir a prática dêste negócio com toda a brevidade possível, antes que os empenhos da Holanda em socorrer o Brasil a dificultem;
Vossa Excelência
V. Ex.a
seja servido avisar-nos do que lhe parece e nos ordena nesta matéria, que em tudo seguiremos as disposições de
Vossa Excelência
V. Ex.a
como mais acertadas. Do nosso reino não há que contar mais que irem-se continuando as Côrtes; felizmente oferecem os povos pagar vinte mil infantes e quatro mil cavalos, e é grande a união com que todos desejam dar tudo para a sustentação de uma boa guerra, e mais acreditada do que eu acho a nossa por estes países, de onde só desejam entradas por Castela, sem considerarem quanto ajudamos a França na desunião de Castela, que conservamos, e na diversão de tantos mil 80 cavalos e infantes que, se juntos com o poder de Portugal voltaram sôbre Catalunha, haviam de fazer grande mudança na fortuna daquela guerra. Mas entre os descréditos que a ignorância ou a malevolência semeia na nossa nação, basta a opinião que
Vossa Excelência
V. Ex.a
deixa em todas as partes dêste reino para a acreditar muito, o que eu estimo como português, e como o mais zeloso criado ao serviço de
Vossa Excelência
V. Ex.a
, a que
Vossa Excelência
V. Ex.a
me terá em toda a parte com um coração muito verdadeiro, e muito desejoso de me empregar nele. Deus guarde a
Vossa Excelência
V. Ex.a
como desejo e o nosso reino há mistér. Paris, 25 de Fevereiro 646. - Criado de
Vossa Excelência
V. Ex.a
. António Vieira. CARTA III Ao Marquês de Niza 1645 - Março 4
Chegado a esta côrte avisei logo a
Vossa Excelência
V. Ex.a
da minha vinda e da causa dela, significando o sentimento, com que ainda estou, de por tão poucos dias perder a
Vossa Excelência
V. Ex.a
. Se a jornada em Lisboa se apressara conforme eu a apliquei, sem dúvida eu antecipara os meus temores, de que é boa testemunha a senhora condessa
Dona
D.
Leonor, que me animava 81 com boas esperanças, prometendo-me achar a
Vossa Excelência
V. Ex.a
por todo Fevereiro em Paris; mas o certo é que as instâncias da senhora condessa
Dona
D.
Inês com Deus e com El-rei foram as que em Lisboa me detiveram com tempos contrários, e obrigaram a
Sua Majestade
S. M.
a não querer escrever a
Vossa Excelência
V. Ex.a
se detivesse, que foi meio que eu lhe propús, de que peço perdão a
Vossa Excelência
V. Ex.a
, e, com
Sua Majestade
S. M.
reconhecer a importância do negócio, que lá se julga porventura por mais arriscado que desta banda, e com saber quanto fazia ao caso a presença e autoridade de
Vossa Excelência
V. Ex.a
, pôde mais com êle a palavra que tinha dado à senhora condessa, e o desejo de ver a
Vossa Excelência
V. Ex.a
mais perto de si, que todas as outras conveniências suas. E verdadeiramente que foi esta a ocasião em que mais conheci quanto
Sua Majestade
S. M.
deseja dar gôsto a
Vossa Excelência
V. Ex.a
, porque sabia eu quão empenhado
Sua Majestade
S. M.
está na brevidade e bom sucesso dêste negócio, por se ver desembaraçado do cuidado de Holanda, e se aplicar com todas as fôrças do reino à guerra de Castela, inimigo mais perigoso e tão vizinho. O que por cá semeiam os castelhanos, e consideram ou murmuram os franceses, algum fundamento teve na pouca fortuna da campanha passada, que consistiu em o inimigo gastar um exército na ponte de Olivença, que rompeu, e em ganhar um reduto que defendiam quarenta homens, sendo rechaçado duas vezes em Jerumenha, que é uma aldeia junto ao Guadiana, onde estava só uma companhia de soldados, e não se atrevendo a intentar outra coisa, retirando-se para Badajoz tanto que o nosso exército esteve para sair de Elvas, que impedido das chuvas não pôde obrar a vingança, pôsto que a retirada do inimigo foi 82 bem conhecida vitória. Mas estamos nós tão costumados a ter outras, que estas vem a ser desar de nossas armas; contudo, senhor, eu desejara muito que, para conservarmos a opinião de que tanto dependem os reinos novos, nos conformáramos com a dos estrangeiros, gastando o cabedal, que hoje se consome com menos fruto, em uma guerra muito limpa, com que ganháramos uma cidade ou rompêramos um exército, que estas são as acções que só dão nome no mundo. De algumas cartas que vi de
Vossa Excelência
V. Ex.a
em Lisboa, e do que aqui tenho ouvido, sei é êste o parecer de
Vossa Excelência
V. Ex.a
, e entendo que
Sua Majestade
S. M.
, pela justa estimação que faz do juízo e experiência de
Vossa Excelência
V. Ex.a
, não deixará de o seguir, nem
Vossa Excelência
V. Ex.a
, pelo zêlo que tem da pátria, de lhe fazer tão apertadas instâncias que vençam os votos da opinião oposta, se ainda houver alguém (que de tudo há) que com tão claras experiências se não haja ou não queira desenganar. As novas que
Vossa Excelência
V. Ex.a
me pede de
Suas Majestades e Altezas
S.S. M.M. e A.A.
são ficarem todos com muito boa saúde, particularmente a infanta Joana, que tinha padecido umas febrinhas dilatadas, que nos haviam pôsto em algum cuidado; mas já fica muito bem, e o parecerá em Paris. El-rei mais bem disposto que nunca, e mui amado de seus vassalos, como todos o mostraram nesta ocasião, em que ficavam juntos em Côrtes, oferecendo todos com grande zêlo e liberalidade as fazendas e as vidas, e desejosos que se empreguem na maior utilidade do reino, para que se vão propondo e examinando vários arbítrios, e estamos certos escolherá
Sua Majestade
S. M.
os mais suaves, e que mais convierem ao bem comum de que se trata. E, neste particular, não deve menos o reino à Rainha 83 nossa senhora que, não só com acções de piedade e devoção, mas com as de valor e conselho, ajuda muito o bem público, e nesta ocasião da ausência de El-rei ficaram todos afeiçoadíssimos ao seu governo; todo o seu valimento é a senhora condessa
Dona
D.
Leonor, e desta eleição julgará
Vossa Excelência
V. Ex.a
quais são as de seu grande juízo e prudência. Do Príncipe, que Deus guarde, não digo nada a
Vossa Excelência
V. Ex.a
, porque todo o encarecimento é curto para as excelentes partes de que Deus o tem dotado. Não vi engenho em muito maior idade que tanto me admirasse. Lê e entende o latim perfeitamente; argumenta nas questões da filosofia e política com grande juízo. Na astrologia e judiciária é tão inteligente que compôs o prognóstico dêste ano, com notável disposição, estilo e propriedade. Eu pasmei de o ver responder a argumentos que lhe propús, e de o ouvir aprovar e refutar autores e opiniões, com tanta segurança e inteligência como um mestre muito versado. Deus o guarde, que tão grandes fundamentos lhe tem dado para o que dêle esperamos. Agora propuseram as Côrtes que convinha dar-lhe
Sua Majestade
S. M.
casa; mas não sei se se conseguirá de presente mais que aio.
Vossa Excelência
V. Ex.a
vai de muito boa côrte e a muito bom tempo; assim o cuido e assim o ouvi, se outro lugar de mais próxima importância não se antepuser a êste. Da capacidade do senhor
Dom
D.
Francisco, e das feiticerias do senhor
Dom
D.
Simão, tinha muito que contar a
Vossa Excelência
V. Ex.a
, mas havia de ser em presença; a senhora condessa o terá feito nas cartas que remeti, que sempre há matéria nova. Tudo o que
Vossa Excelência
V. Ex.a
me diz dos talentos e partes do 84 Residente António Moniz de Carvalho conheci logo que o vi, e cada vez o vou descobrindo mais com o trato e ocasião dos negócios, e lhe devo muito boa vontade, que estimarei me faça
Vossa Excelência
V. Ex.a
mercê agradecer-lhe. Êle, entendo, representa a
Vossa Excelência
V. Ex.a
um sonho que teve sôbre
Dom
D.
Luís de Portugal ir a Holanda, que a mim me parece bem, quanto pode julgar quem não tem mais notícia da pessoa que ouvi-lo falar em uma conversação breve. Pareceu-me entendido e afeiçoado a nossas coisas;
Vossa Excelência
V. Ex.a
ordenará neste particular o que fôr mais conveniente e menos dilatado, que, segundo os aprestos que hoje me disse um mercador se fazem em Zelanda, quanto os anteciparmos melhor negociaremos. E, segundo o pouco que a França se quer mostrar parcial em nossas coisas com os holandeses, também duvido que se queira empenhar por elas com
Dom
D.
Luís, que é querermos que vença duas dificuldades quem experimentamos fraca para uma. Deus nos escolha o melhor, e guarde a
Vossa Excelência
V. Ex.a
os anos que eu desejo, que serão infinitos. Paris, 4 de Março 646 - Criado de
Vossa Excelência
V. Ex.a
. António Vieira. 85
CARTA IV Ao Marquês de Niza 1646 - Março 11
Quanto
Vossa Excelência
V. Ex.a
se detém nesse porto, tanto mais cresce em mim o sentimento de não poder ir buscar a
Vossa Excelência
V. Ex.a
; e se o que
Vossa Excelência
V. Ex.a
escreve ao nosso Residente, de partir o caminho até Orléans, fôra possível, estimara-o eu grandemente para falar com
Vossa Excelência
V. Ex.a
em muitos particulares, que se não podem fiar do papel, e que podiam importar não pouco, assim aos negócios do reino como à disposição dos de
Vossa Excelência
V. Ex.a
, cujos acêrtos, aumentos e conveniências me tocam muito a mim, como ao maior e mais afeiçoado e obrigado criado de
Vossa Excelência
V. Ex.a
. O certo é, senhor, que, como as coisas de França se entendem diferentemente em Portugal, assim das de Portugal não pode haver cabais notícias em França, e ainda no mesmo Portugal receio que as ache
Vossa Excelência
V. Ex.a
com dificuldade, porque a gente daquele país, que
Vossa Excelência
V. Ex.a
muito bem conhece, poucas vezes julga das coisas com os olhos livres de paixão. Grande mercê faz Deus a Portugal em levar lá a
Vossa Excelência
V. Ex.a
; mas entendo que a não tem feito menor a
Vossa Excelência
V. Ex.a
em ter a
Vossa Excelência
V. Ex.a
tantos anos fora de Portugal. Do que
Vossa Excelência
V. Ex.a
me diz na sua carta entendo eu que
Vossa Excelência
V. Ex.a
está no conhecimento desta verdade; mas as experiências de mais perto ainda hão de confirmar mais a
Vossa Excelência
V. Ex.a
nela. Esta é a razão porque se obra menos do que convém, e do que se pudera, 86 e não têm tanta culpa as causas primeiras como o mundo lhes imputa; porque com instrumentos contrários só Deus pode obrar, e quando o faz é milagrosa e não naturalmente. Deus nos mude as condições, que, enquanto formos portugueses, não sei se faremos coisa digna de tão honrado nome. Muito estimo que haja sempre sido da opinião de
Vossa Excelência
V. Ex.a
a paz com Holanda, a qual está nos termos que
Vossa Excelência
V. Ex.a
vê, porque a alguns valentões de Portugal lhes pareceu que eram poucos para inimigos os castelhanos. Eu estava em uma cama sangrado dezasseis vezes, quando do Brasil me vieram as primeiras notícias do que se queria intentar; e, porque o impedimento me não permitia falar com
Sua Majestade
S. M.
, e dizer-lhe pessoalmente o que entendia naquela matéria, como quem tantos anos havia estado no Brasil, e sabia o que lá se pode, pedi a um prelado muito confidente de
Sua Majestade
S. M.
lhe quizesse representar de minha parte o perigo e dificuldade desta empresa, e que o segurasse que era impossível render-se a principal fôrça, por mais que os de lá, enganados do desejo da liberdade, o prometessem; e acrescentava que, ainda quando o Brasil se nos désse de graça, era matéria digna de muita ponderação ver se nos convinha aceitá-lo com os encargos da guerra com a Holanda, em tempo que tão embaraçados nos tem a de Castela; porque são homens os holandeses com quem não só vizinhamos no Brasil, senão na Índia, na China, no Japão, em Angola, e em todas as partes da terra e do mar onde o seu poder é o maior do mundo. Estas e outras razões propús àquele prelado, que não sei se as representou a
Sua Majestade
S. M.
; só sei que por nosso mal fui profeta, e queira Deus que aqui parem os meus temores. O que
Vossa Excelência
V. Ex.a
diz de se haver de propôr o tratado da paz absolutamente para que, descendo-se aos meios da 87 conveniência, se ponha em prática o da compra, é matéria que não tem dúvida pela aceitação e conveniência do mesmo contrato, que, oferecido da nossa parte em primeiro lugar, fica de muito desigual condição; mas não me conformo facilmente com os que querem que a proposição da paz com Holanda, e da mediação de França, haja de nascer dos mesmos holandeses; porque, se havemos de esperar que êles dêem o primeiro movimento a êste negocio, nunca se começará; porque a êles está-lhe muito melhor a guerra que a paz, e nós não estamos em tempo de a dilatar, porque na dilação crescerão os empenhos, e com êles a dificuldade da convencia. Digo tudo isto pelo que o Residente haverá escrito a
Vossa Excelência
V. Ex.a
, acêrca do que lhe disse o conde de Briana que tinha assentado em Holanda
Monsieur
Mr.
Brasset com Francisco de Sousa. Do Príncipe, que Deus guarde, tenho já dado as novas a
Vossa Excelência
V. Ex.a
, e também do que se tratava acêrca de lhe dar casa, e que me parecia não se conseguiria por agora mais que aio. Deseja muito êste cargo o Monteiro-mor, e passaram os desejos a demonstrações públicas, de que
Vossa Excelência
V. Ex.a
haverá tido notícia; mas, se a eleição se houver de fazer em embaixadores de França, os sucessos das embaixadas desta corôa, e a opinião que as pessoas deixaram nela, deve de resolver a questão pela parte que na outra minha tenho significado a
Vossa Excelência
V. Ex.a
. 88 Na devassa em que
Vossa Excelência
V. Ex.a
me fala tenho já tirado por testemunhas a toda a França, que por toda ela não ouvi falar mais que nos grandes delitos daquela pessoa que
Sua Majestade
S. M.
saberá, referidos não como êles merecem, mas por bôca de quem
Sua Majestade
S. M.
cuida que lhe há-de falar verdade. Viva-nos
Vossa Excelência
V. Ex.a
muitos anos para honra da nossa nação e bem de todo o reino, que com a assistência e conselho de
Vossa Excelência
V. Ex.a
lhe podemos esperar grandes melhoras. Dos meus sermões trazia alguns comigo com tenção de cá os ler a
Vossa Excelência
V. Ex.a
, assim por desempenhar a palavra da senhora condessa, como por receberem êles de
Vossa Excelência
V. Ex.a
a mercê que
Vossa Excelência
V. Ex.a
lhes costuma fazer; mas, como a saúde me não deu nunca lugar a os tirar do primeiro borrão em que foram lançados, estão em tal estado que nem eu senão adivinhando me atrevo a os ler: e esta é a razão porque os não envio a
Vossa Excelência
V. Ex.a
. Se por cá tiver algumas horas ociosas (que as dilações dos despachos não prometem poucas) determino i-los alimpando e enviando a
Vossa Excelência
V. Ex.a
, já que noutra coisa não presto para servir a
Vossa Excelência
V. Ex.a
como muito desejo. Deus guarde a
Vossa Excelência
V. Ex.a
muitos anos. Paris, 11 de Março de 646. Uma carta do reverendo padre Frei André Teles enviei 89 a
Vossa Excelência
V. Ex.a
, em que cuido pede uma de favor para Roma sôbre um negócio que me encomendou; estimarei que
Vossa Excelência
V. Ex.a
me diga se há
Vossa Excelência
V. Ex.a
escrito, ou há-de escrever, para que eu dê conta de mim. - Criado de
Vossa Excelência
V. Ex.a
. António Vieira. 100
CARTA VIII Ao Marquês de Niza 1647 - Setembro 26
Excelentíssimo Senhor
Ex.mo Sr.
- Pelas cartas que em outros navios haverão chegado, terá
Vossa Excelência
V. Ex.a
entendido como
Sua Majestade
S. M.
, que Deus guarde, me manda a essa côrte a servir nela alguns dias a
Vossa Excelência
V. Ex.a
, circunstância que só me pudera facilitar a obediência de tão trabalhosas jornadas, como eu tenho experimentado estas. A presente foi a mais cheia de perigos e infortúnios que jámais se padeceu nesta carreira, faltando-nos só a morte, mas não os riscos dela, que quási não houve dia sem susto, cuja relação reservo para a presença: alfim a cabo de trinta e nove dias de viagem, havendo-nos tomado os dunkerqueses um patacho francês, que me havia de lançar no Havre de Grâce, cheguei em uma nau inglesa ao pôrto de Douvres, de onde logo tratei de atravessar a Calais, mas achei estar a cidade impedida de peste, com que foi necessário dilatar e mudar o caminho. E, porque o dinheiro que trouxe comigo era pouco, e aqui tem grandíssimas quebras, nem achar mercador que mo désse, 101 foi fôrça ir negociá-lo a Londres, onde vim pela posta, trazendo comigo as cartas de todas as embaixadas, para de aqui as encaminhar, como faço, por mão do senhor embaixador de França, debaixo de cujos maços irão seguras, reservando somente aquelas que não posso apartar de mim. Àmanhã parto outra vez a Douvres a embarcar-me, e procurarei com toda a brevidade achar-me aos pés de
Vossa Excelência
V. Ex.a
. Guarde Deus a
Vossa Excelência
V. Ex.a
muitos anos como desejo. Londres, e Setembro 26 de 647. Vão também os maços das senhoras Marqueza e Condessa, e outro para o senhor Residente, a quem beijo a mão. António Vieira. CARTA IX A Pedro Vieira da Silva 1647 - Setembro 30
Neste mesmo navio tenho escrito a
Sua Majestade
S. M.
e a
Vossa Mercê
V. M.cê
largamente da Côrte de Londres; agora o faço dêste pôrto de Douvres, onde estou para me partir de aqui a uma hora para o de Calais, sem embargo de estar aquela cidade impedida de peste, porque tenho o perigo da dilação por maior de todos; e não vou por Bolonha como tinha determinado, porque há notícias certas que andam na barra 102 fragatas de Ostende, que é o Dunkerque de agora: e passando, como faço, no paquebote, que é o barco do correio ordinário, vou seguro de corsários, por ser livre. Para em Calais me não impedirem a saída, nem nas outras cidades até Paris me negarem a entrada por ir de lugar infecto, levo passaporte e recomendação do embaixador de França que está neste reino, o qual também me remeteu os maços das embaixadas debaixo dos seus, que foi maior segurança com que se podiam enviar; e a tudo o mais do serviço de
Sua Majestade
S. M.
se ofereceu com boa vontade. Medindo as jornadas, espero estar em Paris dia de
São
S.
Francisco. Deus nos ajude e guarde a
Vossa Mercê
V. M.cê
muitos anos como desejo. Douvres, 30 de Setembro de 1647. António Vieira. CARTA X Ao Marquês de Niza 1647 - Outubro 3
Pax Christi.
Excelentíssimo Senhor
Ex.mo Sr.
- De Londres escrevi a
Vossa Excelência
V. Ex.a
com os despachos de
Sua Majestade
S. M.
, que vão neste correio debaixo dos maços do embaixador de França. E, pôsto que o meu intento era passar a Bolonha, soube depois que aquele pôrto anda continuamente infestado de fragatas de Ostende, pelo que 103 me resolvi a vir no paquebote de Calais, trazendo passaporte e recomendação do embaixador, para nem aqui nem nas outras cidades nos impedirem, o que aviso a
Vossa Excelência
V. Ex.a
, porque um português vindo de Ruão, que achei em Douvres, me disse o cuidado com que
Vossa Excelência
V. Ex.a
está de minha chegada, que verdadeiramente foi arriscadíssima; mas já, a Deus graças, estamos livres de perigos do mar, que até nesta última passagem não faltou enfadamento. De todos os meus trabalhos espero achar o alívio na presença de
Vossa Excelência
V. Ex.a
, em que me verei quarta ou quinta feira, que pelas muitas chuvas e minha pouca saúde, não é possível tomar a posta como desejara, e o pede a importância dos negócios. Ao senhor Residente e ao reverendo padre Frei Francisco me recomendo. Deus guarde a
Vossa Excelência
V. Ex.a
muitos anos como desejo. Calais, em 3 de Setembro de 1647. António Vieira. CARTA XI Ao Marquês de Niza 1647 - Outubro 21
Excelentíssimo Senhor
Ex.mo Sr.
- Como a vida do noviciado é tão conforme ao meu humor, ainda que me falte a virtude, naturalmente 104 me hei de achar bem com ela, e ainda melhor depois que se acabar a pensão destas primeiras correspondências, que é o mesmo que depois que fôr mais noviço e mais meu. Quanto ao negócio de
Monsieur
Mr.
Briana basta que seja parecer de
Vossa Excelência
V. Ex.a
para que o tenha eu por mui acertado; e, se em outro tempo o foi, quanto mais na ocasião presente, que é a última e a maior que havemos de ter, e em que se não deve escusar nenhuma das diligências e negociações possíveis, pois no bom sucesso delas nos vai tanto, por não dizer tudo. A tarde de àmanhã é ocupada com correio: sirva-se
Vossa Excelência
V. Ex.a
que seja eu o que vá; e outro dia haverá em que esta casa receba a honra que
Vossa Excelência
V. Ex.a
lhe quer fazer. Guarde Deus a
Vossa Excelência
V. Ex.a
como desejo. Noviciado. Segunda feira. António Vieira. CARTA XII A Pedro Vieira da Silva 1647 - Outubro 25
Não quero deixar de dar novas minhas a
Vossa Mercê
V. M.cê
, porque sei que
Vossa Mercê
V. M.cê
as estimará, sendo melhores do que a falta delas e a tardança da minha viagem haverão lá prognosticado. 105 Cá se cuidou que éramos tomados ou perdidos, e para tudo houve ocasião, porque lidámos com inimigos, com tempestades, com outros infinitos géneros de trabalhos e perigos, de todos os quais foi Deus servido livrar-me, e trazer-me ao cabo de cincoenta e nove dias a Paris, onde fico ao serviço de
Vossa Mercê
V. M.cê
, de saúde, que não é pouco havendo padecido tanto, e não sem esperanças de que os negócios a que
Sua Majestade
S. M.
foi servido mandar-me tenham o fim que
Vossa Mercê
V. M.cê
e eu lhe desejamos. Segundo o estado em que
Vossa Mercê
V. M.cê
tinha pôsto aquele negócio, entendia eu que nestes últimos navios viessem novas de estar já publicado. Só me pesará que, se contra êle se levantaram algumas dificuldades, hajam prevalecido os autores deste mal entendido zêlo contra os que o tem mais verdadeiro. Quanto mais ando pelo mundo, mais me confirmo nesta verdade: e, se os que estão nesse reino tiveram saído dêle, também saíriam da cegueira em que vivem nesta e em outras matérias. Baste o exemplo do Marquês de Niza, e o do seu Frei Francisco de Macedo, os quais, tendo sido de tão contrária opinião que um deu conselhos e o outro escreveu livros contra ela, depois que viram o mundo se lhe abriram os olhos, de maneira que ambos se têm retratado; e o Marquês, antes de eu vir, tinha escrito a
Sua Majestade
S. M.
, pedindo com grande apêrto o mesmo de que nós tratamos, e se preza muito de ser êste o seu voto. Os proveitos que da execução dêste negócio se esperam são infalíveis, e assim o prometem todos os portugueses 106 destas partes, que falam com menos receio nas acções do que os que lá vivem. Todos estão muito sentidos de El-rei de Castela, pela destruição que se tem feito nas Índias, e porque de presente tomou todas as consignações a todos os assentistas portugueses, exceptuando nomeadamente os genoveses, de que receberam igual perda e escândalo. Agora é o tempo de que experimentem favor em seu rei natural, para que tratem de o servir antes a êle.
Vossa Mercê
V. M.cê
vá por diante com esta empresa, e diga a El-rei nosso senhor o que sente, pois
Vossa Mercê
V. M.cê
sabe que conhece
Sua Majestade
S. M.
a verdade e inteireza do zêlo e justiça de
Vossa Mercê
V. M.cê
, e quão livre é de todos os outros respeitos mais que o de seu maior serviço, que por esta via se adiantaria com grandíssimas vantagens; e, quando a experiência as não mostrasse, ou dela se seguisse algum grave inconveniente, a concessão dêste privilégio não tira a
Sua Majestade
S. M.
o poder para o derrogar ou mudar quando fôr servido. Ao padre Manuel Monteiro me fará
Vossa Mercê
V. M.cê
mercê de oferecer por mim esta, enquanto o tempo me não dá lugar, até lhe escrever particularmente: e, se se descuidar em falar a
Sua Majestade
S. M.
sôbre o negócio que ficou à conta de Sua Reverendíssima,
Vossa Mercê
V. M.cê
lho lembre e lho requeira por parte do serviço de Deus e bem da pátria, porque sei quanto importarão suas diligências para o levar ao cabo, pelo grande conceito que
Sua Majestade
S. M.
tem de suas letras, virtude e zêlo. Deus guarde a
Vossa Mercê
V. M.cê
muitos anos, como desejo e como o nosso reino há mistér. Paris, 25 de Outubro de 1647 - Servidor de
Vossa Mercê
V. M.cê
. António Vieira. 107
CARTA XIII Ao Marquês de Niza 1647 - Dezembro 23
Excelentíssimo Senhor
Ex.mo Sr.
- Terça feira à noite, 17 do corrente, chegámos a esta côrte da Haia, havendo partido de Calais na quinta feira passada, embarcados em uma nau de comboio, que nos levou a Flessinga em três dias, no último dos quais corremos grande tormenta; mas, com ser a viajem tanto mais larga do que costuma, a tivemos por muito feliz, por chegarmos a salvamento, quando não aconteceu assim a outros; porque a mesma nau mercantil, que comboiámos, não se sabe ainda que derrota haja levado, e, quando chegámos a Flessinga, acabavam os pescadores de tirar nas rêdes muitos corpos mortos de naufragantes, e André Henriques, que chegou no mesmo tempo de Lisboa, me disse que encontrara muitos pedaços de navios dos que o mar sossobrara. Os perigos são próprios do tempo, e o escapar dêles é fortuna dos que navegam em serviço de
Sua Majestade
S. M.
, e não o atribuo a milagre de Santo António, porque partimos à quinta, e chegámos à terça, salvo se
Vossa Excelência
V. Ex.a
quer que as quartas feiras tenham véspera e oitava. Emfim, senhor, chegámos a esta casa, onde achei duas cartas de que
Vossa Excelência
V. Ex.a
me fez mercê, que me acrescentaram muito a alegria de haver chegado, e com o mesmo contentamento 108 receberei todas as que me trouxerem boas novas de
Vossa Excelência
V. Ex.a
, com que peço a
Vossa Excelência
V. Ex.a
me não falte, afirmando a
Vossa Excelência
V. Ex.a
que lho merece o meu coração, e as minhas saudades, que ainda que a companhia do senhor embaixador Francisco de Sousa baste para fazer esquecer as moléstias do caminho, as lembranças do senhor Marquês de Niza em nenhuma distância se esquecem, e com nenhum outro lugar nem companhia se consolam. A resolução, que
Vossa Excelência
V. Ex.a
tomou de avisar ao Brasil, é tão importante e acertada como todas as de
Vossa Excelência
V. Ex.a
. E se os mercadores se acomodassem a que fôsse em direitura à Tôrre de Garcia de Ávila, ao Morro, ao Camamú, ou a outro pôrto dos vizinhos à Baía, fariam ainda maior serviço a
Sua Majestade
S. M.
, porque o Cabo de
Esse
S...
dista 120 léguas, e os correios gastam no caminho quando menos vinte dias, à causa dos rios e matos que passam. Mas Deus vai detendo estes senhores de maneira, fechando-os, se não com cadeados de neve com tais tempestades e ventos contrários, que haverá muito tempo para o aviso chegar primeiro que êles. Também entendo que a conveniência de irem as fragatas de
São
S.
Maló é tão grande que, sem ordem de
Sua Majestade
S. M.
, deve
Vossa Excelência
V. Ex.a
fazer que se aprestem logo logo, não só quatro mas seis e oito, se houver quem as queira armar, e sôbre isto mesmo havia eu falado com Luís Hiens, um mercador francês
de São
S.
Maló que esteve muitos anos em Pernambuco, e há de ir logo buscar a
Vossa Excelência
V. Ex.a
para êste 109 mesmo negócio. Achei-o em Meldeburg para passar à sua terra; é pessoa de poucas palavras, mas de grande cabedal e crédito, e muito amigo dos portugueses, e lhe dei uma carta para
Vossa Excelência
V. Ex.a
. E importaria muito que a maior parte destes navios fôssem antes à Baía que a outros portos, para ali ajudarem a nossa armada, porque o poder que vai de Holanda entendo que será superior, pôsto que oiço diferentes opiniões; mas na minha é de tanta importância acharem-se com a nossa armada mais alguns navios de fôrça, que, para os convidar a ir à Baía, se lhe podia conceder que pagassem menos a quarta parte dos direitos, no que a fazenda de
Sua Majestade
S. M.
não perde nada, pois assegura tanto. Na memória que
Vossa Excelência
V. Ex.a
me mandou das fragatas, desejara se declarasse a idade delas, e o calibre da artilharia; e, se não forem velhas, e a artilharia boa, me parece que se davam a bom preço. E, ou êsses ou outros, importa que
Vossa Excelência
V. Ex.a
mande comprar navios, porque os que se fabricavam em Portugal estão quási parados, e daqueles quatro, e de outro que começa o conde de Odemira na Ribeira, se entende que não poderão ir ao mar o ano que vem mais que dois, e ainda dêsses se duvida. André Henriques vem a comprar navios por ordem de
Sua Majestade
S. M.
, e traz créditos de cem mil cruzados, e suposto que dêste homem, que é muito inteligente, fia El-rei a compra, quando a
Vossa Excelência
V. Ex.a
lhe pareça podia êle também comprar aqui os outros quatro, para que
Vossa Excelência
V. Ex.a
tem ordem, e eu os poderia também ir ver, mandando
Vossa Excelência
V. Ex.a
autoridade só para se celebrarem os preços, e o dinheiro o mandará
Vossa Excelência
V. Ex.a
entregar aos donos dos navios. Estimo que o Briana ande fino, e que a liberdade de
Sua Alteza
S. A.
não tenha mais estorvos que o juramento, para o 110 qual não nos faltarão doutores na Sorbona, se bem
Monsieur
Mr.
de la Tulherie disse hontem ao senhor Embaixador, que os castelhanos absolutamente a negavam, e que assim o tivera por carta última do duque de Longa Vila. Sustente Deus a Nápoles, e traga tão boas novas da armada de França que vá por diante a prática da liga, que folgo muito de ver admitida. No particular da despedida de
Vossa Excelência
V. Ex.a
, e do outro negócio que eu havia de tratar com o senhor Embaixador, não falo, porque na segunda carta remete
Vossa Excelência
V. Ex.a
estas resoluções para segundos avisos, pelos quais ficamos esperando. O senhor Embaixador aprova mais a proposta futura que a passada, a qual diz que sente muito, e mais não cheguei eu a lhe descobrir todas as circunstâncias, porque calei cá as que
Vossa Excelência
V. Ex.a
lá calou; mas depois de lhe discorrer um pouco sôbre os motivos, respondeu com encolher os ombros. Os negócios daqui estão da parte dos Estados em silêncio, pôsto que da nossa faz o senhor Embaixador todas as instâncias, e não falta quem de uma e outra parte lhe aconselhe que peça licença para se ir, entendendo que com êste torcedor se romperá êste obstinado silêncio, e que, respondendo, será a resposta sem dúvida a favor da paz, que Holanda e todos desejam, e só Zelanda encontra. E que quando os Estados venham à cacha, e queiram deixar ir o senhor Embaixador, acudirá o de França a o impedir. Isto disse Brasset, e Mazarino o aconselha, e Luís Pereira 111 o aprova. E eu me conformarei mais com o parecer de
Vossa Excelência
V. Ex.a
, que com nenhum outro. O meu, ainda que se me não pediu, foi que, em caso que se falasse em despedida, fôsse somente insinuando-se por termos que mostrassem a ferida mas não empenhassem a palavra, com que ficasse sempre livre a Francisco de Sousa ir ou ficar, como melhor lhe estivesse. O senhor Embaixador fica resoluto a ir apertando pela resposta, e chegar aos últimos termos quando os outros não bastem. E entretanto despacha um barco a Lisboa a avisar a
Sua Majestade
S. M.
, por cujas respostas eu também faço conta de esperar, quando o estado dos negócios não peça mais apressada resolução, a qual
Vossa Excelência
V. Ex.a
me mandará conforme vir que êles se vão pondo. Recebi carta de Lisboa, de 29 de Setembro, do padre procurador do Brasil, em que me diz chegara caravela da Baía, com aviso de que a nova da armada era lá chegada, e com ela se partira logo Sigismundo para o Recife, deixando só três navios em Taparica, e a fôrça guarnecida. Não se sabe o intento desta jornada: pode ser que vá acudir a Pernambuco, entendendo que irá lá armada, ou que não queira êle ser o que perca Taparica, ou finalmente que iria consultar o Conselho Supremo, que reside no Recife, a cuja disposição remetem tudo os Estados. Acabo esta com representar a
Vossa Excelência
V. Ex.a
, o que é impossível dizer-se em poucas palavras, que é o miserabilíssimo estado a que a pobreza de
Dom
D.
Luís de Portugal tem reduzido sua casa. Demandam-no pelas dívidas não já os acrèdores maiores, mas os do pão, os da cerveja e de outras 112 miudezas dêste género, e é tal o apêrto que lhe fazem, e a impossibilidade sua, que está arriscado a o executarem, e ainda a padecer maiores indecências, porque a justiça dêstes países é inexorável a qualquer respeito, e o do mesmo príncipe de Orange lhe não valeu para os Estados lhe concederem um seguro que pediu, e lhe foi negado. Sua mulher me mandou chamar hontem por
Dom
D.
Alexandre, e a achei lastimosíssima: ela escreve a
Vossa Excelência
V. Ex.a
, pedindo que
Vossa Excelência
V. Ex.a
em nome de
Sua Majestade
S. M.
, queira acudir a êste desamparo, mandando ordem com que se lhe acabe de pagar o resto daquela antiga mercê de
Sua Majestade
S. M.
, que cuido são dois mil cruzados: o que eu posso afirmar a
Vossa Excelência
V. Ex.a
, é que a necessidade presente dêstes pobres senhores é tão extrema que a mercê vem a ser esmola, e a piedade justiça. Entendendo que tudo o que
Vossa Excelência
V. Ex.a
fizer pela remediar será muito bem recebido de
Sua Majestade
S. M.
, que Deus guarde, de cuja real clemência conheço que, se lhe fôra presente tão grande desamparo, lhe mandara acudir com maiores socorros. O senhor Embaixador lhe mandou hoje uma esmola de sua casa, e não sei eu nenhuma que seja mais bem empregada. O padre Pontilier beija a mão a
Vossa Excelência
V. Ex.a
muitas vezes, sentido de
Vossa Excelência
V. Ex.a
lhe não mandar aquelas novas de Lisboa: não escreve, porque prègou hontem, e préga dia de Natal e a primeira e segunda oitava, e todas as mais vezes que o quizerem ouvir, e creia-me
Vossa Excelência
V. Ex.a
que é grande prègador. 113
Vossa Excelência
V. Ex.a
tenha muito boas festas, e Deus guarde a
Vossa Excelência
V. Ex.a
muitos anos como desejo, e o nosso reino há mistér. Haia, 23 de Dezembro de 647. - Criado de
Vossa Excelência
V. Ex.a
. António Vieira. CARTA XIV Ao Marquês de Niza 1647 - Dezembro 30
Excelentíssimo Senhor
Ex.mo Sr.
- Chegou o alívio desta semana com a carta de
Vossa Excelência
V. Ex.a
, ainda que foram breves as respirações para tão compridas saùdades, que, se bem a distância as não cansa, experimento eu quanto as acrescenta. Não há senão apelar para as monções de Março, em que, segundo aqui vejo, cuido que poderei ir esperar por
Vossa Excelência
V. Ex.a
, pois sei que
Vossa Excelência
V. Ex.a
não há-de esperar por ninguém: e não cuide
Vossa Excelência
V. Ex.a
que êste oferecimento, ainda que tem tanto de comodidade, não leva também seu pouco de fineza, porque me acho em tão subido grau de fortuna, que sou requerido de excelentíssimos plenipotenciários de Munster, e hontem recebi carta do
senhor
sr.
Francisco de Andrada Leitão, em que me pede o avise de quando é a minha partida, para que façamos viajem juntos. Já
Vossa Excelência
V. Ex.a
terá notícia de como 114 se tratou entre os dois, a petição do que fica, que se capitulassem pazes juradas, em que o que vai não quis vir, porque se julga de superior partido. Deus encaminhe a um e a outro. À nova da perdição dos seis navios se acrescenta agora a de haver dado peste de bexigas na armada: o certo é que o vento não os favorece, e as águas desta nossa vizinhança estão já tão geladas que, hontem e ante-hontem, fomos ver correr sôbre elas a burguesia: e neste mesmo tempo entendo que estará a nossa armada dando bons princípios de ano à Baía, com sua vista, e queira Deus que seja também com vitória dos navios de Sigismundo, que, se são em número os que diz o aviso das Ilhas, sem dúvida haveria encontro no mar. Dos negócios daqui não há que dizer de novo: têm-nos prometido conferência, esperávamos que fôsse hoje, mas não veio recado. Se é certo o capítulo secreto de que
Vossa Excelência
V. Ex.a
avisa, devem isto de ser traças de entreter, e não verdadeiro desejo de concertar. E ainda que o tenha, se Deus não impede de todo a partida da sua armada, entendo que, até não saberem o sucesso dela, não hão de ajustar coisa que obrigue; e, de no Brasil vencerem ou ficarem vencidos, depende o ficarmos aqui ou em paz ou em guerra para sempre. Persuada-me
Vossa Excelência
V. Ex.a
outra coisa, que das mentiras de franceses muitos dias há que estou persuadido; e quem fala muito não pode ser verdadeiro em tudo. O capítulo 115 da carta do Padre Assistente está amplificado a la moda, e da prática da Rainha também eu não tive notícia. Muito sinto que até
Vossa Excelência
V. Ex.a
não tenha cartas de
Sua Majestade
S. M.
, e, quando isto nos pudera servir de consolação aos demais, a mim me desconsola infinito, e desculpara esta falta com a ausência de Almeirim, se não fôra geral de todos os tempos. Faça-me
Vossa Excelência
V. Ex.a
mercê de me mandar dizer se falou em mim o padre Nuno, e se dá alguma razão de novo para que se não faça a paz: ainda mal, porque temo que lhe há Deus de cumprir seus desejos. Ao Padre Pontilier dei os recados de
Vossa Excelência
V. Ex.a
; êle me deixa, e se vai a Portugal sôbre negócios do serviço, de
Sua Majestade
S. M.
, de que é o principal o que
Vossa Excelência
V. Ex.a
sabe, sôbre que espero resposta de Lisboa. Que
Vossa Excelência
V. Ex.a
a não acabe de ter nessa côrte é muito para sentir, depois de tão merecida. João de Guimarães se não carteia com esta embaixada há muitos correios, e assim não se sabe cá nada do seu tratado, e para ser à satisfação de
Sua Majestade
S. M.
basta que
Vossa Excelência
V. Ex.a
o aprove. Se
Vossa Excelência
V. Ex.a
tem algumas novas certas de Munster, socorra-nos
Vossa Excelência
V. Ex.a
, porque os nossos doutores escrevem encontrados.
Monsieur
Mr.
de la Tulherie nos diz que as cousas da paz estão mui embaraçadas, pôsto que nega a breve partida do Duque de Longa-Vila para França, em que os nossos concordam. Deus guarde a
Vossa Excelência
V. Ex.a
, e dê a
Vossa Excelência
V. Ex.a
e a toda a casa muitos bons princípios de ano de 648, e o 116 faça tão feliz como os Bandarristas querem e crêem. Haia, 30 de Dezembro de 647. António Vieira. 118
CARTA XVI Ao Marquês de Niza 1648 - Janeiro 6
Já não fazia conta de poder escrever neste correio a
Vossa Excelência
V. Ex.a
, pela muita ocupação dêstes dias em escrever a Portugal, que foi necessário fazê-lo com mais largueza, dando-lhe conta desta armada, e discorrendo com as notícias do Brasil, sôbre o modo da guerra que lá se deve fazer, que, se não fôr muito particular, pode correr risco a nossa armada, e após ela tudo. Se puder mandarei a
Vossa Excelência
V. Ex.a
a cópia de um papel, para que, com a aprovação de
Vossa Excelência
V. Ex.a
, tenha esperanças de que em Portugal se aceite, e no Brasil se execute. Leva-o o Padre Pontilier que, sôbre hoje nos aguar a solenidade dos Reis com os sentimentos 119 de sua despedida, agora se fica para outra ocasião, porque, como o bom vento aqui é tão raro, os pilotos não esperam por ninguém. Várias perdas se referem de navios e gente do inimigo, particularmente morta de bexigas, que depois que o reverendo padre Francisco as lisonjeou tanto em El-rei de França, puseram-se da parte de El-rei de Portugal. Houve conferência, em que antes alcançámos que perdemos esperanças. Veio Zelanda, que nunca tinha vindo, e agora é o tempo de a comprarmos, se ela se quiser vender, com que a principal dificuldade ficará vencida.
Monsieur
Mr.
de la Tulherie me chama demasiadamente confiado, porque me vê rijo em condescender com petições demasiadas dêstes senhores; bem sabe
Vossa Excelência
V. Ex.a
que ninguém mais que eu deseja a paz, mas há-de ser como convém. Sinto que não haja partido a fragata de Ruão, porque de cá não foi nem pôde ir aviso até agora, nem poderá ir senão com o mesmo vento que levar a armada, e importava muito que chegara quando menos um mês antes. Também me pesa que o negócio das de
São
S.
Maló não tivesse efeito até agora. Espero que
Sua Majestade
S.M.
o aprove, e entendo que, com aviso seu e sem êle, lhe fará
Vossa Excelência
V. Ex.a
mui particular serviço nesta negociação. Tomei tão pouco papel, porque cuidei que me não desse lugar a tantas regras o senhor Embaixador, com quem imos esta tarde a cear
com Monsieur
Mr.
de la Tulherie que nos convidou. 120 Deus nos tenha as cabeças de sua mão, e a
Vossa Excelência
V. Ex.a
dê muito bons Reis, e se fôr bom um basta. Pelos meus peço me tenha
Vossa Excelência
V. Ex.a
em sua graça. Haia, 6 de Janeiro de 648. - Criado de
Vossa Excelência
V. Ex.a
. António Vieira. CARTA XVII Ao Marquês de Niza 1648 - Janeiro 12
Excelentíssimo Senhor
Ex.mo Sr.
- Creio o contentamento que
Vossa Excelência
V. Ex.a
me faz mercê dizer recebeu com a nova da minha chegada a esta casa, tanto pelo que leio na carta de
Vossa Excelência
V. Ex.a
, como pelo que me assegura o meu coração, cujo afecto merece a
Vossa Excelência
V. Ex.a
, esta boa vontade, pôsto que, por tudo o mais, não caiba em mim o favor e mercê que
Vossa Excelência
V. Ex.a
me faz. Muito me espantou a simplicidade do que se deixou dizer António Moniz, e, se
Vossa Excelência
V. Ex.a
a não escusa por êste nome que lhe dou, digo que Deus nos livre de bacharéis. Mas como o zêlo, desinterêsse e inteireza de
Vossa Excelência
V. Ex.a
está tão conhecida de
Sua Majestade
S. M.
e de todos, há-me de dar licença
Vossa Excelência
V. Ex.a
para me não conformar com que a confiança de
Vossa Excelência
V. Ex.a
, quando deve estar tão segura, desse entrada a semelhante escrúpulo. Antes entendo que o pode
Vossa Excelência
V. Ex.a
fazer de se não pôr em prática o negócio dos navios de 121
São
S.
Maló, e muito mais pela nova razão que
Vossa Excelência
V. Ex.a
aponta, a qual só, quando não houvera outras, era bastante para se concederem grandes privilégios a quem nos fosse socorrer em tal ocasião. Para tudo há entendimentos; mas o meu considera tão diferentemente êste caso, que cuido devia
Sua Majestade
S. M.
fazer mercês aos mercadores que quisessem armar, e não êles serviço a
Vossa Excelência
V. Ex.a
. Sôbre os negócios de André Henriques fui esta semana a Amsterdam, onde achei tudo empatado, porque as ordens que traz são que êle, e Bento Osório, e um Diogo Nunes Roxo, que são os que hão-de pagar os créditos, todos três juntos vejam os navios, e se satisfaçam dêles e do preço; e, quando se haja de fazer a compra em Hamburgo ou Lubeque, nomeiem estes dois mercadores outros dois, que lá façam o mesmo em seu nome, de maneira que nem êles sem André Henriques, nem André Henriques sem êles, possam fazer cousa alguma. Sucedeu pois que, no mesmo dia em que chegou André Henriques, morreu Diogo Nunes Roxo, e a isto se pega agora Bento Osório, dizendo que falta uma condição essencial, e que sem ela nem êle pode comprar nem dar dinheiro, porque teme que depois lho não levem em conta. Fiz quanto pude pelo mudar desta opinião, alegando-lhe outra 122 cláusula das mesmas ordens, a qual diz que os navios hajam de estar em Lisboa por todo Março, e que segundo isto se hão-de interpretar as ordens, e entender-se que, em falta de um dos comissários, dão poder aos outros para contratarem, pois do contrário se fica perdendo o tempo e o mesmo negócio, e que para maior segurança lhe daria isto mesmo assinado e aprovado pelos embaixadores de
Sua Majestade
S.M.
e por mim. Acrescentou-se a isto que ùltimamente chegou outra carta de Lisboa, na qual se diz a André Henriques que, bondade por bondade e preço por preço, vá antes comprar os navios a Hamburgo ou Lubeque, pelo perigo que há de os holandeses os poderem aqui tomar ou embargar. A que satisfiz dizendo-lhe que tínhamos, por notícias certas, que em Hamburgo não havia navios, e que, quando os houvesse, não podiam ser iguais na bondade aos que aqui há, porque são as melhores fragatas de guerra que até agora se viram, e sôbre tudo que no-los queriam vender com seguro de se entregarem em Lisboa, em que não havia risco algum. Mas nenhuma destas razões e outras muitas bastou a dobrar a obstinação de Bento Osório, firme sempre em que não havia de dar o dinheiro sem nova ordem, e que, quando menos, se haviam de ir comprar os navios a Hamburgo. Este é, senhor, o estado em que estão os créditos dos cem mil cruzados, e eu não culpo tanto a tenacidade de Bento Osório, porque alfim tem alguma razão (quando o não faça por temor dos da Companhia, e por ser êle um dos mais interessados na Ocidental). Mas tenho grande dor que de Portugal venham as cousas ordenadas em tal forma, e que se faça tão pouca confiança ou das pessoas que se mandam, ou dos ministros que cá tem
Sua Majestade
S. M.
, que nenhum dêles tenha neste caso autoridade para dispôr o que mais convém a seu real serviço, e que êste se haja 123 de perder, ou quando menos dilatar, que no negócio presente vem quási a ser o mesmo. Para ver se podia remediar isto de algum modo, fiz o que agora direi a
Vossa Excelência
V. Ex.a
. Há em Amsterdam um flamengo, homem do maior crédito, cabedal e sciência de esquipagem, de quantos têm estas Províncias, e sobretudo muito fiel e verdadeiro, e de que a república de Veneza fia o trato que aqui tem de navios. Este flamengo se oferece a nos fabricar de novo seis ou mais fragatas de guerra, pelas bitolas que lhe der André Henriques, e de as dar aparelhadas e acabadas, postas no pôrto de Texel para partirem com o primeiro vento, desde o dia que se celebrar o concêrto a três meses, e com condição que as segurará até se entregarem em Lisboa, pagando-se-lhe ou o que concertarem logo, ou o que as ditas fragatas, depois de acabadas, houverem feito de custo, com a ganância que fôr razão. E o mesmo flamengo as fornecerá de velame, enxarcia, munições e artilharia, porque de tudo isto tem grandes armazens, e é contente que, se em alguns dêstes géneros houver cousa que em Portugal não pareça bem, se queime e se lhe não pague. E, para se começarem logo a fazer estes navios, não quer mais que ficar com êle André Henriques, que lhos pagará em dinheiro que tenha para isso efectivo, sem intervir mercador algum, por razão do secreto que convém guardar, e por via de mercadores se rompe logo, como aconteceu nêste mesmo negócio, que muito antes de chegar André Henriques era público na Bôlsa de Amsterdam. O que eu posso segurar a
Vossa Excelência
V. Ex.a
é que André Henriques está doido de contente com a traça dos navios, que a mim me parecem os melhores que se têm feito, nem pode haver para guerra. De Calais vim em um dêstes, e 124 em Amsterdam estive em outro, que é o que inculcou Jerónimo Nunes. Não passam de duzentas toneladas, e jogam 26 peças de artilharia de 8, de 12 e de 16 libras. São muito fortes, muito aparatosos, muito ligeiros; demandam tão pouca água que podem entrar em Viana com águas mortas, governam-se com pouco pano, com pouca enxarcia e com pouca gente; e no preço entendo que não há-de passar de vinte mil cruzados, com artilharia e tudo o mais, feitos de novo. Para não se perder tempo nem esta boa ocasião, disse a André Henriques que lançasse mão dela, e que logo se concertasse sôbre seis navios com todas as condições referidas, e que bem podia segurar o dinheiro, porque eu escreveria a
Sua Majestade
S. M.
que viessem as ordens em forma que, sem perigo do secreto, nem impedimento de terceiro, se pudesse fazer o pagamento com toda a pontualidade. Não se conformou com êste meu conselho André Henriques, pôsto que lhe pareceu muito bom; mas não se atreveu, por não estar assim escrito nas suas ordens, que estes doutores marítimos também não admitem interpretações. E assim o deixei em Amsterdam sábado, 11 dêste, resoluto a quarta feira se pôr em caminho para Hamburgo. Contudo, depois de comunicar êste meu parecer aqui ao senhor Embaixador, com aprovação sua tornei a escrever a André Henriques sôbre o mesmo, encarecendo-lhe a importância do negócio, e a perda irreparável do tempo e ocasião, e tomando sôbre mim a culpa, quando a haja. Não sei se valerá alguma cousa, porque a carta foi hontem, e não poderá vir a resposta senão amanhã. 125 Isto quanto aos navios que se hão-de fazer: feitos tem êste mesmo homem a fragata "Fortuna", de que avisou Jerónimo Nunes, e outros três ou quatro do mesmo porte: estes me parece que são os melhores que
Vossa Excelência
V. Ex.a
pode mandar comprar, conforme a primeira ordem de
Sua Majestade
S. M.
, sem embargo de não haverem vindo as medidas, porque André Henriques, que as traz, julga que são os navios muito melhores do que de lá vem arqueados. E êle podia fazer esta compra, pois é pessoa enviada por
Sua Majestade
S. M.
para isso, e iriam os navios carregados de trigo, e levariam o embaixador Francisco de Andrada. Havendo de se fazer esta compra, entendo que seria com mais comodidade da fazenda de
Sua Majestade
S. M.
(mas isto em segrêdo) correndo por mão de André Henriques que pela de Jerónimo Nunes, porque havendo falado ambos com o dono da mesma nau, e sôbre o preço, André Henriques me falou em
4000
4.000
ou
5000
5.000
florins menos. E, se se fizer o outro contrato, ajudará a que seja mais acomodado o preço destes navios. Sôbre uns e outros fico esperando aviso de
Vossa Excelência
V. Ex.a
, para assim desistir de todo ou tornar a insistir neste conselho, que dava a André Henriques. Muito estimo, e muito é para estimar o tratado dos socorros, e ainda será melhor o que depende da continuação da guerra.
Monsieur
Mr.
de la Tulherie nos disse, ontem à noite, que os espanhois estavam muito inteiros em se não quererem descer às condições da paz, e que os pontos da repugnância eram estes seis: o senhor
Dom
D.
Duarte, a assistência de Portugal, a continuação das fortificações começadas em Catalunha, a divisão de Flandres, Casal, e o duque de 126 Lorena. Mas que isto era só querer dificultar ou negar com pretexto: porque os dois primeiros pontos já estavam decididos, e que sôbre êles, e sôbre os três seguintes, se tinha dito por parte de França aos holandeses, que o príncipe de Orange e êles os julgassem (devem de estar seguros da tenção dos juízes, ou ser isto modo de satisfação e cumprimento); que ao duque de Lorena dava França cem mil cruzados de renda, a seu irmão quarenta, a sua mulher outros quarenta, e que Castela o não assistisse um ano, em que suas cousas se acomodassem, e quando a cabo dêle o não estivessem se tomariam árbitros. Do estado dos negócios de aqui não há que dizer; tudo consiste em haver modo de reduzir a Zelanda que, como mais interessada, é a maior e mais pertinaz adversária. A êste fim referiu hontem o senhor Embaixador a
Monsieur
Mr.
de la Tulherie o que o Cardial nos respondeu, quando se lhe disse que havia meio para se comprar Zelanda por
100000
100.000
escudos, e que até os
200000
200.000
se dariam se se fizesse a paz, com condição porém que não se pagariam senão depois de feita. Não está aqui com quem se há-de fazer esta negociação, mas virá cedo. Se tiver efeito eu a darei por bem empregada, e entendo que
Vossa Excelência
V. Ex.a
também. Mas mais me fiarei dos ventos contrários, se Deus fôr servido que continuem, porque só a desesperação parece que reduzirá estes obstinadíssimos ânimos a acomodamento. A barca que despachou o senhor Embaixador ainda não é partida à causa do vento. De Lisboa não tivemos carta mais que de
Monsieur
Mr.
Lanier. As novas que
Vossa Excelência
V. Ex.a
nos dá, de [de?]
em Alentejo se converterem as armas em arados, parece 127 cousa da vinda do Messias; contentíssimos ficámos todos de ouvir isto. Também as novas do Patriarca não são para desejar: em Amsterdam ouvi que a causa, de não virem naus da Índia êste ano, fôra mandar o vice-rei todas em socorro de um rei contra os holandeses. À senhora
Dona
D.
Ana de Portugal dei a carta de
Vossa Excelência
V. Ex.a
, e li o capítulo da minha: agradecidíssimos estão todos estes senhores a
Vossa Excelência
V. Ex.a
pela mercê e esmola dêste socorro, que tudo foi. O senhor Embaixador os havia já socorrido com mil florins, pela extrema necessidade, e hoje lhes mandou os quinhentos. Faz-se diligência pela letra, que irá se vier a tempo, e carta da senhora
Dona
D.
Ana, que me mandou hoje pedir, por seu filho
Dom
D.
Manuel, que também da sua parte desse a
Vossa Excelência
V. Ex.a
as graças, como faço. O padre Pontilier está ainda aqui; não o fizeram mártir os hereges, mas os católicos o quiseram apedrejar, porque dia de ano bom, àcêrca do sangue de Cristo, disse alguns louvores dos portugueses; o que foi tão mal aceito dos senhores católicos, nossos capitais inimigos, que chamaram ao sermão oração fúnebre de El-rei de Portugal: por tão morto o dão! Mas o senhor Embaixador os multou com ordenar que não tivessem mais sermão, nem em francês nem em flamengo, e assim se lhes declarou em uma estação, que foi melhor que o sermão. Hontem logo escrevi a Jerónimo Nunes a falta que 128 havia em Portugal de pão, e, quanto lá se podia interessar nesta droga, para que por si e por outros procurasse que fosse. E, se a razão do interesse não obrigar aquêles amigos a mandar o trigo, entenda
Vossa Excelência
V. Ex.a
que nenhum outro respeito lho persuadirá, porque temos entre êles muito poucos que hoje desejem o nosso bem, uns por holandeses, e outros por finíssimos castelhanos e inimigos de
Sua Majestade
S. M.
: por sinal que, de três com que só falei em Amsterdam, me pôs um em ocasião de lhe fazer um fraco serviço por esta causa, se me não lembrara mais do hábito que professo, que do que agora visto: mas de palavra me ouviu o que não quisera. Acabo, como
Vossa Excelência
V. Ex.a
, com o Padre Nuno da Cunha na bôca, cujos modos não estranho, e, sem
Vossa Excelência
V. Ex.a
me mostrar as cartas, conjecturo o que elas podem dizer em razão desta minha jornada, porque não são as primeiras que vi dêste assunto escritas e firmadas por sua mão. Eu lhe perdôo, mas Deus me vinga, porque tenho aviso de Roma que, muito a seu pesar, vai em bons termos o negócio da divisão das províncias. Viva o nosso Alentejo, e viva
Vossa Excelência
V. Ex.a
tantos e tão felizes anos, como êste afeiçoadíssimo servidor lhe deseja. Haia, 12 de Janeiro de 648. - Às 10 da noite, que é a causa por que não respondo ao senhor Residente, que farei no correio seguinte. 129 O padre Pontilier não escreve por não estar para isso, e não está para isso porque vem amanhã comer cá
Monsieur
Mr.
de la Tulherie; e, porque se queixa que lhe dão bem de comer e mal de beber, se encomendou a prova dos vinhos ao padre de Bordeus, o qual mostrou nela não ser de prova. Mas, porque se não escandalize o reverendo Padre frei António, advirto que nesta terra não é pecado nem desonra. António Vieira. CARTA XVIII Ao Marquês de Niza 1648 - Janeiro 20
Excelentíssimo Senhor
Ex.mo Sr.
- Com razão promete alentos esta carta de
Vossa Excelência
V. Ex.a
de 10 do corrente, pois as novas dela podem ressuscitar os mortos, quanto mais alentar os vivos. Melhor é esperar em Deus que nos homens; mas bom é experimentar e conhecer também a estes, para que se não refiram as graças senão a quem se devem os benefícios. Na passada dizia eu a
Vossa Excelência
V. Ex.a
que boa era a nova dos socorros, mas melhor a esperança de os não haver mister; e, segundo o que
Vossa Excelência
V. Ex.a
passou com o Cardial, pouco falta para se poder ter por certo que continuará a guerra entre Castela e França; e, o pedir-nos esta assistências, quando aquela nos oferece suspensões, efeitos parecem nascidos da mesma causa, e dignos de toda 130 consideração. A que
Vossa Excelência
V. Ex.a
faz, sobre o Cardial querer tirar socorros de Portugal, quando por sua vontade ou pela dos castelhanos há-de continuar a guerra, é ponderação mui do juízo de
Vossa Excelência
V. Ex.a
, e a verdadeira. De maneira, senhor, que até agora nos dizia êste mesmo ministro que França não havia de deixar de fazer a paz por amor de Portugal, e nos mandava cada dia repetir êste desengano em Lisboa, em Paris e em Munster; e agora, que a conveniência ou a fôrça o reduz a continuar a guerra, quer-nos vender a liga, como se deixara de fazer a paz por nossa causa, e como se, uma vez posta França em guerra, necessitara menos da conservação e união de Portugal que da de Nápoles, a que tão poderosa e tão empenhadamente assiste! Eu entendo que, em aceitar a liga, fazemos nesta ocasião mais serviço a França que ela a nós, porque desde logo nos privamos do benefício da suspensão de armas, que já se nos oferece e poderíamos lograr por muito tempo, fortificando-nos e refazendo-nos entretanto; e nos inabilitamos para depois não poder fazer uma paz com Castela, que, feita só connosco, e nas esperanças de a ajudarmos, ou ao menos guardarmos neutralidade, se nos poderia conceder, com tão avantajados partidos como se deixa ver. Além de que todas as razões pediam que fôsse Portugal o que recebesse os socorros de França, e não ela de Portugal, por ser aquêle reino o mais poderoso, por ser o seu intento conquistar e o nosso defender, por ter êle um só inimigo e inferior, e os nossos serem dois, e ambos em seu género superiores, como é Holanda por mar e Castela 131 por terra. E em caso, que se não pode segurar, que fiquemos em guerra com Holanda, atarmo-nos no mesmo tempo, para não poder fazer paz com Castela, não deixa de ser matéria considerável, ao menos para que França a conheça. Vejo que me diz
Vossa Excelência
V. Ex.a
que não há muitos dias que eram diferentes as nossas considerações. Assim é, senhor, que tão bom Deus temos como isto; e pois, por mercê sua e diligências de
Vossa Excelência
V. Ex.a
, estão já outros os tempos, bem é que se acomodem também a êles os pensamentos. Se França continuara a guerra por amor de nós, fôra eu de parecer que lhe pagaramos essa fineza a qualquer preço; mas se disto nos desenganou tantas vezes, e é certo que não faz a paz, ou porque não quer, ou porque não pode; porque há-de querer o Cardial que, sendo França a que neste caso nos havia de rogar com a liga, como mandou dizer a
Vossa Excelência
V. Ex.a
o conde de Briana, seja
Sua Majestade
S. M.
o que a peça, e que para se lhe conceder ofereça partidos? Digo isto somente pelo sentimento que me causa a sem razão, e não por me parecer que com França se não tenha toda a boa correspondência, principalmente que, chegando a se capitular, sempre deve ser recíproca. E, se as assistências que dermos a França fôrem, como devem querer, em navios; se por tantos homens embarcados no mar nos dessem tantos montados em terra, seria uma igualdade em que Portugal não ficaria de pior partido. Todos os que
Vossa Excelência
V. Ex.a
fizer serão sempre os que mais convenham, e só de alviçaras, pela nova de ficar França em guerra, merece o Cardial que
Vossa Excelência
V. Ex.a
lhe conceda de mais alguma coisa. Quanto ao ponto das conquistas pelo que se deixa entender das preguntas do Cardial, e de outros indícios antigos e modernos, parece que os franceses têm intentos, 132 não só nas conquistas de Castela, mas também, do modo que pode ser nas de Portugal, e sobre umas e outras direi o que se me oferece. Nas nossas conquistas podem os franceses querer ou parte das terras que possuímos, ou liberdade para comerciar nos nossos portos. Do primeiro temos exemplos antigos, quando os franceses começaram a conquistar primeiro o Rio de Janeiro, depois o Maranhão, e ùltimamente, em tempo do Cardial Richelieu, tiveram em pensamento a ilha de
São
S.
Lourenço, de que
Sua Majestade
S.M.
foi avisado: e do segundo há os modernos, da licença, que alguns mercadores pediram e alcançaram, para ir aos portos do Brasil e Angola. Mas nem uma nem outra coisa parece razão que se conceda a França; porque, como havíamos de dar de graça o que à custa de tanto sangue e dinheiro estamos defendendo? E, se o nosso comércio está tão diminuído pela parte que dêle nos tiraram os holandeses, qual ficará se os franceses levarem outra? E quando
Sua Majestade
S.M.
, por comprazer em tudo a França, intentasse qualquer destas coisas, principalmente a primeira, é matéria que se não pode fazer sem consentimento do reino, o qual nunca viria nela; e isto se podia responder ao Cardial em caso que declaradamente a pedisse. Mas, porque
Sua Majestade
S. M.
mostre a França quanta vontade tem de comunicar com ela nossos interesses; quanto aos do comércio lhe podia
Sua Majestade
S. M.
conceder que, fazendo-se em Portugal uma companhia oriental (como é necessário e forçoso fazer-se, ou para a guerra ou para estabilidade 133 da paz), a esta companhia serão admitidos os franceses, do mesmo modo que os portugueses, não para poderem navegar de Franca à Índia, que isto não convém permitir-se, mas para com seus cabedais, e ainda alguns com as pessoas, comerciarem de Lisboa para a Índia, e da Índia para Lisboa, no que os direitos de
Sua Majestade
S. M.
não recebem diminuição, e o comércio, ainda que com utilidades de França, grande aumento. Mas não se lhe deve conceder isto com cláusula exclusiva de outra nação, para que nos fique sempre livre admitir à mesma companhia as que quisermos, ou no-lo merecerem. Quanto às terras, em caso que não tenhamos paz com os holandeses se pode capitular com França que, ajuntando na Índia ambas as coroas duas partes iguais de poder, ou oculta ou declaradamente (segundo o estado em que França ficar com os holandeses) se faça uma liga contra êles, com a qual lhes faremos uma poderosa e mui proveitosa guerra, assim nas terras que ocupam na Índia, como nos mares em que comerceiam, partindo-se igualmente entre as duas corôas tanto as presas como as fortalezas e terras que se tomarem, em que Portugal cederá o seu direito à França, pela parte que lhe couber, a qual parte melhor é que a possuam católicos, ficando da outra excluídos os hereges. E, para todo o caso que se pode considerar, menos danoso vizinho nos há-de ser o francês, como menos poderoso no mar, do que o holandês é hoje e será sempre. Isto quanto às nossas conquistas; e não falo nas do Brasil e Angola, porque destas não parece conveniente conceder coisa alguma à França, sem muito conhecida e superior utilidade, a qual se não pode facilmente considerar senão em caso que, ficando França em guerra com Holanda, nos ajudasse a conquista daquelas terras e praças. Mas 134 também vejo que, no tal caso, nós bastaríamos para as recuperar. Quanto às conquistas de Castela, a primeira que pode entrar em consideração é a de Chile, que está no mar do Sul em altura de 38 graus. Fácil de conseguir pela pouca resistência dos portos, é das ricas e proveitosas que se podem empreender, tanto pelo que é em si, como por ser passo para as serras e minas do Perú, em que estão depositados os maiores tesouros das Índias Ocidentais; e pode ajudar muito a esta navegação o pôrto do Rio de Janeiro, que fica no meio da viajem, e é mui capaz de nêle se refazerem os navios, e se proverem do necessário. Contudo, eu não seria de parecer que por aqui se começasse a guerra ou conquista das Índias: porque é a viajem compridíssima, que se não pode fazer em menos de sete ou oito meses, havendo de passar os navios pelo estreito de Magalhães, ou por outros novamente descobertos de que ainda não há certos roteiros, nem bastante conhecimento dos mares e costas, em que se considera muito maior perigo que proveito, como experimentaram os holandeses, na viajem que lá fizeram desde Pernambuco, no ano de 642; além de que, por esta via, ao menos nos princípios, não se podem divertir nem enfraquecer consideràvelmente as fôrças de Castela, que deve ser um dos primeiros e principais intentos desta guerra. Por esta razão e por todas, me parece que o poder que se mandar às Índias se deve encaminhar contra os mesmos mares e portos por onde se embarca e conduz a prata, assim do Perú como de Nova Espanha; na qual empresa o menos que se pode logo conseguir é tomar ou impedir a frota, e todo o comércio e proveitos que Espanha recebe das Índias. A navegação é muito segura e fácil, porque se pode fazer em dois meses; servem-lhe 135 para a ida e para a vinda os portos de Portugal e das ilhas: para a continuação da guerra se podem mandar socorros de mantimentos do Maranhão e do Pará, com grande abundância e brevidade; e, como muitos dos moradores dos portos e cidades das Índias, e a maior parte dos pilotos, e muitos dos marinheiros da frota são portugueses, podem-se com êles ter inteligências de grande importância, assim para as notícias como para as empresas. Para começar esta conquista bastam doze galeões e doze fragatas, com
4000
4.000
soldados. E intentando-se, seria eu de parecer que se não começasse pela terra firme, senão em alguma das muitas ilhas que ali há, ou no canal de Panamá, com que se fecharia o comércio, ou em outro sítio daquelas entradas, que se tiver por mais acomodado. Esta ilha servirá como de praça de armas, onde as naus se possam recolher e refazer, e ainda lavrarem-se muitos mantimentos, que de tudo são capazes por sua grandeza e fertilidade algumas daquelas ilhas. Também se pode intentar a conquista do Rio da Prata, de que antigamente recebíamos tão consideráveis proveitos pelo comércio, e se podem conseguir ainda maiores, se ajudados dos de
São
S.
Paulo marcharmos, como é muito fácil, pela terra dentro, e conquistarmos algumas cidades sem defensa, e as minas de que elas e Espanha se enriquece, cuja prata por aquele caminho se pode trazer com muito menores despesas. Ouvi que em França se está fazendo uma companhia muito poderosa, para a conquista dêsse Rio da Prata, sem dúvida por notícias tiradas do nosso reino, e por ventura que as informações do Cardial tirem a êste fito. E assim me parecia, quando êle falasse a
Vossa Excelência
V. Ex.a
na matéria, poderia
Vossa Excelência
V. Ex.a
responder-lhe que o Rio da Prata não é conquista de consideração, porque não tem prata nem cidades senão de ali a quinhentas léguas 136 de campos desertos, de onde vinham alguns mercadores a comprar os negros de Angola, que ali lhe levávamos antigamente, o que se acabou com a guerra de Castela; e, para ver se este comércio se pode renovar, uma das ordens que levou Salvador Correia foi mandar tomar aquele pôrto. E assim é necessário que
Sua Majestade
S. M.
o faça logo, e que
Vossa Excelência
V. Ex.a
lho escreva, como eu também farei, porque bastam dois navios, e duzentos ou trezentos homens, para tomar Buenos Aires, que é a única povoação que ali há de castelhanos, e, se nos não anteciparmos, podem os franceses tomar-nos a bênção, o que nos estava sempre muito mal, porque, demais da perda do comércio, ficarão com êles mui devassados todos os mares e portos do Sul, de que sempre fomos absolutos e pacíficos senhores. Entre as tentações de França àcêrca de nossas conquistas, ouvi dizer em Lisboa e aqui, que não deixa de ser uma, e porventura a principal, o Rio de Janeiro, ajudando-se a ambição de uma espécie de justiça, porque antigamente, quando conquistámos aquelas terras, tomámo-las aos índios e a franceses, que êles ainda não estavam em um lugar do mesmo pôrto fortificados. E perguntar agora o Cardial com tanta miudeza pela distância da Baía, e se se podiam mandar socorros por terra, antes acrescenta que desfaz esta suspeita. Mas, para que se desengane da imaginação ou não entre nela, lhe pode
Vossa Excelência
V. Ex.a
dizer que o Rio de Janeiro é a praça do Brasil que pode melhor que todas ser socorrida por terra, porque tem muitas aldeias vizinhas de índios vassalos de
Sua Majestade
S. M.
, e a cidade de Cabo Frio, que é de portugueses, e as vilas de
São
S.
Vicente, Piratininga, 137 Ilha Grande e outras, e sôbre todas a de
São
S.
Paulo, cujos moradores são os mais valentes soldados de todo o Brasil, e para aquela guerra os melhores do mundo. Esta é, senhor, a informação que se me oferece sôbre as perguntas do Cardial, e eu estarei de aviso se cá me fizerem as mesmas, para responder conformemente; e pode ser que a êsse fim me dissesse já hontem aqui o Tulherie que folgaria de que um dia lhe dissesse eu os nomes dos animais do Brasil, que estão no seu mapa, e àmanhã determino ir provar esta aventura. Neste ponto recebi carta de Jerónimo Nunes, na qual diz o seguinte: "Grandes novas tem esta gente do Brasil, pois avisam que mataram em Taparica ao Rebelinho, e a outros oficiais, e que com trinta embarcações estavam esperando a nossa armada". Conforma isto com a carta de António Rodrigues de Morais, que
Vossa Excelência
V. Ex.a
me enviou, e com o que eu tive por outra do padre Procurador do Brasil, pôsto que não especifica coisa certa, e só fala em perda considerável. Sôbre êste sucesso deve de cair o enfadamento que Lanier escreve tem
Sua Majestade
S. M.
com António Teles: se o houvera tirado escusaram-se estes e outros inconvenientes. A tormenta dêstes dias fez em Texel grande estrago, e só dos navios do Brasil ficaram sem mastros e encalhados cinco, que já não podem ir nesta armada, e os três são de guerra e dos maiores, e ainda se não sabe o dano que receberiam os que estavam nas Dunas de Inglaterra e 138 outros portos. Deus a edificar e nós a destruir: temo que esta nova do Brasil meta em esperanças os que já desconfiavam, e que se atrase o negócio que o senhor Embaixador trabalha como sempre, caminhando ao presente por aquela estrada real, que é o melhor atalho, e hontem disse Tulherie que já tinha quem comprasse cinco ou seis dos de Zelanda, em que só está a resistência. Depois do que escrevi a
Vossa Excelência
V. Ex.a
sôbre André Henriques, nos entrou quarta feira pela porta, resoluto a se embarcar para Lisboa, com a nova da prisão de Duarte da Silva, com que não há que falar em se pagarem os créditos, por ser o dinheiro nas mãos dêstes homens como fortaleza de homenagem, que nem ao dono se entrega se está preso. O dano que esta prisão faz e há-de fazer ao comércio de Portugal é maior do que lá se considera, e porventura que seja igual ao que se deseja, que não posso cuidar outra coisa. Enfim, senhor, para que o tempo se não passasse, e se acudisse a esta necessidade de alguma maneira, resolveu o senhor Embaixador comigo que André Henriques se não fôsse para Lisboa, senão para Hamburgo, com cartas que lhe démos mui encarecidas para Duarte Nunes, pedindo-lhe quisesse assistir com seu crédito a compra de até seis navios, e segurando-lhe em nome de
Sua Majestade
S. M.
a prontidão do pagamento, sôbre o que será bem que
Vossa Excelência
V. Ex.a
escreva. Jerónimo Nunes escreveu também a seu pai, animando-o, e cuido que por sua parte quere igualmente fazer compra de fragatas em Amsterdam, a 139 que eu o tenho exortado com grandes promessas, entre as quais me empenhei também que
Vossa Excelência
V. Ex.a
mandaria de aí o dinheiro que fôsse possível, que, suposto o presente apêrto, entendo o terá
Vossa Excelência
V. Ex.a
ainda por melhor empregado na compra dos navios, que na leva do terço de infantaria. Sôbre o provimento do reino, assim de víveres como de munições, tenho feito e vou fazendo a diligência que posso, e se os ministros de
Sua Majestade
S. M.
lá pagaram bem, toda a Holanda se nos fiara. Que importa que uns façam por uma parte, se outros desmancham por outra? Entre os navios que se perderam, quis Deus que escapassem os que estavam carregados de pão para Lisboa. A nova do senhor conde de Castelo-Melhor é muito digna do sobresalto com que foi recebida: cá a festejámos como merece, e o senhor Embaixador a mandou logo meter nas gazetas de Amsterdam, para que corra. Essa carta da senhora
Dona
D.
Ana de Portugal chegou tão tarde, que não pôde ir no correio passado: as letras passei por Jerónimo Nunes, a quem mandei o capítulo da de
Vossa Excelência
V. Ex.a
, para que, conforme êle, as dispusesse como vão. Se
Vossa Excelência
V. Ex.a
tem alguma resposta àcêrca daquelas audiências, estimarei saber o que de lá se escreve, porque recebi uma carta de Pero Vieira, em que leio grandes desconfianças suas, e enfadamentos de todo o triunvirato. Então diz
Vossa Excelência
V. Ex.a
que se quer ir meter no castelo da Vidigueira? Faça
Vossa Excelência
V. Ex.a
escrúpulo de tanto amor próprio, e senão aparelhe-se
Vossa Excelência
V. Ex.a
para fundar lá um colégio, ou 140 quando menos dois cubículos da Companhia, que, solitário ou encastelado, não me atrevo a viver senão onde sirva a
Vossa Excelência
V. Ex.a
. Sinto não chegar a minha esfera a Roma para o fazer nesta ocasião; mas oferecerei pelo bom despacho do
senhor
sr.
Dom
D.
Simão todas as missas das quartas feiras, que em toda a parte são a maior valia; e saiba
Vossa Excelência
V. Ex.a
, em secreto, que se opõe à mesma prebenda o senhor Camareiro-mor, para seu irmão. Guarde Deus a
Vossa Excelência
V. Ex.a
muitos anos como desejo, e o nosso reino há mistér. Haia, dia de
São
S.
Sebastião de 648 - Criado de
Vossa Excelência
V. Ex.a
. António Vieira. CARTA XIX Ao Marquês de Niza 648 - Janeiro 27
Excelentíssimo Senhor
Ex.mo Sr.
- Recebi a de
Vossa Excelência
V. Ex.a
de 17 do corrente, que é resposta da que escrevi em dia de Reis; e, para que
Vossa Excelência
V. Ex.a
o tenha a bom presságio, saberá
Vossa Excelência
V. Ex.a
que não só em Munster foi rei o embaixador Francisco de Andrada, senão também que
o senhor
sr.
Francisco de Sousa Coutinho representou menos gravemente o cargo, porque pôde vir por seu pé ao coche, o que não aconteceu a
Sua Majestade
S. M.
de Munster, 141 que, segundo dizem, foi em braços de quatro, com que não é muito que lhe parecesse o reinado breve. Mas, com a vida dêstes países ser tão ocasionada a semelhantes alegrias, bem me pode
Vossa Excelência
V. Ex.a
crer que eu a trocara pela de Paris, ainda que
Vossa Excelência
V. Ex.a
não seja rei nem roque: letrados tem
Vossa Excelência
V. Ex.a
em casa, que podem julgar se é maior fortuna segurar coroas para muitos anos, ou possuí-las, ainda que foram verdadeiras, por tão poucas horas. Primeiro que tudo, senhor, sinto muito que o
senhor
sr.
Dom
D.
Jorge, sôbre não recebido em Portugal, se veja tão maltratado em Castela, com que se verifica quão caluniosas foram as causas da primeira resolução; e, quando as houvera provadas, que melhor fiador que o parentesco de
Vossa Excelência
V. Ex.a
para o receio? e que outro motivo era necessário para o esquecimento de tudo? Entendo que
Vossa Excelência
V. Ex.a
devera escrever apertadamente a
Sua Majestade
S. M.
sôbre esta matéria, e juntamente ao
senhor
sr.
Dom
D.
Jorge, para que o enfadamento lhe não agrave a enfermidade; e, se a dilação dos negócios desse bastante tempo para se poder vir para França, seria o mais eficaz meio, e o mais breve caminho de se acabar de resolver esta quimera em Portugal. Estimo que a senhora Condessa fôsse a Alvito, para que
Vossa Excelência
V. Ex.a
se desengane que não são só os netos de
São
S.
Francisco os que levam o amor e ocupam as saudades. 142 As invejas louvo eu muito a
Vossa Excelência
V. Ex.a
, por parte do nosso Alentejo, contra o qual se tem armado em Roma o reverendíssimo padre Nuno, como tenho por aviso do padre Sebastião de Abreu, procurador dêste negócio naquela Cúria, que escreve a
Sua Majestade
S. M.
os procedimentos ou processos dêle, e, segundo o merecimento dos autos, não ficará absolto o
Doutor
D.
Assistente, se houver quem forme o libelo e siga a acusação. O estado em que ficam os negócios de aqui verá
Vossa Excelência
V. Ex.a
pela do senhor Embaixador. Até os 2 de Fevereiro esperamos a conclusão desta paz com Castela, da qual segundo opinião de alguns depende a nossa, de que eu muito duvido, se bem o céu ajuda com tanta evidência a nossa parte, que o menor sucesso, que se pode esperar de tão extraordinários favores, é o que aqui pretendemos. Alfim, senhor, a nossa armada está no Brasil há muitos dias, e os navios desta, que mais têm avançado, estão detidos na ilha de Wight, onde sabemos que chegou o general só com catorze ou quinze, e os demais estão arribados em diversos portos de Holanda e Zelanda. Os que de certo se sabe que ou se perderam de todo, ou ficaram destroçados, de maneira que não podem já desta vez acompanhar os outros, são sete ou oito, e dêstes, quatro de guerra e um, que nomeadamente ia para Angola, mui importante, o qual defronte de Flessinga se foi a pique sem escapar cousa viva nem morta. Para reparar estes danos têm pedido as Companhias três mil homens, de que se lhes concedem dois mil, mas com certas cláusulas que pôs Holanda àcêrca do dinheiro, as quais hão-de dilatar êste socorro. Dê-nos Deus bom sucesso no Brasil, que dêle depende tudo. Dou a
Vossa Excelência
V. Ex.a
o parabém de França haver de ficar em 143 guerra, como também cá o prometem todas as notícias de aqui e avisos de Munster, e é uma das melhores coisas que hoje nos podiam acontecer, segundo o estado em que as nossas se acham em toda a parte. Sôbre a venda que desta guerra nos quer fazer o Cardial escrevi no correio passado o que se me ofereceu; e pois
Vossa Excelência
V. Ex.a
neste me pede parecer sôbre a quantidade de dinheiro e navios que se deve dar a França cada ano, fazendo nós a liga, direi o que meu pobre discurso alcança, com a clareza e sinceridade que devo ao serviço de
Sua Majestade
S. M.
, e à confiança e mercê com que
Vossa Excelência
V. Ex.a
me trata. Digo pois, senhor, que darmos dinheiro, navios, ou outro qualquer socorro a França, porque faça comnosco liga, suposto o estado a que as coisas têm chegado, me parece que nem é razão nem possível, nem conforme à mente de
Sua Majestade
S. M.
, e que fazer o contrário seria mais conveniente, ainda para se alcançar a mesma liga que
Vossa Excelência
V. Ex.a
pretende. Primeiramente não é razão: porque, se considerarmos o uso em semelhantes ligas, quando os confederados ficam em guerra os socorros são recíprocos e, se há desigualdade nêles, é receberem sempre mais os que podem menos, e estes somos nós. Se considerarmos os exemplos, veja-se o que a mesma França faz com Holanda, com Suécia, com a Lansgravina, com o Modena, e com os demais. Pois se França a todos seus aliados dá socorros, porque no-los há-de pedir a nós, importando-lhe mais a nossa liga que a de todos, e sendo mais os nossos inimigos e mais poderosos, e nós por razão da distância mais expostos a nos fazerem dano? Se considerarmos a necessidade, além de a guerra de França em muitas partes ser 144 voluntária, e a nossa em todas forçosa; se França necessita das nossas assistências, porque tem guerra em Catalunha, em Flandres, em Alemanha e em Itália, muito mais havemos nós mister as suas, pois temos guerra em cinco províncias de nossas fronteiras, e em mais de cem léguas de costa, sem haver um palmo de mar ou terra, no circuito de todo o reino, que não esteja exposta à invasão do inimigo e necessite de defensa: e, além desta guerra tão interior temos guerra em Pernambuco, guerra na Baía, guerra em Angola, guerra nas fronteiras de África, e, segundo já aqui se diz (o que se não é hoje será amanhã), guerra em Goa, em Ceilão, em Malaca, na China, enfim, em todas as partes do mar e do mundo, ou com os castelhanos, ou com os holandeses, ou com os mouros e turcos. Se considerarmos o benefício, grande é o que recebemos na diversão de França; mas não é menor o que ela recebe na nossa, a que deve principalmente suas vitórias; e não só com a guerra de Portugal lhe divertimos e enfraquecemos Castela, mas com a do Brasil lhe divertiremos de aqui por diante Holanda, cujos socorros a Flandres é hoje o principal cuidado e temor de França.
Finalmente
Fnalmente
, se considerarmos as obrigações, nenhuma devemos a Franca, porque até agora não tem gastado um soldo com Portugal; e França nos tem duas obrigações tão grandes como os dois socorros de navios que lhe démos, maiores ainda pelo tempo em que os tirámos de nós, que pelo número dêles. Por sinal que quando soube do primeiro o Príncipe velho de Orange disse estas palavras: "Que pouca política é a de Portugal e que grande desavergonhamento o de França!" 145 E tinha razão: porque recebendo Holanda de França um milhão e dois mil florins todos os anos, e algumas vezes maiores somas, e sendo tão poderosa e abundante de navios como sabemos, nunca deu uma barca a França. E a mesma correspondência tiveram e têm com ela todos os outros, de quem depende menos que de nós. E estas são as obrigações que temos aos franceses, e este seu ânimo para connosco, que
Vossa Excelência
V. Ex.a
conhece melhor que todos, como quem mais tempo os há tratado. E baste por prova (não pela maior, mas pela última) o que estes dias nos sucedeu com Tulherie: quando aqui vim tratou por vezes de me persuadir que seria bom darmos aos holandeses a Baía; e, porque eu zombei sempre disso, me chamava demasiadamente confiado, como escrevi a
Vossa Excelência
V. Ex.a
. Agora que veio recado de Munster, que até o
segundo
2.º
de Fevereiro se concluïrá o tratado entre Holanda e Castela, disse ao senhor Embaixador que por ora não apertasse pela paz com Holanda, porque, se êles a fizessem, mediariam para que se fizesse também connosco, e quando não que correríamos todos a mesma fortuna. De maneira que, quando França cuidou que a paz de Portugal com Holanda podia ser causa de Holanda se não unir com Castela, quis alcançar esta desunião a preço de uma praça nossa, tão importante como a Baía; e agora que Holanda se uniu com Castela, querem que fique também em guerra connosco, para que nós ajudemos a lhe quebrantar as fôrças, e gaste Holanda contra Portugal o com que podia socorrer aos castelhanos. Se isto é prudência, imitemo-la; mas se isto e o demais são agravos, não os paguemos com inúteis benefícios. Mas, porque
Vossa Excelência
V. Ex.a
me dirá, e eu conheço, que não deve reparar em sem razões quem trata do seu negócio, passemos do irracional ao impossível. E pergunto: De onde havemos de tirar êste dinheiro, estes navios, esta 146 gente de mar e guerra que havemos de dar a França todos os anos? Se fazendo Portugal os últimos esforços o ano passado não pôde mandar ao Brasil mais que treze navios, e ficou o pôrto de Lisboa sem um patacho, os armazens sem uma âncora nem uma peça de artilharia; de onde havemos de tirar navios para o Brasil, para a Índia, para a costa de Portugal, sob pena de nada entrar nem sair, e demais disto para a França? A máxima mais assentada entre nós, e a que nos reduziu a todas as resoluções, é conhecermos que Portugal não pode ter guerra com Castela e Holanda; pois como a poderemos ter com Castela, com Holanda, e com Itália? Os políticos do mundo duvidam do sucesso da guerra em que França hoje fica, porque a vêem empenhada em Castela, em Flandres, em Itália, em Alemanha; e se os braços tão dilatados e poderosos de França não podem arcar seguramente com tantas empresas juntas, como bastará a debilidade, em que hoje se acham os nossos, para acudir a Portugal, ao Brasil, à Índia, à África, e em cada uma destas partes tão distantes, não a um, senão a muitos lugares onde temos guerra, e sôbre tudo obrigarmo-nos a socorros de cada ano para Itália, onde, à menos prática que os nossos pilotos têm daquêles mares, acrescenta o empenho com o perigo de que tão ameaçados estiveram os nossos três navios êste inverno, e alfim foram escapar as vidas onde não puderam acudir à opinião. Mas que melhor argumento desta impossibilidade que o mesmo do Cardial Mazarino, quando, em suposição da 147 paz, nos não queria prometer mais que quatro mil homens de socorro, dizendo que não se atrevia a obrigar-se a mais, porque podia acontecer que não fôsse possível cumpri-lo? Pois se França, havendo de ficar em paz, tinha por impossível um tão pequeno socorro, e queria que lhe achássemos razão; porque não valerá com ela agora a nossa, e porque lhe não faremos crer que é impossível socorrê-la, quando estamos em toda a parte cercados de tantas guerras? Prouvera a Deus que foram estas razões só aparentes, como as suas, e não tão certas e verdadeiras! E se não, julguemos o futuro pelo passado, e tornemos quatro anos atrás. No primeiro e segundo ano, depois da aclamação de
Sua Majestade
S. M.
, recolheu o reino os frutos de suas conquistas pacìficamente, pagaram-se os tributos com maior vontade e pontualidade, cresceram à fazenda real os donativos, os bens dos confiscados, o cunho da moeda, e outros aumentos consideráveis, que hoje não pode haver; e, com todo êste dinheiro, o mais a que arribámos (ainda com empenhar as rendas que não estavam caídas) foi um pequeno exército em Alentejo, e uma não grande armada para a costa, que apenas pudémos sustentar, assim no mar como na terra, os últimos dois ou três meses do verão, não sendo o cabedal bastante para mais compridas campanhas, nem o havendo pronto para serem mais antecipadas. Pois se na maior paz e no maior aumento da fazenda pudémos tão pouco; hoje que nós temos de mais, e Castela de menos, um inimigo tão poderoso como Holanda, e quando os frutos das conquistas se hão-de supor ou perdidos ou impedidos, e os direitos e tributos do reino por todas as razões hão-de ser muito menores: como será possível assistir às necessidades do reino, às das conquistas, e ainda aos socorros de França? Verdadeiramente, eu não vejo de onde isto possa vir, salvo por milagre. E é muito de notar e reparar neste 148 ponto que, uma vez que faltemos a França com o prometido, bastará para que ela justifique o rompimento da liga, e para tomar pretexto de nos não guardar o capitulado, sem fazer caso de nossa necessidade, por extrema que seja, como se viu na do ano passado, em que disse Lanier que tinha ordem de se tornar para França se lhe negavam os três navios: resolução verdadeiramente cruel, e que é bem nos não saia da memória. Finalmente, sôbre ser impossível êste socorro, nos impossibilitaremos com êle, quando o prometamos, a reduzir os holandeses a algum acomodamento de paz. Porque, se o verem-nos sòmente embaraçados com Castela os fez não duvidar de se fazerem senhores de nossas conquistas; quanto mais certas esperanças conceberão de conseguir esta empresa, se virem uma parte do pouco poder marítimo, que temos, cativa e obrigada aos socorros de França ? Estas e outras impossibilidades se podem e devem considerar neste ponto, ao qual, quando as não houvera, me parece que não ajuda o exemplo dos poderes que trouxeram os plenipotenciários de Munster e Osnabrug; porque, como diz a carta de
Vossa Excelência
V. Ex.a
, aquela soma de dinheiro se havia de dar a quem nos introduzisse na paz, e isto é [é?]
ficarem duas guerras, e uma delas forçada, pois por benefício da liga nos privamos, como na outra dizia, de poder concertar-nos com Castela, que é matéria digna de consideração. E quebrarem os holandeses hoje a liga a França, a quem podem temer mais que França a nós, também nos deve trazer ao pensamento que, em qualquer negociação, pode haver seguridades e dúvidas, se bem a de França, para que diga tudo, sempre a tenho por menos duvidosa, por ter na nossa conservação o seu interesse. Os que
Sua Majestade
S. M.
lhe 149 mandava oferecer, de trezentos mil cruzados em dinheiro e dez ou doze navios, para que quisesse continuar a guerra, bem se vê que era em caso que França o fizesse por amor de nós, e não hoje que ou por fôrça ou por vontade, está desesperada da paz, e nunca se pode interpretar que queira
Sua Majestade
S. M.
pagar com o seu dinheiro o que outrem, por própria utilidade ou necessidade, está obrigado a fazer. E êste oferecimento parece que era só por uma vez, e não para todos os anos, e, se não se entende assim, prometíamos o que não podíamos nem podemos guardar; principalmente que, quando essas ordens se passaram, não tinham os holandeses ainda rompido connosco, que é circunstância que essencialmente varia o caso e impossibilita a promessa. Não pretendo com isto persuadir que nos não seja conveniente a liga de França, mas só, como dizia, que não é racionável, nem possível, que nós por ela lhe dêmos socorros, antes entendo que, se os não prometermos nem solicitarmos muito, a liga se nos concederá mais facilmente e com melhores partidos. Para o que suponho, como é certo, que França está excluída da paz, e que, ou por fôrça ou por vontade, há-de continuar a guerra, à qual se resolveu só por seus interesses, e nada pelos nossos, como tantas vezes e tão declaradamente nos desenganaram seus ministros. Suponho mais, como é ainda mais evidente, que de todos os aliados de França nenhum lhe importa mais que Portugal, por seu maior poder, por fazer a guerra a Castela dentro nas entranhas, pela diversão de Holanda nas conquistas, e principalmente porque, se Portugal fizesse paz com Castela, que é o mais fácil meio de a fazer também com Holanda, no mesmo dia ficava França arruinada; porque contra Castela, Portugal, Holanda e o Império unidos, não há em toda a Europa resistência no mar nem 150 na terra, e tudo isto conhecem muito bem os franceses. De onde se segue que êste temor há-de obrigar mais a França a fazer a liga, que nenhum outro interesse de socorros que lhe possamos prometer: porque o socorro, qualquer que seja em respeito de Franca, nunca pode ser mui considerável; mas o temor de nos podermos concertar com Castela é de tanta consideração, que não importa menos que a firmeza ou ruína de França. E, como esta dependência é tão grande e tão conhecida, se nos apressarmos a pedir a liga, e mostrarmos grande desejo dela, conceder-no-la hão os franceses com partidos sempre a seu favor; mas, se dissimularmos um pouco, e dermos tempo a que a França discorra sôbre o nosso silêncio, não há dúvida que nos há-de rogar com a liga, e que a há-de fazer como nós quisermos. Êste discurso é evidente em toda a parte, e nestas onde eu agora ando muito mais que em Paris, porque lá não vemos mais que as grandezas de França, e aqui vêem-se as suas dependências, os seus receios, as suas contemporizações e as suas rogativas. E finalmente, boa experiência tem
Vossa Excelência
V. Ex.a
de quanto mais obra com esta gente o medo que a obrigação. Solicitou
Vossa Excelência
V. Ex.a
muito acertadamente o primeiro socorro de França e o segundo, a fim que estas demonstrações obrigassem aos franceses, e lhes dessem novo motivo para nos concederem o que queríamos; e o que alcançamos com isto foram desenganos em lugar de agradecimentos. E bastou só que depois se lhes désse a entender que alguma diferente resolução era possível, para mudarem logo de estilo em todas as partes, e para prometerem os novos socorros que tão obstinadamente negavam. Assim que, senhor, continuando a forma em que
Vossa Excelência
V. Ex.a
com tanto acêrto tem respondido, me parece que, quando 151 os ministros de França tornarem a falar nos socorros, se lhes deve responder que Portugal assistirá àquela coroa, até ao tempo da paz ou trégua, com número de oito navios, a qual condição não começará a ter seu efeito senão depois de feita a paz entre Portugal e Holanda, pois se entende que, formada a de Castela, se concluirá também esta. Porém que, em caso que esta paz se não efectue, ou pelo tempo que durar a guerra, Portugal de nenhum modo pode assistir a França com socorro algum de dinheiro, nem navios, mais que com as diversões de Castela e Holanda, cuja importância é tão grande que não deixará França de nos conceder a liga, e procurar ter-nos seguros com ela. E, quando contudo os ministros franceses insistam, com se lhes mostrar a impossibilidade tão notória em que estamos, e com lhe dizermos que não nos queremos obrigar ao que depois não podemos cumprir, parece que é toda a satisfação que lhes devemos dar; e, se os deixarmos que cuidem nela, êles tomarão melhor conselho. Até domingo se espera que se firme a paz, e, excluída França uma vez dela, será coisa mui necessária à utilidade e autoridade que êsses monsieurs sejam também requerentes, e que conheçam a diferença dos tempos, como já
Vossa Excelência
V. Ex.a
vai experimentando nas audiências e recados do Cardial. Deixe-se
Vossa Excelência
V. Ex.a
tratar alguns dias com mimo, ainda que a nau da Rochela espere mais um pouco por melhores ventos, que eu confio em Deus que os que correm nos hão-de ser tão favoráveis nessa terra como nêstes mares.
Vossa Excelência
V. Ex.a
está hoje com o mesmo jôgo com que entrou em França o Monteiro-mór, e porventura avantajado, e já me tem contentíssimo a esperança com que fico 152 de que agora nos há
Vossa Excelência
V. Ex.a
de ganhar o que então perdemos. Ao senhor Embaixador li a de
Vossa Excelência
V. Ex.a
; êle responde. E ainda que conheço que o parecer de
Sua Excelência
S. Ex.a
é sempre o melhor, e com que
Vossa Excelência
V. Ex.a
se deve conformar, não me permitiu o meu zêlo, nem a confiança que
Vossa Excelência
V. Ex.a
faz de mim, deixar de escrever estas mal entendidas razões, assim como me vieram à pena, se bem não tenho aqui outro cuidado.
Vossa Excelência
V. Ex.a
, quando as ler, me perdoará a prolixidade, que o ânimo bem sabe
Vossa Excelência
V. Ex.a
que é de obedecer e servir a
Vossa Excelência
V. Ex.a
, e desejar as maiores conveniências do serviço de
Sua Majestade
S. M.
, cujos acêrtos no juízo e disposição de
Vossa Excelência
V. Ex.a
estão sempre mui seguros, e nesta matéria, como de tanta importância, se servirão melhor que nunca. Esquecia-me o de Milão, cujo sítio
Vossa Excelência
V. Ex.a
resistiu, como tão valente soldado dessa milícia, e, se acaso isto não é tentação do duque de Modena, segundo os muitos embaraços que tem hoje a guerra de França, bem se pode suspeitar sem temeridade que seria inventado o pensamento, mais para assaltar as nossas bôlsas, que para sitiar aquela praça. Mas e mesmo que o sítio se intente, eu creio, da vigilância daqueles anjos da guarda, que a primeira cousa que hão-de fazer é tirar de ali ao senhor Infante. Suposto dizer o De Lione que não queriam praças nem países, senão dinheiro e navios, explicado temos o enigma 153 do correio passado, e que entraram êsses senhores em pensamento de nos venderem a liga, por algumas terras e praças das nossas conquistas, entre as quais devia de ser o Rio de Janeiro a mais requestada: ora espero em Deus que nem êles nem outrem há-de possuir nada delas. Sôbre os navios, que
Vossa Excelência
V. Ex.a
me encomenda, já tenho avisado que não há dinheiro, e que se
Vossa Excelência
V. Ex.a
o não mandar não se fará compra; porque a prisão de Duarte da Silva nos retirou não só o seu dinheiro, mas o crédito de todo. Contudo, se
Vossa Excelência
V. Ex.a
mandar dinheiro para um navio, eu farei que se comprem dois, pagando-se aqui a metade, e fiando-se a outra para o reino, enquanto de lá vem mais saneados efeitos. Não estranhe
Vossa Excelência
V. Ex.a
a pouca cifra desta e da passada, porque o ser tão larga, e alguma dôr de olhos com que fico, me impossibilitou a continuá-la. E também me segurou o senhor Embaixador que não há perigo. Guarde Deus a
Vossa Excelência
V. Ex.a
muitos anos como desejo. - Haia, 27 de Janeiro de 648. Dos dois papéis do reverendo Padre frei Francisco pude até agora ler só o dos versos, que eram merecedores de se imprimirem em bronze, como as imagens que descrevem. Não vi nem creio que é possível cousa melhor, e bem sabe
Vossa Excelência
V. Ex.a
que não sei lisonjear. O Padre João Pontilier anda tão valido da rainha de Boémia e mais príncipes desta côrte, que já se não lembra de ninguém; manda seus recados a
Vossa Excelência
V. Ex.a
que em tanta soberania não é pequeno favor. - Criado de
Vossa Excelência
V. Ex.a
. António Vieira. 154
CARTA XX Ao Marquês de Niza 1648 - Fevereiro 3
Excelentíssimo Senhor
Ex.mo Sr.
- A carta de
Vossa Excelência
V. Ex.a
, de 24 de Janeiro, recebi com grande alvorôço e li com grandíssimo susto até chegar à última regra, em que recobrei o ânimo que me costumam dar todas as de
Vossa Excelência
V. Ex.a
. Cá nos tinham chegado as relações de Munster, e, ainda que elas davam a paz por concluída, nós o entendemos tanto pelo contrário que, desde aquela hora, démos por segura a guerra entre Castela e França, fundando-nos na mesma liberalidade com que os franceses concediam quanto se lhes pedia, entendendo que o intento do Cardial é continuar a guerra, e justificar com França e com o mundo que não ficou por sua parte. E quando Castela viesse no de Lorena, estava de reserva Nápoles e, se fôsse necessário, Portugal, para desfazer tudo. Finalmente, França aqui e em todas as partes está levantando grandes exércitos, e estas prevenções só as faz quem quer guerra ou melhorar de partido; e, pois os franceses cediam de todos, sinal era que estavam seguros de não haver concêrto, ou já por sua vontade ou pela dos castelhanos. Emfim, senhor, ontem às nove horas da noite chegou aqui extraordinário de estar em Munster firmada a paz 155 entre Castela e estes Estados, por todas as províncias dêles, menos a de Utrecht, que não quis firmar. Assinaram-se dois meses para vir de Espanha a ratificação, no qual tempo não cessarão as hostilidades.
Monsieur
Mr.
de la Tulherie nos disse que entende se desfará o congresso, e que se dizia que Castela mandava logo a estas províncias dois embaixadores: extraordinário o conde de Penharanda, e ordinário o Brum. Na noite de sábado tinha chegado de Amsterdam
Monsieur
Mr.
de la Tulherie, e logo no domingo veio ver o senhor Embaixador; e ainda que estão tão amigos que não guardam correspondências nas visitas, a de ontem tocava mais ao senhor Embaixador, e assim nos pareceu misteriosa. As primeiras palavras com que entrou foram que tínhamos guerra e mais guerra não sendo ainda chegado o extraordinário [não sendo ainda chegado o extraordinário]
, e depois, falando-se nas matérias do Brasil, vimos nele diferente linguagem da dos tempos passados, assentindo nos discursos àquelas proposições que soavam mais a rompimento que a composição. Por ser depois de sábado, e antes de segunda feira, julgámos que esta visita foi mandada de lá, e que foi ou querer-nos segurar da guerra de Castela, pelas dúvidas que lá houve, ou vir-nos inclinando à de Holanda, ou, o que é mais certo, uma e outra cousa. Bom é que comecemos a lhes dar cuidado, e melhor será se nos aproveitarmos do tempo e da ocasião, como êles fazem. Teve o senhor Embaixador conferência, não pedida, em que experimentou menos rigores que nas passadas, e vieram todas as Províncias, mas não se concluiu nada. Se 156 esperavam pela assinatura da paz com Castela, nos mostrarão agora os efeitos. O que eu tenho por sem dúvida é que, de aqui por diante, teremos dois novos competidores que solicitem a guerra e procurem estorvar-nos a paz, que serão, pùblicamente, o embaixador de Castela, e em secreto o de França: o primeiro para que Holanda nos enfraqueça a nós, o segundo para que nós enfraqueçamos a Holanda. Já avisei a
Vossa Excelência
V. Ex.a
que André Henriques não quis fazer contrato com o flamengo, por se não obrigar à paga. Como
Vossa Excelência
V. Ex.a
o aprova tanto, verei se quere Jerónimo Nunes tomar à sua conta êste negócio. Para o da fragata "Fortuna" não temos aqui a André Henriques, e assim determino eu ir a Amsterdam, para com Jerónimo Nunes nos pôrmos em preço e a comprarmos, ou só ela com o dinheiro na mão, ou ela e outra do mesmo porte, ametade paga aqui, e a outra ametade em Portugal, que vem a ser o mesmo dinheiro. Mas não sei se irá nesta ocasião o embaixador Francisco de Andrada, porque na carta, que hoje recebeu o senhor Embaixador, se inclina a ficar mais ali dois meses para ver o fundo a êstes negócios. E o mesmo aconselha a Cristóvam Soares, e condena a pressa com que se quer ir para essa côrte, e só lhe aprova o desejo de melhorar tanto de companhia, no que também eu lhe acho muita razão. Sôbre o demais se podem tirar várias conseqüências, em que me não meto. As novas de Nápoles são muito boas; desgraça foi que os nossos navios não tivessem parte no bom sucesso. Do 157 cadafalso de Lisboa não temos mais notícia que a geral, nem sabemos de outra prisão que a de Duarte da SiIva. Hontem escreveu Lopo Ramires ao senhor Embaixador que, a causa disto, se não achava em Amsterdam quem quisesse passar um vintém para Lisboa. E em Hamburgo, estando embarcadas muitas munições, que iam para
Sua Majestade
S. M.
por conta de Duarte da Silva, tanto que se soube da sua prisão as desembarcaram logo, estando algumas já no fim da Ribeira, com que fica menos de estranhar o que fez Bento Osório. Duas cousas me admiram a mim mais que todas: a primeira que se fizesse em Portugal o que se fez; a segunda que, depois de feito, se não pusesse remédio aos assentos e mais negócios de El-rei, para que não faltassem; mas pode ser que um e outro efeito nasça da mesma causa. Folguei de ver as cartas que desta terra se mandaram a Roma: sôbre a pessoa a quem foram mandadas, tenho que dizer a
Vossa Excelência
V. Ex.a
uma cousa bem rara que cá soube. A Vila Real escrevo como passou a história, em que lhe escreveram que houvera adaga. Não sei com que tenção levantariam isto. O certo é que os mais dêstes são grandes inimigos de Portugal, e bem o mostra o autor das duas cartas, pôsto que em muitas cousas diz verdade. De saírem no cadafalso os três judeus do Recife se queixaram muito os Estados nesta última conferência, em que declaravam que êles tinham aquêles homens por seus vassalos, e que o castigá-los era contra o capítulo 21 da trégua. 158 E neste mesmo tempo chegou uma carta de
Sua Majestade
S. M.
, em que diz que aquêles homens são da jurisdição eclesiástica, em que êle não tem poder, e que se lhe não torne a falar naquela matéria. Bemdito seja Deus, que só para estas valentias temos resolução. Dessa côrte esperamos a de que principalmente dependem nossos negócios, a que não ajudará pouco estar esta paz já firmada. Deus nos traga boas novas, e guarde a
Vossa Excelência
V. Ex.a
muitos anos, para que por meio de
Vossa Excelência
V. Ex.a
as tenhamos. - Haia, 3 de Fevereiro, de 648. Na passada falei dos versos; nesta só digo que a prosa é ainda melhor, não porque o possa ser, mas porque a li depois; o que importa é que El-rei premeie ao Padre frei Francisco como merece; que êle honre o reino como pode. - Criado de
Vossa Excelência
V. Ex.a
. António Vieira. CARTA XXI Ao Marquês de Niza 1648 - Fevereiro 10
Excelentíssimo Senhor
Ex.mo Sr.
- Neste correio recebi duas cartas de
Vossa Excelência
V. Ex.a
, ambas do último de Janeiro, e não estranho nada do que nelas leio, porque êsses são os termos que sempre tem experimentado Portugal nas boas vontades dêsses 159 ministros. E porque, na carta que
Vossa Excelência
V. Ex.a
já haverá recebido, discorri com mais largueza sôbre o que me parecia neste negócio, nesta não digo mais que ter por mui acertada e totalmente necessária a última resolução, que
Vossa Excelência
V. Ex.a
toma, de avisar por todas as vias a
Sua Majestade
S. M.
, e esperar resposta sua, para o que eu farei aqui as diligências que
Vossa Excelência
V. Ex.a
me ordena, avisando a
Sua Majestade
S. M.
em navios que há prontos, e só esperam vento para sair. Aos pontos de novo, digo: quanto ao dos socorros que, suposto haverem de ser em dinheiro, será bom que
Vossa Excelência
V. Ex.a
mande pedir a
Sua Majestade
S. M.
a lista do que fazem de custo, muito pelo miúdo, segundo os soldos que levam, os estrangeiros, e que entrem na mesma conta, quanto puder ser, a despesa das levas e condução de gente e cavalos, que é uma partida mui considerável, e que a nós nos há-de custar muito mais, conduzindo a cavalaria e infantaria de outras partes, que todas são mais distantes que França, e de mais dificultosa navegação. Na proposta das praças acho ainda maior sem razão que na de dinheiro e navios; mas, porque é cousa possível, e se pode largar antes com aumento que com dispêndio de fazenda, me parece que, havendo
Sua Majestade
S. M.
de comprar a liga, seja antes a êste preço que a outro. Não serei contudo de voto que se lhe ofereça sem resposta de
Sua Majestade
S. M.
, nem ainda que se fale em Tângere, porque êles não nomearam praça, e nós temos também em África Mazagão, a qual se deveria oferecer e pleitear primeiro, em caso que houvéssemos 160 de dar alguma. Todas as considerações que
Vossa Excelência
V. Ex.a
faz sôbre Tângere são de conhecida e praticável conveniência; só na dos soldados se me representa dificuldade, porque aquêles cavaleiros de África quási todos são nascidos e casados ali, e obrigá-los a que fiquem sujeitos a rei estranho é cousa em que entendo não virão nunca; persuadi-los também a que deixem pátria, casa, mulher e filhos (e isto a um povo inteiro e de soldados que depende de tantas vontades e tão livres) é negócio não fácil de compôr e levar ao cabo, e que, quando se houvesse de empreender, convém que seja com grande destreza e secreto, porque a vizinhança de Castela, e o exemplo de Ceuta, os não convidem a se entregarem primeiro ao castelhano do que nós os entreguemos ao francês. Lembra-me que, falando-se outra vez em semelhante caso, se apontou que aquela gente se passasse a povoar o Maranhão, e se êles quisessem vir nisso, ainda que fôsse fazendo-lhes
Sua Majestade
S. M.
mercês, seria grande conveniência. Emfim, senhor, a matéria é maior que a minha capacidade: França não fica em guerra por amor de nós, senão porque Castela não quer, como êles dizem, e porque o Cardial também não quer como nós sabemos; e, se a esta resolução os podem animar alguma cousa as esperanças de nossos socorros, já hoje se lhe tem oferecido por nossa parte dinheiro e navios, e se lhe tem admitido prática de praças, que é mais do que nós podemos dar nem êles imaginar. Enquanto
Vossa Excelência
V. Ex.a
espera resposta de
Sua Majestade
S. M.
, se declarará o estado em que fica França, e se fôr o de guerra, então capitulará
Vossa Excelência
V. Ex.a
com jôgo descoberto e melhor partido; se fôr o da paz, nenhuma cousa nos haverá aproveitado darmo-lhes agora Tângere, senão para depois nos pedirem Lisboa, se quisermos que nos socorram poderosamente. 161 Isto é, senhor, o que me parece, e que nem à reputação de
Sua Majestade
S. M.
nem à de
Vossa Excelência
V. Ex.a
convém que, na ratificação, se altere o que agora se capitular, não só pela fé pública dos embaixadores, com que não se dará crédito ao que os nossos daqui por diante disserem, mas porque a arrogância de França não está em estado de admitir variedades, pôsto que no-las faça sofrer tantas vezes. Quando em Portugal negaram a França os navios que
Vossa Excelência
V. Ex.a
havia oferecido só condicionalmente, atreveu-se Lanier a escrever a
Sua Majestade
S. M.
uma carta em que duas vezes chamava a isto enganos: pois que seria se, depois de
Vossa Excelência
V. Ex.a
haver capitulado e dito que tem poderes,
Sua Majestade
S. M.
não ratificasse o tratado? Assim que, senhor, por todas as razões convém o que
Vossa Excelência
V. Ex.a
tem resoluto, de esperar aviso de
Sua Majestade
S. M.
. As duas naus de Hamburgo, de 220 e 180 lastres, já são de
Sua Majestade
S. M.
, compradas sôbre crédito de Duarte Nunes, de que tive aviso seu e de André Henriques, mas não do preço. Também entendo que se comprará a de Lubeque, e, se chegar o dinheiro, se fabricarão lá em três meses quatro ou seis fragatas. Duarte Nunes, conforme o que eu lhe prometi, espera que
Vossa Excelência
V. Ex.a
lhe remeta dinheiro; mas, com que
Vossa Excelência
V. Ex.a
o mande para o negócio que aqui havemos de fazer com seu filho, cuido se dará por contente até vir o de Portugal. As fragatas de aqui se comprarão artilhadas, e com obrigação de se pôrem seguras em Lisboa, e novas ou de bom uso, porque pode ser que as não haja do estaleiro, e com a paz de Castela esperam achar bons acêrtos. Nas medidas de André Henriques dispense
Vossa Excelência
V. Ex.a
, porque êle mesmo tem por melhores as fragatas que aqui achou, 162 que as que de lá trouxe desenhadas. Jerónimo Nunes esteve aqui haverá três dias, e eu quis logo ir com êle para fazermos o preço, como
Vossa Excelência
V. Ex.a
me ordena. Mas diz que nem o flamengo o há-de fazer, nem êle se há-de obrigar até não estar cá o dinheiro; assim que,
Vossa Excelência
V. Ex.a
o deve mandar primeiro e na maior quantia que
Vossa Excelência
V. Ex.a
puder, porque tendo ametade do dinheiro se fiará a outra ametade, para a qual se obriga Jerónimo Nunes, com tanto que eu me obrigue a se lhe pagar, e se fôr a quantidade considerável ainda se nos fiará mais. Mande
Vossa Excelência
V. Ex.a
se fôr possível quarenta mil cruzados, e eu prometo a
Vossa Excelência
V. Ex.a
que, com fazermos aqui êste pagamento, se nos fiará o que baste para
Vossa Excelência
V. Ex.a
mandar a Portugal cinco bizarras fragatas, que estarão à vela seis semanas depois de chegar o dinheiro, e pode ser que mais cedo. A pressa e o segrêdo deixe
Vossa Excelência
V. Ex.a
por minha conta; e suposto ser o segrêdo neste negócio mais necessário que em nenhum outro, não deve passar a remessa do dinheiro a mãos de outra pessoa que das três que disto sabemos, que é o senhor Embaixador, eu e Jerónimo Nunes, e assim pode
Vossa Excelência
V. Ex.a
enviar as letras a pagar a qualquer de nós, e de tudo o que se fizer irei dando conta a
Vossa Excelência
V. Ex.a
. Sôbre artilheiros, e também cirurgiões, tinha falado a Jerónimo Nunes para que fôssem de Hamburgo, visto que os holandeses hoje não servem para guerra contra Castela, nem contra Holanda: agora com a ordem de
Vossa Excelência
V. Ex.a
verei se há nestas Províncias alguns de outras nações, que nos queiram e possam servir. Sinto o que Lopo Ramires fez nas letras do dinheiro de
Dom
D.
Luís de Portugal. Ao que
Vossa Excelência
V. Ex.a
diz dos dois usos, 163 respondo: pardonne-moi, monseigneur (sic); e para que
Vossa Excelência
V. Ex.a
veja que devia ser equivocação de quem copiou a carta, mando aqui o capítulo dela, que diz assim: "Faça Vossa Paternidade diligência por achar aí quem lhe dê duas mil libras, passando sôbre mim uma letra a um uso, a qual aceitarei e pagarei a seu tempo, com o câmbio conforme correr na praça". Isto diz o capítulo da de
Vossa Excelência
V. Ex.a
, que enviei a Amsterdam, para mais me ajustar com as ordens de
Vossa Excelência
V. Ex.a
. Ao senhor Embaixador e a mim nos pareceu que assim estas libras, como as mil e quinhentas, haviam de ser das desta terra, e conforme a esta inteligência pagou
Sua Excelência
S. Ex.a
umas, e eu mandei suprir as outras com a segunda letra do ajustamento, que lá haverá chegado. E, se acaso não foi esta a mente de
Vossa Excelência
V. Ex.a
, e nos excedemos na interpretação dela, pela parte que me cabe mando neste correio aviso a António Pereira da Silva que aceite a letra dos trezentos e tantos florins, e a pague à ordem de
Vossa Excelência
V. Ex.a
, assentando-a pela conta que tem comigo. Vão com esta as quitações de
Dom
D.
Luís por duas vias, as quais não mandei logo a
Vossa Excelência
V. Ex.a
porque as letras se passaram primeiro aqui, e depois veio o dinheiro de Amsterdam, e não acabou de chegar, nem de se entregar todo, senão no dia em que
Vossa Excelência
V. Ex.a
verá da data do recibo. O padre Pontilier escreve. Êle e eu não cessamos de encomendar a Deus em nossos sacrifícios os bons sucessos de
Vossa Excelência
V. Ex.a
, que, se fôrem como eu os desejo, não os queira
Vossa Excelência
V. Ex.a
melhores; e, se acaso nesta ou noutras não acertar com o que devo ao serviço de
Sua Majestade
S. M.
e de
Vossa Excelência
V. Ex.a
164 protesto que será o êrro das palavras e do entendimento, mas não do coração. Guarde Deus a
Vossa Excelência
V. Ex.a
muitos anos, como desejo e havemos mistér. - Haia, 10 de Fevereiro de 1648. A êste ponto me chega carta de Jerónimo Nunes, na qual diz o seguinte: - "André Henriques escreveu carta a Bento Osório, pedindo-lhe que lhe quisesse dar algum dinheiro à conta dos créditos, e eu lhe dei a carta, a que êle me respondeu mil disparates, e que não daria nada, nem vindo carta do mesmo Duarte da Silva, e que não queria tais negócios, e juntou vinte pessoas na Bôlsa, e fez roda de lhe dizer André Henriques que, em lhe dar dinheiro, faria serviço a Duarte da Silva, e o que devia a bom português; com que êle riu e zombou muito, dizendo que era bom holandês, e que tais comissões não eram para êle" -. Mando a
Vossa Excelência
V. Ex.a
êste capítulo, para que
Vossa Excelência
V. Ex.a
se sirva de o ver e remeter a Portugal pelos navios de França, que pode ser cheguem primeiro, para que lá se saiba como também tenho avisado o estado em que cá está aquele dinheiro, e se mande remediar por créditos de outros mercadores, que o de Duarte da Silva não vale nada depois da sua prisão. - Criado de
Vossa Excelência
V. Ex.a
António Vieira. CARTA XXII Ao Marquês de Niza 1648 - Fevereiro 17
Excelentíssimo Senhor
Ex.mo Sr.
- No correio passado signifiquei já a
Vossa Excelência
V. Ex.a
quão acertada me havia parecido a última resolução, que 165
Vossa Excelência
V. Ex.a
tomou, de avisar e esperar resposta de
Sua Majestade
S. M.
; e agora que
Vossa Excelência
V. Ex.a
resolve que se parta logo com o mesmo aviso o senhor Residente, suposta a licença que tem de
Sua Majestade
S. M.
, parece que é tudo o que
Vossa Excelência
V. Ex.a
pode e deve não só fazer, mas ainda desejar; porque as informações de papéis, e muito mais nos nossos conselhos, ainda que proponham verdades tão claras como o sol, se não têm quem as assista e responda às objecções, e importune pela resposta, têm primeiro as dilações, e depois os fins que
Vossa Excelência
V. Ex.a
tantas vezes tem experimentado; e baste por exemplo não se haver ainda respondido às cartas de Fontaineblau, por tantos navios quantos de todos os portos de Portugal tem partido para êstes. Enfim, senhor, venerando eu sempre todas as resoluções de
Vossa Excelência
V. Ex.a
como elas merecem, esta me parece inspirada pelo Espírito Santo, para as notícias, brevidade, segurança e acêrto da vontade de
Sua Majestade
S. M.
, que o do negócio, sendo
Vossa Excelência
V. Ex.a
quem o trata, sempre está muito certo. Antes que passemos a outra cousa saberá
Vossa Excelência
V. Ex.a
que chegou patacho de Pernambuco, com aviso que os levantados ficavam batendo o Recife com oito peças, do pôsto que chamam da Seca, e que nossa armada fôra vista na altura da ilha de Fernão de Noronha por uma fragata, que levou o aviso ao Recife quando êste navio partiu, que foi segundo uns aos 8, e segundo outros aos 18 de Dezembro, que é o mais verosímil, porque aos 8 não podia a armada estar tanto àvante; mas do lugar em que a viram, conforme a monção, podia chegar à Baía em dez ou doze dias, com 166 que iria dar os bons anos a Sigismundo. Os juízos desta gente são vários sôbre o sucesso; eu entendo que a nova antes os há-de ajudar a reduzir que a obstinar, e o senhor Embaixador esta semana há-de instar com todo o género de diligências, por se aproveitar dos efeitos desta nova antes que venha outra que os varie. Grande cousa é que os ministros dessa côrte segurem com tanta asseveração a guerra: cá nos confirmam o mesmo, mais as evidências ainda que os discursos; porque já em Munster não há mais que um plenipotenciário destes Estados, nem de França ficará cedo mais que Servien, e assim se entende que brevemente se desfará de todo aquele congresso, sem outro fruto que a paz entre Holanda e Castela, a qual dizem por esta banda que foi feita só a fim de a não fazerem com França, ou ao menos de que, fazendo-se, fôsse à vontade dos castelhanos e não dos franceses: mas faça-se o milagre, e o demais seja como cada um quiser, que a nós importam-nos mais os efeitos que as causas. A diferença dos tempos em que se escreveram aqueles papéis ao em que estamos, se França houvera de fazer a paz, não era nenhuma; mas havendo de ficar em guerra, ou por vontade, ou por conveniência, ou por necessidade, há me de dar
Vossa Excelência
V. Ex.a
licença para que cuide que há tanta diferença de tempo a tempo como de caso a caso, e por isso chamo hoje sem razão ao que no outro tempo julgara por fineza. Êste devia de ser o motivo que tiveram os que foram daquele parecer, que bem sabe
Sua Majestade
S. M.
, e o Secretário de Estado, que êle e eu fomos sempre de outro voto, e, 167 se nos conformámos com aquele, foi violência e não eleição nossa, de que é boa prova a minha vinda a Holanda. Mas para dizer a
Vossa Excelência
V. Ex.a
francamente o que sinto, é que de nenhum conselho que derem a
Sua Majestade
S. M.
seus ministros, nem de nenhuma resolução que tomarem nos devemos espantar, porque a experiência nos vai mostrando que ainda das menos consideradas se aproveita Deus, que é o que principalmente nos governa, para conseguir por meio delas os ocultos fins de sua providência, que, assim como são superiores à nossa capacidade, assim os tememos um dia e os esperamos outro, como quem alfim os não conhece. O senhor Embaixador aqui diz que não espera mais que o sucesso do Brasil, para se meter a profeta de profissão; porque em tudo lhe tem saído verdadeiras suas esperanças, e só falta estar hoje por nosso o Recife, como lhe diz o espírito; e, segundo os milagres que vemos, bem podemos também crer êste. E, em confirmação dêle, se avisa também de Amsterdam que a nossa armada, na altura em que a viram, ia tão chegada à costa que não podia deixar de avistar Pernambuco, que seria tão alegre vista para os nossos como triste para os cercados. Muito nos admirou que França pedisse só um navio: não sei se seria por ter ruim informação dos outros, que, se o intérprete francês as mandou semelhantes às primeiras, não seriam nada em abôno da esquadra, e muito menos de quem a governava. Êle será muito valente, mas nesta ocasião foi pouco venturoso. Já escrevi a
Vossa Excelência
V. Ex.a
que para o preço dos navios se fazer é necessário vir primeiro o dinheiro, e isto mesmo 168 me tornou a escrever hoje Jerónimo Nunes, acrescentando que é necessário apressarmo-nos, porque há muitos compradores; e eu irei a Amsterdam esta semana para ver se o posso reduzir a que compremos. O certo é, senhor, que todos estes homens estão tremendo com as novas de novas prisões, que cada dia chegam, e ninguém há que se queira misturar com Portugal nem portugueses. Em Hamburgo está também comprada artilharia para as duas naus. E diz Jerónimo Nunes que muito boa; mas não avisam quanta, nem de que calibre, nem por que preço. Já na passada avisei que, se viessem quarenta mil cruzados, compraríamos sem dúvida cinco fragatas, fiando-se-nos o mais, e assim seria grande cousa poder
Vossa Excelência
V. Ex.a
acabar com os mercadores de Ruão, que têm fazenda de
Sua Majestade
S. M.
, nos dessem esta quantia, e quando não que
Vossa Excelência
V. Ex.a
mandasse entregar a mesma fazenda ou efeito à ordem de Duarte ou de Jerónimo Nunes, porque entendo que bastarão estes penhores para sôbre êles, em quanto se não faz dinheiro, nos fiarem o que êles valerem, ou se obrigarem a quem no-lo fie. Guarde Deus a
Vossa Excelência
V. Ex.a
muitos anos como desejo. Haia, 17 de Fevereiro de 648 - Criado de
Vossa Excelência
V. Ex.a
Antônio Vieira. CARTA XXIII Ao Marquês de Niza 1648 - Fevereiro 24
Excelentíssimo Senhor
Ex.mo Sr.
- Os parabens que
Vossa Excelência
V. Ex.a
me dá da despedida do Duque de Longa-Vila torno eu a dar a
Vossa Excelência
V. Ex.a
, 169 pois a matéria é tão grande que os merece muitas vezes repetidos. Alfim se fez o nosso negócio, sendo o mais desamparado; e sendo os nossos plenipotenciários os que menos obraram, foram os que mais conseguiram, para que só a Deus se devam dar graças. O senhor Embaixador tinha determinado mandar visitar o Duque, e ainda fazê-lo em pessoa, se não passasse muito longe desta côrte; mas desviou-se tanto dela, e passou tão súbita e apressadamente, que nem um gentil-homem de
Monsieur
Mr.
de la Tulherie, que foi aguardá-lo ao caminho, o pôde alcançar. Para comboiar a
Monsieur
Mr.
de Andrada e
Monsieur
Mr.
Soares, são partidos de aqui 300 cavalos, mandados pelos Estados a petição sua, e os esperamos dentro em breves dias. Esta semana chegou aqui um mercador de Viana, tomado na altura da Baía, que nos confirmou as novas que escrevi a
Vossa Excelência
V. Ex.a
a semana passada, e acrescentou que até os 15 ou 16 de Dezembro avistaria a nossa armada a costa de Pernambuco, porque três dias antes fôra vista por uma fragata holandesa em distância só de sessenta léguas, correndo rijamente os nordestes, que é a monção que naqueles meses nunca falta, donde se colhe que em quarenta e dois dias chegou a armada desde a ilha da Madeira a Pernambuco, que, quando fôra uma só caravela, era boa viagem.
Monsieur
Mr.
Brasset me disse ontem vira carta do Recife, em que se dizia que, com a chegada de uma nau de Zelanda e esperança de irem chegando outras, se 170 entendia que os do Conselho haviam mandado segundo recado a Sigismundo para que não levantasse da Baía. Estimei esta nova porque, se a nossa armada lá desfizer primeiro aquele poder, não farão grandes efeitos os pedaços da armada que forem de aqui chegando, podendo-se temer muito pelo contrário, se o poder que lá está e o que de cá vai se encorporarem. Segundo carta que aqui chegou de Lisboa, escrita em dia de Natal, já lá havia aviso, por navio do cabo de Santo Agostinho, que os levantados tinham pôsto uma bateria contra o Recife, e segundo julguei da carta com estes canhonaços o dão já por mamado: qualificada fatalidade é, por lhe não pôr outro nome, que sobre tantas experiências não acabemos de aprender nem desenganar-nos. Sôbre a compra de navios tenho escrito repetidamente que é necessário estar cá primeiro o dinheiro. De novo não há que receber cada dia cartas de Jerónimo Nunes em que me pergunta se é chegado, porque há muitos compradores. Eu não fui a Amsterdam esta semana, assim por esta causa como porque Jerónimo Nunes esteve doente, e eu também andei indisposto, e quási todos nesta casa nos achámos êstes dias menos bem; porque a falta dos gelos nestes países é a disposição mais ordinária das enfermidades, e são muitas e agudas as que há, e se tem por certo haver peste êste ano, pela experiência de outros semelhantes. Deus nos guarde a nós, e nestes próximos se cumpra sua santa vontade. Pela carta que o senhor Embaixador remete a
Sua Majestade
S. M.
, verá
Vossa Excelência
V. Ex.a
a quanto os Estados têm sentido a resolução que êste ano se tomou na santa Inquisição contra os judeus 171 subditos destas Províncias; sôbre que seria bem que
Vossa Excelência
V. Ex.a
escrevesse apertadamente a
Sua Majestade
S. M.
. Enfim, senhor, o que importa é que chegue êste praso, com que
Vossa Excelência
V. Ex.a
me convida, de nos vermos cedo em Lisboa, que estarem uns a trabalhar e outros a desfazer é ocupação em que, assim como se perde o trabalho, se pode também perder o juízo. Deus guarde a
Vossa Excelência
V. Ex.a
muitos anos como desejo. Haia, 24 de Fevereiro de 648 - Criado de
Vossa Excelência
V. Ex.a
António Vieira. CARTA XXIV Ao Marquês de Niza 1648 - Março 2
Excelentíssimo Senhor
Ex.mo Sr.
- Já outra vez escrevi a
Vossa Excelência
V. Ex.a
que não há neste destêrro outro dia de alívio senão o em que nos chegam as cartas de
Vossa Excelência
V. Ex.a
, em cujas esperanças se passam todos os da semana. E sendo bastante razão esta, para eu haver sentido muito a total falta que delas tivemos neste correio, se acrescenta a êste sentimento não se saber a causa por que faltaram, que, se bem o senhor Embaixador me assegura de todo desastre, pela experiência que tem de tantos anos, eu me não livrarei do cuidado até o correio seguinte. Também esperava nêste as cartas de Lisboa, e novas dos dois navios que
Vossa Excelência
V. Ex.a
nos avisou haviam chegado a
São
S.
Maló, e a remessa do dinheiro para os que aqui 172 se hão-de comprar, que são novas causas de suspensão e impaciência em que passaremos até sábado: quererá Deus que se recompense tudo com recebermos então muito boas novas de tudo, e mui particularmente da saúde de
Vossa Excelência
V. Ex.a
, que fôra o meu maior cuidado, se não houvéramos recebido cartas do senhor Residente sem aviso do contrário. Do Pôrto chegou aqui navio em catorze dias com cartas de 15 do passado, em que se avisa por muitas vias haver chegado a Portugal caravela da Baía, com nova de Sigismundo ter deixado a ilha de Taparica: nisto concordam todos, e alguns acrescentam que ao embarcar lhe mataram os nossos novecentos homens. Os navios em que se retirou Sigismundo eram dezoito. Os que de aqui partiram encorporados padeceram no cabo de Finisterra uma terrível tempestade, de que arribou uma nau a Amsterdam muito destroçada, dando semelhantes novas dos que lá ficaram, e se nos disse ontem que alguns haviam arribado a Rochela, de que
Vossa Excelência
V. Ex.a
lá terá mais verdadeiras notícias. Da mesma armada do Brasil arribou a Roterdam outra nau de guerra, que haverá quinze dias que partiu, obrigada da contrariedade dos tempos e muito mais da rebelião dos soldados. Tudo se arma contra esta gente, e em tudo peleja Deus por nós. Esperamos que com tantos desenganos se lhe abram os olhos, e que acabem de vir em algum acomodamento, que sempre será melhor que a continuação da guerra, e nos deixará mais hábeis para fazermos outros, que tanto nos importam. Duarte Nunes me avisa tem comprado sessenta peças de boa artilharia para as duas naus, mas não diz o calibre: fala com grandes temores do grande empenho em que se tem metido, receando que 173 faltem as assistências de Portugal; e verdadeiramente que é matéria digna de grande admiração que venham cada dia navios de tantos portos do Reino, e que, tendo os mais tristes mercadores avisos de seus correspondentes, só aos ministros de
Sua Majestade
S. M.
faltem, sendo tantos e de tanta importância os negócios que aqui se tratam. Jerónimo Nunes me escreveu hoje tivera carta de
Vossa Excelência
V. Ex.a
com recado de virem as letras no correio seguinte, e por isso o não torno a lembrar a
Vossa Excelência
V. Ex.a
. - Guarde Deus a
Vossa Excelência
V. Ex.a
muitos anos como desejo. Haia, 2 de Março de 648. - Criado de
Vossa Excelência
V. Ex.a
António Vieira. CARTA XXV Ao Marquês de Niza 1648 - Março 16
Excelentíssimo Senhor
Ex.mo Sr.
Meu senhor da minha alma. - Com toda ela tomara poder falar a
Vossa Excelência
V. Ex.a
nesta ocasião, em que me acho tão falto de ânimo, e tão fora de mim que é fôrça sejam as palavras de lástima e desesperação, quando era justo que fossem de consolação e alívio. Em Amsterdam recebi ontem a triste nova, de onde logo me parti, por me não achar capaz mais que de sentir e chorar. Considero todas as circunstâncias que tem o sentimento de
Vossa Excelência
V. Ex.a
, e me pesa mais que tudo não poder fazer companhia a
Vossa Excelência
V. Ex.a
com a presença, como a faço na dor, que é em 174 mim igual às causas: perdi mãe, perdi senhora, e agora que as choro sem remédio, conheço mais que nunca as obrigações que devo à alma da senhora Condessa, de quem serei perpétuo capelão em quanto me durar a vida; e a
Vossa Excelência
V. Ex.a
como seu herdeiro conhecerei sempre por meu amo e senhor, pedindo a
Vossa Excelência
V. Ex.a
se sirva de me aceitar de hoje em diante muito em seu serviço como criado desamparado, e da minha parte prometo a
Vossa Excelência
V. Ex.a
um tão afeiçoado e fiel coração, como ao presente fica desconsolado e afligido. No correio passado não escrevi a
Vossa Excelência
V. Ex.a
, porque cuidei podê-lo fazer de Amsterdam, para onde me parti logo ao domingo, mas foi o tempo tão contrário, que não cheguei senão à segunda, a hora que não era de correio. As letras de Leorne não chegaram ainda; as demais fiz aceitar logo. E tenho comprado uma fragata, a melhor destas Províncias, nova, veleira, com vinte e oito peças de boa artilharia, e o mais que
Vossa Excelência
V. Ex.a
verá pelo inventário, que não vai agora, por não estar ainda traduzido do flamengo. Quem a vendeu se obrigou a pô-la segura em Lisboa, pagando e sustentando a gente do mar à sua custa, e tudo por menos de trinta e cinco mil florins desta moeda, que foi grande acêrto. Estará à vela no pôrto de Texel de aqui a quinze dias, para se poder embarcar o embaixador Francisco de Andrada, se quiser ir nela, porque ainda não tive tempo de lhe falar; mas, para que se fôsse aprestando, lho escrevi de Amsterdam, e me respondeu que faria em tudo o que cumprisse ao serviço de
Sua Majestade
S. M.
e parecesse a seus ministros. Andava em preço com outros navios, mas não continuarei até resposta de
Vossa Excelência
V. Ex.a
, a quem me pareceu representar que o mandar
Sua Majestade
S. M.
que se não comprem navios, porque o tem feito por outra via, é em suposição do negócio 175 a que veio André Henriques, que lá se não sabe estar desfeito ou empatado. De onde parece se segue que comprarem-se aqui os navios, conforme a primeira ordem, não encontra esta segunda, antes se executa o que
Sua Majestade
S. M.
supõe e quer, e do contrário se seguiria ficarmos em uma e outra parte sem os navios de que tanta falta temos e tanto havemos mistér. Isto mesmo parece aqui ao senhor Embaixador, e eu irei entretendo o negócio até nova ordem de
Vossa Excelência
V. Ex.a
, que seguirei na forma que
Vossa Excelência
V. Ex.a
me mandar; advertindo que a terça parte do dinheiro que dou pela fragata é fiada, a pagar cinco meses depois de chegar a Lisboa, que é conveniência que se pode também achar na compra de outras, e que se não deve perder facilmente. Também está em Amsterdam a pólvora e enxarcias o terço mais barato do que nunca se viram, e era grande esta ocasião para ir muita quantidade disto segura e sem fretes, e eu estava resoluto a tomar na praça até trinta mil cruzados, que mandar empregados nestes géneros, em que a fazenda de
Sua Majestade
S. M.
havia de interessar o dôbro; mas não há quem queira passar um vintém a Portugal com estas prisões dos homens de negócio, e no dia em que chegou a nova da de Duarte da Silva subiu o câmbio a 5 por cento. O crédito de António Rodrigues de Morais está aceitado; informar-me hei do estilo, e conforme êle farei o que
Vossa Excelência
V. Ex.a
me mandar. A carta que recebi de
Sua Majestade
S. M.
é sôbre a licença que lhe pedi para comunicar aquele negócio aqui ao senhor Embaixador, e ainda que
Sua Majestade
S. M.
a não duvida, é com cláusula que não saiba disto outrem, e assim o peço a
Vossa Excelência
V. Ex.a
, o que entendo até do Secretário Pedro Vieira, porque não vem esta carta de El-rei pela sua secretaria. As novas, que achei em Amsterdam, das fragatas que de aqui partem e das nossas naus da Índia vão na carta 176 geral; os negócios de aqui entendo que não terão conclusão até que se ratifique a paz e venha nova do Brasil em nosso favor. Mau é que escapasse Sigismundo com o poder inteiro, porque junto ao que de cá irá chegando será no mar muito superior ao nosso. Navios e mais navios é o que havemos mistér. Meu amo e senhor, Deus guarde e console a
Vossa Excelência
V. Ex.a
como êste criado de
Vossa Excelência
V. Ex.a
mais de coração que todos lhe deseja. Haia, 16 de Março de 648. - Criado de
Vossa Excelência
V. Ex.a
António Vieira. CARTA XXVI Ao Marquês de Niza 1648 - Março 23
Excelentíssimo Senhor
Ex.mo Sr.
- As cartas que nos faltaram no correio de 21 de Fevereiro já avisei a
Vossa Excelência
V. Ex.a
como se nos deram no seguinte, com que
Vossa Excelência
V. Ex.a
pode estar livre daquele cuidado. Muito estimo que no Reino se tenha acudido à falta dos créditos de Duarte da Silva com novas letras de outros mercadores, de que até agora não tem chegado aviso algum: quererá Deus trazer os navios de Lisboa que há muitos dias se esperam, e cessarão os grandes medos com que está Duarte Nunes por se haver metido na compra de aquelas naus, receando que falte a pontualidade nos pagamentos como outras vezes tem experimentado; e o pior é que houve ministro de
Sua Majestade
S. M.
que lhe condenou muito a fineza, e o zêlo dos que lha persuadiram. 177 Amanhã parto para Amsterdam, e remeterei a
Vossa Excelência
V. Ex.a
o crédito de António Rodrigues de Morais, e o demais dinheiro ficará à ordem de Manuel Rodrigues de Matos, cujas letras ainda cá não chegaram, e em tudo o mais farei o que
Vossa Excelência
V. Ex.a
nesta sua me manda. O embaixador Francisco de Andrada Leitão fica nesta casa, onde está há dez ou doze dias, de partida para Roterdam, resoluto a se embarcar em companhia de umas fragatas, que os Estados mandam a correr a costa de Espanha, para segurarem os seus navios dos piratas turcos: (queira Deus que não seja para o serem dos nossos!). Irá na fragata "Fortuna", que fica dando querena, e se entregará em Lisboa pelo inventário cuja cópia vai com esta. Os dois papéis impressos são propostas que aqui
fez Monsieur
Mr.
de la Tulherie, contra as quais se têm escrito furiosíssimos papéis, em que se dizem grandes males do rei e ministros de França, nomeando-os por seu nome, e se tem por sem dúvida que a paz se ratificará brevemente. Lá o tomara ver, para que a nossa não tivera este impedimento. As cidades de Holanda mostram inclinação a algum acôrdo; queira Deus trazer-nos tais novas do Brasil que os não esfriem nesta boa vontade. Se nós tivéramos os tesouros que os franceses fingem, não era mau haverem-se reduzido todas suas petições a dinheiro; mas, como
Vossa Excelência
V. Ex.a
lhe tem oferecido o conveniente e êles zombam,
Sua Majestade
S. M.
verá o que pode e o que lhe está melhor. Com
Vossa Excelência
V. Ex.a
me dizer que prègou o padre frei Francisco à Rainha, está dito quão aplaudido seria o sermão: 178 cá me obrigou o senhor Embaixador a prègar dia de
São
S.
José, e o fiz conforme o coração com que estava. Anime Deus e console o de
Vossa Excelência
V. Ex.a
, como lhe peço em meus sacrifícios, e guarde a
Vossa Excelência
V. Ex.a
muitos anos, como a casa e criados de
Vossa Excelência
V. Ex.a
havemos mistér. Haia, 23 de Março de 648. O barco, que de aqui enviou o senhor Embaixador, há setenta dias que partiu, e nem temos novas dêle, com que ficámos com grande cuidado. O Residente Cristóvam Soares de Abreu fica buscando dinheiro para a passagem, mas não o acha porque as prisões de Lisboa nos acabaram o crédito. - De
Vossa Excelência
V. Ex.a
criado
António Vieira. CARTA XXVII Ao Marquês de Niza 1648 - Março 30
Excelentíssimo Senhor
Ex.mo Sr.
- Já na passada dei conta a
Vossa Excelência
V. Ex.a
como, em virtude da primeira ordem que recebi com as letras, comprei a fragata "Fortuna", conforme o inventário que remeti e com as condições que também tenho escrito; e, como a venda estava celebrada, não foi possível desfazê-la, e assim ficam as letras, ou o procedido delas para quando cair, em mão dos vendedores, que vem a ser, como avisei a
Vossa Excelência
V. Ex.a
, os dois terços do preço com o seguro dêles, que monta pouco mais ou menos vinte e três mil e quinhentos florins desta moeda, de que remeterei a conta a
Vossa Excelência
V. Ex.a
179 depois que se ajustar o seguro, e a esta causa torna o crédito de António Rodrigues de Morais com menos mil libras francesas, como Jerónimo Nunes dirá; que tão grandes são as quebras que trás êsse dinheiro passado a esta praça. De Lisboa chegaram aqui navios com cartas de 22 de Fevereiro, sem mais novas que haver chegado o barco que o senhor Embaixador mandou de aviso, que ainda não estava despachado, nem as cartas vistas, conforme avisa quem as levou, sendo os negócios de importância que requeria maior brevidade. Os holandeses espalharam aqui que a nossa armada havia chegado à Baía muito destroçada, e falta de alguns navios que se lhe desgarraram e perderam, e que esta mesma fortuna padecera a capitânia e almiranta ao entrar da Baía. Mas ainda que os impossíveis destas novas não bastaram a fazê-las incríveis aos que tanto desejam nosso mal, chegaram depois navios de Viana e Setúbal com desengano de não haver tal recado em Portugal. Eu tive carta do Brasil, vinda no último aviso, em que me dizem que a nossa armada se ficava esperando por horas; que Sigismundo queimara tudo o que tinha em Taparica, que vinha a ser pouco mais que as barracas dos soldados; e que em 13 de Dezembro se embarcara, e em 15 saíra pela barra fora com catorze navios, oito grandes e seis pequenos, bem desigual poder para a nossa armada se lá o achara: mas Deus que ordena tudo fará que seja para melhor. Os navios que chegam de Portugal, assim a estes portos como aos de Inglaterra, trazem muitos mercadores fugidos, e êles a sua fazenda, e a dos que lá ficam, que é fácil a quem a passa em uma fôlha de papel e pela mesma causa não há quem aqui queira dar um vintém para Portugal, nem carregar para lá cousa alguma. Esperava que ao menos viessem os créditos ou letras de que
Sua Majestade
S. M.
avisou 180 a
Vossa Excelência
V. Ex.a
; mas não resulta sinal de isto em nenhuma parte, e Duarte Nunes não faz senão escrever-me que lhe acuda, como se eu tivera as rendas de El-rei em meu poder: já me não espanto que houvesse quem lhe condenasse o zêlo com que se meteu nesta emprêsa, e o dos que o exortaram a ela. Nos negócios não posso dizer nada a
Vossa Excelência
V. Ex.a
, porque não vi a carta do senhor Embaixador a que
Vossa Excelência
V. Ex.a
se remete, por eu estar ao presente em Amsterdam, onde vim deitar fora a fragata, em que se embarcará até sexta feira o embaixador Francisco de Andrada, que hoje chegou aqui da Haia, com que
Sua Majestade
S. M.
não poupará sòmente os fretes da passagem senão os ordenados da maior detença, que sem dúvida seria larga se a ocasião não fôra tão forçosa. Os termos e intentos dessa gente são muito próprios de quem êles são:
Vossa Excelência
V. Ex.a
tem feito tudo o que podia e devia, e, com
Vossa Excelência
V. Ex.a
deixar a porta aberta à eleição e resolução de
Sua Majestade
S. M.
, parece que é tudo o que no estado presente e para o futuro nos está melhor. Notável é a resolução que se toma com o reverendíssimo Escoto; pode ser que fôra tão acertado mandar uns para Roma como tirar outros de lá. Agora me dizem que é chegada a ratificação das pazes por Castela, e que Zelanda diz que não há-de assinar, se os Estados lhe não prometerem novo socorro para o Brasil. Que o desejam e que a França mexe com êles não há 181 dúvida; no correio seguinte avisarei do que houver. Deus guarde a
Vossa Excelência
V. Ex.a
muitos anos como desejo. Amsterdam, 30 de Março de 648 - Criado de
Vossa Excelência
V. Ex.a
António Vieira. CARTA XXVIII Ao Marquês de Niza 1648 - Abril 6
Excelentíssimo Senhor
Ex.mo Sr.
- A de
Vossa Excelência
V. Ex.a
de 27 de Março recebi sábado à tarde nesta Haia, onde cheguei de Amsterdam, deixando já embarcado todo o fato do embaixador Francisco de Andrada e mais bagagem, e só sua pessoa em terra com um criado, para se embarcar na mesma manhã do sábado, pôsto que o dia foi tão tempestuoso e o vento tão contrário que não sei se o faria. A sua tenção parece que não era embarcar-se tão depressa; mas, como bom servidor de El-rei, cortou pelo gôsto ou conveniência que tinha em se dilatar mais nestes países, com que
Sua Majestade
S. M.
haverá poupado não só os fretes mas também os ordenados. Ao que
Vossa Excelência
V. Ex.a
me manda sôbre os créditos não tenho que dizer mais que o que já respondi no correio passado de Amsterdam, onde ainda não há mais notícias de novas letras que fazerem uns mercadores flamengos alguns seguros de somas consideráveis, sôbre todos os navios que partissem dos portos de Portugal com fazenda de
Sua Majestade
S. M.
: se chegarem, farei em tudo o que couber na minha esfera o que
Vossa Excelência
V. Ex.a
me mandar. 182 Aquele homem de Veneza nos tinha alumiado alguma cousa, mas com luzes tão escassas que não pudemos perceber a grandeza do negócio nem a prontidão dêle. Se a praça estivera no estado antigo, bem me atrevera eu a ajudar de aqui com um bom socorro; mas é mais dificultoso hoje achar cem cruzados que noutro tempo duzentos mil, e assim tenho poucas esperanças de poder conseguir alguma cousa; mas passada a festa irei logo fazer todas as diligências. Da resposta que aí têm as de
Vossa Excelência
V. Ex.a
não me espanto, porque conheço essa gente: quere Deus que lhe devamos tudo a êle, e assim o espero em sua misericórdia, e que nos haja de fazer maiores mercês das que nós sabemos desejar. Deus guarde a
Vossa Excelência
V. Ex.a
muitos anos como desejo. Haia, 6 de Abril de 648. - Criado de
Vossa Excelência
V. Ex.a
António Vieira. CARTA XXIX Ao Marquês de Niza 1648 - Abril 13
Meu senhor. - A carta de
Vossa Excelência
V. Ex.a
de 3 do corrente recebi, e primeiro que tudo dou a
Vossa Excelência
V. Ex.a
as graças e os 183 parabens do que
Vossa Excelência
V. Ex.a
me diz no segundo capítulo dela, que se bem de Veneza se nos têm mandado repetidos avisos de grandes e bem fundadas esperanças, nunca até agora soubemos o que lá passava com esta especialidade. Já disse a
Vossa Excelência
V. Ex.a
que, se as praças de Portugal estiveram na reputação dos anos passados, não fôra dificultoso negociar aqui uma grande quantidade de dinheiro; mas passadas as oitavas torno a Amsterdam, e verei se é possível alcançar alguma cousa, pois conheço a obrigação que todos temos de empenhar o sangue nesta ocasião. Os créditos de Gaspar Pacheco não chegam, nem novas dêles, com haverem chegado infinitos navios de todos os portos de Portugal, e particularmente o barco que de aqui enviou o senhor Embaixador, em que não recebemos letra que falasse neste negócio. Sinto-o por amor de Duarte Nunes, que está arriscado a lhe suceder um desastre, e toda a culpa me lança a mim, por eu o haver metido nisto, e até o senhor Embaixador tem de mim esta queixa, por ser eu o que o persuadi a que escrevesse, sendo êle de parecer que André Henriques se fôsse para o Reino, e pode ser que seria o mais acertado. O crédito de António Rodrigues de Morais tenho remetido na forma que avisei. De Manuel Rodrigues de Matos recebi hoje carta de 10 de Março, com aviso de que vai remetendo a quantia dos vinte e quatro mil cruzados, de que já cá estão letras de quatro para cinco mil, que Jerónimo Nunes fez logo aceitar, e todo o dinheiro estará à ordem do dito Manuel Rodrigues, como
Vossa Excelência
V. Ex.a
nos manda. Os papéis de
Monsieur
Mr.
de la Tulherie, que mandei a
Vossa Excelência
V. Ex.a
, não foi por entender que tinham fundamento os pretextos que nêles propunham; porque é cousa muito pública nestes Estados o ânimo dos franceses, que só tratam de ver se 184 podem embaraçar ou dilatar esta ratificação. O livro de Fora velhaco, e os mais papéis que
Vossa Excelência
V. Ex.a
me encomenda, negociarei, e não os poderá levar o
doutor
dr.
Francisco de Andrada, porque já ontem partiu de Texel com belíssimo vento; mas irão no primeiro navio, quando eu os não leve. De
Sua Majestade
S. M.
tive carta em resposta da que de aí lhe escrevi sôbre a minha jornada de Munster, de que
Sua Majestade
S. M.
me há por escuso, vistas as razões que por parte de
Vossa Excelência
V. Ex.a
lhe representei, e me manda licença para me poder tornar para o Reino, o que procurei fazer no mesmo dia, que foi o de têrça feira da semana santa, vendo se podia alcançar ainda a fragata; mas o senhor Embaixador o não consentiu, por ter grandes esperanças que, publicada a paz com Castela (o que se faz de aqui a cinco semanas), se fará logo a nossa, a cujas capitulações me encomenda muito
Sua Majestade
S. M.
que assista, em outra carta que tive sua; e na da licença supõe que não há esperanças de isto ter efeito, nem eu o seguro, pôsto que nunca lhe vi mais jeito que agora. Pela carta de
Sua Majestade
S. M.
, que o senhor Embaixador remete a
Vossa Excelência
V. Ex.a
, verá
Vossa Excelência
V. Ex.a
como ainda continua a cegueira nas matérias do Brasil, cujos bons sucessos lá se apregoam, e cá não sabemos mais que haverem-nos tomado nove presas, de que hoje tive aviso, todas de Portugal para a Baía e cabo de
Santo
S.
Agostinho, que servem só de levar aos holandeses os mantimentos que lhes faltam. As fragatas partiram com o
doutor
dr.
Francisco de Andrada, e são por todas dez, quatro para as costas de Espanha e seis para o estreito; mas não sei se foram desta vez todas. 185 A última Resolução da audiência, que
Vossa Excelência
V. Ex.a
teve do Cardial, me parece que é a que mais nos convinha, suposto o estado das cousas, e agora folgara eu muito que viera a licença de
Sua Majestade
S. M.
, para que
Vossa Excelência
V. Ex.a
o pudera informar de todos os particulares dêste negócio, e muito particularmente do ânimo dos ministros com que
Vossa Excelência
V. Ex.a
aí o tratou: quererá Nosso Senhor que tenha chegado esta ordem de
Sua Majestade
S. M.
, para que, além das importâncias do seu real serviço, acuda
Vossa Excelência
V. Ex.a
a tantas outras que verdadeiramente necessitam muito da presença e assistência de
Vossa Excelência
V. Ex.a
. O desembargador Cristóvam Soares se sangrou ante-ontem e purgou hoje, e entendo que se partirá àmanhã ou ao outro dia. Guarde Deus
Vossa Excelência
V. Ex.a
muitos anos, como desejo. Haia, 13 de Março de 648. - Criado de
Vossa Excelência
V. Ex.a
António Vieira. CARTA XXX Ao Marquês de Niza 1648 - Abril 20
Excelentíssimo Senhor
Ex.mo Sr.
- Nesta carta de 10 do corrente me fala
Vossa Excelência
V. Ex.a
no crédito das nove mil libras que Jerónimo Nunes remeteu diminuído em mil, e me espanto de
Vossa Excelência
V. Ex.a
me preguntar a causa, porque, se a memória me não engana, 186 de Amsterdam escrevi a
Vossa Excelência
V. Ex.a
no mesmo correio em que foi o crédito que, por não chegarem as outras letras à quantia dos dois terços que aqui pagámos pela fragata e pelos seguros dela, foi necessário tomar mais mil libras do crédito das nove mil, e esta foi a causa de ir diminuído. A de ir a uso e meio, como é cousa que não correu por minha mão, mandei preguntar logo a Jerónimo Nunes, e me respondeu que o fez porque o dinheiro nesta remessa não quebrasse um e meio por cento; assim que, entendo não ficará por conta de
Vossa Excelência
V. Ex.a
perda alguma, nem a fazenda de
Sua Majestade
S. M.
o haverá tido. Dêste segundo ponto me diz Jerónimo Nunes que avisa a
Vossa Excelência
V. Ex.a
com mais largueza e clareza. Estimarei que, assim nisto como no demais, se tenha cá obrado a satisfação de
Vossa Excelência
V. Ex.a
, que é o que por minha parte muito procuro. Quanto à compra dos navios, bem lembrado estou que em um correio chegaram as letras, e no seguinte veio a ordem que se não comprassem; mas quando esta chegou estava eu já na Haia, de volta de Amsterdam, onde deixava comprada a fragata "Fortuna", e também ficaria comprada outra, se me não houvera descontentado por velha: e se Jerónimo Nunes se tivera conformado com que comprássemos antes de chegar o dinheiro, da mesma maneira estiveram compradas quatro ou cinco, por ser isto o que
Vossa Excelência
V. Ex.a
me ordenava em todas as cartas antecedentes, e o que tanto convinha ao serviço de
Sua Majestade
S. M.
e necessidade do Reino. Assim que, do dinheiro que
Vossa Excelência
V. Ex.a
me remeteu não posso já fazer cousa alguma, por estarem as letras nas mãos de quem vendeu a fragata. As de Manuel Rodrigues de Matos, que são duas ou três, com a terça parte da quantia que
Vossa Excelência
V. Ex.a
mandou remeter, 187 ficam à sua ordem. A Hamburgo chegaram duas naus de Lisboa, com letras e fazenda de
Sua Majestade
S. M.
a entregar a Duarte Nunes: com êle poderá
Vossa Excelência
V. Ex.a
tratar esta comutação de dinheiro, ainda que todo o que se empregar em navios será o mais bem empregado, salvo se fôr o necessário para o negócio de Itália, que sempre está diante de todos. O de aqui fica em vésperas de se concluir: agora é necessário untar as rodas, e com pouco se pode ganhar muito. O senhor Embaixador avisa das ordens de
Sua Majestade
S. M.
; estou certo que
Vossa Excelência
V. Ex.a
o socorrerá conforme a importância. Guarde Deus a
Vossa Excelência
V. Ex.a
muitos anos como desejo. Haia, 20 de Abril de 648 - Criado de
Vossa Excelência
V. Ex.a
António Vieira. CARTA XXXI Ao Marquês de Niza 1648 - Abril 27
Excelentíssimo Senhor
Ex.mo Sr.
- Com a carta de
Vossa Excelência
V. Ex.a
recebi as de
Sua Majestade
S. M.
, e sinto muito que, sobre tantas razões de pouco gôsto, e necessidade de
Vossa Excelência
V. Ex.a
tornar para Portugal, queira
Sua Majestade
S. M.
que ainda
Vossa Excelência
V. Ex.a
se dilate mais tempo nessa côrte, principalmente quando
Vossa Excelência
V. Ex.a
tem chegado os negócios dela ao mais que podiam dar de si, e para
Sua Majestade
S. M.
as resolver ùltimamente, que é o que só lhe falta, parecia que importava mais a presença de
Vossa Excelência
V. Ex.a
daquela banda que desta. E porque totalmente o entendo assim, venho a entrar em 188 pensamento que a demora de
Vossa Excelência
V. Ex.a
tem outros maiores fins, e ocorrendo-me que podem ser os do negócio de Veneza, dá a
Vossa Excelência
V. Ex.a
a minha fantasia ou meu desejo os parabens, em trôco dos quais peço muito a
Vossa Excelência
V. Ex.a
se sirva de nos comunicar sempre a melhoria que fôrem tendo estas esperanças. As dos negócios de aqui verá
Vossa Excelência
V. Ex.a
, pela carta do senhor Embaixador, que verdadeiramente são hoje maiores que nunca, e com mais sólidos fundamentos: queira Deus que nos não mintam como tantas vezes têm feito. O ponto da praça de Portugal entendo que não será necessário, e verdadeiramente eu o tive sempre por muito indecente, e assim o escrevi a
Sua Majestade
S. M.
, quando ainda de Paris lhe falei sôbre as cauções, mas temos por certo que não há-de bater por aí a maior dificuldade. Não sei em que
Sua Majestade
S. M.
se pudesse conformar com o que escrevi a
Vossa Excelência
V. Ex.a
, se de aí se infere que
Vossa Excelência
V. Ex.a
não há-de fazer tratado, principalmente que o estado a que
Vossa Excelência
V. Ex.a
o reduziu ùltimamente é de muito diferente condição que as passadas, e se aqui fizermos as pazes, como 189 se espera, é o caso em que eu convinha que déssemos dinheiro e navios, porque então considerava que o podíamos fazer, e assim estimarei que
Vossa Excelência
V. Ex.a
me diga com mais clareza o que há nisto. A quitação mandarei a
Vossa Excelência
V. Ex.a
de Amsterdam, onde hei-de ir fazer a conta: e pelo papel do prègador da Rochela envio a
Vossa Excelência
V. Ex.a
êsse outro de um predicante capuchinho, que aqui converteu um padre da Companhia. O padre Pontilier assistiu em Leiden à protestação do seu patrício, e em paga dos pêsames que
Vossa Excelência
V. Ex.a
lhe dá manda os dos quatro capuchinhos, de que se faz menção no mesmo papel. Deus os tenha de sua mão e guarde a
Vossa Excelência
V. Ex.a
como desejo. Haia, 27 de Abril de 648. - Criado de
Vossa Excelência
V. Ex.a
António Vieira. CARTA XXXII Ao Marquês de Niza 1648 - Maio 4
A permissão que
Sua Majestade
S. M.
me tinha dado, de poder tornar para Portugal, se me revogou pelas últimas cartas, querendo
Sua Majestade
S. M.
que eu me detivesse aqui, para assistir, segundo entendo, a
Dom
D.
Luís de Portugal, em caso que os negócios desta paz ficassem à sua disposição, o que entendo não será, porque desta vez devem ficar ou desesperados ou concluídos, salvo em alguns acidentes, que melhor se 190 podem negociar do Reino, enviando com que adoçar vontades, do que trabalhando aqui pelas persuadir. Nos negócios se não tem dado passo adiante, porque aconselharam os amigos que esperássemos pela resolução de Zelanda, onde as demais províncias tinham enviado deputados, a rogar lhe quisessem ratificar a paz com Castela, mas hoje tornaram com novas de a deixarem firme ou obstinada no mesmo propósito: não sabemos ainda as circunstâncias do caso, nem em que virá parar. O certo é que França negoceia eficazmente, porque sabe e pode dar. De Manuel Rodrigues de Matos tive aviso que já tinha remetido por Veneza os catorze mil cruzados, mas ainda não chegaram mais que sete letras, com vinte e um mil florins de moeda de aqui, que virão a montar pouco mais de dez. Duas estão na minha mão, e as demais na de Jerónimo Nunes, o qual me escreveu hoje que tinha ordem de Manuel Rodrigues, para depois de cobradas as tornar a remeter, que é o contrário do que
Vossa Excelência
V. Ex.a
manda, pois me diz
Vossa Excelência
V. Ex.a
que se remetam sem se declararem. Poderá ser que seja êste o estilo mercantil, de que me informarei amanhã, que vou a Amsterdam, e em tudo o que puder ser serão as ordens de
Vossa Excelência
V. Ex.a
pontualmente obedecidas. No correio passado avisei a
Vossa Excelência
V. Ex.a
da necessidade que aqui há de dinheiro, em caso que com efeito se trate de concluir a nossa paz, e o menos que logo-logo podem ser necessários são os vinte mil cruzados, que o senhor 191 Embaixador diz que faltam para inteirar os trinta mil, que
Sua Majestade
S. M.
ùltimamente escreveu lhe mandara remeter de França. E é não só necessário, mas forçoso, que de qualquer parte que seja se nos acuda com êste dinheiro, porque à falta dêle se não perca um negócio que tanto nos importa, ou ao menos que não se faça com as condições que mais nos convenham, as quais é certo se não poderão vencer senão por estes meios. As letras e pimenta que se remeteu de Portugal já é chegada (sic) a Hamburgo, onde se tem comprado outra nau de 250 lastros: bom fôra que as demais agora fôssem fragatas como a (Fortuna). O dinheiro que se deu por ela já tenho dito muitas vezes a
Vossa Excelência
V. Ex.a
que se não pode trocar por outro, pois está dado, mas poderia Duarte Nunes aplicar outra tanta quantia ao negócio para que se há mistér êste, pôsto que a importância de
Sua Majestade
S. M.
ter navios é tão grande e tão precisa, que sempre eu seria de parecer que aqueles cem mil cruzados se não divertissem para [para ?]
outra cousa, salvo em caso que dêles dependesse o negócio de Veneza, que sempre está diante de tudo; mas Duarte Nunes, com as remessas que agora se lhe fizeram, está tão acreditado que sôbre seu crédito pode tomar tudo quanto fôr necessário. Desgraçadíssimo foi o sucesso de Nápoles, e ainda que sempre temido dos prudentes, nunca esperada a brevidade e pouca resistência com que aquela cidade se entregou. Poderá ser que se humilhem um pouco com isto êsses senhores, e entrem em consideração de que lhes importa ter amigos e companheiros. Uma das circunstâncias mais para sentir foi dizer-nos 192 Taquete que caíu com aquela ruína a máquina, que se tinha fundado sôbre o Duque de Turcis, e até na da outra negociação fala com grande frieza. Por esta razão lhe pareceu ao senhor Embaixador que o dinheiro, que aqui está e vem chegando de Veneza, se não remeta até novo aviso de
Vossa Excelência
V. Ex.a
, esperando que, pois cá está, se conforme
Vossa Excelência
V. Ex.a
com que êle seja parte dos vinte mil cruzados que
Sua Majestade
S. M.
manda dar para êste negócio, visto estarmos no ponto em que se há-de concluir por uma ou por outra parte; e, para que seja pela que desejamos, importa tanto haver dinheiro, que sem êle ou se não fará, ou com muito inferiores condições.
Vossa Excelência
V. Ex.a
se sirva ordenar o que se deve fazer, porque sem ordem de
Vossa Excelência
V. Ex.a
se não disporá de um vintém; mas dêste outro dinheiro nos socorra
Vossa Excelência
V. Ex.a
, porque será grandíssima desgraça que por falta de tão pouco se perca tanto. Grande favor foi o das cartas de Duarte da Silva, e o será também o da sua soltura, como a de sua mulher e sobrinho; mas se os haviam de soltar porque os prenderam? Não faltará quem diga o porquê, mas eu não quero, porque pode ser que neste caso o saiba melhor que todos. Taquete nos diz que João Delgado Figueira vai a Roma por parte da Inquisição: não sabemos que fundamento 193 tenha esta nova, porque de Portugal se não fala em tal cousa. Sôbre as confianças que lá se fazem de Lanier, me lembra que
Vossa Excelência
V. Ex.a
avisou a
Sua Majestade
S. M.
em cartas que eu escrevi de Fontainebleau. Agora o torno a repetir com todo o encarecimento, pelos exemplos que aqui temos, ainda que o que disse a
Vossa Excelência
V. Ex.a
o Cardial não sei que fundamento tenha nesta ocasião; porque muitas cousas escrevi de aqui as quais vejo não só mal recebidas de
Sua Majestade
S. M.
e seus ministros mas totalmente reprovadas. Deus nos encaminhe e guarde a
Vossa Excelência
V. Ex.a
muitos anos como desejo. Haia, 4 de Maio de 648. - Criado de
Vossa Excelência
V. Ex.a
António Vieira. CARTA XXXIII Ao Marquês de Niza 1648 - Maio 11
Excelentíssimo Senhor
Ex.mo Sr.
- Com esta será o recibo do dinheiro que
Vossa Excelência
V. Ex.a
me mandou remeter para a compra da fragata, e não especifico quantas libras são da moeda de França porque mo não soube dizer Jerónimo Nunes, e o que
Vossa Excelência
V. Ex.a
me diz na sua são seis mil quinhentas e tantas. Se fôr necessário que especificadamente diga a quantia do 194 dinheiro conforme essa moeda, sirva-se
Vossa Excelência
V. Ex.a
de me mandar dizer quantas libras são determinadamente, e logo mandarei o recibo; e se a forma em que vai não fôr boa, pelo pouco uso que tenho disto,
Vossa Excelência
V. Ex.a
mande emendar e remeter-ma, para que eu acerte o
a fazer
a-fazer
como convém. Pela carta de Jerónimo Nunes soube estranhara
Vossa Excelência
V. Ex.a
que a fragata se não comprasse segura, e que o seguro se fizesse de fora parte, a que respondo que o meu desejo foi de, em todos os acidentes da compra, me conformar com a ordem de
Vossa Excelência
V. Ex.a
, mas quem vendeu a fragata não quis segurar nela mais que a terça parte, que se há-de pagar depois de chegar a cinco meses, e assim foi necessário fazer o seguro de fora, e nisto não perdeu nada a fazenda de
Sua Majestade
S. M.
, porque, quando o vendedor se obrigasse a pô-la segura no Reino, havia de levar de mais o que monta o seguro, por ser muito diferente a obrigação. As vésperas de concêrto com êstes Estados se chegam cada dia mais, segundo tive por aviso do senhor Embaixador, que também deve mandar a
Vossa Excelência
V. Ex.a
, mas não as poderemos cantar com a solenidade que
Vossa Excelência
V. Ex.a
deseja, dando-nos
Vossa Excelência
V. Ex.a
tão poucas esperanças de dinheiro, sem o qual se não faz festa em nenhuma parte, e muito menos entre esta gente.
Vossa Excelência
V. Ex.a
se sirva de nos mandar acudir de qualquer parte, pois êste negócio é de tanta importância, e seria a maior de todas as desgraças que por tão pouco deixasse de se fazer. Bem conheço que o acidente de Nápoles pode alterar muito todos os negócios, mas como o que se propôs a
Vossa Excelência
V. Ex.a
, era de qualidade que se não podia concluir sem ordem expressa de
Sua Majestade
S. M.
, não se tem perdido tempo e, quando se perca ocasião, foi esta uma de aquelas que não está na mão dos homens o preveni-las, e em todo o caso
Vossa Excelência
V. Ex.a
terá a glória de haver obrado como convinha. 195 Já avisei a
Vossa Excelência
V. Ex.a
que vinha a Amsterdam saber como havíamos de remeter as letras a Itália, e aqui achei não ser estilo remeterem-se antes de recebidas, e na mesma conformidade vem o aviso de Manuel Rodrigues de Matos. E assim se cobrarão a seu tempo para se remeterem, e entretanto chegará ordem de
Vossa Excelência
V. Ex.a
sôbre o que se deve fazer dêste dinheiro, supôsto o que o senhor Embaixador e eu propusemos a
Vossa Excelência
V. Ex.a
àcêrca dêle, e não torno a falar na mesma matéria, porque a importância dela é o maior encarecimento. Guarde Deus a
Vossa Excelência
V. Ex.a
muitos anos. Amsterdam, 11 de Maio 648. - Criado de
Vossa Excelência
V. Ex.a
António Vieira. CARTA XXXIV Ao Marquês de Niza 1648 - Maio 19
Excelentíssimo Senhor
Ex.mo Sr.
- Recebi a de
Vossa Excelência
V. Ex.a
de 8 do corrente, e estimo muito que haja chegado em paz o Residente Cristóvam Soares de Abreu, por que com sua companhia serão mais fáceis de levar a
Vossa Excelência
V. Ex.a
as moléstias dêsse lugar, que na ocasião presente considero maiores pelo enfadamento e soidade que pelo trabalho dos negócios, pois segundo
Vossa Excelência
V. Ex.a
diz,
Sua Majestade
S. M.
os quere a diferente preço ou a nenhum, que é ainda maior impossível. Do mesmo 196 mal se padece nesta embaixada, cujos negócios é certo estiveram muito mais avançados se houvera dinheiro com que alhanar dificuldades, e é lástima que, quando temos insensibilidade para perder tanto, não tenhamos ânimo para o gastar ou empregar com tão manifesta usura. Chegou navio de Pernambuco com doze portugueses, mestres e mercadores de alguns navios de Portugal que lá nos tomaram, os quais dizem que as presas que tinham feito, desde o primeiro dia de Janeiro até os sete de Março em que partiram, eram vinte e dois, de Lisboa, Porto, Viana e Ilhas, com que o Recife estava mui socorrido de mantimentos e drogas. Já
Vossa Excelência
V. Ex.a
vê o ânimo que isto causará nos armadores das fragatas, e quanto poderá esfriar a resolução dos que estavam determinados a fazer paz connosco, que eram os fundamentos sólidos sôbre que as esperanças de acomodamento estribavam até agora. E ainda que estes sucessos do Brasil e o de Nápoles são bastantes a causar qualquer mudança, ainda em gente mais constante que os holandeses, não temos perdido a confiança de se poder obrar alguma cousa: ao menos com esta paz de Castela, que já está ratificada em Munster, teremos cedo o último desengano, pois era o prazo que os confidentes tinham dado. Dizem mais os prisioneiros de Pernambuco que Francisco Barreto era fugido para a Campanha, onde ficava com os nossos; e que da Baía viera um barco mandado pelo nosso General da armada, com recado de que se não sabia mais que o não haver sido admitido. Agora se diz aqui que, por outro navio 197 chegado de Lisboa hontem, se sabe que o Governador António Teles ficava preso por ordem de
Sua Majestade
S. M.
na Baía, para se devassar dêle sôbre o caso de Pernambuco, e que isto continha o recado do General, acrescentando que tinha ordem para tratar de paz e acomodamento, se os holandeses de Pernambuco o quisessem fazer, a que se diz que responderam que mandasse primeiro retirar as tropas da Campanha. Notável é o caso de Mademoiselle, e muito para reparar nas traças e inteligências de Castela, e em que intento podia ter êste rapto, pois só o do casamento, e em desgraça de França, não parece bastante motivo a tal empenho. Melhores fortunas que esta fadaram algum dia as fadas a Mademoiselle, mas nisto mesmo mostrou que não era merecedora de tanto. Deus sabe o que faz melhor que os homens o que desejam. Muito sinto que o negócio de Nápoles atrazasse totalmente, como
Vossa Excelência
V. Ex.a
198 diz, o de Veneza, e, suposto que assim é, agora fica lugar de
Vossa Excelência
V. Ex.a
nos socorrer com aquele dinheiro, do qual se não dispenderá um real senão fazendo-se o negócio; mas para que haja quem fie as promessas, e para que elas sejam efectivas, é necessário que o dinheiro esteja cá, e das ordens de
Sua Majestade
S. M.
vê
Vossa Excelência
V. Ex.a
que manda oferecer muito maiores quantias, e seria desgraça muito para chorar eternamente que, por falta do que virá a montar pouco, se perca o que importa tudo. Estimei muito de ver o capítulo da carta daquele Zeloso Honrado, com o qual se devem conformar todos os que quiserem bem a Portugal. Nem eu entendo que
Sua Majestade
S. M.
nem seus ministros queiram nem julguem outra cousa, se a de que se trata está no estado em que aquele papel a supõe, porque paz e segurança e crédito, comprado tudo pelo que podiam custar dois anos de guerra, quem haverá que o não deseje e rogue muito, e que se não venda, não digo eu por êste preço senão por outro maior? Mas o caso, segundo as informações que cá tivemos, era muito diferente; porque não era de paz senão de guerra; nem de segurança senão de muitas dúvidas; nem para logo senão para quando Deus e os franceses quisessem ou pudessem; nem à custa do dinheiro com que se pode sustentar a guerra dois anos, senão de nós lhe sustentarmos a de Catalunha todos os que ela durasse, ou darmos em dinheiro ou em outra espécie preço equivalente; e finalmente impossível ao estado em que o Reino se acha, que é razão que não tem resposta e tomáramos nós muito que tivesse remédio. Emfim, senhor, o preço em que ultimamente se convieram 199 os ministros de França só sabemos por maior que é grande, mas não sabemos quanto, e se é quantidade com que o Reino possa, consideradas suas necessidades, ainda que seja com se vender e empenhar tudo. Eu digo que para ter paz, e para segurar o Reino, que em nada se repare; importa porém que a paz haja de ser paz, e a segurança segurança, e ambas estas cousas são também duvidosas, e tão incertas como o tempo e os mesmos movimentos de França nos vão mostrando, para deixar outras causas de maior contingência, para cuja consideração não é necessário adiantar o discurso aos futuros, basta pôr os olhos no passado. Mas, senhor, não é isto o que eu mais sinto, senão que, quando a impossibilidade nos aparta de uns negócios, a negligência e remissão nos tem totalmente ociosos e descuidados noutros, que se nós quiséramos não eram impossíveis. Já me contentara com que na nossa terra não ajudaram, contanto que não encontrassem o que nos pode estar bem, mas só nisto se não descuidam os que tinham obrigação e ofício de só cuidarem no contrário. Bastem estes enigmas, pois o papel não permite falar com maior clareza, e ainda isto fôra melhor calado, mas não no consente a dôr. Guarde Deus a
Vossa Excelência
V. Ex.a
muitos anos como desejo. Haia, 19 de Maio 648. Criado de
Vossa Excelência
V. Ex.a
António Vieira. 200
CARTA XXXV Ao Marquês de Niza 1648 - Maio 25
Excelentíssimo Senhor
Ex.mo Sr.
- Já começámos a experimentar privilégios de verão, que foi recebermos esta semana um dia mais cedo as cartas de
Vossa Excelência
V. Ex.a
, as quais desejávamos, além do ordinário alvorôço, com grande sêde de saber o estado das cousas e exército de França, pela grande variedade com que aqui chegam as novas por via de Flandres, das quais ainda não ficamos com certeza alguma, nem cuido a teremos até o correio seguinte. A minha detença aqui será até a conclusão dêstes negócios, que cada dia parece que está mais perto, ainda que não acaba de chegar. Se a voz do povo é de Deus, profecia certa temos de isto se haver de acordar, porque todos falam em conveniências desta paz, e mostram desejo a ela, linguagem que até agora se não ouvia: queira Deus conservá-los nesta boa vontade, e ordenar de modo as cousas do Brasil que não venha de lá alguma nova que torne a desmanchar tudo. Como fui a Amsterdam quando aqui chegou a carta de Segismundo, e aquele ministro fez a revelação dos mistérios dela, supunha eu que uma e outra cousa se havia escrito a
Vossa Excelência
V. Ex.a
, e falando nesta matéria com o senhor Embaixador achei não ser assim, e então caí na razão 201 porque
Vossa Excelência
V. Ex.a
, na carta do correio passado, me disse que folgava que as nossas esperanças tivessem fundamentos mais sólidos, mas que os não sabia; agora escreve o senhor Embaixador com mais largueza do que às vezes o costuma fazer o Secretário que está ausente; e ainda que a segunda parte da história pode ser apócrifa, o desejo que a Província de Holanda tem de fazer a paz, e de não escandalizar a de Zelanda, faz verosímil que buscaria esta traça; mas, de qualquer modo que seja, parece que o negócio tem certeza, pois nos começam a vender as formalidades. Já mandei a
Vossa Excelência
V. Ex.a
quitação do dinheiro que aqui recebemos, ainda que, não vai por soma de libras, porque não me soube dizer Jerónimo Nunes quantas eram, e
Vossa Excelência
V. Ex.a
, assim nesta como na outra carta, fala por número indeterminado de vinte sete mil quinhentas e tantas. Se a quitação não foi em boa forma, sirva-se
Vossa Excelência
V. Ex.a
, como tenho pedido, de me mandar dizer como há-de ser, e irá logo. Sôbre o dinheiro de Itália tenho também dito que não está ainda cobrado, que é a ordem de Manuel Rodrigues de Matos, a qual se seguirá tanto que se receber. Os de Zelanda ainda estão firmes e não se sabe em que isto há-de parar. Por lá há-de passar
Monsieur
Mr.
de la Tulherie, que parte um dia dêstes e não deixará de lhes persuadir a constância, ainda que não está seguro de todo que continue; fala-se em que França lhe concederá grandes partidos sôbre os comércios de seus portos, mas preguntados os ministros franceses dizem um não que parece sim, e cuido que é uma cousa e outra para darem algum ciúme a Holanda, a qual quere mandar embaixador a essa corte, e tem 202 nomeado dez ou doze e nenhum aceita a emprêsa: grande testemunho de que a consciência os acusa, e que conhecem que não pode haver satisfação que baste a emendar tão grande êrro, de que poderá ser se arrependam cedo. Bem conheço que se
Vossa Excelência
V. Ex.a
tivera dinheiro o remetera, pois a necessidade é tão grande e tão presente. E já representei a
Vossa Excelência
V. Ex.a
que, suposto haver desarmado em vão a máquina de Itália, como ainda nesta me diz
Vossa Excelência
V. Ex.a
, não seria contra as ordens e vontade de
Sua Majestade
S. M.
, antes muito conforme a ela, e muito grande serviço seu, aplicar-se em parte ou todo aquele dinheiro a esta negociação, para que se não percam ambas, porque ainda fazendo-se a paz há pontos que importam quási tudo, os quais se não hão-de vencer senão com estas armas. Passar-se aqui o dinheiro da fragata é muito justo, pois fazendo-se êste negócio temos necessidade de menos navios, mas importa que
Vossa Excelência
V. Ex.a
se sirva de o ordenar assim a Duarte Nunes, porque não sei se bastará pedir-se lhe de cá. Vieram navios de Lisboa, Pôrto e Viana, mas sem nova alguma, nem eu a tive do sobrinho de Duarte da Silva, como de nenhum outro dos que se têm passado a estas partes, porque nem são pessoas que eu lá conhecesse, nem êles se atrevem a aparecer diante de nós, senão depois que, com o tempo, perdem de todo a vergonha. Guarde Deus a
Vossa Excelência
V. Ex.a
muitos anos. Haia, 25 de Maio 648. - Criado de
Vossa Excelência
V. Ex.a
António Vieira. 203
CARTA XXXVI Ao Marquês de Niza 1648 - Junho 1
Excelentíssimo Senhor
Ex.mo Sr.
- Com ser tão grande alvorôço e gôsto, com que sempre recebo as cartas de
Vossa Excelência
V. Ex.a
, como em outras tenho declarado, posso afirmar a
Vossa Excelência
V. Ex.a
, com toda a verdade que devo, que foi ainda muito maior o sentimento que esta última carta de
Vossa Excelência
V. Ex.a
, de 22 de Maio, me causou, por ver nelas interpretadas as minhas em muito diferente significação do que é o sentido e intento com que as escrevi, e o ânimo e afecto com que conheço e venero todas as acções de
Vossa Excelência
V. Ex.a
, em que
Vossa Excelência
V. Ex.a
me não fica a dever nada, pois fôra o contrário faltar à verdade e à consciência, quando eu fôsse tão ingrato e pouco honrado que me quisera esquecer de outras obrigações. Se não fôra agravo da fé dissera a
Vossa Excelência
V. Ex.a
que, como um artigo dela, creio que não há maior pureza nem desinterêsse que o de
Vossa Excelência
V. Ex.a
, e bem sabe
Sua Majestade
S. M.
e seus mais chegados ministros que o entendo eu e conheço assim. Nem eu me atrevera a falar em tal matéria, se a carta de
Vossa Excelência
V. Ex.a
me não obrigara a vencer as mesmas repugnâncias com que me estou correndo do que digo: pois é êste gênero de satisfação tão indigno do meu conceito, como o sujeito, sôbre que cai, do que ainda os maiores inimigos se não atreverão a imaginar da pessoa de
Vossa Excelência
V. Ex.a
, quanto mais quem em todas as cartas se professa criado de
Vossa Excelência
V. Ex.a
, como sempre foi e será. 204 Não me persuado, nem persuadi nunca, que na mão de
Vossa Excelência
V. Ex.a
havia grandes somas de dinheiro, porque há muitos dias que sei manda
Vossa Excelência
V. Ex.a
remeter a Itália todo o que por estas partes tinha
Sua Majestade
S. M.
, o qual também entendo que não é muito. Nesta conformidade representei a
Vossa Excelência
V. Ex.a
, nas primeiras cartas, a grande necessidade que aqui havia de dinheiro, para que por falta dêle (como estes ministros todos são venais) não deixasse de se fazer negócio que tanto importa, reservando sempre que o de Veneza está diante de tudo. E, como depois do sucesso de Nápoles
Vossa Excelência
V. Ex.a
nos escreveu que aquela máquina ou seus fundamentos haviam caído, por isso nas cartas seguintes instei a
Vossa Excelência
V. Ex.a
que, dêste dinheiro, se podia acudir a Holanda, para que não se perdessem ambas as negociações, já que uma não sucedesse. Do que o senhor Embaixador escreveu deve êle responder, que eu só posso segurar a
Vossa Excelência
V. Ex.a
que a sua vontade e tenção, nas cousas do serviço de
Vossa Excelência
V. Ex.a
, é muito sincera e de verdadeiro amigo. Da minha digo, e o pudera jurar, que nunca jamais foi nem podia ser de informar em nenhum caso a
Sua Majestade
S. M.
que, por culpa de
Vossa Excelência
V. Ex.a
, se deixasse de fazer êste negócio, pois o não ter
Vossa Excelência
V. Ex.a
dinheiro, ou o haver
Sua Majestade
S. M.
mandado remeter a outra parte o que
Vossa Excelência
V. Ex.a
tinha, não é nem pode ser nunca culpa de
Vossa Excelência
V. Ex.a
. Desgraça dêste negócio sim, pois havendo tantas experiências e desenganos de 205 que aqui se não faz cousa alguma senão com dinheiro efectivo, nunca
Sua Majestade
S. M.
nem seus ministros se resolveram a mandar mais que promessas, que é o mesmo que nada. Também não quis jamais dar a entender a
Vossa Excelência
V. Ex.a
que neste dinheiro de Manuel Rodrigues consistia o fazer-se a paz, porque ainda que eu soubesse tão pouco que o quisesse imaginar assim, sempre
Vossa Excelência
V. Ex.a
o entenderia muito de outra maneira, pois tão pouco dinheiro não tinha proporção nenhuma com negócio tão grande. O certo é que sem dinheiro se não há-de fazer cousa alguma; se com êle se há-de fazer ou não é contingente: e de um e outro sucesso temos frescos exemplos, no dinheiro de Castela que fez o que quis, e no de França que não pode acabar nada. E para que se não pudésse nunca dizer que, por falta de tão pouco, se deixou de fazer tanto (pois parece que bastará a o facilitar) representei com tanta importunação a
Vossa Excelência
V. Ex.a
que nos mandasse êste socorro, para que ao menos a nossa desgraça lhe não ficasse nenhuma desculpa. Esta é, senhor, a verdade do caso, e, se as palavras me foram tão desleais que interpretaram a
Vossa Excelência
V. Ex.a
a minha tenção de outra maneira, castigue-me
Vossa Excelência
V. Ex.a
por elas como fôr servido, comtanto que não perca um ponto da graça de
Vossa Excelência
V. Ex.a
o coração, pois o não merece; e de tudo tomo por juiz a Deus, que ainda é mais exacto nas contas que Pedro Fernandes Monteiro. A facção de Trugilo foi bizarra. Sinto a doença do 206 venerável Pedro de Oliveira a quem devo conduzir-me com a fortuna que costumava. A resolução que em Castela se toma com os cristãos novos é muito parecida à do nosso Reino, e devem ser ambas mui justificadas, com que parece não terá efeito o que
Vossa Excelência
V. Ex.a
e eu representámos de aí a
Sua Majestade
S. M.
. Guarde Deus a
Vossa Excelência
V. Ex.a
muitos anos. Haia, 1º de Junho 648. - Criado de
Vossa Excelência
V. Ex.a
António Vieira. 207
CARTA XXXVII Ao Marquês de Niza 1648 - Junho 8
Excelentíssimo Senhor
Ex.mo Sr.
- Entre as salvas e fogos da publicação da paz, recebemos sexta feira, 5 do corrente, as de
Vossa Excelência
V. Ex.a
de 29 do passado, e quererá Deus que livres dêste impedimento, que era o que até agora retardava o nosso negócio, chegue êle à conclusão que lhe desejamos. A remessa dos catorze mil cruzados vem muito a tempo, porque até os 15 dêste está mandada convocar a Junta de Holanda, na qual nos dizem se há-de concluir isto; traga-nos Deus tais novas do Brasil que não metam em outras esperanças esta terrível gente. De Portugal nos faltam e tardam há muitos dias, e verdadeiramente nos dá cuidado o parto da Rainha Nossa Senhora, que Pedro Vieira nos escreveu se esperava para primeiros de Abril, e o Padre Manuel da Fonseca, que veio no barco do aviso, nos refere algumas histórias do receio com que
Sua Majestade
S. M.
andava: tenha-lhe Deus dado tão bom sucesso como havemos mistér. Também nos escreveu Lanier que se dava casa ao Príncipe, e me disseram depois em Amsterdam que já estavam nomeados oficiais: certo estou eu que o não serão os do triunvirato em que falei a
Vossa Excelência
V. Ex.a
, como então se cuidava, porque sei de boa parte que não andam dentro da graça. 208 Do que passou connosco
Monsieur
Mr.
de Estrada avisa o senhor Embaixador a
Vossa Excelência
V. Ex.a
com largueza. Esta manhã se embarcou, e se veio despedir de nós, e, em suposição de aquele negócio, lhe disse eu que o mais certo e o mais breve caminho de arruïnarmos êstes Estados era fazermos nós, êles e os suecos uma companhia mercantil muito poderosa, a qual pela comodidade dos nossos portos e conquistas sem dúvida destruïria em pouco tempo o comércio destas Províncias, e conseguintemente a elas, pois é o fundamento total de seu poder e opulência, e que isto podiam fazer as três coroas sem quebrar a guerra, nem empenhar gente ou dinheiro mais que o dos homens de negócio, a quem se fazia grande benefício, o qual redundava também muito consideràvelmente no comum de cada um dos Reinos. Perguntou-me Estrada se viria nisso
Sua Majestade
S. M.
, respondi-lhe que, fazendo-se liga formal entre todas as três coroas, que me parecia que sim. Contentou-lhe muito a prática, e me pediu que lhe fizesse um papel, e que lho mandasse no correio seguinte por mão de
Monsieur
Mr.
Brasset, traduzido em francês, porque em chegando o queria comunicar logo ao Cardial; eu o fiz ao senhor Embaixador que o aprovou muito. No correio que vem mandarei a
Vossa Excelência
V. Ex.a
uma cópia do papel, e agora quis fazer êste aviso por maior, para que
Vossa Excelência
V. Ex.a
tivesse notícias de tudo o que cá passámos com 209
Monsieur
Mr.
de Estrada, em caso que êle chegue primeiro, que cuido não será, porque nos disse vai directamente ao exército. Sôbre Lopo Ramires escreve o senhor Embaixador, e parece que é muito contra a razão e contra a autoridade que o dinheiro de El-rei corra por mão de tal homem.
Sua Majestade
S. M.
me mandou que o avisasse do em que poderia fazer mercê a Duarte Nunes, e eu lhe escrevi que uma das cousas era que a fazenda que
Sua Majestade
S. M.
remetesse a estas partes se pusesse em suas mãos, e que por elas corressem os ordenados e pagamentos dos ministros, e, quando a
Vossa Excelência
V. Ex.a
lhe parecesse, êste era um meio fácil para cessarem as justas queixas que há dêste homem, e o escândalo que chegam a ter os ministros de França de que El-rei se sirva dêle, sendo tão conhecidamente castelhano. Segundo a interpretação que
Vossa Excelência
V. Ex.a
dá aos meus enigmas, vejo que foram demasiadamente escuros. Naquele particular também eu me contentara (e não fôra pouco) que se conseguisse o que
Vossa Excelência
V. Ex.a
e eu de aí escrevemos; mas o de que eu falava eram cousas do Brasil, tocantes à guerra e ao Estado, e importantíssimas a segurança dêle e de tudo. Foram de cá advertidas, como por maior dei conta a
Vossa Excelência
V. Ex.a
, e alguma hora mostrarei o papel, e tenho notícias certas que depois de parecerem bem, e se aprovarem por todos em conclave, veio um homem que não entra nêle, e bastou para desmanchar tudo; dêste homem e da nossa desgraça é que me queixo, e que não acabemos de nos desenganar, nem fazer o que convém, senão tão tarde e intempestivamente como a prisão de Antônio Teles. 210 Pela mercê que
Vossa Excelência
V. Ex.a
faz a meu cunhado no desejo de o ver livre da sua, beijo a mão a
Vossa Excelência
V. Ex.a
, e Deus guarde a
Vossa Excelência
V. Ex.a
muitos anos como desejo. Haia, 8 de Junho de 1648. - Criado de
Vossa Excelência
V. Ex.a
António Vieira. CARTA XXXVIII Ao Marquês de Niza 1648 -Junho 15
Excelentíssimo Senhor
Ex.mo Sr.
- Grandes duas novas nos trouxeram as cartas de
Vossa Excelência
V. Ex.a
dêste correio, como foi a do feliz parto da Rainha Nossa Senhora que nos tinha com tanto cuidado como referi na última, e a da liberdade do senhor
Dom
D.
Jorge, que estimo quanto devo a todas as cousas de
Vossa Excelência
V. Ex.a
, e de ambas dou a
Vossa Excelência
V. Ex.a
o parabém. 211 Em retôrno receba
Vossa Excelência
V. Ex.a
a nova de Nápoles, que hoje tivemos por via de Roma, que ainda que
Vossa Excelência
V. Ex.a
a houvera recebido quando esta chegar, como a nós nos aconteceu com a do nascimento do nosso Infante, ela é de qualidade que merece repetida alegria, e que a acrescentará vendo-se por todas as vias confirmada. . . . . ... . . . . . . . . . . . . . ... . . .
Vossa Excelência
V. Ex.a
perdôe o riscado, porque nos dizem que com as tropas da campanha há perigo nas postas, e quis antes riscar do que arriscar. Era o negócio de
Monsieur
Mr.
de Estrada, que irá no correio seguinte, e não fará falta neste, porque há poucos dias que estava ainda em Zelanda. Os empenhos de Zelanda vieram a parar em um protesto que fizeram aos Estados, com o qual publicaram a paz no mesmo dia que as demais Províncias; e segundo se diz, foram êles os primeiros que passaram a Anvers a tratar de seus comércios, em que consiste toda a sua razão e toda a sua fé. De Portugal vieram muitos navios, mas sem cartas de
Sua Majestade
S. M.
nem ordem alguma, e assim nos faltam também as cópias do que escreveu o Conde de Vila Pouca, que estimaríamos muito se servisse
Vossa Excelência
V. Ex.a
de nos enviar, não só pela curiosidade de saber o que vai pelo mundo, mas porque é bem que aqui se tenha particular notícia de como estão as cousas do Brasil. De minha parte beijo a
Vossa Excelência
V. Ex.a
a mão pelas novas de
Monsieur
Mr.
de Lanier, cujas cartas são como rêdes de tartaranhas, que levam grado e miúdo, e se
Sua Majestade
S. M.
as pudera defender 212 como aquelas, não importara pouco à reputação do Reino. Seu confessor, sabe tanto de nós como êle, e ainda que falte à sua alma esta consolação eu seria de parecer que não tornasse a Portugal. O senhor Embaixador o representou ao Padre Nuno da Cunha, o qual quere que seja eu o que o solicite, para que se dê essa descarga ao Assistente de França. Ao Padre Provincial de Bordéos tinha vindo ordem apertada que o dito Padre ficasse na sua Província, e, ainda que a ordem se tem notificado, êle diz que o fará, mas indo a Portugal primeiro. Se a
Vossa Excelência
V. Ex.a
lhe parecer fazer um capítulo ao Padre Nuno da Cunha sem falar em mim, para que de Roma se ordene que, voltando eu para Portugal, o Padre Pontilier torne em direitura para França, era só confirmar a primeira ordem que tem vindo e tudo ficaria bem feito. Sem que
Vossa Excelência
V. Ex.a
me diga que o tocante a
Dom
D.
Luís e a mim não foi parecer de
Vossa Excelência
V. Ex.a
, eu o creio, porque ainda que o primeiro, noutras circunstâncias de tempo e de negócio, tenha seu lugar, o que se diz de mim nem ao negócio, nem à pessoa, nem ao hábito, nem a nenhuma cousa convém. E, se esta nova teve algum fundamento de verdade, seria diligência de quem me deseja longe de Portugal, com o que eu muito me conformo, mas na minha Província e não nestas. 213 A fragata "Fortuna" a teve ainda melhor do que escreve Lanier, porque sabemos por carta de 16 de Maio, em navio de Setúbal, que havendo partido dois dias e meio depois dos navios dos Estados, e havendo-se detido em Inglaterra quatro dias, chegou três dias primeiro que êles, que é argumento de ser boa de vela: queira Deus que contente no demais ao Conde de Odemira. Como nem neste nem em nenhum de tantos navios vieram despachos de
Sua Majestade
S. M.
, havendo chegado a Portugal propostas muito importantes e que pediam breve resolução, e por outra parte se fala em
Dom
D.
Luís com grande publicidade nas cartas dos particulares, o senhor Embaixador se persuadiu que ou
Sua Majestade
S. M.
não quere paz com os holandeses, ou é servido que êle se parta logo, e esteve quási determinado a tomar congé dos Estados e embarcar-se. O Secretário e eu lhe propusemos, e eu quási lhe protestei, que o não fizesse, e que seria muito em desserviço de El-rei, nem podia ser tal a mente de
Sua Majestade
S. M.
, do qual eu sabia com toda a certeza que o seu desejo era que sinceramente se efectuasse a paz, e que o faltarem cartas podia ter outra causa, pois não era esta a primeira vez que em todas as embaixadas, e em negócios de toda a importância, se havia experimentado a mesma falta; que
Sua Excelência
S. Ex.a
se devia governar pelas últimas ordens de
Sua Majestade
S. M.
, e que estas lhe permitiam o despedir-se só em um caso; no qual nós hoje não estávamos, antes com esperanças próximas 214 de concluir; e eu entendo, e assim lho disse, que ainda que o senhor Embaixador tivera ordem expressa de
Sua Majestade
S. M.
para se ir, nesta ocasião estava obrigado a esperar, quando menos até a resolução da junta geral que há-de haver neste mês, não só pelas vantagens com que se concluirá o negócio, sendo encaminhado e capitulado por quem o criou e tem todo o conhecimento dêle, e das pessoas com quem se trata, às quais pode obrigar e reconvir pelo que lhe tem dito ou prometido, o que não pode adivinhar quem vier de novo; senão porque o partir-se nesta ocasião meteria em grandíssima desconfiança aos Estados, e se faria toda a negociação suspeitosa, retirando-se e faltando ao tempo de concluir quem tinha feito as promessas, e obrigando-se ao cumprimento e execução delas. E, quando nada disto houvera, o novo tratado ou pensamento que leva à sua conta
Monsieur
Mr.
Estrada, os estorvos que nos pode fazer França, e o muito a que a pode obrigar o desejo e importância de que fiquemos em guerra com Holanda, são tudo causas novas e mui urgentes não só para o senhor Embaixador não se despedir nesta ocasião do negócio que tem entre mãos, mas, em caso que o veja mal parado, para encobrir e dissimular sua desconfiança, dando a entender o contrário quanto fôr possível, para que França se reduza; a qual é certo que se não há de empenhar connosco para nos meter na guerra, se vir que nós, ou por necessidade ou por vontade, ficamos nela. Êste foi o meu parecer, e assim o representei ao senhor Embaixador com a instância que pude. Êle se resolveu a esperar somente aviso de
Vossa Excelência
V. Ex.a
, que eu tenho por certo será que
Sua Excelência
S. Ex.a
se não despida sem aguardar assim esta resolução como a de França, que não podem tardar muitos dias, podendo-se do contrário seguir grandes danos ao serviço de
Sua Majestade
S. M.
, de cuja vontade, não constando, 215 se deve sempre presumir o que mais convém. Guarde Deus a
Vossa Excelência
V. Ex.a
muitos anos. Haia, 15 de Junho 648. - Criado de
Vossa Excelência
V. Ex.a
Antônio Vieira. CARTA XXXIX Ao Marquês de Niza 1648 - Junho 22
Excelentíssimo Senhor
Ex.mo Sr.
- Pôsto que em terra de hereges também cá nos chegou o jubileu, a que não faltou concurso nesta nossa igreja, mas eu não poderei negar que devo muito ao jubileu de Paris, pois nos dias dêle me vejo confirmado na graça de
Vossa Excelência
V. Ex.a
, em que não falo mais palavra, pois
Vossa Excelência
V. Ex.a
me manda, nem quero ser chocalheiro. Hoje levou o senhor Embaixador um memorial ao Presidente da semana, e
Monsieur
Mr.
Brasset nos disse que amanhã havíamos de ter conferência; assim que, virão muito a tempo os quinze mil cruzados, e todo o mais dinheiro com que
Vossa Excelência
V. Ex.a
nos quere socorrer. Queira Nosso Senhor que não venha do Brasil alguma nova que mude as esperanças e os pareceres, que geralmente estão inclinados à paz. Da esquadra de Angola se não tem ainda por cá notícia alguma. A Zelanda dizem que chegou navio de Pernambuco com novas de haver chegado a sua armada, 216 a qual se ficava aparelhando para ir ao Cabo de
Santo
S.
Agostinho, mas não se mostram cartas. De Lisboa só vimos uma escrita em 22 de Maio, em que escreve um mercador holandês daquela praça que tinha chegado barco da Baía, com aviso que os de Pernambuco tinham queimado tudo, tanto que viram a armada. O que cá se diz é que os da bateria do Recife a largaram logo, deixando duas peças de artilharia, e se assim foi deviam de queimar as suas barracas, com que se daria ocasião à nova do incêndio geral. As de Nápoles nos deram hoje mau jantar, com aviso de Taquete que estava tudo pelos castelhanos, como de antes. A entrepresa de Ransô também foi pouco venturosa, mas não pode tudo suceder como se deseja. O que importa é que Laganez e Cosmander não façam nada. Ontem escrevemos a
Sua Majestade
S. M.
e eu lhe enviei a carta de
Dom
D.
Vicente. Em
Vossa Excelência
V. Ex.a
escrever sôbre aquele ponto faz
Vossa Excelência
V. Ex.a
o que deve ao serviço de
Sua Majestade
S. M.
, mas eu creio bem e verdadeiramente que semelhantes cartas não só não hão-de ter resposta mas nem hão-de ser lidas. Muito folgamos de ver as cópias do Governador do Brasil, nas quais o vejo falar como soldado da Índia, e não quisera que entrara desprezando o inimigo e suas fortificações. 217 Dê-lhe Deus melhor sucesso que a Diogo de Mendonça, que também entrou com a mesma confiança. A (Confissão do Imprimor) , como tinha nome de confissão, foi proibida pelos Estados, cousa desusada na liberdade dêstes países, e assim se não acha facilmente; anda-se fazendo diligências; se vier irá neste correio, e senão, não faltará no outro. Também saiu a (Absolvição) em flamengo, espera-se que saia traduzida e irá também. Não posso acabar de entender que tenha implicação semana de jubileu com letras de Roma, e assim seja
Vossa Excelência
V. Ex.a
servido de que venha em todo o caso a carta do Padre Nuno. Guarde Deus a
Vossa Excelência
V. Ex.a
muitos anos como desejo. Haia, 22 de Junho 648. O capítulo que segue é o que foi riscado no correio passado. Com esta vai cópia do papel que me pediu
Monsieur
Mr.
de Estrade, e lho remeto traduzido em francês, e ainda que nêle considero só os interêsses de França, os nossos são tão grandes que, ainda sem a liga, me parece nos conviria muito êste concêrto, e bastavam, quando não houvesse outros, os três seguintes:
primeiro
1º
enfraquecermos o poder de Holanda que sempre nos deve ter em receio, como de inimigo tão vizinho em toda a parte;
segundo
2º
crescer o reino a grande opulência e ficar desembaraçado da assistência das conquistas, que tanta gente e dinheiro nos divertem;
terceiro
3º
termos o dinheiro de França e Suécia em Portugal, com que estas duas nações ficam empenhadas na nossa defensa como 218 em cousa própria, e tantos procuradores teremos nelas para os nossos socorros quantos forem os interessados nas companhias; e em caso que se faça a liga será esta a melhor caução e os mais firmes refens com que a podemos segurar. Não respondo a algum inconveniente que se poderá opôr, porque isto se fará quando o negócio se ponha em prática, quanto mais que todos os inconvenientes imagináveis neste negócio não podem pesar tanto como a menor de suas conveniências; e finalmente, senhor, quando nem em Portugal nem em França (do que mais duvido) pareça bem esta proposição, nem o ngócio tenha efeito, ao menos servirá de entreter os franceses, e de suspender ou esfriar as diligências que por si e por seus confidentes podem fazer contra o nosso tratado. Todo o poder e opulências das Províncias de Holanda consiste principalmente e se funda no seu comércio, de onde se segue que, enfraquecido e arruinado o comércio, se enfraquecerão e arruinarão juntamente as mesmas Províncias, e por êste meio suave e quási insensível se pode conseguir breve e facilmente o intento de que se trata, o qual à fôrça de armas seria quási impossível em muitos anos e com grandes despesas de dinheiro. O modo com que o dito comércio se pode enfraquecer e arruinar é levantando-se em Lisboa uma ou mais companhias mercantis, como as de Amsterdam, compostas dos mercadores das três coroas de França, Portugal e Suécia (entre que se há-de fazer a liga) de todas as quais proporcionalmente se comporão as cabeças que governem a dita companhia, saindo das conquistas para Lisboa, de onde se repartirão as mercadorias, e se enviarão assim para França e Suécia como para os demais portos e reinos de Europa. Que esta companhia ou companhias de Lisboa hajam 219 de enfraquecer as de Holanda se prova por duas razões evidentes:
primeira
1.a
porque a navegação de Portugal, por beneficio do clima, sítio e comodidade dos portos, é muito mais breve, muito mais fácil e livre, e de menos risco. E por serem as conquistas de Portugal povoadas e defendidas pelos portugueses que as habitam, e sustentadas pelas mesmas rendas de suas mesmas cidades, não têm necessidade os mercadores das nossas companhias de pagar soldos, nem edificar e sustentar fortalezas, como fazem os das companhias de Holanda com excessivos gastos. De onde se segue que, sendo naquele comércio muito menores as despesas, será a ganância muito maior, como mostra a experiência. O que será causa de que não só todos os estrangeiros, que têm dinheiro nas companhias de Holanda, senão muitos dos mesmos holandeses, passem secretamente seus cabedais às companhias de Lisboa, porque o dinheiro mercantil corre todo como a seu centro, ao lugar onde tem mais ganância, e esta será a primeira parte da ruína das companhias de Holanda. A
segunda
2.a
será que, havendo-se de vender as nossas mercadorias (pelas razões sobreditas) a preços muito mais baratos, ficarão logo abatidas as de Holanda, com que ou se não venderão ou se perderão os mercadores. Os interesses que destas companhias se podem seguir a França são mui consideráveis, porque demais de pôr em fraqueza e ruína as províncias de Holanda, cujo castigo e humilhação é de tanta conseqüência, e redunda igualmente em dano do inimigo comum, seu novo aliado, todos os mercadores e cidades marítimas de França receberão grandes utilidades com a abertura dêste novo comércio, tão desejado até agora de todas as nações; as drogas ultramarinas se comprarão em toda a França a menor preço, e as que nascem e se fabricam no país terão muito 220 maior saca; os direitos reais se aumentarão, crescerão as drogas navais, e muito dinheiro que está entesourado e ocioso se poderá conservar com lucro, metido nas mesmas companhias por todas as pessoas a quem a qualidade ou inabilidade retirar de semelhantes tratos, como são fidalgos, órfãos, viúvas, lavradores
etc
etc.
, e o mesmo podem fazer as comunidades e Repúblicas, com a segurança e utilidade que nas de Holanda se experimenta. E cedendo
Sua Majestade
S. M.
de Portugal a navegação das Índias às ditas companhias, ficarão desembaraçadas suas armadas, que hoje tem divididas na Índia, Baía e Rio de Janeiro, cujos poderosos navios, encorporados com os que se vão ajuntando e fabricando ao presente em Portugal, comporão um poder marítimo tão grande que não só divirta muita parte das forças do inimigo, e o tenha em perpétuo receio, mas se consigam contra êle outras consideráveis empresas, assim nas frotas da prata, como nas costas de Andaluzia e Galiza, em que será fácil de executar por mar qualquer grande intento. Resta sòmente considerar se seria conveniente romper logo a guerra, na forma que se praticava, ou continuar com a paz. Para a conveniência do primeiro se representa o grande dano que receberiam as Províncias de Holanda, vendo-se seus navios juntamente atacados em todas as partes: no mar Báltico pelos de Suécia, no canal de Inglaterra pelos de França, nas costas de Espanha pelos de Portugal, com que efectivamente seria maior o apêrto e opressão em que ficariam as Províncias, e grandíssimas as despesas que seriam constrangidas a fazer, nas escoltas de todas suas frotas, mas também não seriam menores as que no tal caso será necessário fazerem-se por parte da liga. Pelo contrário, se as companhias se armarem debaixo 221 da continuação e dissimulação da paz, sem empenho algum de nenhuma das coroas, antes com grandes aumentos assim públicos como particulares de todas, se irá enfraquecendo insensível mas eficazmente o comércio das Províncias, e elas, livres de temor, desfazendo-se dos baixéis de guerra que têm; com que o tempo dará lugar a que a experiência e ocasiões ensinem o que se deve escolher, e a guerra se rompa quando e como se julgar mais conveniente e necessário; e isto era o que parecia melhor. - Criado de
Vossa Excelência
V. Ex.a
António Vieira. CARTA XL Ao Marquês de Niza 1648 - Junho 29
Excelentíssimo Senhor
Ex.mo Sr.
- De mui boas novas nos vieram acompanhadas estas últimas cartas de
Vossa Excelência
V. Ex.a
, nas quais imos experimentando o que acontece poucas vezes, que sendo boas não só se certificam mas crescem cada hora mais. 222 Tanto pode a fôrça da verdade ou do sentimento. Até ontem se dizia que o senhor Embaixador escreve na sua. Agora que são as 3 horas da tarde vi uma carta de holandês de Amsterdam, interessado na Companhia, escrita a outro holandês desta côrte, na qual diz as palavras seguintes. (Ontem vos escrevi que os nossos se bateram em Pernambuco com os portugueses, e que da nossa parte ficaram mortos tresentos e da sua novecentos; mas informando-me melhor, e vendo as cartas do Recife, consta que os nossos mortos foram mais de seiscentos, e mais de quatrocentos os mal feridos. Dos portugueses que morreram não se sabe número certo, só se diz que os levaram em catorze carros). Até aqui a carta. E, quando o dos carros seja assim não argúe número considerável, porque os carros daquela terra não levam mais que uma caixa de açúcar, a maior das quais não pesa seis homens mortos. Entre os feridos foi um o general Segismundo. Entre os mortos o coronel Hus, que era o mais antigo, e o coronel Vandennoven, e muitos capitães e oficiais até número de cincoenta, de que aqui se mostram as listas. De prisioneiros, que tomassem os nossos, não sabemos até agora mais que de outros dois coronéis, de que hoje avisou Jerónimo Nunes, e acrescenta que escrevem os do Recife que os portugueses estão fortes como um muro (que é frase sua). Contudo, dizem estes senhores que os seus ficaram com a vitória: Deus lhas dê sempre semelhantes, pois se contentam dela, mas os rostos não andam muito risonhos. O senhor Embaixador os deixará esta semana, que é da fúria, esperando que para a outra estarão metidos em razão. De maneira, senhor, que temos Pernambuco vitorioso, o Rio de Janeiro socorrido, a Baía com armada, Angola com a esquadra do Salvador Correia, que hoje pode ter obrado muito: o que tudo junto, não ficando de 223 fora a prática dos irlandeses, são circunstâncias e disposições sôbre as quais se pode assentar com grandes fundamentos o negócio de
Monsieur
Mr.
de Estrada, que já deve de estar nessa côrte. A chegada de António Moniz estimamos muito: todos partem e chegam, algum dia nos virá nossa hora. Da fragata (Fortuna), se não tem escrito nada até agora; com que não fiquem em falta com o pagamento da parte que se fiou me darei por contente. As três naus de Hamburgo estão prestes e no-las gabam muito: se em Portugal se tiver trabalhado nas que estavam no estaleiro, já pudera formar-se uma boa esquadra. Nem o Provincial nem o Prepósito lhe parecem muito a propósito ao Padre Pontilier. Também se nos escreve que o Padre Bento de Sequeira será Reitor de Coimbra. Em uma e outra eleição se mostra bem que o Padre Nuno é o que chega uns e desvia outros. Quem poderá agora com êle com esta nova de Pernambuco? O que importa é que nos venham boas do Reino, porque trago muito atravessado êste Langanez e Cosmander. 224 Guarde Deus a
Vossa Excelência
V. Ex.a
muitos anos como desejo. - Haia, 29 de Junho 648. Agora sabemos mais que os portugueses de Pernambuco tomaram doze bandeiras. Autor Jerónimo Nunes. Dia acima às 9 da tarde. - Criado de
Vossa Excelência
V. Ex.a
António Vieira. CARTA XLI Ao Marquês de Niza 1648 - Julho 6
Excelentíssimo Senhor
Ex.mo Sr.
- O escrito da Rochela que
Vossa Excelência
V. Ex.a
nos fez mercê enviar concorda com as (Confissões dos Impressores) dêstes países, cuja tradução envia o senhor Embaixador, e ainda suspeitamos que são diminutas. Já nos contentáramos com que estes senhores estiveram contritos e arrependidos, mas em uns serviu de obstinação, em outros de fúria, e nos menos (que sempre é menor o número dos sisudos) de desejarem o fim de tantos danos por meio de uma segura paz. Esta semana deve de haver conferência: no correio que vem parece que poderemos escrever com alguma certeza, pôsto que ficamos com maiores esperanças que nunca, e eu com o coração muito desassombrado, porque para a guerra ou para a paz sempre é melhor serrar de cima. 225 Muito evidentes eram as razões com que trabalhámos por satisfazer a desconfiança ou escrúpulo do senhor Embaixador mas nenhuma bastou para a aquietar, até que chegaram as de
Vossa Excelência
V. Ex.a
, com que se deu por seguro na opinião e o temos de todo sossegado. E assim prosseguirá êste negócio com muito melhor ânimo, e tenho por certo que dentro em poucos dias lhe há-de dar fim, e ainda em mais poucos se não fôr o que nós desejamos. Deus nos escolha o que mais nos convém. O juízo que
Vossa Excelência
V. Ex.a
fez, sôbre as carantonhas daquela ilha que presumira de terra firme, foi alfim o certo, e nós imos tendo mais que suspeitas que nos há-de suceder a nós com ela o que a França. Cada dia nos mete Nápoles em novas esperanças, e cada hora no-las desmente. Ontem me escreveu Jerónimo Nunes que estava preso Genaro Aneze, e que se havia descoberto uma inteligência que, lá, tinham os franceses: parece-me cousa inventada porque não soa por outra parte. Dê Deus à França fora e dentro de casa os bons sucessos que ela e nós havemos mister. Brasset nos segurou que as cousas do Parlamento estavam acabadas e seguras, mas eu não o estarei até que
Vossa Excelência
V. Ex.a
nos escreva em outra forma. Por cá não aparecem cartas de El-rei, e pôsto que um dia dêstes nos deram rebate de um grande paquete parece que foi falso. Não ajudará nada o expediente dos negócios a nova ocupação de Secretário de Estado, mas bem é que tivessem aliviador os que não podiam alcançar a graça por mão de Gaspar de Faria. 226 Bem pudera
Vossa Excelência
V. Ex.a
dar-me o pêsame da doença do meu amigo o senhor Camareiro-mor; não sei quem serviria em seu lugar, pois está morto o antigo substituto, e como êle não morreu não devia de ser seu primo João Nunes da Cunha. O certo é que havia de ter mais pretendentes esta fronteira que a do Alentejo. Ainda não sabemos que fortuna teve com o Conde de Odemira a fragata (Fortuna), nem tínhamos caído em que o levar tão breve viagem fôra pelos merecimentos dos anjinhos de Francisco de Andrade que nela iam. Se êle fôra lá tão festejado como cá foi o conceito, não tinha mais que desejar; mas escrevem de lá os mercadores flamengos que está mal visto de El-rei, e alguma cousa deve de ser, pois chega à Rua Nova. O que mais se deve sentir é o pesar que disso há-de ter seu colega, o qual já estava desassombrado do Conde de Penharanda, que saiu de Munster para Flandres, de onde dizem que virá a Holanda, e que de aqui se embarcará para Espanha. Não só são os prelados que faz o Padre Nuno da Cunha a desgôsto nosso, mas todas as ordens suas, das quais se não livram nem os que estão em países livres. Saberá
Vossa Excelência
V. Ex.a
que por via de Bordeus e pela de Paris se tem mandado ordens de Roma, ao Padre
Jota
J.
Pontilier, para que não torne comigo a Portugal, e fique na sua Província de França, o que eu sinto quanto não posso encarecer a 227
Vossa Excelência
V. Ex.a
, não tanto pelo meu interêsse e pelas obrigações que lhe devo, quanto por entender que são isto efeitos causados de alguma diligência dos padres de Portugal, não nos merecendo o amor com que o Padre Pontilier trata nossas cousas, e o desejo que tem de ir servir a Deus nas nossas conquistas, senão muito boa correspondência. Mas se
Vossa Excelência
V. Ex.a
fôr servido de escrever sôbre isto encarecidamente, aos dois padres Assistentes de Portugal e de França, significando-lhes o serviço que o dito Padre faz nesta missão, assim a Deus como ao reino, e o desprazer que poderia receber
Sua Majestade
S. M.
havendo-mo nomeado por companheiro, entendo que não haverá dúvida em se suspenderem estas ordens, ao menos até chegarmos a Portugal, de onde quando seja necessário se pode tornar o Padre Pontilier para França. E não encareço mais isto porque sei a mercê que
Vossa Excelência
V. Ex.a
nos faz, e a eficácia com que leva ao fim os negócios. Acabo beijando a mão a
Vossa Excelência
V. Ex.a
pelas lisonjas com que
Vossa Excelência
V. Ex.a
zomba de mim nesta sua carta, que se fôra em latim dissera que eram ensinadas por seu mestre de
Vossa Excelência
V. Ex.a
, pois tanto se parecem com as suas em pôr merecimento onde o não há. Cá li êste seu último elogio, em que levanta os foles ao de Santa Cecília melhor do que a santa tangia os órgãos. Parece-se a habilidade do Padre frei Francisco com o poder de Deus: em fazer tanto de nada. Peça-lhe
Vossa Excelência
V. Ex.a
que no elogio de El-rei diga menos para que nos creiam. Estimei de ver a última oitava de Camões, a brevidade 228 foi incrível, a obra será rara, nem poderá
Vossa Excelência
V. Ex.a
pagar de outra maneira a Camões o que os Gamas lhe deviam. Guarde Deus a
Vossa Excelência
V. Ex.a
muitos anos. Haia, 6 de Julho 648. - Criado de
Vossa Excelência
V. Ex.a
António Vieira. CARTA XLII Ao Marquês de Niza 1648 - Julho 10
Excelentíssimo Senhor
Ex.mo Sr.
- Recebi a carta de
Vossa Excelência
V. Ex.a
do último do mês passado, e não me espanto tanto da brevidade com que
Vossa Excelência
V. Ex.a
nela me responde, quanto sinto as razões que
Vossa Excelência
V. Ex.a
diz tem para andar muito magoado. Tais são, senhor, os tempos em que vivemos; e se as sem razões que em toda a parte se padecem puderam fazer exemplo, ou servir de consolação as que
Vossa Excelência
V. Ex.a
experimenta, só na generalidade delas se poderá achar algum alívio, sofrendo-se como os males comuns e efeitos da natureza, que, pôsto que maiores, por irremediáveis se sentem menos. O que importa é que
Vossa Excelência
V. Ex.a
trate de ter muita vida e saúde, e que a senhora Marquesa melhore totalmente de seus achaques, que tudo o mais terá breve remédio, pois sem êle não pode durar muito, e Deus quere que dure. 229 E lembro a
Vossa Excelência
V. Ex.a
que me dizia
Vossa Excelência
V. Ex.a
, nessa corte, que a tristeza e melancolia é uma das mais graves enfermidades que nela há, para que como a tal procure
Vossa Excelência
V. Ex.a
não lhe acrescentar as causas, antes aplicar-lhe todos os defensivos e preservativos possíveis. O senhor Embaixador não escreve, porque havendo começado a fazê-lo lhe deu ontem às duas horas um frio, a que se seguiu uma grande febre, que ainda não se despediu, e são já as quatro da tarde; não me parece que será cousa de cuidado, mas veio êste acidente a tempo que, pela circunstância dêle, é ainda mais para sentir. Amanhã, segundo entendemos, havia de haver conferência, e como
Sua Excelência
S. Ex.a
não poderá assistir nela, mandou hoje pedir aos comissários quisessem dar a resposta ao Secretário, para que se lhe responda também por papel, e não se perca tempo, e assim dizem que se fará. Quarta feira passada houve conferência, e se debateu principalmente em mais ou menos açúcar, que se subiu a oitocentas caixas cada ano, por espaço de doze. Com esta resposta houve última junta dos Estados, que durou um dia inteiro, na qual se entende que ficou resoluta a paz, debaixo porém de algumas condições que se saberão melhor quando delas nos derem vista. Hoje disse o Presidente dos Comissários que toda a dificuldade consistia em Angola, e o caso é que querem os da Companhia ficar absolutamente senhores de toda a costa, e que o comércio das fortalezas que temos no sertão passe todo pelos seus portos, e lhes paguemos a êles os direitos que ali se costumavam pagar a El-rei. Fundam-se principalmente na sua cobiça, e também em que, conforme um artigo das tréguas, o que é senhor das fortalezas o deve ser das terras que ficam entre elas. Nós, pelo contrário, pegamo-nos a que tudo se deve repor no 230 estado em que estava ao tempo da publicação da trégua, e nos ajuda a isto o exemplo da fortaleza de Gale em Ceilão, e a resposta que os mesmos Estados deram ao Embaixador Francisco de Andrada, em que deliberaram isto mesmo. Emfim neste ponto há-de bater toda a dificuldade, e como nós resolutamente não havemos aceder, dentro em muitos poucos dias estará concluída por qualquer das partes. Matéria é esta sôbre a qual não há cá documento nem instrução alguma, havendo-se pedido muitas vezes, e sendo de tanta importância, o que tudo ajuda a dificultar a resolução. Também não temos certeza de se foi ou não foi a Angola Salvador Correia, nem de que intentos leva: se de tomar a cidade ou outro pôsto. Emfim tudo é força que se faça a acertar, e queira Deus que se acerte ao menos. Com o gôsto dos que nos governam não será possível, e mais havendo-se de ver primeiro na junta daqueles quatro embaixadores jubilados, três dos quais sei de certo que foram sempre mais inclinados a esta guerra que à paz. Deus nos escolha o melhor, que afirmo a
Vossa Excelência
V. Ex.a
que nem a desejar me atrevo. Quando vi a lista que
Vossa Excelência
V. Ex.a
nos mandou, entendi que seria dos terços de infanteria e tropas de cavalaria, que se haviam levantado contra os intentos do Marquês de Laganes, e não de festas, e de tanto custo, em tal tempo; ainda mal, porque estas que se fazem aos filhos podem ser 231 traições que se façam aos pais, mas é Deus tão fiel em suas promessas, e tão amigo de Portugal, que no mesmo tempo em que nós andamos tão descuidados e os inimigos tão cuidadosos, nos dá contra êles não só uma mas muitas vitórias. Chegou navio de Lisboa com quarenta dias de viagem, e já se entende que sem cartas de
Sua Majestade
S. M.
Dos padres tive duas, de 11 e 18 de Junho, em que me dizem que em Portalegre desfizemos trezentos cavalos aos castelhanos, dos cavalos tomámos duzentos vivos (que não é mau socorro) e dos castelhanos setenta ou oitenta prisioneiros, e entre êles muitos cavaleiros de conta. Não se diz quem governava a nossa gente.
Dom
D.
Sancho Manuel fez também uma grande entrada em Castela: trouxe muita quantidade de gado de toda a sorte, e setenta cavalos. Nos 18 de Junho tinha chegado a Lisboa confusamente a nova de Olivença, que governa
Dom
D.
João de Meneses, mas não se sabiam ainda particularidades da vitória, a qual é certa, e se confirma por muitas vias a morte de Cosmander. E note Vossa
Excelência
V. Ex.a
que de tantas entradas que fez em Castela nunca houve uma bala que o tocasse, e na primeira que fez contra Portugal logo acabou, e mais sendo vassalo de El-rei de Castela, que é circunstância que nos mostra bem quão absoluta e particular é a providência com que Deus olha por nossas cousas: muitas graças lhe sejam dadas. Do Pôrto se escreve em navio mais moderno que, depois da entreprêsa de Olivença, intentaram os castelhanos outra sobre Badajós, em que tiveram muito maior perda. De tudo saberemos a certeza quando a Vossa
Excelência
V. Ex.a
chegarem cartas de
Monsieur
Mr.
Lanier, que entretanto não temos de onde esperar quem no-las mande, e certo que assim esta, como todas as mais notícias, importam muito para se saber governar quem negoceia. 232 Da Baía tive também cartas de 7 de Março: não há de novo mais que haver desgostos entre os dois António Teles; o da Silva está prêso e não partia para Portugal como cá se disse, antes me escrevem de Lisboa que esperava recurso. Não sei para que será: por ventura para continuar o govêrno. Não havia ali mais que nove navios da armada; os cinco chegaram ao Rio de Janeiro no mesmo dia em que entrou Salvador Correia, o qual tirava daquela praça mil homens, e com êstes, e outros mil que levou de Portugal, se ficava aprestando para Angola, deixando a praça sem gente, a cargo de um Duarte Correia Vasqueanes, seu tio, homem de nenhum talento, e que mil vezes disse a Sua
Majestade
S. M.
que convinha tirá-lo logo-logo; mas tem parentes ou amigos em palácio. Galante cousa é que queira Vossa
Excelência
V. Ex.a
que lhe pague o noviciado as obrigações do pregador, mas espero em Deus que ainda entre os dois se há-de fazer uma restituição que muito desejo; nem Vossa
Excelência
V. Ex.a
a deve encontrar, porque a justiça está primeiro que a devoção. Chegou nova que os suecos tinham tomado Praga, havendo saído dela o Imperador o dia diante. Esquecia-me que se me diz de Lisboa haver grandes indícios do descobrimento da Ilha da Madeira encoberta, e mais não é sebastianista quem me o escreveu. Não será a maior monstruosidade do tempo. Deus sobre tudo, que guarde a Vossa
Excelência
V. Ex.a
muitos anos como desejo. Haia, 10 de Julho de 648. - Criado de Vossa
Excelência
V. Ex.a
António Vieira. 233
CARTA XLIII Ao Marquês de Niza 1648 - Julho 13
Excelentíssimo Senhor
Ex.mo Sr.
- Por certo que chegaram a muito bom tempo estas últimas cartas de
Vossa Excelência
V. Ex.a
, com as novas que nos trouxeram de Paris e Catalunha, e boas esperanças de Itália; porque as recebemos, o senhor Embaixador e eu, no jardim desta casa, a hora que havia muitas andávamos passeando nêle, discorrendo sobre o estado de nossas cousas, ambos com grande sentimento, e eu como mais estreito de coração quási desesperado. Confesso a
Vossa Excelência
V. Ex.a
que, achando-me com valor e constância para padecer pelo Rei e pela pátria qualquer trabalho, quando vejo os que a pátria e o Rei padecem, só porque querem os que tinham maior obrigação de se doer de um e outro, acaba-se-me a paciência, o zêlo se converte em loucura, e chega a paixão a fazer tais efeitos na saúde que não pode durar muito a vida. Bem conheço que é prudência não se matarem os homens pelo que não podem remediar; mas não tenho tanta capacidade, e estou muito perto dos golpes, e são muito repetidos, para os não sentir. Veio, senhor, a primeira nova do Brasil, e ainda que os primeiros movimentos da dor brotaram em desejos e ameaças de vingança, não eram passados três dias quando alguns de Zelanda por si, e outros por êles, se vieram oferecer ao senhor Embaixador para mediar no 234 acomodamento daquela Província, entendendo que sem dúvida se abrandaria, e querendo muitos ter merecimentos na obra. Vieram os segundos navios de Pernambuco com nova de haverem tomado cinco presas de açúcar, e foi tal a mudança que causou nos ânimos de todos, principalmente nos de Zelanda, que tendo-se resoluto nos Estados de nos darem conferência, êles a contradisseram fortemente, e se excluíram de vir a ela; antes pediram licença para armar contra Portugal em toda a parte, oferecendo que em dois meses esquipariam cincoenta fragatas de guerra, tanto para os mares do Reino, como para os das conquistas. Jerónimo Nunes me escreveu hoje que o açúcar tomado eram duas mil caixas (e o mesmo vi eu em carta do Recife) e que pelo preço corrente valem oito tonéis de ouro, que são da nossa moeda quatrocentos mil cruzados. Julgue
Vossa Excelência
V. Ex.a
agora que poderão os nossos quinze mil cruzados para a paz, se de uma só vez lhe damos quatrocentos para que continuem a guerra! Tão pródigos contra nós mesmos e tão avarentos e miseráveis para o que nos convém! Se fôra isto um sucesso não prevenido nem imaginado, tivera alguma desculpa a desgraça, e alguma consolação a paciência, mas no dia em que chegou a nova de Segismundo estar em Taparica disse logo a
Sua Majestade
S. M.
que a primeira diligência, que se havia de fazer, era despacharem-se avisos a todos os portos do Brasil, para que não viesse embarcação alguma com açúcar, e as que fosse necessário virem de aviso se lhe pagasse de vazio, por ser menos inconveniente que o poderem cair na mão do inimigo. Depois que aqui estou, o senhor Embaixador e eu não fazemos senão escrever que toda a salvação do Brasil consiste em que o holandês não tire proveito dos navios que traz a corso, nem para os outros possa lograr cousa alguma dos frutos da terra, desfazendo-se e arruinando-se, quando 235 seja necessário, tudo o que estiver exposto a suas invasões, porque com isto, ainda que nós percamos alguma cousa, êle se consumirá e desenganará, como verdadeiramente já hoje havia de estar desenganado, e totalmente consumido, se os navios de Portugal lhe não levaram bastimentos, e os do Brasil dinheiro, com que se sustentar a si e à guerra, sendo não menos de quarenta os que nos tem tomado. Sei eu de certo que
Sua Majestade
S. M.
, estando eu ainda em Lisboa, mandou que não viessem navios de açúcar, e sei também que se passaram as ordens pela secretaria de Estado; mas não sei quem sejam os poderosos que o desmandam, nem os desobedientes que não querem executar. Ah! senhor Marquês, como receio que há entre nós quem procura o nosso mal mais que os mesmos holandeses! Ao menos os portugueses de Pernambuco podem dizer com verdade que são tão valentes que podem destruir os socorros de Holanda, mas tão desgraçados que se não podem defender dos de Portugal. Ora, senhor, não sejam tudo tragédias! Agora nos vêm dizer por repetidas vias que anda a côrte cheia, e se mostram cartas de que o Marquês de Laganez foi batido em Portugal por um Conde, que deve ser o de
São
S.
Lourenço. Faça-nos Deus verdadeira a nova que importará muito para tudo. Também dizem as naus que ora chegaram de Setúbal que, aos 13 de Junho, viram entrar pela barra de Lisboa dezoito navios, redondos e caravelas, e que entendiam ser a frota do Rio de Janeiro. O tempo é mui antecipado, mas podia ser que havendo Salvador Correia de partir para Angola, ou para a Baía, quisesse dar escolta aos navios da frota, e os fizesse partir antes de recolhida toda a çafra. Conformo-me com o escrúpulo de
Vossa Excelência
V. Ex.a
, e assim para as cartas do Padre Nuno, como para as do outro 236 ministro que
Vossa Excelência
V. Ex.a
não nomeia, mortificarei a curiosidade até me ver com
Vossa Excelência
V. Ex.a
em Portugal. A mesma queixa que
Vossa Excelência
V. Ex.a
tem de faltarem respostas do Reino padece cá o senhor Embaixador, que se consola com saber que não é só. E eu também, que não sou tão vão que aspirasse a esperar que as minhas fôssem respondidas. A experiência ao menos de ver que me canso debalde, em escrever e representar o que sinto, me tem ensinado a não tomar êste escusado trabalho, e assim entendo que primeiro me verão já em Portugal do que carta minha. O senhor Embaixador teve uma de
Monsieur
Mr.
de Estrada, em que lhe diz mostrou aquele papel ao senhor Cardial, e que êle o vira, e dilatara a resolução daquele negócio para depois de se expedir dos que agora traz entre mãos. A gazeta nos pareceu muito bem: queira Deus mandar-nos tais novas que dêmos muitos sujeitos semelhantes a tão eloqüente relator. Vai a cifra. Guarde Deus a
Vossa Excelência
V. Ex.a
muitos anos como desejo. Haia, 13 de Julho de 648. - Criado de
Vossa Excelência
V. Ex.a
António Vieira. CARTA XLIV Ao Marquês de Niza 1648 - Julho 22
Excelentíssimo Senhor
Ex.mo Sr.
- Recebi a carta de
Vossa Excelência
V. Ex.a
de 10 do corrente, mais breve do que costumam ser as de que
Vossa Excelência
V. Ex.a
me 237 faz mercê, e sinto ser a causa as novas, que
Vossa Excelência
V. Ex.a
recebeu, de haver repetido à senhora Marquesa o achaque de que ficava em cama quando parti. Espero em Nosso Senhor haverá dado a
Sua Excelência
S. Ex.a
tão perfeita saúde como
Vossa Excelência
V. Ex.a
deseja, e seus criados havemos mister. Tivemos alfim conferência, e pôsto que as exorbitâncias do que pedem prometem pouca esperança de acomodamento, nós as temos hoje maiores que nunca, porque no meio de tamanha tormenta se transluzem alguns sinais de serenidade: as proposições já vêm em forma de tratado, e quererá Deus que se abram caminhos com que, sem exceder as promessas de
Sua Majestade
S. M.
, se dê satisfação às partes, pôsto que tão rijas. À cifra do senhor Embaixador me remeto. O negócio da minha continua, e cedo entendo que poderei dar conta a
Vossa Excelência
V. Ex.a
da primeira conferência, se o comissário não mente, podendo
Vossa Excelência
V. Ex.a
em qualquer caso estar seguro que se procederá sempre com tal cautela que, ainda que nos mintam, não nos enganem. As novas do Brasil cada vez vêm melhoradas, salvo as das presas que por nossa vontade lhe entregamos. Há carta do Recife que as bandeiras perdidas foram vinte e duas, e os oficiais mortos mais de cem, e não falta quem cuide que na relação que se imprimiu se não descobriu a metade do dano. E, quando isto pudera servir para o conhecimento e para o desengano, só se vêem os efeitos da fúria e da sem razão. Alegrou-nos a carta do Viso Rei da Índia, com a nova das três naus dêste ano, em que tenho por grande circunstância ser uma o galeão (
São
S.
Lourenço). Quererá Deus ter-nos livrado as demais, porque seria grande lástima haverem-se perdido quatro em um ano, duas de ida e duas de volta, e note
Vossa Excelência
V. Ex.a
que o ano foi o mesmo em que se tiraram as liberdades aos homens de mar, que parece 238 não aprova Deus o que tantos homens de bom zêlo reprovaram. Não conheço quem seja o Pimentel de Amsterdam; mas basta ser de lá para que o ódio que todos nos tem o fizesse negar a verdade. O que sinto é que, sendo as informações contra nós, fôssem dirigidas a Lope que é a campainha de Paris. O Secretário me disse que conhece o
Dom
D.
Pimentel, e que é um pícaro falador, de pouco cabedal e de nenhum juízo. Li o livrinho cujo estilo e rasões me pareceram muito bem. O discurso da Mina tenho por menos provável, como quem conhece Holanda, e quanto maior é a sua cobiça que os seus brios. Mas ainda que o mal da Mina não seja tanto, o remédio da contramina sempre fôra mui necessário e importante. Assim se quisessem persuadir ao tomar ou aplicar os príncipes da cristandade, principalmente católicos, a quem tão de perto toca. Ao senhor Embaixador pareceu que o papel não saísse de nossas mãos, porque, como nem a linguagem nem a impressão bastam a disfarçar o ânimo português de quem o fez, se chegasse à notícia dos holandeses, seria um novo escrúpulo para a consciência com que procedem nos nossos negócios, que sendo a mais má do mundo até de pecado de pensamento se ofende. Há quarenta dias que chove, cousa não vista nestes países, com que se prognosticam grandes fomes e enfermidades, as quais já começamos a padecer nesta casa, 239 onde não há quem não gema. O Padre Pontilier fica de cama, e eu ainda que em pé mais doente que ele. Guarde Deus a
Vossa Excelência
V. Ex.a
muitos anos como desejo. Haia, 22 de Julho 648. - Criado de
Vossa Excelência
V. Ex.a
António Vieira. CARTA XLV Ao Marquês de Niza 1648 - Agôsto 3
Excelentíssimo Senhor
Ex.mo Sr.
- A duas de
Vossa Excelência
V. Ex.a
devo resposta, mas acho-me ainda com tão pouco cabedal de saúde, que não sei se poderei responder a ambas: as sangrias foram só quatro, mas a fraqueza é de muitas mais. Os médicos me receitam que me alegre, e
Vossa Excelência
V. Ex.a
me estranha que me mate pelo que outros não sentem, e eu tomara muito poder aplicar êstes remédios, mas tomou-me o mal em estado que já me não acho capaz dêles, principalmente porque de hora em hora crescem as causas, e não há nenhuma em que não venha alguma de novo, umas por seus pés outras por nossas mãos. A carta do Padre Nuno se parece muito com êle. Deus lhe dê melhor discurso para os negócios que trata, porque, se entende os seus como os alheios, não fará grandes progressos o serviço de
Sua Majestade
S. M.
naquela cúria. Tudo lá está ao desamparo, e quando havíamos de resistir, e impedir por todos os meios a promoção e nomeação dos bispados ultramarinos, vem muito a tempo a aceitação dos do Reino ex motu proprio! Não sei que teologias são as da nossa 240 terra, ontem tão largas para o Colector e hoje tão escrupulosas para os Bispos. Nenhuma dúvida ponho em que houvesse pessoa que por aquela causa se dobrasse, e mais sendo a que eu cuido, no que guardarei pontualmente o segrêdo que
Vossa Excelência
V. Ex.a
me manda. Agora nos chegou carta de Amsterdam com novas de haver ali chegado navio do Pôrto. Diz que em todos os de Portugal tem entrado muitos navios da Baía com grande número de caixas de açúcar, que a frota do Rio se espera, e que nas fronteiras havíamos tido três bons sucessos, mas não dizem onde nem quais fôssem. Ontem pela manhã me veio aqui visitar um Padre da Companhia, procurador de Bruxelas, o qual me disse que Cosmander havia ido a Olivença, com instrumentos de fogo, para a tomar por entrepresa, e que depois de abrir uma porta, e serem entrados dentro da vila mais de cem castelhanos, os de dentro os mataram a todos e a outros muitos, e entre êles ao mesmo Cosmander, e que isto vira ler no Repouso da casa professa de Anvers, por carta dos padres de Madrid, que são circunstâncias que fazem a nova crível. Dos negócios de aqui dá larga relação a
Vossa Excelência
V. Ex.a
o senhor Embaixador. Queira Deus dar-lhe o sucesso que todos desejamos e o Reino há mister, ainda que não seja o que muitos dêle desejam. Meu amo e senhor, não posso mais.
Vossa Excelência
V. Ex.a
me perdôe. E Deus guarde a
Vossa Excelência
V. Ex.a
muitos anos, e lhe traga a
Vossa Excelência
V. Ex.a
muito cedo as ordens que espera de Portugal, para que até o fim de Setembro, como espero, nos vejamos lá, para alívio das tristezas dêstes países, contra as quais não pode nêles haver remédio. Haia, 3 de Agôsto 648. - Criado de
Vossa Excelência
V. Ex.a
António Vieira. 241
CARTA XLVI Ao Marquês de Niza 1648 - Agôsto 12
Excelentíssimo Senhor
Ex.mo Sr.
- Tudo o que
Vossa Excelência
V. Ex.a
me diz nesta sua carta de 7 do corrente é mui conforme à mercê que
Vossa Excelência
V. Ex.a
me faz, e ao que o meu ânimo merece a
Vossa Excelência
V. Ex.a
; e assim o creio bem e verdadeiramente, e beijo
Vossa Excelência
V. Ex.a
mil vezes a mão por tanto favor. As doenças nesta casa são correição geral que a ninguém perdoa, mas é Deus servido que durem pouco, para que haja sãos que acudam aos enfermos. Ao senhor Embaixador tivemos em cama estes oito dias, mas já hoje se levantou livre da febre: queira Nosso Senhor conservar-lhe a saúde, que tão necessária nos é neste tempo, para continuar o que
Vossa Excelência
V. Ex.a
com razão chama grande batalha; porque, apenas se vence ou se escapa de uma dificuldade, quando nascem de novo muitas, e todas tão trabalhosas como a pertinácia e sem razão de seus autores. Notável é a instância com que êstes senhores apertam pela conclusão dêste negócio, e se o não quiseram fazer em tudo a seu gôsto já estivera acabado. Cinco conferências houve a semana passada, duas na sala geral, onde foi o Secretário para receber e se lhe praticarem as propostas, e três nesta casa, onde o senhor Embaixador assim na cama como estava, e algumas vezes com a mesma sezão, se quis atrever a assistir a elas, por não perder tempo e evitar os inconvenientes que lhe pode trazer consigo. 242 Que dissera Francisco de Andrade em semelhante fineza, quando por um dia se haver levantado às 8 horas disse: grande serviço fiz hoje a
Sua Majestade
S. M.
? Parece-me que tinha razão, porque no cabo tanto se dá aos ociosos como aos que cavaram na vinha. Ao menos, se o havemos de julgar pelos despachos que agora saíram na nossa terra, melhor é folgar ao perto que trabalhar ao longe. Notáveis são as novas que
Vossa Excelência
V. Ex.a
nos mandou, e ainda não acabo de me espantar tanto de umas como de outras. Considero o que faz Deus no mesmo tempo, e o que fazem os homens, e tão dignas de admiração são umas cousas como outras, senão que as de Deus são milagres e as nossas não sei como lhe havemos de chamar. A novidade dos mestrados é matéria de tantas dependências para o presente, e de tantas consequências para o futuro, e de tão pouco efeito para nada, que não sei com que intenção se propôs, nem com que consideração se admitiu; sem dúvida algum zeloso devia de ser pelos cronistas do tempo em que Espanha estava em poder de mouros, e quere que haja agora mestres das Ordens, que façam as façanhas que de então se escrevem, como se os tempos foram todos uns, e a guerra a mesma, e os freires que agora têm as comendas capazes todos das armas, como naquela era. Não digo isto sem fundamento, porque já quando vim de Portugal ouvi falar nisto, mas cuidei então que era matéria de graça. Também os generalatos fantásticos e a repartição dêles é notável, só no 243 Príncipe se não fala, para que dêmos ainda mais que falar aos que sabem que idade tem e onde vive. Mas tornando aos nossos negócios: pela proposta dos comissários, e resposta do senhor Embaixador, que com esta vai, verá
Vossa Excelência
V. Ex.a
o estado em que êles ficam, que é pouco mais ou menos o mesmo. Todo o debate agora é sôbre Angola, e é matéria em que não hão-de ceder, porque sem negros não há Pernambuco, e sem Angola não há negros, e como nós temos o comércio do sertão, ainda que êles tenham a cidade de Loanda temem que, se nós tivermos outros portos, lhes divertamos por êles tudo. Sabemos que da sua parte se andam buscando meios com que isto se possa compôr, e tais podem vir a ser que sejam mui convenientes; mas para nada há instruções, nem informações, nem notícias, sendo que dessa côrte o escrevi a
Sua Majestade
S. M.
por duas vias, e de aqui por outras duas, mas nem a isto nem ao demais se respondeu: se é mistério Deus lhe dê sucesso, se descuido Deus lhe dê remédio. Agora às cinco horas tornaram os comissários à conferência em que estão: se houver cousa de novo o escreverei ainda, quando não entenda
Vossa Excelência
V. Ex.a
que estamos no mesmo estado. Guarde Deus a
Vossa Excelência
V. Ex.a
muitos anos como desejo. - Haia, 12 de Agôsto 648. - De
Vossa Excelência
V. Ex.a
criado
António Vieira. O senhor escreve o que hoje passou. 244
CARTA XLVII Ao Marquês de Niza 1648 Agosto 24
Excelentíssimo Senhor
Ex.mo Sr.
- Dou a
Vossa Excelência
V. Ex.a
o parabem de haverem chegado as ordens de
Sua Majestade
S. M.
, podendo também dar o pêsame de haverem chegado tão tarde, e tão em outro tempo do que foram pedidas, que não podem deixar de variar muito, assim nas propostas de
Vossa Excelência
V. Ex.a
, como nas respostas do Cardial, pois o estado presente das cousas é tão diverso do passado; mas a providência divina nos dá bastantes seguros de que haverá disposto, e disporá tudo, como mais convenha ao bem e conservação do reino que tanto ama. Não me dê
Vossa Excelência
V. Ex.a
ainda recados para Lisboa, porque não estão ainda os negócios nesse estado, e sendo que o pouco que eu faço, ou posso fazer nêles, era bastante razão para me não terem em Holanda, onde vim pelo que
Vossa Excelência
V. Ex.a
sabe, tenho contudo junto a
Sua Majestade
S. M.
amigos que, com pretexto de seu serviço, querem que esteja eu longe, como se o não fôra mais a minha Província, onde só me desejo. Não são isto só suspeitas, porque tive carta em que me o avisa assim pessoa que o sabe, para que
Vossa Excelência
V. Ex.a
se não espante dos ofícios que
Vossa Excelência
V. Ex.a
experimenta nos nossos cortesãos, quando até contra um religioso, que lhes não pode tirar nada, se armam. Mas vamos a negócio, de que agora darei a
Vossa Excelência
V. Ex.a
a conta que da outra vez não pude, por estar tão doente como
Vossa Excelência
V. Ex.a
sabe, quando se fez a proposta. 245 Dois inconvenientes acha
Vossa Excelência
V. Ex.a
no açúcar que se ofereceu aos holandeses:
primeiro
1.º
a quantidade, que ainda depois cresceu mais, e chegou a dez mil caixas pagas em dez anos;
segundo
2.º
o modo com que se ofereceu, que foi debaixo do título de terceira parte dos dízimos que
Sua Majestade
S. M.
recebe no Brasil. Quanto à quantidade do açúcar, bem tomáramos nós que os holandeses se contentaram com menos e bem vemos que a nossa necessidade pedia que antes êles nos dessem fazenda que nós a êles. Mas, se passarmos a outras considerações, acharemos que não é demasiado êste preço, se com êle comprarmos a paz e remirmos a nossa vexação. Primeiramente os holandeses nos pedem satisfação das perdas e danos que tiveram no Brasil, as quais verdadeiramente foram grandíssimas, porque os levantados queimaram capitanias inteiras, e nelas muitos engenhos; e os que ficaram em pé nas outras não os hão-de receber senão mui danificados e diminuídos. A mesma diminuição, e muito maior, hão-de ter nos escravos e nos gados, de que depende todo o sustento e lavoura daquelas terras. Ajuntaram-se a isto as despesas de muitos socorros particulares e de duas grandes armadas, a de Segismundo que custou melhor de trinta e três tonéis de ouro, e a de Wit Wites que custou quarenta e sete, que fazem da nossa moeda a soma de quatro milhões de cruzados. E em satisfação de tudo isto, e dos frutos e interêsses que deixaram de lograr em perto de quatro anos, mais é na cobiça dos holandeses o contentarem-se com dez mil caixas de açúcar, que na nossa necessidade o darmos-lhas. Bem vejo que também 246 êles nos deram muitas perdas, mas a isso respondem que as suas são de boa guerra, porque foram provocados, e as nossas não, porque fomos os agressores. E ainda mal, porque isto se pode tão mal encobrir ou negar, quando os principais soldados que hoje defendem Pernambuco são todos vassalos de El-rei, mandados da Baía, de onde também vieram os quatro governadores, de cinco que governam aquela guerra, e ùltimamente um Mestre de Campo General mandado de Lisboa. O que os holandeses queriam e pediam por esta satisfação, como
Vossa Excelência
V. Ex.a
viu na sua proposta, era a reparação dos engenhos com todos os escravos e cobres, dez mil bois de carro, dez mil vacas, cinco mil ovelhas, cinco mil cavalos, dois milhões de florins em dinheiro, e quarenta mil caixas de açúcar pagas em vinte anos; e não será pequeno milagre, contratando com holandeses, que tudo isto se venha a reduzir só a dez mil caixas em prazo de dez anos, e a metade delas de açúcar mascavado, e no Brasil. Também se deve considerar que lhes vimos a dar menos agora do que antes se lhe tinha prometido; porque se lhe tinha prometido que, por alguns anos, lhes pagaria El-rei no Brasil quinhentos soldados, cujos soldos, e os de seus oficiais, é certo que montam tanto cada ano quanto podem valer no Brasil mil caixas daquele açúcar. Assim mais se lhe tinha prometido que as perdas e danos que pediam se pusessem em juízo de árbitros; e sendo tão manifesta a presunção, ou a prova, de a trégua se haver quebrado por nossa parte, julgue
Vossa Excelência
V. Ex.a
se compramos barato o livrarmo-nos só dêste pleito. Últimamente o que se dá em açúcar é muito menos 247 dinheiro do que as ordens de
Sua Majestade
S. M.
permitem se ofereça. Porque a estimação do açúcar não se há-de fazer pelo que hoje vale em Lisboa, senão pelo que há-de valer no Brasil depois de feitas as pazes com os holandeses. E sabemos os que temos experiência do Brasil quão grande abatimento hão-de ter os açúcares. Muitas vezes vi lá vender o branco a cruzado, e a pataca, e algumas vezes a muito menos. A Gaspar Dias Ferreira, que é mercador de muitos anos do Brasil, mandou o senhor Embaixador preguntar que preço lhe parecia que teriam os açúcares nos primeiros dez anos depois das pazes: e respondeu que, uns anos por outros, feita a conta por mascavados e brancos, não haviam de chegar a seis tostões por arroba. Segundo êste preço, montam as sobreditas dez mil caixas trezentos mil cruzados, que é a metade do dinheiro que
Sua Majestade
S. M.
é servido se possa oferecer, porque quinhentos mil cruzados pagos hoje em Holanda são mais de seiscentos da nossa moeda. Afora isto, dava poder
Sua Majestade
S. M.
para se oferecer a fortaleza do Pôrto, sustentado o presídio à custa de
Sua Majestade
S. M.
, que é outra boa partida que por esta via se poupa, tão considerável para a fazenda como para o crédito. Não é menos digno de considerar que o dinheiro, que
Sua Majestade
S. M.
manda oferecer, diz que se pagará logo; e foi grande o serviço que se fez a
Sua Majestade
S. M.
em estender o pagamento a prazos de dez anos, assim pela maior facilidade como pelo menor valor do que se há-de pagar. Porque só com os 248 interêsses daquele dinheiro, a razão de juros, se pode pagar o açúcar, e no cabo dos dez anos ficar o capital em ser. E, sôbre tudo, pagarmos aos holandeses em dez anos é termos todo êste tempo em nossa mão um penhor e caução sua, para melhor nos guardarem o que nos prometerem. Finalmente, muito mais nos tomaram os holandeses nos mares do Brasil, nestes seis meses, do que nós lhes prometemos em todos os dez anos. Façamos conta que lhes damos cada ano dois navios de açúcar, para que nos deixem livres os demais, e as nossas naus da Índia, e o nosso comércio da China e o de todo o mundo, emfim todos os bens da paz que com isto lhes compramos. Estas são as considerações, com que o senhor Embaixador se resolveu a chegar a dar dez mil caixas de açúcar aos holandeses, e as com que nos havemos de consolar a dôr de sermos forçados a dar-lhas. Agora direi as razões porque êste açúcar, no princípio, se ofereceu a título da terceira parte dos dízimos. Na sua primeira proposta pediram os holandeses que os moradores da Baía lhes dessem quarenta mil caixas de açúcar, duas mil cada ano, em satisfação dos danos de que êles foram causa nas capitanias de Pernambuco; e nisto levaram três fins:
primeiro
1.º
que o açúcar que se lhe desse fosse todo da Baía, que faz na bondade e valor grandes vantagens ao do Rio de Janeiro;
segundo
2.º
para que por esta via confessássemos que os vassalos de
Sua Majestade
S. M.
foram causa das perdas e danos da Companhia;
terceiro
3.º
porque, recolhendo os moradores da Baía cada ano quinze mil caixas de açúcar, ficava cousa possível darem-lhe as duas mil cada ano, assim em satisfação das perdas que lhes causaram, como para se remirem das que hoje recebem nas presas de tantos navios, que até esta sem razão chegaram êles a alegar. 249 Por esta causa, foi o primeiro cuidado do senhor Embaixador desenganar os comissários, que os moradores da Baía nem deviam nem haviam de pagar cousa alguma, nem
Sua Majestade
S. M.
os podia nem havia de obrigar na ocasião presente, insinuando para isso causas ocultas e misteriosas, pelas quais semelhante intento não só era impraticável, mas ainda perigoso. Em
Sua Majestade
S. M.
fazer a oferta de sua fazenda, nem clara nem ocultamente se dá a entender serem os danos de Pernambuco causados por sua ordem, porque o modo com que isto se ofereceu foi que, havendo
Sua Majestade
S. M.
respeito às perdas que nestes anos tem padecido a Companhia Ocidental, de sua real liberalidade lhe mandava livrar nos dez anos seguintes tantas caixas de açúcar. Antes, com licença de
Vossa Excelência
V. Ex.a
, se
Sua Majestade
S. M.
prometera de haver de obrigar os moradores da Baía, ao pagamento e satisfação das perdas que os holandeses pRetendem, por haverem sido os mesmos moradores causa da maior parte delas, então parece que era confessar claramente o mesmo que pretendemos negar, porque o que fazem os vassalos e ministros dos reis, em semelhantes casos, se julga ser feito pelos mesmos reis. E, de se falar em dízimos na primeira resposta, nenhum inconveniente se seguiu nem podia seguir, porque não era essa a tenção nem a forma em que se havia de capitular, como
Vossa Excelência
V. Ex.a
terá já visto pela segunda resposta da semana passada, e se poderá ver pela terceira e última desta semana, que é a que vai às Províncias e a que há-de ser a aceitada ou regeitada. As razões que houve para, na primeira abertura, se falar em dízimos foram principalmente três:
primeira
1.a
por ser esta oferta a mais especiosa e justificada que se podia achar, mostrando-se por ela que
Sua Majestade
S. M.
chegava a dar tudo o que tinha no Brasil, e mais do que podia, pois dava a têrça 250 parte dos dízimos, que é, dizemos nós, o que só fica a
Sua Majestade
S. M.
pagas as obrigações com que lhe foram concedidas;
segunda
2.a
porque por êste modo metemos no pagamento os açúcares do Rio de Janeiro, com que viremos a dar aos holandeses os piores que se fizerem em todo o Brasil;
terceira
3.a
para que desde logo ficassem lançados os fundamentos, e aberto o caminho à forma porque
Sua Majestade
S. M.
há-de tirar e pagar êste açúcar, sem novo tributo algum nem opressão dos vassalos, e sem diminuição, antes com notável aumento de sua real fazenda que é o alvitre seguinte.
Sua Majestade
S. M.
no Brasil é senhor dos dízimos, os quais costuma arrendar todos os anos. E, deixando àparte os dois ramos do gado e das miunças, o dízimo do açúcar um ano por outro virá a render setenta mil cruzados, a terceira parte dos quais pagam os contratadores em panos, a que êles mesmos põem os preços. O que agora se propõe é que
Sua Majestade
S. M.
não arrende os dízimos, mas que os cobre; e esta cobrança se pode fazer sem nenhuma despesa, ou por uma pessoa de confiança escolhida em cada freguesia, ou pelos mesmos lavradores e senhores de engenho, aos quais não custa nada, quando as suas barcas ou canoas trazem à cidade o seu açúcar, trazerem também o de El-rei. O açúcar que se costuma lavrar na Baía e Rio de Janeiro, um ano por outro, são vinte e cinco mil caixas, que dão ao dízimo duas mil e quinhentas. Destas duas mil e quinhentas caixas se hão-de tirar quinhentas de mascavado e quinhentas de branco, as piores, com que se há-de fazer pagamento aos holandeses. E ficam livres a
Sua Majestade
S. M.
todos os anos mil e quinhentas caixas de açúcar, quási todo branco e o melhor que se fizer no Brasil. Estas mil e quinhentas caixas se hão-de navegar para Portugal, repartindo-se pro rata por todos os navios, os quais terão obrigação de levar de graça as que lhe 251 couberem, que não serão muitas em tanta quantidade de embarcações; e será êste um certo género de tributo fácil e insensível que se porá aos navios, aos quais tão particularmente tocam os interêsses desta paz, pela segurança com que de aqui por diante poderão navegar. E também ficam livres, por êste meio, da grande sujeição que todos os navios tinham aos contratadores, aos quais era cada um obrigado de dar praça para grande número de caixas, que depois de carregadas se vendiam por subidíssimos preços. Postas em Portugal por êste modo as ditas mil e quinhentas caixas que são trinta mil arrobas de açúcar, e vendida a arroba a mil e quatrocentos réis, que é o ínfimo preço, montam líquidos a
Sua Majestade
S. M.
cento e cinco mil cruzados. De maneira que, por êste meio, sem
Sua Majestade
S. M.
impor tributo de novo aos moradores do Brasil, só com arrecadar por outro modo e navegar o que é seu, por setenta mil cruzados mal pagos, que recebia no Brasil, vem a receber em Portugal mais de cento, e a pagar de graça aos holandeses mil caixas de açúcar, que ao cabo dos dez anos serão também para
Sua Majestade
S. M.
Ganhando tanto a fazenda de
Sua Majestade
S. M.
neste alvitre, só perdem nêle o Governador do Brasil e o Provedor mór da Fazenda, os quais em cada arrematação dos dízimos tinham dois mil cruzados de propina. E havendo de ser o governador, em cujo tempo isto se há-de começar, o senhor Francisco de Sousa Coutinho, e o provedor Simão Álvares 252 de la Penha, cunhado do Padre António Vieira, assás qualificado fica o alvitre, pois sendo tão proveitoso ao Rei só aos que o oferecem é danoso. Fico com grande alvorôço esperando a posta de sexta feira. Deus nos traga nela novas de
Vossa Excelência
V. Ex.a
haver negociado com tão bom sucesso como a
Vossa Excelência
V. Ex.a
em todas suas cousas desejo. Guarde Deus a
Vossa Excelência
V. Ex.a
muitos anos. Haia, 24 de Agôsto 648. António Vieira. CARTA XLVIII Ao Marquês de Niza 1648 - Agôsto 31
Excelentíssimo Senhor
Ex.mo Sr.
- Não há tempo para mais. Ontem às dez da noite chegaram cartas de
Sua Majestade
S. M.
com as ordens que
Vossa Excelência
V. Ex.a
verá, e, porque há navio em Amsterdam que só espera por vento, me parto hoje a alcançá-lo. O senhor Embaixador esteve resoluto a fazer o mesmo, e se ir logo despedir dos Estados e não esperar mais um momento nesta côrte, e o vi tão determinado, e sem admitir nenhum gênero de razão, que dei tudo por perdido. Eu fiz loucuras de rogos e de protestos, não havendo respeito nenhum divino nem humano que lhe não pusesse diante dos olhos, e por fim de tudo lhe assegurei que
Vossa Excelência
V. Ex.a
havia de ser 253 dêste mesmo parecer, e que sem ouvir primeiro o de
Vossa Excelência
V. Ex.a
não se arrojasse em matéria tão grave, em que não considero menos que perdermo-nos. As razões que me movem a o senhor Embaixador dever ter em secreto estas ordens, e não fazer nada de si na ocasião presente, continuando lentamente com a negociação, são infinitas, e que se estão vendo melhor do que eu agora as saberei referir. Porque
Sua Majestade
S. M.
não tem notícia do estado em que estão estes negócios, antes diz, no princípio da sua carta, que o motivo de mandar retirar ao senhor Francisco de Sousa é haver cinco anos que continua nos requerimentos da paz sem se lhe deferir, que é não só caso diferente, mas o contrário do em que hoje estamos. Se o senhor Embaixador se vai, e fica
Dom
D.
Luís sem poderes (porque lhe não vem), veja
Vossa Excelência
V. Ex.a
se pode haver termo mais claro de dizer El-rei que não quere paz, senão guerra com os holandeses, e que consequências tão perniciosas se seguirão ao serviço de
Sua Majestade
S. M.
, em toda a parte sabida esta deliberação! Lá devem de supôr que, por haverem vindo novas ordens a
Vossa Excelência
V. Ex.a
, estará feita a liga de França, e que nesta confiança podem havê-lo (sic) com mais um inimigo, e, quando esta razão não fôra tão falsa, o fundamento dela é tão duvidoso como
Vossa Excelência
V. Ex.a
nos avisa, e é certo que França em qualquer estado há-de reparar muito mais em se ligar connosco, tendo êste inimigo, do que se estivermos em paz com êle, sem a qual ninguém há no mundo que presuma bem de nossa conservação, e finalmente, quando
Sua Majestade
S. M.
queira guerra, melhor é que se rompa por parte dos holandeses que pela nossa, e que a dilatem quanto nos fôr possível, e nos aproveitemos do tempo enquanto êles no-lo querem dar. Entre concertar, assinar, ratificar e executar, há mui compridas jornadas, e em qualquer delas pode
Sua Majestade
S. M.
, muito a seu salvo, seguir o caminho que melhor lhe 254 estiver, o que eu cuido que lá não consideram nem sabem, porque têm para si que, do que uma vez disse ou prometeu o embaixador, não se pode tornar atrás: o certo é que faz
Vossa Excelência
V. Ex.a
grandíssima falta naquele Conselho de Estado, não só necessitado de bons corações e juízos, mas ainda das mais ordinárias notícias. E neste mesmo tempo, para que
Vossa Excelência
V. Ex.a
mais se admire, cuidam em Portugal que em Castela se apresta armada contra Lisboa, e que Lagánez entrará com exército por Alentejo; e, quando não têm com que acudir bastantemente a uma destas partes, há quem aconselhe que nos dividamos em tantas outras. Emfim, senhor, o meu ânimo não é que as ordens de
Sua Majestade
S. M.
se não obedeçam, mas que se obedeçam como convém a seu serviço, e não de modo que sirvam só de apressar nossa ruína. Pedro Vieira é dêste mesmo parecer, como claramente me diz em carta sua que recebi ontem, e se dóe que haja outros que prevalecessem; mas ainda no tal caso é bem que as cousas se façam como convém, não só para a justificação senão para o mesmo intento. Espero que
Vossa Excelência
V. Ex.a
há-de aprovar a verdade destas razões, e aconselhar ao senhor Embaixador que em nenhum caso se despida, até resposta de
Sua Majestade
S. M.
, que não pode tardar muito, pois eu vou, e é sem dúvida que, informado El-rei e seus ministros do estado em que hoje aqui estão os negócios, ainda que não queiram paz, hão-de aprovar e mandar continuar os meios porque não quebre por nossa parte, e se faça tudo com a consideração que convém. Meu amo e senhor, fique-se
Vossa Excelência
V. Ex.a
muito embora. A Lisboa, querendo Deus, vou aguardar as ordens de
Vossa Excelência
V. Ex.a
, emquanto
Vossa Excelência
V. Ex.a
não chega, prometendo a
Vossa Excelência
V. Ex.a
que serei o melhor solicitador em procurar que não prevaleçam as diligências dos que, tanto contra o bem comum, querem a
Vossa Excelência
V. Ex.a
longe de Portugal. A isto me ofereço porque sei que é o gôsto de 255
Vossa Excelência
V. Ex.a
: no demais se sirva
Vossa Excelência
V. Ex.a
de me o mandar manifestar por uma lista, porque desejo que
Vossa Excelência
V. Ex.a
conheça que não tem nem mais verdadeiro nem mais afeiçoado criado. Mande-me
Vossa Excelência
V. Ex.a
encomendar a Deus, que guarde a
Vossa Excelência
V. Ex.a
com a vida, saúde e felicidades que a
Vossa Excelência
V. Ex.a
desejo. Haia, 31 de Agôsto 648. Criado de
Vossa Excelência
V. Ex.a
António Vieira. 441
CARTA LXX Ao Procurador da Província do Brasil 1654 - Abril 15
Pax Christi. Muito Reverendo em Cristo Padre. - Tinha já fechado o maço; torno a abri-lo para meter nêle estas regras, as quais faço como se houvera de entrar no mar, assim como hão-de entrar as mesmas cartas. Nelas, e nas certidões que vão, se fala em muitas pessoas assim eclesiásticas como seculares, e faça
Vossa Reverência
V. Rev.a
442 de conta que, em tudo o que aqui vai escrito, ainda que não seja em meu nome tenho eu parte, porque o ditei ou ordenei, e quando menos o solicitei. E como as matérias são tão graves, e tão delicada como a honra alheia, e as palavras não podem ser tão medidas, e nos juízos humanos há tanto engano, e no que se diz e se ouve tanta variedade, pôsto que eu claramente disse, a todos os que juraram, que não queria que jurasse senão o que sabiam, e na mesma forma em que o sabiam, e sôbre isto houve da minha parte, e da de todos os nossos que juraram, muito que riscar e moderar e emendar de palavras, e grande escrúpulo em todas as formalidades do que se dizia: contudo, eu não fico totalmente livre dêle, nem em toda a minha vida tive cousa que mais pena e inquietação me désse. Assim que peço muito a
Vossa Reverência
V. Rev.a
, por amor de Nosso Senhor, que se êstes negócios se pudessem concluir sem êstes papéis saírem a público, de maneira que se consiga o remédio das almas sem ofensa alguma do próximo, e se
Sua Majestade
S. M.
quisesse resolver isto em algum conselho particular e secreto, ou por si mesmo, que é melhor de tudo, seria para mim, e para quietação e satisfação de minha consciência, a maior mercê que
Sua Majestade
S. M.
me podia fazer, e a maior que
Vossa Reverência
V. Rev.a
me podia alcançar; porque lhe afirmo a
Vossa Reverência
V. Rev.a
que todas as vezes que me vejo metido nestes labirintos e escrúpulos, no mesmo lugar em que vim buscar a quietação, que assim chego a duvidar dela, e não sei que há-de ser de mim. Deus me valha e guarde a
Vossa Reverência
V. Rev.a
. Maranhão, 15 de Abril de 1654. - Servo que não presta para servir
António Vieira. 444
CARTA LXXII Ao Rei D. João IV 1655 - Agosto 5
Senhor. - Baltasar de Sousa Pereira tem servido a
Vossa Majestade
V. M.
nêste Estado do Maranhão, com a satisfação que a
Vossa Majestade
V. M.
representei, e que
Vossa Majestade
V. M.
foi servido mandar-lhe agradecer por uma carta, e com a mesma me consta que 445 procedeu até o fim de seu govêrno, que não acabou por
Vossa Majestade
V. M.
ordenar que o Mestre de Campo André Vidal de Negreiros viesse governar todo o Estado, na forma do governo antigo. E porque André Vidal há-de entrar cedo no de Pernambuco, e Baltasar de Sousa lhe pode suceder sem despesas da fazenda de
Vossa Majestade
V. M.
, por estar ainda cá, e tem a experiência e conhecimento pelo que toca às missões que
Vossa Majestade
V. M.
tem encarregado à Companhia, por ser uma das pessoas que com maior cristandade tratarão de ajudar a propagação da fé, e de guardar justiça aos índios assim gentios como cristãos me pareceu representar a
Vossa Majestade
V. M.
estas razões de conveniência, lembrando a
Vossa Majestade
V. M.
a muita importância da última, pois dela não só depende o bem de todo o Estado mas o do mesmo reino, e sobretudo a segurança da consciência de
Vossa Majestade
V. M.
, que é o que
Vossa Majestade
V. M.
tanto encarrega aos governadores e êles ordinariamente tão mal observam. Guarde Deus a muito alta e muito poderosa pessoa de
Vossa Majestade
V. M.
, como a Cristandade e os vassalos de
Vossa Majestade
V. M.
havemos mister. Maranhão, 5 de Agôsto de 1655. António Vieira. 460
CARTA LXXVII Ao Rei D. Afonso VI 1657 - Abril 20
Senhor. - A Providência Divina, que por seus altíssimos juízos pôs nas mãos de
Vossa Majestade
V. M.
o sceptro de Portugal em 461 tão tenros anos, se servirá de assistir e alumiar a alma de
Vossa Majestade
V. M.
, com tão particulares auxílios de seu espírito e graça, como o pêso de tão dilatada monarquia, em tais circunstâncias de tempo, há mister: e nós, os religiosos desta missão de
Vossa Majestade
V. M.
, não cessaremos de assim o pedir continuamente a Deus, oferecendo por esta tenção e pela vida e felicidade de
Vossa Majestade
V. M.
todos os nossos sacrifícios, orações e trabalhos.
Sua Majestade
S. M.
, que está no céu, me tinha ordenado, pelo real zêlo e piedade com que desejava ver adiantada a fé nestas conquistas do Maranhão, enviasse sempre aviso a
Sua Majestade
S. M.
do que os missionários da Companhia fossem obrando, e do que fôsse necessário para bem e conservação das missões e aumento da cristandade, como fiz largamente nos navios do ano passado, esperando as resoluções de algumas propostas de muita importância, as quais se deviam perder no naufrágio desta última embarcação, de que, escapando as pessoas e outras cousas de menor importância, só os despachos de
Vossa Majestade
V. M.
não apareceram. As missões, Senhor, continuam, como tenho avisado, com mui conhecido proveito espiritual e salvação de muitas almas, assim de gentios novamente convertidos como dos que já tinham nome de cristãos. Só a missão dos Pacajás, 462 vulgarmente chamada a Entrada do Ouro, teve o fim que tão mau nome lhe prognosticava. Gastaram nela dez meses quarenta portugueses, que a ela foram com duzentos índios. Dêstes morreram a maior parte pela fome e excessivo trabalho; e também morreu o Padre João de Sotomaior, tendo já reduzido à fé e à obediência de
Vossa Majestade
V. M.
quinhentos índios, que eram os que naquela paragem havia da nação Pacajá, e muitos outros da nação dos Pirapés, que também estavam abalados para se descerem com êle. Estas, Senhor, são as minas certas dêste Estado, que a fama das de ouro e prata sempre foi pretexto com que de aqui se iam buscar as outras minas, que se acham nas veias dos índios, e nunca as houve nas da terra. O mau sucesso e tardança desta missão suspendeu outra, que eu havia de fazer pelo rio das Amazonas, onde estive três meses esperando pela escolta dos portugueses, e se reservou para a primavera dêste ano; fica-se aprestando para partir. Aos índios livres das aldeias, e aos escravos dos portugueses, assim das povoações como das suas lavouras, se acode com grande continuação e trabalho, catequizando-os, baptizando-os, confessando-os e administrando-lhes todos os sacramentos, e suprindo pela maior parte o ofício dos curas, que não há ou não podem acudir a lugares tão distantes, nem têm a inteligência da língua, sem a qual se não pode obrar nada com esta gente. São mui poucos já os que não tenham notícia dos principais mistérios de nossa santa fé, quanta baste para a salvação; e os das aldeias, com quem principalmente assistimos, estão tão bem instruídos em toda a doutrina cristã, como os portugueses que melhor a sabem. Emfim vivem e morrem os índios como cristãos, o que se não usava 463 antes de virmos a estas terras, morrendo quási todos sem confissão e muitos sem baptismo. A injustiça que se usava com os índios livres, servindo-se dêles os portugueses sem lhes pagarem seu trabalho, se tem evitado em grande parte com o modo da repartição que se dispõe no regimento, pôsto que as ocasiões do serviço, ou chamado serviço, de
Vossa Majestade
V. M.
têm sido tantas êstes dois anos, que não tiveram os pobres índios lugar de lograrem os seis meses que
Vossa Majestade
V. M.
lhes manda dar, para acudirem a suas lavouras e casas, e para conhecerem que não são cativos. Raro é o índio das aldeias que em cada um dêstes dois anos não tenha servido mais de dez meses; e contudo ainda os portugueses se queixam, como se puderam os índios no mesmo tempo servir aos particulares e mais ao comum. O ano passado mandei as listas, para que por elas constasse; e também irão as dêste ano, sendo necessário. Os resgates dos escravos (que é outro ponto do interêsse dos moradores dêste Estado) se fizeram nestes dois anos com pouca fortuna, porque se quizeram fazer com maior cobiça. Logo que cheguei do Reino, disse ao Governador André Vidal que seria bem se fizesse a missão a lugar onde houvesse muitos escravos que resgatar, para que a república experimentasse as utilidades que tinha na nova lei de
Vossa Majestade
V. M.
; mas todos os moradores, assim do Maranhão como do Pará, quiseram que a entrada se fizesse a dar guerra à nação dos Aroans e Nheengaibas, de que se deu conta a
Vossa Majestade
V. M.
, querendo antes escravos tomados que comprados; mas saiu-lhes tanto pelo contrário que, indo a esta emprêsa cento e dez portugueses e todos os índios do Maranhão e Pará, voltaram de lá com perda de gente 464 e reputação, e sem escravos, porque os não quiseram comprar por tão caro preço. Após esta jornada se fizeram duas, uma ao Pacajá pela cobiça do ouro, e outra ao Camuci pela do âmbar, e ambas sem efeito. Para que a do rio dos Amazonas fosse com maior utilidade dos moradores, propus ao Capitão-mor do Pará, Feliciano Correia, e ao sargento-mor, Manuel Gomes, e ao cabo da tropa, Vital Maciel, que êles escolhessem o tempo e o lugar, por onde lhes estivesse melhor fazer a entrada, e por onde entendessem que haveria mais escravos, e assim estava assentado; mas suspendeu-se a jornada pelas causas que tenho referido, mandando o Governador que a tropa não partisse enquanto a do Pacajá não chegava, e que com a mesma gente e canoas fôsse socorrida, como foi; e por se ter passado naquele tempo a monção de entrar pelo rio, se dilatou até esta primavera. Assim que, Senhor, a causa de não se haver feito resgate considerável nestes anos foi porque o Governador, e os do govêrno do Maranhão e Pará, quiseram que as entradas se fizessem a outras partes, de onde esperavam maiores interesses; e para que seja presente a
Vossa Majestade
V. M.
quanto os religiosos da Companhia zelamos não só o bem espiritual das cristandades, senão ainda o temporal do Estado e dos moradores, pelo papel incluso poderá
Vossa Majestade
V. M.
mandar ver as primeiras instruções que dei aos padres que foram ao sertão, e as que levam os que agora vão, que são as mesmas, seguindo nelas, em tudo o que pode 465 haver dúvida, as opiniões mais largas e favoráveis aos portugueses, como também procurei que se seguissem na junta que se fez em Lisboa. Com as almas dos portugueses se não trabalha menos que com a dos índios, e dá Deus tal força de espírito aos missionários nesta parte, que afirmo a
Vossa Majestade
V. M.
que, com ter corrido tanto mundo, e ouvido tantos homens grandes dêle, nunca ouvi sermões que me parecessem verdadeiramente apostólicos, senão no Maranhão. Como os corações são tão obstinados e envelhecidos nos vícios, parece que concorre Deus com maior eficácia ou para sua emenda ou para sua condenação. Houve homem dêstes que disse que o diabo trouxera êstes padres da Companhia ao Maranhão para os divertir de outras partes; porque, se semelhantes sermões se fizeram em Inglaterra, haviam de converter aqueles hereges. Eles, com serem católicos, não se convertem todos, mas são muitos os que se emendam e tratam da reformação de suas vidas, e nenhum houvera que não acabara de se desenganar, se ouviram só estas pregações; mas, Senhor, há pessoas eclesiásticas que pregam e apregoam o contrário, e que de público e de secreto fazem cruel guerra a Jesus Cristo; e como uns desfazem o que outros edificam, não pode a obra ir muito por diante. Procurei neste Estado que todos os religiosos nos conformássemos na doutrina, e, porque o não pude conseguir, 466 passei ao Reino: pedi a junta que
Vossa Majestade
V. M.
mandou fazer dos maiores letrados de todas as profissões; procurei que na mesma junta se achassem os Provinciais das Religiões dêste Estado, para que, sendo testemunhas de tudo e dando também seu voto, ordenassem a seus súbditos o que deviam guardar, e também esta diligência não aproveitou. Êste é o maior ou o único impedimento destas missões, servindo esta desunião de pareceres de grande confusão e perturbação das consciências, não sabendo os homens a quem seguir, e seguindo na vida e na morte a quem lhes fala mais conforme a seus interêsses. Contudo, Senhor, é tanta a força da verdade e da razão, que o partido de Cristo se tem já muito melhorado, e todos os moradores estão quietos e pacíficos, e quási todos desenganados que não podem prevalecer neste Estado contra a evidência da verdade, que nêle é tão manifesta e conhecida, e só apelam alguns para o recurso do Reino, de onde esperam que poderá haver alguma mudança no que
Vossa Majestade
V. M.
tem ordenado, por se não conhecer lá tão claramente a verdade, e por estar longe, e por cuidarem que se pode escurecer e embaraçar com os papéis que os mesmos eclesiásticos têm levado e solicitado, e cada dia mandam e solicitam. O remédio de tudo é um só, e muito fácil, e que muitas vezes tenho representado a
Vossa Majestade
V. M.
, e é que
Vossa Majestade
V. M.
resolutamente mande fechar a porta a todo o requerimento em contrário do que
Vossa Majestade
V. M.
com tanta consideração mandou resolver; e que quem o encontrar ou impedir seja castigado com a demonstração que a matéria merece. Tudo o que se assentou àcêrca dos índios do Maranhão foi com consulta da junta de teólogos, canonistas e legistas, em que se acharam os três lentes de prima, e não houve discrepância de votos; foi com notícias de todas as leis antigas e modernas, e de todos os documentos que sôbre esta 467 matéria havia; foi ajustado com os dois procuradores do Maranhão e Pará, e com o Governador de todo o Estado, que estava nessa corte, e com o Superior dos missionários, que também era procurador geral de todos os índios; e ùltimamente com parecer de todo o Conselho Ultramarino que tudo viu, examinou e aprovou. De onde parece que não fica lugar a inovar cousa alguma, sem grande prejuízo e menos autoridade das leis reais, e perturbação de tudo. Sôbre êste ponto enviei o ano passado papel particular, que
Vossa Majestade
V. M.
pode mandar ver, sendo servido, em que se apontam muitas outras razões de grande pêso, e gravíssimos inconvenientes que do contrário se seguem, ainda ao crédito da mesma fé, que debaixo dos termos da dita lei se tem publicado por todas estas gentilidades. E digo, Senhor, que além da firmeza da lei é necessária demonstração de castigo nos violadores dela, não só pelo que importa ao estabelecimento da missão e aumento da fé, senão ainda ao de toda a monarquia. E dá-me atrevimento, para fazer esta lembrança a
Vossa Majestade
V. M.
, o pêso de tão grande obrigação, e o nome que ainda tenho de prègador de
Vossa Majestade
V. M.
Senhor, os reis são vassalos de Deus, e, se os reis não castigam os seus vassalos, castiga Deus os seus. A causa principal de se não perpetuarem as coroas nas mesmas nações e famílias é a injustiça, ou são as injustiças, como diz a Escritura sagrada; e entre todas as injustiças nenhumas clamam tanto ao céu como as que tiram a liberdade aos que nasceram livres, e as que não pagam o suor aos que 468 trabalham; e êstes são e foram sempre os dois pecados dêste Estado, que ainda têm tantos defensores. A perda do Senhor rei
Dom
D.
Sebastião em África, e o cativeiro de sessenta anos que se seguiu a todo o reino, notaram os autores daquele tempo que foi castigo dos cativeiros, que na costa da mesma África começaram a fazer os nossos primeiros conquistadores, com tão pouca justiça como a que se lê nas mesmas histórias. As injustiças e tiranias, que se têm executado nos naturais destas terras, excedem muito às que se fizeram na África. Em espaço de quarenta anos se mataram e se destruíram por esta costa e sertões mais de dois milhões de índios e mais de quinhentas povoações como grandes cidades, e disto nunca se viu castigo. Pròximamente, no ano de mil seiscentos cincoenta e cinco, se cativaram no rio das Amazonas dois mil índios, entre os quais muitos eram amigos e aliados dos portugueses, e vassalos de
Vossa Majestade
V. M.
, tudo contra a disposição da lei que veio naquele ano a êste Estado, e tudo mandado obrar pelos mesmos que tinham maior obrigação de fazer observar a mesma lei; e também não houve castigo: e não só se requer diante de
Vossa Majestade
V. M.
a impunidade dêstes delitos, senão licença para os continuar! Com grande dôr, e com grande receio de a renovar no ânimo de
Vossa Majestade
V. M.
, digo o que agora direi: mas quere Deus que eu o diga. A El-rei Faraó, porque consentiu no seu reino o injusto cativeiro do povo hebreu, deu-lhe Deus grandes castigos, e um dêles foi tirar-lhe os primogénitos. No ano de 1654, por informação dos procuradores dêste Estado, se passou uma lei com tantas larguezas na matéria do cativeiro dos índios, que depois, sendo
Sua Majestade
S. M.
melhor informado, houve por bem mandá-la revogar; e advertiu-se que neste mesmo ano tirou Deus a
Sua Majestade
S. M.
o primogénito 469 dos filhos e a primogénita das filhas. Senhor, se alguém pedir ou aconselhar a
Vossa Majestade
V. M.
maiores larguezas que as que hoje há nesta matéria, tenha-o
Vossa Majestade
V. M.
por inimigo da vida, e da conservação e da coroa de
Vossa Majestade
V. M.
Dirão porventura (como dizem) que dêstes cativeiros, na forma em que se faziam, depende a conservação e aumento do estado do Maranhão; isto, Senhor, é heresia. Se, por não fazer um pecado venial, se houver de perder Portugal, perca-o
Vossa Majestade
V. M.
e dê por bem empregada tão cristã e tão gloriosa perda; mas digo que é heresia, ainda polìticamente falando, porque sobre os fundamentos da injustiça nenhuma cousa é segura nem permanente; e a experiência o tem mostrado neste mesmo Estado do Maranhão, em que muitos governadores adquiriram grandes riquezas e nenhum dêles as logrou nem elas se lograram; nem há cousa adquirida nesta terra que permaneça, como os mesmos moradores dela confessam, nem ainda que vá por diante, nem negócio que aproveite, nem navio que aqui se faça que tenha bom fim; porque tudo vai misturado com sangue dos pobres, que está sempre clamando ao céu. . . . . . . . . . ... . . . . . . . . . . . . . . .
Se o sangue de um inocente deu tais vozes a Deus, que será o de tantos? E mais Abel, Senhor, salvou-se, e está 470 no céu. E se uma alma que se salva pede vingança, tantos milhares e milhões de almas, que pelas injustiças dêste Estado estão ardendo no inferno, tendo Portugal obrigação de justiça de as encaminhar para o céu, que vingança pedirão a Deus? E sendo isto assim, Senhor, só os que defendem esta justiça são perseguidos; só os que salvam estas almas são afrontados; só os que tomaram à sua conta êste tão grande serviço de Deus têm contra si todos os homens. Sirva-se
Vossa Majestade
V. M.
de mandar considerar que, emquanto as sobreditas tiranias se executavam no Maranhão, nenhuma pessoa houve, eclesiástica nem secular, que zelasse o remédio delas nem da salvação destas almas; e depois que houve quem tomou por sua conta um e outro serviço de Deus, logo houve tantos zelosos que se armaram contra esta obra, sinal manifesto de ser tudo traça e instigação do demónio, para impedir o bem espiritual tanto dos portugueses como dos índios, que uns com os outros se iam ao inferno; e seria desgraça muito para sentir que os ministros do demónio prevalecessem contra os de Cristo, em um reino tão cristão como Portugal. Os outros reinos da cristandade, Senhor, têm por fim a conservação dos vassalos, em ordem à felicidade temporal nesta vida, e à felicidade eterna na outra: o reino de Portugal, de mais dêste fim universal a todos, tem por fim particular e próprio a propagação e a extensão da fé católica nas terras dos gentios, para que Deus o levantou e instituiu; e quanto Portugal mais se ajustar com êste fim, tanto mais certa e segura terá sua conservação; e quanto mais se desviar dêle, tanto mais duvidosa e arriscada. Nas segundas vias dos despachos de
Vossa Majestade
V. M.
espero que
Vossa Majestade
V. M.
haverá mandado deferir a tudo o que representei nos navios do ano passado; e, porque não sei o que poderá 471 ter sucedido, resumo outra vez aqui tudo o que de presente é necessário, para a conservação, aumento e quietação desta cristandade, que são principalmente as quatro cousas seguintes: Primeira: que na lei e regimento de
Vossa Majestade
V. M.
sôbre os índios e missões se não altere cousa alguma, e que a êsse fim se não admita nem defira a requerimento em contrário. Segunda: que os governadores e capitães-mores que vierem a êste Estado sejam pessoas de consciência; e, porque estas não costumam vir cá, que ao menos tragam entendido que mui deveras hão-de ser castigados, se em qualquer cousa quebrarem a dita lei e regimento. Terceira: que os prelados das Religiões sejam tais que as façam guardar a seus religiosos, nem consintam que de público ou secreto as contradigam, e se houver algum religioso desobediente nesta parte, seja mandado para fora do Maranhão. Quarta: que
Vossa Majestade
V. M.
mande vir maior número de religiosos da Companhia, para que ajudem a levar adiante o que têm começado os que cá estamos; porque é o meio único (pôsto que mui trabalhoso para os ditos religiosos) com que só se podem reduzir estas gentilidades. E porque à nossa notícia tem chegado que, contra os missionários que neste Estado servimos a Deus e a
Vossa Majestade
V. M.
, e contra o govêrno da dita missão, se tem presentado a
Vossa Majestade
V. M.
algumas queixas, pedimos humildemente a
Vossa Majestade
V. M.
seja
Vossa Majestade
V. M.
servido mandar-nos dar vista de todas, ainda que sejam das que tocarem ao Estado, porque a todas esperamos satisfazer de maneira, que fique conhecido com grande clareza quão úteis são os missionários da Companhia, não só ao melhoramento espiritual dos portugueses e índios, senão ainda ao temporal de todos. A muito alta e muito poderosa pessoa de
Vossa Majestade
V. M.
guarde 472 Deus, como a cristandade e vassalos de
Vossa Majestade
V. M.
havemos mister. - Maranhão, 20 de Abril de 1657. António Vieira. 474
CARTA LXXX Ao Padre Provincial do Brasil 1658 - Junho 10
Em Junho de 1656 partiram em missão à serra de Ibiapaba os padres António Ribeiro e Pedro de Pedrosa, pelas razões que já se tem escrito por vezes a
Vossa Reverência
V. Rev.a
, levando por ordem que socorressem aqueles cristãos e gentio conforme a sua necessidade espiritual o pedisse e êles o pediam, e que logo avisassem do sítio, dos caminhos, do número, condição da gente, e de todos os outros particulares, para que com estas notícias (que até então se não tinham senão mui confusas) resolvessem os Superiores se se havia de continuar ou não a dita missão. Avisaram os padres que no sítio da serra de lbiapaba 475 havia três aldeias de nação Tobajara, em que contaram até mil e seiscentas almas, e que cedo seriam três mil; que afora esta nação havia ao redor dela muitas outras de língua não geral, alguns dos quais tinham casas e lavouras (que é o indício de serem domésticos) e viviam em paz com os Tobajaras, e que outros com a chegada dos padres vieram pedir e fazer a mesma paz; e que em não muita distância da serra estava o grande rio Pará, habitado de outras muitas nações, não falando nas do Ceará, que fica de ali distante duas semanas de caminho. Com estas esperanças de conversão de almas, ajuntaram os padres algumas dificuldades de menos consideração, do género daquelas que se vencem com a paciência e com amor de Deus, que antes são para desejar que para temer, pois não viemos cá buscar regalos, senão padecer incomodidades e trabalhos por quem tanto padeceu por nós. Destas dificuldades não fizeram caso os padres, e só o fizeram muito da que experimentaram no caminho, por razão dos muitos lagos e rios com que é cortado, e não haver nêles comodidade de embarcação para a passagem, nem de paus grandes de que fazer canoas, àlem de não ser muito seguro em certos passos, por razão dos Tapuias que algumas vezes o infestam. Com êste aviso dos padres chegou outro, de que o Padre António Ribeiro deixara na serra ao Padre Pedro Pedrosa, e se passara só ao Ceará, chamado pelo capelão daquela fortaleza, e por outras pessoas dela, a apaziguar 476 certa rebelião dos índios, como em efeito apaziguou; e a requerimento do Governador André Vidal de Negreiros, que passou por ali naquela ocasião, se deixou ficar o dito Padre, como êle escreve, com os mesmos índios, sem chamar a si seu companheiro ou se ir para êle, que foi cousa que muito se estranhou, por ser a que mais recomendada levavam e a mais importante, e a que mais se observou sempre nesta missão. Por esta causa, e pelo impedimento do caminho, com que se dificultava poderem os padres ser socorridos e visitados, ordenou o Padre Visitador Francisco Gonçalves que os padres desistissem daquela missão, e se recolhessem outra vez ao Maranhão, e assim o escreveu ao Padre António Ribeiro, pelo mesmo barco em que tinha vindo da Baía. Chegou o barco ao Ceará, onde o Padre António Ribeiro estava, e diz que se lhe não deu tal carta do Padre Visitador, antes, acrescentando outro maior absurdo sobre o primeiro, se partiu do Ceará a Pernambuco, pela razão que de lá escreveu ao Padre Provincial, sem cuja resposta voltou outra vez para o Ceará, onde esteve diz que esperando por êle, até o princípio da quaresma dêste ano de 658. De Pernambuco trouxe ordens do Padre Provincial o Padre Ricardo Careu, do que os Padres da serra haviam de fazer: e pois que o barco trazia por regimento que tomasse o Ceará e o Camuci, que são os portos destas costas, nenhum dêles se tomou, sendo cousa em que não há dificuldade, com que os padres ficaram no mesmo estado do que de antes. Houve de voltar êste mesmo barco para Pernambuco, com segundo regimento que tomasse os mesmos portos, levando assim as ordens do Padre Provincial como as do Padre Visitador; e também desta vez não chegaram, porque arribou o barco sem tomar nenhum dos ditos portos. Não se descuidaram os padres em todo êste 477 tempo (foi espaço de ano e meio) em procurar por terra o que por mar não alcançavam. Mandaram três correios, os quais todos por vários acidentes, ou das passagens dos rios ou de temor dos Tapuias, desistiram da viagem, até que ùltimamente, vindo os mesmos padres com os Principais das aldeias, a facilitar os maiores impedimentos do caminho, se venceu êste encantamento, e em dia do Espírito Santo chegaram à primeira aldeia do Maranhão, com novas de que os padres estavam vivos, com saúde e juntos. Trouxeram êstes índios, que foram onze, várias cartas dos padres, e dos Principais de todas as aldeias, nas quais pedem os Principais que se lhe não tirem os padres, nem os queiram obrigar a se saírem das suas terras, e o Principal do Ceará, chamado Algodão, se queixa muito de o Padre António Ribeiro ter deixado a sua gente, e pede que se lhe mande outro padre, em seu lugar; e todos prometem ser verdadeiros filhos da Igreja, e fieis vassalos de
Sua Majestade
S. M.
Os padres em uma dizem que nos índios do Ceará há grandes raízes de heresias dos holandeses, que entre êles deixaram plantados os muitos anos que ali estiveram, os quais, com a falta da doutrina, e com os maus exemplos dos soldados da fortaleza, que sempre são os mais facinorosos e de menos consciência, antes crescem do que se arrancam; e pôsto que o Padre António Ribeiro trabalhou muito e não obrou pouco com êles, tudo isso desassistido nem pode frutificar nem durar muito. Quanto aos índios da serra dizem os padres que são já hoje duas mil e quinhentas almas, que têm bom natural, que já estão todos baptizados, que já se confessam todos e muitos comungam, que esta quaresma tiveram os ofícios divinos com todas as demonstrações de cristandade, e ainda solenidade, por haver entre êles alguns músicos da mesma 478 nação Tobajara, dos que se retiravam de Pernambuco, e que sem dúvida se faz muito fruto, e se espera muito maior, de que já o céu tem colhido suas primícias, porque só dos inocentes que baptizou o Padre Pedro de Pedrosa, diz êle que lhe são mortos mais de quarenta, sendo muito mais os adultos que morrem com os sacramentos e moral certeza de sua salvação. Amam aos padres, dão-lhe todos seus filhos para os ensinarem, como ensinam, a ler, escrever, contar, e a toda a polícia que nêles cabe: nem lhes faltam com o necessário para a vida, segundo sua pobresa e limitação da terra. Sòmente inquieta êstes índios o conhecimento que têm, de que os padres os querem arrancar de suas terras, e passá-los às do Maranhão, o que muitos dêles, particularmente o maior Principal, de nenhuma maneira querem admitir, assim pelo amor natural da pátria, como pelo temor que têm ao trato dos portugueses, de que trazem estudado muitos exemplos, ajudando não pouco a isto a lembrança dos delitos passados, pôsto que perdoados pelos governadores em nome de
Sua Majestade
S. M.
Fomenta este temor a companhia dos retirados de Pernambuco, que como mais culpados temem ainda mais, e como mais ladinos sabem enfeitar melhor os motivos dêste receio. Nem uns e outros estão totalmente esquecidos da amizade e dádivas dos holandeses, com quem comerciavam nesta costa, porque quando olham para si, como êles dizem, vêem aqueles chapéus, aquelas espadas, aquelas ungarinas, e o mais com que se vestem, que tudo lhe deram os holandeses, e os portugueses nada. Finalmente concluem que, se os querem tirar daquelas terras, por serem vassalos de El-rei, 479 que também aquelas terras são de El-rei, e se por serem cristãos e filhos de Deus, que Deus está em toda a parte, e que ali o podem servir também, como no Maranhão. Estas são as razões que os padres e os Principais referem nas suas cartas, com que os padres totalmente desconfiam de os índios haverem de descer sem violência, a qual violência não é menos duvidosa, antes quási impossível e mui arriscada, e de que se pode seguir uma grande ruína, principalmente em tempo que temos guerras apregoadas com os holandeses; e nesta suposição dizem os padres que ficam esperando a última resolução dos Superiores, para ou ficarem ou se virem, acrescentando, porém, que se houverem de vir há-de ser com muita consideração e prevenções, depois de arriscarem não menos que as vidas, representando juntamente quão lastimosa cousa será haverem de deixar aquelas almas, depois de cristãs, para que tornem a viver como gentios, oferecendo-se de mui boa vontade a ficar e padecer com elas. Chegaram as cartas do Maranhão em 9 de Junho dêste ano de 658, e porque não estava aqui, como ainda não está, o Padre Visitador, fizemos com os índios que esperassem até o
São
S.
João, em que o Padre tinha prometido que viria, quando aos 16 do mesmo Junho chegou novo Governador do Estado
Dom
D.
Pedro de Melo, o qual trouxe as três cartas de El-rei que já estavam escritas ao Governador André Vidal, de que com esta se vão as cópias; e em virtude delas nos representou e requereu o Governador, em nome de Sua
Majestade
S. M.
, que os padres se não tirassem da serra, alegando muitas razões do bem comum do Estado e da cristandade, e os danos que do contrário se podiam seguir de tudo, se esta gente desassistida da doutrina e respeito dos padres se tornassem a meter com os holandeses. Pelo que, e porque os índios haviam logo de voltar ao Ceará, 480 com outras ordens de El-rei para aquela fortaleza, e não se podia esperar mais pela vinda do Padre Visitador, consultámos, o Padre Superior desta missão e eu, o que se devia fazer no caso, e se resolveu que os padres se deixassem estar na serra até novas ordens dos Superiores maiores, e que aos mesmos Superiores se representem as razões que há para se continuar aquela missão, as quais por maior são as seguintes:
Primeira
1.a
Porque o mais urgente motivo, que os Superiores tiveram para mandar retirar os padres da missão, foi a desordem de um se apartar do outro, e de o Padre António Ribeiro se ir ao Ceará e a Pernambuco, deixando seu companheiro na serra: mas esta desordem já está emendada, pois já ficam os padres juntos; nem se apartarão outra vez, pois desta lhe foi tão repreendido e estranhado.
Segunda
2.a
Porque a razão fundamental, de não se haver de conservar aquela missão, era não poderem os padres ser socorridos nem visitados: e esta razão cessa totalmente com a fortaleza que El-rei manda fazer no Camuci, que é o pôrto marítimo da serra, por onde se podem socorrer e visitar os padres, e isto sem nenhum empenho nosso, porque é força que El-rei o faça, para mandar o socorro aos soldados, e esta fortaleza se há-de fazer no princípio do ano que vem, em que são as monções.
Terceira
3.a
Porque seria género de crueldade, e impiedade grande, deixar tanto número de almas expostas a perdição tão manifesta, depois de nós as gerarmos a Cristo, e com elas deixarmos juntamente a empresa, e esperança de tantas outras, que por meio daquelas, e debaixo de sua amizade, se podem trazer à Igreja.
Quarta
4.a
Pelo bem comum da república, de quem nós também somos membros, e pelo particular e particularíssimo das outras missões dêste Estado, as quais todas ficaram 481 grandemente danificadas e perturbadas, se os holandeses entrassem outra vez nesta costa, com que totalmente ficará impedido o recurso da Província por terra, e o da Província e de Portugal muito dificultoso.
Quinta
5.a
Porque El-rei, por estas mesmas causas, há-de pedir missionários da Companhia que residam nestas terras e com êstes índios (como diz nas suas cartas e ordena ao Governador lhe avise); e sendo força deferir a instância tão justa e tão poderosa, não seria razão que deixemos agora os índios, que depois havemos de tornar a buscar, não só com certeza de nêste meio se perderem muitas almas mas com muito risco de os perdermos todos, porque a nossa retirada há-de pôr os índios em grandes suspeitas e desconfianças de que se não podem segurar, senão ou metendo-se com os holandeses ou metendo-se mais pelos matos.
Sexta
6.a
Porque se nós nos retirarmos destas cristandades, entrarão os frades nelas, e por conseguinte também nas outras, porque não é justo que êles tenham só as trabalhosas e dificultosas; e os inconvenientes desta mistura com frades bem tem experimentado a Companhia em outras missões, e em nenhuma podem ser maiores que nesta, como já no outro papel se tem representado a Vossa
Reverência
V. Rev.a
.
Sétima
7.a
Porque seria um exemplo mui injurioso para a Companhia vêr-se nêste Estado, e dizer-se em todo o mundo, que deixamos os índios nas gentilidades depois de os baptizarmos, e que só queremos as aldeias onde há descanso e proveito, e que por uma parte publicamos desejos de martírio, e por outra não queremos estar senão onde há comodidades para a vida, e outras muitas afrontas contra 482 a pureza e generosidade de nosso instituto, que quando não sejam verdadeiras têm muito fundamento para o parecerem.
Oitava
8.a
, e em que muito se deve reparar: Porque verdadeiramente parece que tem mostrado Deus que quere que esta missão se continue, e que os padres se não sáiam dela. Porque, tendo-se procurado sete vezes, por mar e por terra, que chegassem a êstes padres as ordens em que os Superiores os mandavam retirar, sempre houve impedimentos extraordinários, para que as ditas ordens ou não fossem ou não chegassem, e, quando agora havia portadores tão certos como êstes índios da serra, ordenou Deus que na mesma semana chegasse o Governador com as novas ordens de El-rei, com que as dos Superiores se hajam de suspender. Sem dúvida tem Deus provido àquelas almas êste meio de sua predestinação, e é infalível haver-se de conseguir.
Nona
9.a
e última. Se a Companhia se há-de parecer comsigo mesma, nós não vemos porque esta missão se haja de desamparar e deixar, quando se não deixa a de Angola em Portugal, a de Canadá em França, as do Japão na Índia, e outras de infinitos perigos e distâncias, sendo que os portadores destas últimas cartas vieram do Camuci em quinze dias, e se tiveram nos rios comodidades de passagem, como a pode haver havendo fortaleza, poderão vir em dez e em menos. Se há tantos que vão de Roma ao Japão por uma alma, não haverá quem vá do Maranhão ao Camuci por tantas? Deus nos dê muito de seu espírito. Por todas estas razões nos parece, Padre Provincial, que a missão da serra de lbiapaba se continue, e que se não deixem as almas por os índios não quererem deixar as suas terras; quanto mais que, morrendo o maior Principal, que é já velho, se espera que quererão. As horas do dia são doze, e a mão de Deus não é abreviada. E 483 não só nos parece que os dois padres que ali estão se não retirem, mas que se lhe acrescentem outros dois, e mais se puder ser, para maior decôro e observância religiosa, e para que mais depressa cultivem a serra que têm entre mãos, e comecem a meter o arado nas terras vizinhas. E pois a residência dos padres com êstes índios importa não só às almas dêles senão à conservação do Estado, e El-rei quere e há-de pedir a dita residência, será esta muito boa ocasião para que nós também lhe peçamos que nos acrescente a renda, vista a dificuldade da missão e o excesso do número dos missionários. E poderá esta renda situar-se em Pernambuco, como a outra está no Rio de Janeiro e na Baía. - Maranhão, 10 de Junho de 1658. Depois de se remeter êste papel ao Padre Provincial chegou o Padre Visitador Francisco Gonçalves, e consultando-se-lhe a matéria se conformou com o mesmo parecer, dizendo que, no caso suposto que os padres possam ser socorridos e visitados, é conveniente que fiquem, pois por esta só razão se mandaram retirar. 10 de Junho de 658. António Vieira.
(source) Vieira, António. Cartas do Padre António Vieira. Coordenadas e anotadas por J. Lúcio d'Azevedo. Tomo segundo. Coimbra, Imprensa da Universidade, 1925. (/source)
11
CARTA IV A Duarte Ribeiro de Macedo 1663 - Fevereiro 13
Senhor. - Com razão chama Vossa
Mercê
V. M.cê
tempestade mà á que me arrancou do Pôrto, e mais quando eu gozava nêle 12 a quietação que há tantos anos busco e me foge, com os outros emolumentos de gôsto e satisfação, que não repito por não agravar as saüdades. Não era bem chegado à nossa Atenas, quando achei ou me achou uma novidade tão grande, como a vinda repentina do Padre
Dom
D.
Abade, e a carta que me leu de seu irmão, que concordava muito com a outra que eu tive de Lisboa. O seu decreto e o meu se passaram juntos. E é muito para dar graças a Deus que, fazendo-se tão pouco caso de
Dom
D.
João da Áustria com oito mil cavalos, se tema tanto a Frei Jorge em uma mula e a António Vieira a pé. O certo é que o Pôrto está mui bem vigiado; conheça Vossa
Mercê
V. M.cê
as sentinelas e guarde-se. As novas do enviado tem muita parte de boas; o amigo João Nunes da Cunha dobrará com elas o sentimento que tem do pouco que se ajuda a paz com as prevenções de guerra. Vi carta sua em que fazia esta queixa. Nos comissários se fala vàriamente: neste correio se espera a nomeação; crê-se que será um dêles Niza. O Marquês de Gouveia está ainda aqui muito contra sua vontade. Deteve por muitos dias a carruagem que por fim despediu, porque as sezões, ainda que mais moderadas, continuam, e o tempo com as neves que caíram vai tão rigoroso que não promete breve convalescença. Eu passo bem por que em toda a parte me faz Deus tanta mercê que acho conformidade com a sua vontade. 13 O mesmo Senhor guarde a Vossa
Mercê
V. M.cê
muitos anos, com os aumentos de sua graça, que a Vossa
Mercê
V. M.cê
muito do coração desejo. Coimbra, 13 de Fevereiro de 1663. - Servo de Vossa
Mercê
V. M.cê
António Vieira. 303
CARTA CLIX A Duarte Ribeiro de Macedo 1670 - Junho 16.
Senhor meu. - A de que
Vossa Senhoria
V. S.a
me fez mercê, escrita em 16 de Maio, recebi a tempo em que já era partido o correio; mas, ainda que estes intervalos sejam grandes para as minhas saudades e consolação que recebo, com ouvir a
Vossa Senhoria
V. S.a
do modo que o sofre a distância, também se me fazem racionais com poupar a
Vossa Senhoria
V. S.a
o tempo, que
Vossa Senhoria
V. S.a
emprega sempre tão frutuosamente, e em matérias de tão diferente importância. Eu aqui pudera não estar ocioso, 304 segundo me instam estes Padres, e muito mais o Padre Geral, a que dê à estampa os meus borrões; mas como a melhor parte dêles foi condenada antes de nascida, e levada a juízo antes de animada (cousa que só sucedeu aos meus embriões antes de serem capazes de pecado original) será necessária toda a fôrça da obediência para vencer tão justificada repugnância. Agora veremos se achamos na regra da fé aquela rectitude que, debaixo do mesmo nome, julgou por menos consoante a ela, o que entendia de outra maneira quem tantos anos tem gastado com as Escrituras Sagradas e seus melhores intérpretes; mas espero em Deus que me há-de ajudar, e tanto mais quanto desassistido de todo o outro património, ainda daquele que, não me merecendo os desterros, nem me os paga nem me os quer dever. Bem conheço quanto perdeu a nossa verdadeira política, em quem tanto contra minha vontade quis ir morrer à Índia. Ajudará Deus a nossa boa tenção, mas não a nossa justiça, nem a nossa cristandade, que cuida que edifica o que destrói. Assim o cuidava também El-rei
Dom
D.
João quando veio de Vila Viçosa, mas desenganou-o a experiência, e os anos que ainda faltam a quem lhe sucedeu; e assim como se lhe parece tanto no juizo, assim com o tempo o fará também nas resoluções. Mas o fruto destas esperanças será para os que têm a idade mais verde e menos decrépita que a minha. As misérias de Madrid me participou o
senhor
sr.
Marquês das Minas, se bem as dissimulam as cartas castelhanas. 305 Eu desejo muito a vida àquele Rei, porque não vejo capacidade na nossa terra de tirar da contrária ocasião o que ela podia oferecer a quem a soubesse manejar. Não quere Deus que nós devamos nada, nem nós lhe queremos pagar o que lhe devemos. Também da nossa côrte se escrevem misérias, e também nestas de Itália se imprimem. Deus guarde a
Vossa Senhoria
V. S.a
muitos anos como desejo. Roma, 16 de Junho de 670. - Capelão e criado de
Vossa Senhoria
V. S.a
António Vieira. 308
CARTA CLXI A Duarte Ribeiro de Macedo 1670 - Setembro 26
Senhor meu. - Grande é aquele mal que até para solicitar os alívios tira o alento. Tal foi o meu estado todo êste mês de Setembro, em que, guarecido dos pés, me cometeu o humor à cabeça, com terríveis dores de dentes e defluxão a uma face, que, ajudadas agora das novas águas e humidades, quando toda Roma sai a tomar no campo a refrescata, fico eu no da minha paciência, experimentando quão desigual é para juntamente resistir aos sentimentos do corpo e aos do espírito. Passando a êstes, já me tenho queixado a
Vossa Senhoria
V. S.a
da tirania do meu zêlo, e da obstinação do meu amor, a que não bastam ingratidões, desenganos e ainda desesperações, para não sentir os males de quem por vontade os quer e sem juízo os não melhora. Aqui se diz que El-rei está livre na Ilha, e que nós não estamos seguros de seus parciais em Portugal. 309 Escrevem os maiores ministros de Castela que agora era o tempo de recuperarem o seu, que assim lhe chamam. As cartas particulares do Reino não dizem tanto; mas dizem alguma coisa, porque insinuam mistérios. O
senhor
sr.
Marquês tem cartas da ilha, que mostra, e eu também as tenho de alguns dos maiores ministros, com que defendo a nossa reputação nesta casa, que é um teatro de todas as nações, e nem todas amigas: mas o que basta para os refutar a êles não é bastante para me convencer a mim. Vejo ir o nosso Embaixador de Holanda a Inglaterra e oiço que há-de tornar; vejo eleger Embaixador da França (bem escusada eleição onde
Vossa Senhoria
V. S.a
está), e que se escusam dela; vejo sair de Lisboa em uma esquadra tão pequena três cabos tão grandes; e sôbretudo vejo a nossa desatenção e o nosso descuido, antes o cuidado que pomos em aumentar inimigos dentro e não conservar amigos fora, nem aplicar os meios com que só se concilia o respeito de uns e a constância dos outros. Dizem que temos valor, mas que nos falta dinheiro e união; e todos nos prognosticam os fados que naturalmente se seguem destas infelizes premissas. 310 Eu não quisera crer em profecias, como tão escandalizado delas; mas também não posso negar o que tenho visto e vou vendo. Se fiara mais dêste papel, mandara a
Vossa Senhoria
V. S.a
um em que há duzentos anos está escrito tudo o que vimos nêstes quatro últimos, e só falta o que já se começa a dizer. Mas, como tudo é para fins de grande glória de Deus, e daqueles a quem êle faz mercês acinte, não acabo de me desconsolar e desanimar de todo.
Vossa Senhoria
V. S.a
, pelo que lhe merece o meu coração, me faça mercê de participar alguma coisa do que com isto pode ter analogia, principalmente se são certas as
resoluções
resoluçôes
que em nosso despeito se têm tomado, conforme dizem, em Inglaterra. A da Raínha, que Deus guarde, quanto ao divórcio, não posso crer, estando tão bemquista do reino como o mundo publica. Mais me temo do amor de seu irmão que do desamor de seu marido ou vassalos. Esperamos ao
senhor
sr.
Bispo de Laon, a quem quisera mais capelos vagos, porque os Eminentíssimos, apesar dos anos, teimam a viver. O Padre Confessor da Princesa, nossa senhora, me dá boas esperanças do que tanto se deseja. O da Raínha de Castela está nesta casa, e todos os castelhanos dizem lindezas sôbre o matrimónio, em cuja validade falam de maneira que se consideram hoje mais herdeiros de Portugal 311 que em tempo de Filipe II. Por todos os modos nos fazem a guerra que podem, e onde têm tão poderosa parcialidade qualquer rumor basta, se não para produzir grandes males, para impedir grandes bens. O Marquês trabalha com juízo, indústria e valor, e foi a mais cabal eleição que podia fazer Portugal; mas peleja com armas muito desiguais, ainda que destrissimamente meneadas. Esperamos o parto dos bispados, que em Portugal se suspiram com maior desejo do particular que zêlo do comum. Parece que o falar com
Vossa Senhoria
V. S.a
alivia; mas a cabeça e os dentes, que não se governam pelo racional, me obrigam a não ir por diante. Julgue
Vossa Senhoria
V. S.a
como poderá prevenir papéis para a estampa quem não pode continuar tão poucas regras. Só por milagre da obediência poderei fazer alguma coisa, de que darei conta a
Vossa Senhoria
V. S.a
Guarde Deus a
Vossa Senhoria
V. S.a
muitos anos como desejo. Roma, 26 de Setembro de 670. - Capelão e criado de
Vossa Senhoria
V. S.a
António Vieira. 315
CARTA CLXIII A Duarte Ribeiro de Macedo 1670 - Novembro 18
Senhor meu. - Bem necessitava de tão grande alívio o estado em que me achou esta carta de
Vossa Senhoria
V. S.a
, de 24 de Outubro, mal convalescido de uma febre com que me receberam os primeiros rigores do inverno, para que me não queixasse das calmas do estio. Sinal certo que não estão 316 as causas no tempo, senão no sujeito, a quem todos os elementos avisam da brevidade com que caminha a se resolver no mais baixo dêles. Tenha-me
Vossa Senhoria
V. S.a
lástima, porque nem tudo isto basta para acabar de me esquecer dêste mundo, e o tratar como muito bem sei que êle merece, para que nem no engano tenha alguma desculpa. Mas, porque não é razão que eu repita a
Vossa Senhoria
V. S.a
os meus trabalhos, quando experimento a verdade de coração com que
Vossa Senhoria
V. S.a
os sente, que direi a
Vossa Senhoria
V. S.a
de tudo o que
Vossa Senhoria
V. S.a
me diz? Primeiro que tudo digo, senhor, que li as cartas de
Vossa Senhoria
V. S.a
, escritas, não à Raínha, mas para a Raínha; e, depois de admirar a compreensão, juízo e estilo delas com a veneração que merecem, e desejar beijar mil vezes a mão que as escreveu, afirmo a
Vossa Senhoria
V. S.a
que me rebenta o coração de zêlo, de dôr e de raiva, por ver que seja tal a nossa nação que tenha a
Vossa Senhoria
V. S.a
em França, e não tão junto do Príncipe que nunca se apartara do seu lado. Não digo que o há-de castigar Deus, porque já o vejo castigado, e esta é a origem primeira do seu e nosso castigo. As desatenções de Lisboa, que
Vossa Senhoria
V. S.a
experimenta, se padecem igualmente cá, e tanto mais quanto é maior a distância e as dependências mais presentes. Foi o Próprio, e deteve-se perto de três meses em Lisboa, e em quatro correios ordinários que neste tempo vieram se não respondeu uma palavra aos negócios que dependiam tanto da resposta, que sem ela nem se podia dar um passo nem ainda introduzirem-se com o fundamento que convinha. O Marquês verdadeiramente faz tudo o que deve e pode 317 um grande, prudente e zeloso ministro; mas que importa que êle trace e disponha, se tudo quanto cá se arma em Portugal se descompõe? Os maiores poderes, aqui como em toda a parte, são as apreensões do temor e do interêsse; para as segundas falta o cabedal, e para as primeiras, ainda que poderá obrar muito a indústria, tudo quanto com ela se começa a obrar se desfaz com as resoluções dos nossos Conselhos, as quais são tão públicas que não há banqueiro em Lisboa que as não escreva a Roma, com que se riem dos nossos medos, e tudo quanto se tem intentado é para acrescentar mais o descrédito. Emfim em Portugal querem ter e ser bispos de qualquer modo, e assim o serão por muito mau modo e o de mais perigosas consequências. João de Roxas deu um escrito, em que prometeu que o Príncipe e seus sucessores aceitariam os bispos ad suplicationem, e que nunca pretenderiam outro direito; e, como êste escrito não foi pedido sem grandes fins, nêle se faz todo o fundamento de os conseguirem, e assim têm resoluto que não se hão-de dar os bispados senão nesta forma, parecendo a questão de vocábulo e topando só na substância. Avisou-se a Portugal, e de lá se responde, com piedade santa, que se aceitem de qualquer modo, fazendo um protesto por parte do direito do Padroado, de que são e hão-de ser juizes os mesmos a quem importa que nós o não tenhamos. Este é o estado em que aqui estão os negócios; e estão aqui assim porque nós estamos assim em Portugal. Tudo 318 isto fio só de
Vossa Senhoria
V. S.a
, e não o fiara nem fiarei de outra pessoa, porque o maior crime que hoje se estranha, e ainda castiga, na nossa terra é sentir mal do govêrno, com o que o govêrno se lisonjeia, e os males não se sentem ainda que se padeçam. Para que
Vossa Senhoria
V. S.a
não estranhe a resposta dos avisos sôbre Batevilla, os quais eram tão bem fundados que, desejando êle que eu o visse, e mandou-me o significar por pessoas muito grandes, eu o não quís fazer nem usar das imunidades do meu hábito, por não parecer do número dos que entravam em sua casa, constando me lá e cá que tenho maiores obrigações aos castelhanos que aos portugueses. Estas são as nossas francesadas, e êste é o mal francês de que nos não havemos de livrar por mais que suemos. O nosso Núncio, estando embarcado em Liorne, tomou o caminho por terra, porque se diz aqui que em Lisboa não havia de ser recebido sem primeiro chegar a investidura dos bispados; e assim será, ainda que se não detenha muito no caminho, mas na forma que tenho dito a
Vossa Senhoria
V. S.a
Também dizem que há-de chegar a essa corte, onde foi bem aceito, e que vai estabelecer certos intentos em ordem ao futuro conclave. Se aí fôr, estimarei que
Vossa Senhoria
V. S.a
por minha conta lhe faça um cumprimento, porque se dá por meu amigo, e me importa tê-lo propício para certo intento, e importará muito que entenda êle que
Vossa Senhoria
V. S.a
me sabe o nome e me faz mercê, e que eu informei a
Vossa Senhoria
V. S.a
de suas qualidades, que verdadeiramente tenho por muito merecedoras do ofício, e que há-de satisfazer nêle às obrigações da terra sem faltar às do céu. 319 O estado dos negócios de Inglaterra estimo quanto não posso encarecer a
Vossa Senhoria
V. S.a
, posto que também estou fora da graça daquela Majestade, por entender que segui mais as partes de Lisboa que as da Ilha Terceira, no sermão em que me obrigaram a fazer um manifesto, em que cuido falei com mais decôro que o tão bem visto e premiado Catástrofe.
Vossa Senhoria
V. S.a
não espere nem agradecimento nem aprovação, e obre só por Deus tudo o que obrar, ao menos em desempenho das prendas com que tanto entre todos os homens singularizou a pessoa de
Vossa Senhoria
V. S.a
Aqui chegou aviso, e a mim por boas vias, que o nosso Duque estava casado em França com Mademoiselle de Rieux, e que
Sua Majestade
S. M.
Cristianíssima tinha dado seu consenso; mas de Lisboa não se fala palavra desta matéria. O Duque me mostrou sempre as cartas que recebeu de
Vossa Senhoria
V. S.a
, e do Embaixador de Holanda quando ali esteve, sôbre esta matéria; e por cá se falava noutros casamentos, assim de Flandres como de Castela. Se fôr assim, sirva-se
Vossa Senhoria
V. S.a
dizer-me que senhora é esta. 320 Em Lisboa me mostrou Feliciano Dourado um livro francês intitulado Corona Mystica, cujo autor tomei em lembrança, mas não acho a memória. Entendo que foi dedicado a Pio V; é juntamente teólogo e jurista, e de língua mais antiga que moderna. Não o acho em Roma pelo título, mas tenho por sem dúvida que pelo nome se achará. Estimarei que, se
Vossa Senhoria
V. S.a
não tem notícia dêste autor, mande
Vossa Senhoria
V. S.a
fazer diligência por êle, e me faça
Vossa Senhoria
V. S.a
mercê avisar do nome e ano em que foi estampado. Os meus achaques me apartam muito do prelo, mas não deixo de trabalhar alguma coisa nas horas sucessivas, que são poucas, e animado com o favor de
Vossa Senhoria
V. S.a
se alentará a minha fraqueza a mais ainda do que pode. Meu senhor, Deus guarde a
Vossa Senhoria
V. S.a
muitos anos, como desejo, e com todas as felicidades que
Vossa Senhoria
V. S.a
merece, que são todas as que o meu coração pode querer. Roma, 18 de Novembro de 1670 - Humilde criado e maior venerador da pessoa de
Vossa Senhoria
V. S.a
António Vieira.