DE DIÓFANES. LIV.I.
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mo erão amados dos vaſſallos, porque em
ſeus Dominios davão leis a juſtiça, e a cle-
mencia, e o ſeu exemplo a melhor direcção
para os costumes; e ainda que ſe estendia
ſeguirão o rumo das felicidades, e não ſe-
ria dilatada a ſua auſencia, era grande a
triſteza de ſeus vaſſallos, que ſó relignados
nas vontades daquelles Principes querião moſ
trar com canticos, que as lagrimas erão naſ-
cidas do jubilo; mas na deſpedida ſe decla-
rárão filhas da ſaudade, a qual conſolavão
com o Principe Bireno, a quem os poucos
annos diſpensava a aſſiſtencia daquelles Jo-
gos.
Apenas perdêrão de viſta as ſaudosas
praias, quando enſoberbecendo-ſe as ondas,
parecia que ameaçavão aos navegantes, in-
do a encontrar-ſe com elles. Pouco a pou-
co ſe foi cubrindo as feas nuvens o Ceo,
e ſe trocou o dia em noite, moſtrando-se
no furiolo vento a formidavel imagem da
morte. Já os Marinheiros eſquecidos das
grinaldas de flores, com que havião ſahido
de Thebas, ſe repreſentava, que Neptuno,
apertando o ſoberbo tridente, vinha contra
elles irado; pelo que, dando vozes, que-
rião mover a ſua compaixão. Diofanes com
ſocego animava a gente, e enxugava as la-
grimas da filha, ao meſmo tempo, em que
a prudente conſorte, não obſtante a gravi-
da-
4 AVENTURAS
dade do perigo, havia mandado o querido
filho a tomar parte na fadiga, lembrando-
ſe de que aſſim ſe faz aos ſervos menos pe-
zado o trabalho, e que parece que os ele-
mentos reſpeitão os Principes, que não te-
mem os contratempos, nem ſe negão aos
ſeus rigores. Quando ceſſou a borraſca, deſ-
cançou a maior parte da gente; porque não
advertião que a deſgraça faz maior empre-
go, por andar vigilante nos deſcuidos;
e depois de ſe haverem rendido a Morfeo, ſe
achárão vencidos de duas náos Argolinas;
que como aquelles soberanos eſtavão deſti-
nados para os mais raros trabalhos, não foi
muito que ſe desbarataſſem as da ſua eſqua-
dra, indo arribar a Thebas, onde com in-
explicavel ſentimento choravão perſuadidos
de que as ondas tragarião a ſeus amados Se-
nhores; e como havia ſido, mais atrevida a
deſgraça, quando eſtes ſe vírão em mãos
inimigas, querendo defender-ſe, foi inutil
toda a diligencia pela vantagem, que já lhes
havião ganhado. Clymenea com igual valor,
que piedade, animava os que pelejavão, e
acudia aos feridos, não baſtando a morte
do amado filho, que acabára á viſta de ſeus
olhos,para dar mais lugar á mágoa, que
á fortaleza, e com perda de muita gente
os cativárão.
Paſſados dous dias da ſua deſgraça,
che-
chegárão os barbaros ao ſeu porto, para on-
de o rigor da deſventura havia conduzido a
Diofanes, e ſua deſconſolada familia, que
tendo lugar para os magoados deſafogos,
choravão a morte de Almeno, ſuſpiravão
pela liberdade, e não perdião a lembrança
dos cuidados, e amantes delirios de Arneſ
to, que com finiſſimos extremos havia per-
tendido a bella Hemirena. Não ſe ouvião
naquelle deſembarque mais que os laſtimo-
ſos clamores ao Ceo, com que huns ſe lem-
bravão dos que havião deixado, e outros
choravão ſua triſte eſcravidão.Diofanes, e
Clymenea (a quem mais magoava a filha,
que levavão) com inexplicavel conformida-
de a diſpunhão, pata trocar os deſcanços
pelas fadigas; e Hemirena diſcretamente af-
flicta animava a magoada mãi, dizendo:
Suſpendei, Senhora, as correntes do
amargo pranto, ſe acaſo mais vos affligem
a meu reſpeito os pezado grilhões da eſcra-
vidão: nem ſeja cruel deſpertador do voſſo
cuidado a perigoſa idade, em que me ve-
des; que eu juro aos Deoſes, que me ſuſten-
tão, fazer sempre acções dignas de quem
teve lugar nas voſſas entranhas. A eſte tem-
po, em que as lagrimas, e ſuſpiros mais vi-
vamente expreſſavão o ſentimento, ſe repar-
tírão os eſcravos, negando a filha aos olhos
do mãi; e Diofanes, por chegar mal feri-
do,
6 AVENTURAS
do, o venderão para Corintho por preço
muito limitado, entendendo teria poucos
dias de vida; e como via chegar o tempo
da ſua ſeparação: Amada filha, (diſſe) já
que a tão miſeravel eſtado te reduzio a mi-
nha cruel fortuna, conſerva ſem deſmaios
as ſolidas doutrinas da tua educação, o ex-
ercicio das virtudes, e a lembrança da diſ-
tinção, com que naſceſte, para ſempre ſe-
rem nobres as tuas acções: teme os Deofes,
ama conſtante o decóro, deſpreza o ocio,
e ſerve o teu destino. Ao que Hemirena ſó
reſpondia com o pranto. E voltando Diofa-
nes os triſstes olhos para Clymenea: Confor-
te amada, (lhe diſſe) vive, e conſerva na
fortaleza do animo o melhor inſtrumento pa-
ra as victorias, e reſiſste fiel aos aſſaoltos da
deſventura. A eſtas palavras reſpondeo a af-
flicta Clymenea, apertando em ſeus braços
ora a Diofanes, ora a Hemirena: Conforte
amado, querida filha,filha das minhas en-
tranhas, eu vos deixo, mas não eu, que o
fado adverſo de vós me aparta. Ai de mim!
Vivo, morro, ſonho, ou que ſinto? O' Deo-
ſes benignos, o voſſo poder poder me ampare.
Chegava ſuavemente o roſto ora a hum,
ora a outro, que reciprocamente em lagri-
mas ſe banhavão, quando já aquelles tyran-
nos enfadados de tão larga deſpedida os ſe-
parárão; e deixando a Hemirena deſmaia-
da,
DE DIÓFANES. LIV. I 7
da levárão Climenea, que em quanto o per-
mittio a diſtancia, voltava em continuos ſo-
luços, buſcando com os olhos o ſeu ultimo
allivio. Diofanes ſe recolheo a huma peque-
na caſa, onde determinárão ſe lhe curaſſem
as feridas; Hemirena mal reſtituida aos ſen-
tidos foi levada a caſa de Hortelio, Capi-
tão de huma das náos.
Os pezares apoſtavão ver-lhe extincto
o ſoffrimento, porque tambem lhe faltava
a ſaude; e quando a principiava a coniliar,
entrou a cruel inveja no coração de Anchi-
zi, filha de Hortelio, que, como de cada
vez via reſplandecer mais a ſua formoſura
na agradavel moderação, com que padecia
os deſprezos, os caſtigos, e a fome, exco-
gitava com a ſua ferocidade os meios, que
podia haver, para quebrantar tanta formo-
ſura, e tão amavel, como conſtante virtu-
de. A compaixão, com que Hortelio obſer-
vava as bellas qualidades de Hemirena, lhe
reforçava os tormentos, pelos novos traba-
lhos, que lhe cauſava a abominavel inveja:
e como os parentes daquelles barbaros, e
mais peſſoas, que a vião, admiravão a ſua
belleza, e grata ſeveridade, tomou Anchi-
zia o acordo de a mandar trabalhar para o
campo, recommendando aos rigores do tem-
po os deſmaios da formoſura.
Turnio, Paſtor dos rebanhos de Car-
min-
8 Aventuras
mindo, irmão de nchizia, namorado de
Hemirena pedia a Anchizia, quizeſſe con-
ſentir que déſſe a mão de eſpola, e lhe
diſſe: Sabei, ſenhora, que o antor, que
nem perdoa aos Paſtores, me traz á voſſa
preſença, para que me concedais para eſpo-
ſa a belle Hemirena; pelo que me offereço
em ſeu lugar para voſſo eſcravo; porque
depois que eu a vi, as ovelhas come de noi-
te o lobo, os cordeirinhos morrem, faltan-
do-lhes o leite, as cabras fogem, e os car-
neiros ſe me furtão, porque ſó me lembro
de Hemirena. Anchizia, que com enfado o
eſtava ouvindo, lhe perguntou, qual era a
cauſa de tanto exceſſo, pois havião mais
bellas Paſtoras, e Hemirena era ſoberba?
Ao que lhe reſpondeo com verdadeira ſin-
ceridade: Ah, ſenhora, que vós não a viſ-
tes, como eu a vejo, ou creio que eſtais
zombando , pois todos no campo dizem o
meſmo, e que ſois tyranna em o mal, que
a tratais. A primeira vez, que eu a vi, eſ
tava faltando a hum homen, que dizia ſer
ſeu pai, que aqui perto ſe curára das feri-
das, que havia recebido no combate, e que
no dia ſeguinte havia de fazer jornada com
ſeus senhores; e ainda qua as meninas dos
olhos de Hemirena ſe eſtavão lavando em
lagrimas, ella eſtava tão formoſa, que nin-
guem a via que a não amaſſe: e voſſo ir-
mão
DE DIÓFANES. LIV. I.9
mão Carnindo então meſmo dizia: Aquella
belleza ſem affectação, nem enfeites; aquel-
la natural, e agradavel modeſtia, e aquella
prudencia diſcreta, em cada palavra das
poucas, que diz, parece que dilata o ſeu
imperio nos corações. E iſto dizia elle lá a
hum da Cidade; mas eu tomei ſentido, e
não me eſquece. Ah que ſe vós a viſſeis no
trabalho ſem levantar os olhos; e quando o
vento, e a chuva ſem compaixõ a perſe-
guem, fazendo inveja ás açucenas; ou ſen-
do a injuria das roſas, quando o Sol, e o
trabalho a caçõa!Em fim vós me haveis
de valer, porque eu morro ſem remedio;
e ainda que ella não me attende, e por lá
todos a querem, eu lhe quero mais que to-
dos: e Carmindo, que ſabe quanto eu a eſ
timo, e não ha de ſer contra mim. Vai-te,
que já me cança o ſoffrer-t, lhe reſpondeo
Anchizia: tu fallas como ruſtico, e Carmin-
do como neſcio.
Dizendo eſtas palavras, ſe retirou,
deixando deſconſoladiſſimo o pobre Paſtor,
em que a ſinceridade competia com o affe-
cto; pelo que determinada buſcava que lhe
tiraſſe a vida. A' noite, em ſe recolhendo
Hemirena para caſa afficta, e cada vez
mais cançada, achou Anchizia em tal ex-
tremo colerica, que, tratando-a muito mal,
a fez recolher a huma caſa, onde determi-
B ii na-
10 AVENTURAS
nava que a mataſſe a fome. Chegando pou-
co depois Carmindo, e lembrando-lhe o que
ouvíra a Turnio, quiz fallar a Hemirena;
e ſabendo da cruel ſentença, que ella tinha
ouvido, originou tal deſordem, que a todos
fazia horror ouvir as palavras deſconcerta-
das, e os deſordenados gritos, que produ-
zião a raiva, e odio (disformes partos da
inveja.) Foi Hemirena tirada do carcere
privado, em que eſteve tres dias; e vendo
a deſunião, que ella ſem culpa occaſionára,
ſe laçou aos pés de Anchizia, a quem com
muitas lagrimas diſſe: Caſtigai-me, ſenho-
ra , conforme vos dictar a minha inutilida-
de. Eu vejo que não tenho ſabido ſervir-
vos, pelo que he bem juſtificado o voſſo
aborrecimento. Eu amo o voſſo rigor, pois
que o mereço, quanto me afflige que voſſo
i rmão queira valer-me; e ſe tendes huma-
nos ſentimentos, por compaixão me tirai a
vida, antes que os Deoſes ſoberanos deixem
de fortalecer-me. Ouvindo eſtas palavras An-
chizia, gritou mais alto de confuſa, dizen-
do: Vai-te da minha preſença, pois que não
ſou inſenſivel, como tu: e ſabe que já nem
quero dar-te a morte, porque nem aſſim deſ-
cances; e para que os teus olhos não dila-
tem o ſeu imperio em os corações, eu os
ſaberei tirar. E inveſtindo furioſa como a
tirar-lhos, Carmindo a deteve; e depois de
hum
DE DIÓFANES. LIV. I. II
hum largo trabalho conſentio que ſe vendeſ-
ſe para fóra do Reino, por lhe ſer occulto
que a pertendião huns eſtrangeiros, que por
ſua belleza a deſejavão offerecer a Beraniza,
Princeza de Athenas. Em o dia ſeguinte ſe
celebrou a venda, indo Hemirena para ou-
tro dominio novamente afflicta, e aſſuſta-
da.
Turnio, ſabendo aquella novidade, e
antevendo acabar a ſua eſperança, ſe quei-
xava de ſua deſgraça, dizendo: Ai de mim!
Que nome terá eſte mal, de que eu acabo
a vida? Já não vejo a eſtrella da alva, os
rios já correm turbos.Ditoſos cordeirinhos,
que não ſentís o que eu padeço! Onde eſtá
a formoſura, que fazia o dia mais claro?
Eu me queixava pelo que via, agora vejo o
de que morro. Não quero guardar os reba-
nhos, nem já me guardei a mim, a ver
ſe me matão os lobos. Onde eſtou? Não ſei
que faço. Hemirena, Hemirena. A eſte tem-
po, ouvindo o éco, em mais delirios dizia
deſconfiado: Mas ai que eſtão zombando de
mim outros Paſtores! Zombem embora, que
eu de todos me hei de rir, quando morrer.
Mas que digo? Eu eſtou louco? Pois não
me fallão, e ouço vozes? Não ſei on-
de eſtá Hemirena; mas eu a ſinto comigo:
e aſſim louco, ou perdido vou correndo a
buſcalia. Chegando o pobre Paſtor e caſa,
e
12 AVENTURAS
e ſabendo que fora os eſtrangeiro a
innocente cauſa de seus deſatinos, caminhou
depreſſa, tomando o acordo de ſe não ſe-
parar da porta daquella caſa, para onde He-
mirena ſe havia recolhido; e perdendo de
todo a pequena parte, que áquelle tempo
tinha de entendimento, ora tocava na flau-
ta pastoril tão fortemente, que parecia que-
rer perder o alento; ora cantava canções,
com que, quando guardava os rebanhos,
lhe dizia o ſeu amor; mas tudo correndo-
lhe as lagrimas: e era tal a força, com que
cantava, que pela muita diſtancia, em que
ſe ouvia, ninguem crêra que era uma ſó
voz, ſe ſe não viſſe, e o ſuccſſo o não a-
creditára. Em o quinto dia de ſeu lacrimo-
ſo canto ſe callou, rendendo o alento nas
mãos da morte, ſem que até alli peſſoa al-
guma pudeſſe delle conseguir o tirar-ſe da-
quelle lugar, ou que a deixaſſe aquelle exer-
cicio, que a ſua amante loucura havia em-
prendido, pois não crendo na auſencia de
Hemirena, dizia que a eſcondião, e queria
que onde quer que ella eſtava ouviſſe que
elle ſe não eſquecia, nem queria mais deſ-
canço, que em buſcar a ſua compaixão, a
qual eſperava que a obrigaſſe a fallar-lhe:
que iſto meſmo reſpondia cantando, porque
nem perdeſſe aquelle tempo.
Hemirena, que logo havia partido pa-
ra
DE DIÓFANES. LIV.I 13
ra Athenas, ignorando os effeitos de ſua
candida belleza, chegou ſer offerecida a
Beraniza, que moſtrando-ſe agradecida a
Arteniſto, a acceitou com moſtras de con-
tentamento, e ordenou ſe lhe déſſe bom a-
poſento, e foſſe bem tratada; e como na-
quelle dia eſtava para ſahir á caça, mandou
foſſe a deſcançar, e que no ſeguinte tornaſ-
ſe á ſua preſença, pois queria ſaber os coſ-
tumes do ſeu paiz. Logo forão vella as ſer-
vas de Bereniza, que com agrado a cumpri-
mentárão, e provêrão no preciſo, pois não
tinha mais que o bom veſtido, com que fo-
ra offerecida. No dia foi levada á
preſença das Princezas Beraniza, e Arge-
nea, e com aquelle agazalho, e urbanida-
de, com que as Mageſtades fazem docemen-
te eſcravos os seus vaſſallos, lhe perguntá-
rão os ſucceſſos da viagem, em que a cati-
várão: a que logo reſpondêrão as lagrimas
de Hemirena, que com a melhor rhetorica
fazião a narração de ſeus infortunios; e co-
mo quem ſabe mandar, não ignora a arte
de obedecer, lhe diſſe: Naſci em Thebas;
e indo ver huns Jogos públicos de paiz eſ-
tranho, huma tormenta me negou o porto,
que buſcava, e conduzio ás mãos de barba-
ros inimigos; e quando eu deſcançava, ſo-
nhando com a bonança, me deſpertou a deſ-
graça, para chorar com a cordo, que os tra-
ba-
14 AVENTURAS
balhos durão ſempre, e he falſo qualquer
pequeno deſcanço. Os que podião manear
as armas, as tomárão, jurando não largal-
las, em quanto lhes duraſſe a vida: o que
ſuccedeo á maior parte da gente; mas não
tiverão todos tanta fortuna, que não foſſe-
mos cativos. Não ſe ouvião mais que os triſ-
tes clamores dos que pediamos ſocorro aos
Ceos, ſem que ſe moveſſem de noſſas vo-
zes, ou para que com horrendos trabalhos
nos fizeſſemos dignos de felicidades, ou por-
que não as gozaſſemos ſem os meritos, que
nas fadigas ſe alcanção. De que vivião teus
pais? lhe perguntou Beraniza, parecendo-
lhe que ſabendo Hemirena explicar-ſe tão
agradavelmente, não ſeria mulher ordinaria.
Ao que reſpondeo depois de hum pequeno
intervallo, em que moſtrou a renitencia,
que tinha em dizello: Duvido, Senhora, ſe
meus pais me ordenárão, que o não reve-
laſſe, e aſſim eſpero que a voſſa grandeza
me diſpenſe de reſponder-vos. Baſta. (lhe
diſſe) Continúa a tua hiſtoria. Mas dize-
me: Como conſentírão ſepararem-ſe de ti
os que havião ſido origem de tanta belleza,
e diſcrição? Muito pedírão aos barbaros
(lhe respondeo) que nos dividiſſem;
mas não quizerão deixar de fazer o primei-
ro enſaio da ſua tyrannia, ou talvez deve-
rião fazer aſſim a cruel partilha. A meus
pais
DE DIÓFANES. LIV.I. 15
pais naquelle triſte caſo parecia ſe chegava
o ultimo tranſe, pois na preciſa deſpedida
moſtravão as mais vivas repreſentações da
morte. Deſejava eu perder alli os ultimos a-
lentos da vida, para diminuir a primeira
cauſa de ſeu juſto cuidade. Ambos com tre-
mulas vozes moſtravão quererem dizer-me:
A Deos; mas ſem acabarem de deſpedir-ſe.
Neſta incrivel conſternação, vendo tambem
que os barbaros nos maltratavão enfadados
de tão larga deſpedida, perdi os ſentidos.
Tornando á inteira reſtituição delles, me
vi em huma caſa ſem pai, mãi, ou peſſoa
alguma de minha nação, e com repetido
pranto, e mal articuladas palavras pergun-
tava pelos meus, ſem que eu de alguem foſ-
se entendida. Erão continuos os clamores,
com que ſe explicava a minh ſem igual ſau-
dade; e ſem allivio, conſolação, ou eſpe-
rança, perdi o amor da vida, porque ſó me
liſonjeavão as recordações da morte. A luz
do dia ſempre me pareceo eſcura, e muito
breve as ſombras da noite, que me retira-
vão de ver huns racionaes, que temia como
brutos ferozes. Muitos dias paſſeis, ſervin-
do-me ſó de alimento a agua, que bebia;
e principiando a experimentar huma deſgra-
çada melhora, em pareceo ſe faria immen-
o o meu mal.
Os dias paſſava em continuas lagrimas,
e
16AVENTURAS
e ſuſpiros; as noites em mil ſonhos, que
com falſas alegrias me enganavão, crendo
humas vezes que me via ſuſpiradapatria;
e outras que encontrava a meus carinhoſos
pais, a quem dando logo os braços, dizia
com incrivel alvoroço: Chegou em fim a
ſer ditoſa a minha eſperança, pois alcanço
a felicidade de ver-vos. E como o coração,
onde são domeſticos os prazeres, nem con-
ſente nas ſombras de alegria, logo me ad-
vertia o receio ſerem ſeus eſpiritos bemaven-
turados, que havndo compaixão a tantos
infortunios, talvez vieſſem a fortalecer-me
dos campos ditoſos, onde entre ſolidos pra-
zeres eſtão as almas gozando de ſuas virtu-
des: e com hum mar de lagrimas ſe me fin-
gia no deſacordo voltar os olhos aos Ceos,
dizendo: Vós, que ſabeis qual he a conſo-
lação, que recebo em vellos, não confin-
tais que eu delles me aperte. He inexplica-
vel a alegria, que eu aſſim eſtava receben-
do, a qual não era como as que dão os di-
vertimentos, de que ſempre ouvi dizer que
ſe envenenavão as gentes, e ſe geravão os
inquietos remordimentos; qu como eſta era
a mais bem naſcida filha da razão, tudo era
aquella feliz tranquillidade, que mais arre-
bata, quanto mais a ella nos entregamos.
Neſtas ſuaves conſiderações acordava, tor-
nando novamente a chorar o terem ſido mais
di-
DE DIÓFANES. LIV.I. 17
ditoſas aquellas que eſtas lagrimas: e então
mais vivamente voltando para os benignos
Deoſes, lhes dizia: Antes me entregai ao
poder das Furias, que naufraguem no turbo
Lethes os aviſos de meus bons progenito-
res. Oh quantos são delices os que chegão
a ver todas as luzes da virtude,e lhe ſabem
dar o verdadeiro culto, deixando de pertur-
bar a paz dos que a amão!
Foſte bem tratada neſſas caſa? lhe per-
guntou Argenea. Os primeiros mezes, (re-
ſpondeo Hemirena) como a minha larga
moleſtia me não dava alento para ſervillos,
me aſſiſtia huma velha caritativa: e alli hião
todos ver-me, como ſe foſſe bicho de feitio
eſtranho, trazido dos mais remotos confins
do Mundo; e como Hortelio, antes de ir
continuar a ſeu corſo, deixou recommenda-
do a ſeus filhos Carmindo, e Anchizi, que
ſe eu tiveſſe inteira melhora, me conduziſ-
ſem á ſua meza; porque ainda que ignora-
vão quem eu era, devião ter attenção á com-
paixão, e amparo, que ſe devem aos deſ-
graçados, nos primeiros dias me chamava
Anchizia ſem repugnancia; mas como me
principiou a tomar aversão, já não ſoffria
ver-me naquelle lugar. Pouco a pouco ſe foi
introduzindo o veneno, que a atormenta-
va, até que cegou a hum exceſſo de bra-
veza formidavel, em que furioſa parecia que
do-
18 AVENTURAS
dominavão nella as filhas de Aqueronte, ſem
mais razão para a ſua loucura, que a com-
paixão, que Carmindo dizia ter de mim,
julgando-me com prendas, que eu já mais
havia em mim conhecido.
Franézia, que tambem alli vivia, por
ſer mulher de Gilarco, irmão de Carmin-
do, pelo meſmo eſtilo ſe perturbava. Prin-
cipiavão entre ſi a deſunir-ſe ſobre queſtão,
que altercavão; e continuando a diſputa, ſe
hião enfurecendo de forte, que a familia nos
primeiros dias acudia com ſuſto aos gritos,
e nos ſubſequentes como a buſcar hum di-
vertimento: huns ſe compadecião do triſte
eſtado, em que me vião; outro ſe retira-
vão a buſcar a deſafogo do riſo, e torna-
vão a ver o fim daquella deſordem, na qual
ordinariamente ſuccedia, que com a exaſpe-
ração das furias as duas irmans mordendo-
ſe, e arrancando cabellos, fazião encoleri-
zar tanto a Gilarco, e Carmindo, que com
demonſtrações da ſua intolerancia me deixa-
vão entregue ao poder da ſemrazão. Deixo
á voſſa prudencia o ajuizar os trabalhos,
que áquelles ſe me ſeguirão.
Mas qual era a cauſa de tanta inquie-
tação?lhe perguntou Argenea, que de ad-
mirada parecia que immovel a tinha eſtado
ouvindo.Quando eu pude entender bem as
frazes groſſeiras, com que ſe esplicavão,
(lhe
DE DIÓFANES. LIV.I. 19
(lhe respondeo) ſoube que em huma obra-
vão zelos indiſcretos, e em outra inveja dos
louvores, que de mim ſe lhe dizião (vicios
horroroſos bem coſtumados a alimentarem-
ſe dos corações, que cegamente ſe deixão
poſſuir delles.) Mas eu nunca pude crer que
ſó eſta foſte a cauſa, porque para fundamen-
to de zelos não havia nem o mais leve mo-
tivo; e para inveja, (além da vileza, que
communica a quem lhe dá entrada) nunca
ſoube que em mim houveſſem virtudes para
invejar; porque a formoſura, e mais pren-
das, ſe são sujeitas ao tempo, que multi-
plica os invejoſos, elle cura o mal, que os
atormenta.
Em os primeiros tempos, não me po-
dendo capacitar do que entendia, reparava
que huns ſe rião muito, outros com caute-
la, e que Anchizia, e Franézia inveſtião
comigo; e neſta afflicção levantava os olhos
ao Ceo, dizendo: O'Deoſes tyrannos, que
novo genero de martyrio he eſte? Como
me haveis deſtinado a hum tormento ſem
igual? Inſpirai-me vós os acertos. Tor-
nava outra vez á meza, e não comia, por-
que não me deixava o medo; e porque te-
mia ſer aquella bulha, porque eu havia co-
mido, então me parecia que mais ſe accen-
dião (ſe póde ſer.) Outras vezes comia mais
do
20 AVENTURAS
do preciſo, procurando com eſta experien-
cia o acertar na cauſa do que experimenta-
va; mas de toda a ſorte via quaſi ſempre
iguaes effeitos; e lembrando-me de que os
Ceos querião tirar a mais legal prova do
meu ſoffrimento: Deoſes poderoſos, (tor-
nava a dizer) que foſtes convidados para o
banquete de Tantalo, não precipiteis a eſ-
tas no abyſmo das penas, a provarem da fo-
me, e ſede, que eu padeço; e ſe não que-
reis tirar-me a vida, nem livrar-me da ſua
crueldade, a voſſa grandeza me afflita. Não
ſe animavão aquellas duas irmans a ſairem
de caſa pelos deſprezos, que por aquella
cauſa experimentavão; porque huns as tra-
tavão mal de palavras; outros buſcavão o
modo de perſuadillas a que conheceſſem a
sua ſemrazão; e outros lhes fugião, dizendo
haverem enlouquecido, e eſtarem furioſas.
Roguei á velha cariativa, que me havia aſ-
ſiſtido, que lhes pediſſe me não admittiſſem
á ſua meza, com o pretexto de evitar o re-
paro público: o que vim a conſeguir depois
de prolongados tormentos, ficando baſtan-
te cauſa para o meu cuidado na commiſera-
ção, que me moſtravão os homens, e ba-
nhada em lagrimas me parecia ouvir no co-
ração as ultimas palavras de meu prudente
pai,que retumbando dentro da triſte esfe-
ra de meu peito, recommendavão ao meu
cui-
DE DIÓFANES. LIV. I. 21
cuidado os reſguardos do decóro. Ouvia jun-
tamete as primeiras, e ſolidas inſtruções
de minha diſcreta mãi, que não menos me
lembravão os indiſpenſaveis preceitos de mo-
deſtia; e depois de tão penoſas conſidera-
ções dizia afflicta:
Ai de mim! O' fado tyranno, que or-
denaſte o deſamparo, em que padeço, exe-
cuta os eſtragos da tua impiedade, que ou
me queiras conſervar a vida para emprego
dos teus golpes, ou com ella queiras liſon-
jear os da Parca, nunca poderás conſeguir
que me falte fortaleza para defender-me dos
inimigos da virtude: e aſſim me entrega ás
violencias do odio, mas não me renderá o
teu poder ás crueldades do amor.
Suſpendia,e já afflicta eſtou (lhe diſſe
Beraniza) de conſiderar-te entre Scylla, e
Carybdis. E não te davão neſſe tempo oc-
cupação, em que empregar-te? Nos primei-
ros mezes (lhe respondeo) em os empregos
se ſervir a caſa, de que eu não tinha nem
a mais leve noticia, padeci inexplicaveis
contratempos, porque havião ſido outros os
meus exercicios, e não ſabia ſervir em o que
alli me mandavão. Que prendas tens? lhes
perguntárão. Fui, Senhoras, inſtruidas (lhe
reſpondeo) em a Muſica, Poeſia, e alguma
parte da Anſtronomia; mas quem renaſce em
novo ſer tão deſgraçado, perdendo de viſta o
goſ-
22 AVENTURAS
goſto se conſerva as prendas na memoria,
he obrigada a vontade a deſprezallas como
ruinas do tempo. Tornaſte a ver teus pais?
lhe perguntou Argenea. Ao que reſpondeo
Hemirena: Sim, Senhora; porque como nos
empregos, que em caſa me dava Anchizia,
eu não ſabia ſervilla, ordenou que eu com
outras eſcravas, e mais gente do campo foſ-
ſemos aprender a cultivar as terras; o que
ou ſeria porque a minha deſgraça lhe dispoz
o animo para aborrecer-me, ou porque a
minha inutilidade não ſoube grangear o ſeu
affecto, poi não tem lugar as melhores ar-
tes entreos ruſticos; eu a ſervia onde me
não maltratava a chuva, ou o frio, não me
affligia o calor do Sol, nem me fatigava o
trabalho, porque ſó me opprimia o ver-me
entre homens ruſticos, abatida até ao ultimo
gráo da deſventura. Em quanto me não coſ-
tumei a ouvillos, me atemorizarão as gran-
des, e deſcompoſtas riſadas, que davão,
vendo-me no campo trabalhar entre elles;
e como a melhor reſposta ſempre foi o ne-
gar-lhes a attenção, eu me empregava em
meu trabalho, não ſó como quem os não
entendia, mas como ſe tambem os não ou-
viſſe; e ſe acaſo com diſſimulação os obſer-
vava, os via fazer géſtos, e acções tão ri-
diculas, que ou foſſem explicativas do ſeu
brutal affecto, ou demonſtradoras da ſua ad-
mi->
DE DIÓFANES. LIV.I. 23
miração, erão dignas de riſo, a quem não
vieſſe tão cheia de pezares como eu.
Aſſim hia paſſando os cançados dias do
principio da minha peregrinação, quando
em huma tarde vi que hum homem com
preſſa me buſcava; e chegando-ſe a mim, co-
nheci ſer meu pai, que ſabendo que eu eſ-
tava naquella vizinhança, e determinando
os que o comprárão fazerem no dia ſeguin-
te a ſua jornada para Corintho, lhe conce-
dêrão licença, para que foſſe a deſpedir-ſe
de mim. Com muitas lagrimas de conſola-
ção, e alegria paſſámos aquelle breviſſimo
tempo; e perguntando-lhe por minha extre-
moſa mãi, me diſſe não lhe havia ſido poſ-
ſivel ſaber como ſe achava, por ſer muito
diſtante o para onde tinha ido; e aſſim diſ-
correndo, as que havião ſido lagrimas de
conſolação, e alegria, ſe transformárão em
nova dor, e mais viva ſaudade; e como de-
ſejava conciliar-lhe algum genero de allivio,
lhe occultei os meus pezares, baſtando para
grave cauſa da ſua mágoa o eſtado abatido,
em que me vio; e repetindo as ſuas acerta-
das recommendações, m deixou tão forta-
lecida, quanto novamente magoada.
Cançava já a minha deſventura pelas
continuas afflicções, em que eſtavão Anchi-
zia, e Franézia, pois não ſe atrevendo a
tolerarem aquelle mal, a que ſó ellas davão
C cau-
24 AVENTURAS
cauſa, aſſentárão em vender-me a Artemiſ-
to. O pobre Paſtor Turnio a quem engana-
va a fantaſia, propondo-lhe em mim hum
objecto amavel, (que eu nunca fui) com
os maiores exceſſos creo que poderia conſe-
guir que eu lhe déſſe a mão de eſpoſa: e
vendo que achava o animo de Anchizia in-
diſpoſto para favorecello, buſcava quem o
compraſſe, dizendo que elle venderia a ſua
liberdade, para comprar a minha. Por a-
quelle innocente ſacrificio do ruſtico ſincero
ſe ordenou a ſua morte; mas os Deoſes, que
não quizerão conſentir em tão grande cruel-
dade, me deſtinárão para ſervir-vos, para
que ſe não executaſſe a barbara ſentença:
e aſſim deixando o abyſmo de tantas penas,
e cuidados, chgo feliz aos voſſos pés, pois
tiverão os Ceos compaixão de tão horroro-
ſas fadigas.
Apenas entrei nos voſſos Dominios,
tive plo melhor annúncio ver os campos
ferteis, as gentes compaſſivas, ſendo as mu-
lheres modeſtas, e os homens attentos: nas
aves ſe me representava ſó, a que neſtes Do-
minios podia annunciar-me o triunfar dos
trabalhos na voſſa preſença.
Na verdade (lhe respondeo Beraniza)
que me compadeço de ouvir os teus infor-
tunios: e ſabe que o noſſo affecto ſe move
a favorecer-te, pois eſte he o mais preciſso
ef-
DE DIÓFANES. LIV.I. 25
effeito da grandeza. Dize-me ſe alguma cou-
ſa deſejas no eſtado, em que te vejo, que
no que couber nos limites do poſſivel, ſerás
ſatisfeita.
Eu, Senhora, não deſejo a liberdade,
(lhe respondeo Hemirena) porque eſta per-
de o preço, quando a ſervidão he tão dito-
ſa. Não appeteço riquezas, porque os Ceos,
que ſabem diſpôr melhor o que nos convem,
me affaſtárão de todas, talvez por me ſer
mais util o ſervir-vos, que o poſſuillas; nem
que ſeja reſtituido aos meus olhos aquelle,
a quem a eſperança do conſorcio havia uni-
do o mais ſincero amor; porque onde eſte
he mais conſtante, quaſi ſempre he a fortu-
na contraria: ſe pudéra conſeguir a liberda-
de de meus pais, ſó eſſa empreza faria fe-
liz os meus infortunios, ainque que eu de to-
do perdeſſe a eſperança de vellos; mas co-
mo não eſtão em Dominios do Rei voſſo
pai, não pſſo enganar-me com a eſperan-
ça, que a voſſa grandeza podia animar. Co-
mo não queres nomeallos, (diſſe Beraniza)
não ſe póde intentar a ſua liberdade. Deſ-
cança agora na minha protecção, que mui-
to póde vencer o tempo. Hemirena, pe-
dindo-lhe licença, ſe retirou ao ſeu apoſento.
No dia ſeguinte ordenárão as Prince-
zas que as acompanhaſſe á caça, divertimen-
to, de que uſavão em muitos, e ſubſequen-
Cii tes
26 AVENTURAS
tes dias. Beraniza ſe ſervia com exceſſivo goſ-
to das gentís prendas de Hemirena, a quem
não ſó folgava de ouvir, como tambem imi-
tava ſábia, inſtruindo-ſe goſtosa.Paſſados
alguns annos, diſſe Beraniza a Hemirena,
que havendo inteiro conhecimento das ſuas
ſingularidades, já era tempo para lhe dizer
quem erão ſeus pais; e como Hemirena con-
tinuamente ſuspirava, ſem que baſtasse todo
o tempo para curar-lhe tão viva chaga, ſe
determinou a dizer-lhe:
Sabei, Senhora, que ſou filha dos Reis
Diófanes, e Clymenea: e que eu era levada
a Delos, para ſe celebrarem os meus deſ-
poſorios com o Principe Arneſto, que de-
vendo aſſiſtir aos Jogos públicos, (para o
que tambem os concorrerião) partio
de Delos a eſperar-nos; mas como os No-
mes não conſentem muitas vezes nas felicira-
dades dos mortaes, para que purificando-ſe
entre fadigas, ſe acryſolem para os deſcan-
ços, eu não quero mais que eſte bem, que
eſtou gozando; mas os trabalhos de meus
pais nunca me deixão enxugar o pranto; e
aſſim, quando parece que deſcanço, eu lhes
aſſiſto, e eſtou vendo a Arneſto morto, ou
louco, e perdido, ſuppondo que nas caver-
nas do mar nos daria Neptuno ſepultura; e
muitas vezes depois de triſtes repreſentações,
em mil delirios digo:
Co-
DE DIÓFANES. LIV. I. 27
Como, ó forte ingrata, me conſervas
em tão duvidoso eſtado? Como he poſſivel
que com tão moleſtos cuidados ſe conſerve
huma vida fragil? Oh eſtrella cruel, que não
foras tão adverſa, a ter-me creado entre as
feras! E logo entrando em mim, torno a
dizer: Mas ſe eſtes pezares qualificaão o meu
ſoffrimento, triunfe a conſtancia, pois a re-
ſignação he principio de felicidade. Se Ar-
neſto já rendeo o magnanimo eſpirito, mais
breves forão os ſeus cuidados que os meus;
e ſe vive, conſerva com o alento a vida da
eſperança. Se meus amados progenitores são
falecidos, deſcanção; e ſe vivem, trabalhão
para deſcançarem. Deixa-me pois, ó memo-
ria cruel, que ſempre intentas deſtruir as
obras do entendimento. Agora vejo (lhe diſ-
ſe Beraniza) que a tua belleza, e nobres
ſentimentos são illuſtrados de tão grandes
principios. Teus pais ſerão logo buſcados
com os finaes, que deres; e ſe forem acha-
dos, virão com a oſtenção, que merecem,
para te acompanharem. Não quero dever
(reſpondeo Hemirena) à voſſa compaixão
beneficio mais eſtimavel, que ſerem reſtitui-
dos aos ſeus Eſtados, ainda que eu de todo
perca a eſperança de tornar a vellos: e bem
conſidero, o muito, que he difficil encontral-
los; mas os Soberanos não ſe atrevem as
difficuldades, quando as ações são generoſas.
Be-
28 AVENTURAS
Beraniza cheia da admiração, que lhe
cauſava o ſaber quem na verdade era Hemi-
rena, ſe recolheo a fallar a ſeu pai para as
diſtinções, e grandeza, com que dalli em
diantes ſe devia tratar, e juntamente dar-ſe
providencia á liberdade daquelles Sobera-
nos; porque ſuppoſto que Arneſto, e os The-
banos os havião buſcado com a maior vigi-
lancia, e promettido premios importantiſſi-
mos a quem déſſe alguma noticia digna de
credito, como os piratas ufárão da preven-
ção de pôr o fogo á não, contentando-ſe
com os cativos, e a preza do precioſ, com
que ſe coſtumão ſervir tão alros ſogeitos; e
eſtes entre ſi tomárão o acordo de occulta-
rem quem erão, não ſó mudando de nomes,
mas ordenando aos ſeus, (dos poucos, que
havião eſcapado do combate) que em nenhum
caſo os deſcubriſſem, ainda qe naquella
Corte ſe havia tambem ſentido a deſgraça,
que ſuccedêra a Diófanes, por aquellas meſ-
mas cautelas todos entendião que a ſua em-
barcação fora a pique.
Com immenſo prazer recebeo o Rei
aquella noticia, e logo determinou, que hum
dos melhores quartos de palacio foſſe rica-
mente paramentado para aſſiſtencia de Hemi-
rena: e ſe lhe nomeárão as peſſoas, de quem
ſe devia ſervir, conforme ao trato decen-
te, que merecia. Tudo agradeceo, e recuſou;
e
DE DIÓFANES. LIV. I. 29
e ainda que ſe lhe conſervou tudo no meſ-
mo eſtado, ſempre dizia, que em quanto
ſeus pais vivião peregrinando pelo Mundo,
como eſcravos, ella tambem como eſcrava
devia conſervar-ſe.
Paſſados alguns tempos, quando as in-
ferencias a fazião crer que ſeus pais ſerião
reſtituidos á ſua patria com a oſtentação,
e grandeza, que merecião, como ſe havia
determinado, mandou o Principe Iberio pro-
pôr-lhe por Miquilenea, Dama das mais gra-
ves, que ſe havião deſtinado para ſervir a
Hemirena, que elle deſejava contrahir com
ellao mais feliz hymeneo; e que por ſe não
embaraçarem com duvidas, que poderião
occorrer, o farião ſecretamente, ſem que
ſe participaſſe eſta noticia a Beraniza.> Ao
que reſpondeo Hemirena:
Dize ao Principe, que huma eſcrava
não póde ſervir-lhe para eſposa: que eu não
declarei a minha origem para dar a mão
encuberta: e que antes quero perder a vida,
que mudar de eſtado, ſem que os meus o de-
terminem; aſſim como o affecto, e amizade,
que na alma me imprimio Baraniza, não
conſentem que eu admita nem a mais leve
inſinuação de ſeus intentos; pois faltárão
nos Ceos eſtrellas, e no campo flores, pri-
meiro que Hemirena a ſer grata, fiel e ſo-
berana. Com eſta deſabrida reſposta deixou
con-
30 AVENTURAS
confuſa a menſageira, e o Principe ſem eſ-
perança.
Continuava Beraniza as ſuas applica-
ções, que muito moderára a diſcreta induſ-
tria de Hemirena, pois temia que a delica-
da Princeza perdeſſe a ſaude, como já com
reverente affecto, e verdadeiro zelo lhe ha-
via ponderado. Paſſados quatro annos, achan-
do-ſe Beraniza gravemente enferma, prin-
cipiava a deſconſolação de Hemirena a an-
nunciar a ſua ruina; e vendo Beraniza, que
a ſua vida não ſeria dilatada, diſſe: Amabi-
liſſima Hemirena, não apaguem as tuas la-
grimas a luz brilhante de teus bellos olhos,
temendo deſamparos, pois ficas bem recom-
mendada pelas tuas amaveis qualidades: não
temas que a minha falta diminua na eſtima-
ção de tuas prendas ſingulares, que as mu-
lheres, que com virtudes adquirem o domi-
nio das vontades, aſſim como á ſua belleza
ſe não atreve o tempo, tambem as reſpeitão
os duros golpes da Parca, porque ſe immor-
talizão, não os ſentindo na memoria, e eſti-
mação das gentes, porque o eſpirito gentil,
que não acaba, em cada anno lhes aviva com
os meritos a formoſura; mas pelo grande
affecto, que mereces, he preciſo que eu dei-
xe padrões para a tua memoria, ordenando
que te ſejão entregues as minhas joias; e co-
mo tão fielmente me tens acompanhado, ſe-
rá
DE DIÓFANES. LIV.I. 31
rá razão que a minha falta te deſcance: para
o que tambem deixo recommendado a Iberio
que te faça conduzir á tua patria com aquel-
le eſplendor, que he decente á tua peſſoa.
Crede, Senhora, (lhe respondeo He-
mirena) que mais me opprime o que vos
ouço, que a ſeparação daquelles, por quem
choro: e terei ſem dúvida por mais ſevero
o caſtigo da voſſa falta, que os tolerci
nos contraſtes da fortuna. Os Ceos compaſ-
ſivos para mais eſſe pezar me não reſguar-
dem, porque do mal, que paſſou, ſó ſe con-
ſervão na memoria os veſtigios, e para o
que ameaça a voſſa deſconfiança, já deſmaia
a minha fortaleza: e aſſim vede, Senhora,
que ſendo momentanea a vida, que logra-
mos, eſta ſe dilata, quando eſperamos com
animo conſtante que os Deoſes ſobre nós de-
terminem, porque he certo que as ſuas re-
ſoluções ſó são pezadas, a quem não ſabe
diſcernir entre o bem, e o mal. O manda-
rem reſtituir á minha patria, onde pelas
cautelas da voſſa grandeza creio que meu
pais já deſcanção, he joia de tanto preço,
que nas que me offerece a voſſa generoſida-
de acceitarei, por não ſer ingrata, deſperta-
dores para a minha mágoa, ainda que os
Deoſes benignos eſpero que vos dilatem a
vida tantos, e tão proſperos annos, como já
viveo Neſtor.
As
32 AVENTURAS
As muitas lagrimas, negando-lhe os
termos, a obrigárão a retirar-ſe, porque
tambem não augmentaſſem a moleſtia de Be-
raniza.
Paſſados alguns dias, acabou nos bra-
ços de Hemirena, que chegando-a eſtreita-
mente ao afflicto peito, dizia com infinitas
lagrimas: Quem ſerá baſtante a conſolar-me
neſte mal, que todo he meu? Se tudo per-
co, quando tu me deixas, onde verei agra-
davel a formoſura, ſe no teu grato aſpecto
já não vejo mais que a pállida imagem da
morte? Se haverá quem ponha a ſua alegria
em huma vida limitada? Se haverá quem
deixe de conhecer os enganos de hum Mun-
do inconſtante, vendo que tão pouco dura
a grandeza, o poder, o ſoberano, e a for-
moſura? Como he poſſivel que á tua ta
ſe poſſa dar preço a huma vida fragi? O'
Parca ingrata, como vivo eu, ſe acabou Be-
raniza? Ai de mim! Que eſtrella cruel he
a que me ſegue, e me conduzio ao deſcan-
ço, para me ſer mais violento e diſvelo?
Que fado mudavel me negou á eſcravidão
tyranna, e me trouxe a ver-te, para expe-
rimentar em deſconto dos allivios, que me
deſte, o trabalho mais ſenſivel em o golpe
cruel da tua falta? Imprimão-ſe meus triſtes
labios neſta nevada, e generoſa mão, pre-
mio bem merecido, por te não haverem nun-
ca
DE DIÓFANES. LIV.I. 33
ca liſonjeado. Oh quanto te erão agrada-
veis os reſplandores da verdade, conhecen-
do diſcretamente que foge dos Soberanos
pelos aduladores, que os ſervem! E como
não podem as minhas lagrimas animar a tua
formoſura, eu me aparto de ti a ſentir na
tua auſencia de cada vez mais perto a minha
morte. Mas que digo? Eu deixar-te? Ai
de mim! Oh ceos compaſſivos! Oh barbara
Parca! A Deos, Beraniza adorada. A Deos,
minha perdida eſperança. Os circumſtantes
no deſacordo da ſua pena davão lugar ao
largo deſafogo de Hemirena: e como alli
ſe achava Iberio, em quem já Cupido ha-
via empregado as ſuas ſettas, temendo que
Hemirena rendeſſe o eſpirito nas mãos da
mágoa, lhe diſſe: He tempo de te ſepara-
res de Beraniza, pois que já não a podem
negar á morte os eſtragos da tua vida. E
logo a fez retirar ao ſeu apoſento, em que
o ſemblante cadaverico era o melhor indi-
cio do quanto eſtava gravada no coração
aquella dor intenſa.
Iberio, não podendo reprimir os vio-
lentos impulſſos de ſeu affecto, foi vella, pa-
ra moderar o ſeu juſto ſentimento. Amabi-
liſſima Hemirena, (lhe diſſe) ſe o teu en-
tendimento domina em a minha vontade,
como he poſſivel que não reſiſta ao que diſ-
corre a tua memoria? Eu te juro fé, pois
com
34 AVENTURAS
com o mais firme rendimento confeſſo que
te adoro; e não pertendo de ti mais que a
boa acceitação de meus ſacrificios. Não te-
mas agora novas adverſidades, pois te ſervi-
rá hum Principe rendido, em que os teus
merecimentos tem o maior imperio. Não
temo adverſidades, (lhe reſpondeo Hemire-
na) porque ſó receio as proſperidades, que
me promettes; e ſe queres dar fim a meus
infelices dias, continúa com as expreſsões
do teu rendimento; mas ſabe que em quan-
to me duarar a vida, não ſerá menor o meu
pranto, nem haverá tempo, que baſte para as
demonſtrações do meu ſentimento. Adver-
te, (replicou Iberio) ó bella ingrata, que,
quando a paixão eſtá próxima, ſó convida
com a mágoa, a que não poderia refletir o
peito humano, ſe em cada dia, que paſſa,
não experimentará o beneficio do tempo.
Não deſprezes huma vontade fiel, que não
quer mais que diminuir-te huma cauſa para
o cuidado: e não creas que eu queira des-
luſtrar a tua eſtimavel modeſtia, que iſſo fo-
ra deſmentir o ſoberano: nem te perſuadas que
no affecto, que te confeſſo, eſpero ver finizas
agradecidas, porque eſtas regularmente são
deſprezadas; mas ſabe que para as tuas eſpe-
ciaes virtudes ſó o coração he lugar decente.
Vive, e conſerva a tua varonil conſtancia;
porém não temas os contraſtes da fortuna.
Com
DE DIÓFANES. LIV.I. 35
Com eſtas palavras deixou Hemirena,
a quem duplicou os cuidados, principiando
já a experimentar a falta de Beraniza. Toda
aquella noite paſſou vacilando entre horro-
res da morte, e crueldades do amor, conſi-
derando-ſe vizinha aos perigos; porque via
em Iberio prendas eſtimaveis, e diſcrição
tão poderoſa, que temendo paſſar da eſtima-
ção das boas qualidades a algum deſordena-
do affecto; e reflectindo em que as forças
do amor ſó póde vencer quem lhe ſabe fu-
gir, determinou auſentar-ſe em a noite ſe-
guinte para dever amparo ás ſombras, an-
tes que lhe faltaſſem as luzes; e ſem eſperar
que lhe foſſem entregues as joias, ſe diſpu-
nha para a fuga. Tornou Iberio a vella,
pois o não deixava deſcansar hum tyranno
cuidado. Hemirena logo atalhou as ſuas ex-
preſsões, dizendo:
Não ſei, Senhor, como te agradeça
os exceſſos, com que me fazes mercê, di-
minuindo na tua grandeza; porque aſſim co-
mo os não ſei merecer, tambem os não ſei
eſtimar: e he tão adverſa a minha eſtrella,
que quando me ſeguras os deſcanços, tenho
na tua protecção o maior deſpertador para
as fadigas; pois deſde que a pezada mão de
Atropos cortou o fio, que ſOſstinha o meu
amparo, principiei a combater com deſ-
graça no improporcionado favor, com que
in-
36AVENTURAS
intentas liſonjear-me: e ultimamente digo,
que ſe coubeſſe em mim maior pezar, que
ſerem os meus braços triſte occaſo de Bera-
niza, ſó o ſerião os teus rendimentos, pois
he certo que eſtes em ſeu meſmo exceſſo
naufragão, e que nunca já mais ſerão pagos,
porque as mulheres, como eu, nem chegão
a agradecer, ſem que lhe fiquem eſcrupulos
no decóro. Se não queres ver-me conſter-
nada, deixa-me viver em paz, ou correr com
a tormenta do meu deſtino, que nas prizões
de eſcrava, ou de mim fugindo pelo Mun-
do, qual pobre peregrina, conſervarei ſem-
pre na alma a gloria de vencer entre tão
novos trabalho os aſſaoltos de meu fado. He
ſem igual (lhe respondeo Iberio) a admi-
ração, que me cauſa o ouvir-te; porque
quando não he outro o meu deſigno, mais
que render cultos á tua formoſura, a tua
izenção me maltrata. Pois ſabe que ás tuas
prendas ſempre tributarei adorações, ſem que
eſpere mais ditoſo premio, que permittires-
me o ver-te, porque ao teu decóro levan-
tarei padrões, para lhe gravares letras, que
immortalizem o teu ſevero rigo. Bem ſei,
Senhor, (tornou a dizer-lhe Hemirena) que
a tua diſcrição lhe capaz de conquiſtar im-
perios mais poderoſos, e que os preceitos da
modeſtia não diſpensão inteiramente as obri-
gações de agradecida; mas como naſci para
tra-
DE DIÓFANES. LIV.I. 37
trabalhos, não eſtranhes que eu me negue
ás eſtimações e deſcanços, que me ſegura
a tua protecção. Se não queres accumular-me
afflicções, deixa-me agora deſcançar, por-
que a preſença dos Soberanos he como a
luz, que por demaziada tambem cega; e ſe
queres fazer-me a mercê, que ſó deſejo, não
tornes a eſte pequeno apoſento, onde não
cabes, ſem que ſe opprima a tua grandeza.
Não póde a força da tua deſattenção (diffe
Iberio) conſeguir que eu te não veja, e dei-
xe de amar-te; e como no teu ſocego inte-
reſſo, quanto arriſco em a tua auſencia, eu
me retiro, cedendo o meu goſto ſó a favor
do teu allivio. Com eſtas palavras ſe retirou
Iberio, deixando Hemirena com o maior
empenho no cuidado da ſua peregrinação,
a que deo principio em a noite ſeguinte,
em que lavando com lagrimas aquella fune-
bre aſſiſtencia, recommendando aos ſilencio da
noite o livralla dso tumultos da Corte, ſa-
hio com veſtido de homen, diſpoſta com
aquelle fingimento a vencer os maiores aſ-
faltos de ſua cruel fortuna.
FIM DO PRIMEIRO LIVRO.
AVEN-
AVENTURAS
DE
DIÓFANES
----------------------------
LIVRO II.
SUMMARIO.
COm o ſuppoſto nome de Bellino prin-
cipiou a fugir de Hemirena dos pe-
rigos, com que o amor ameaça a for-
moſura, e chegou a admirar as criſtal-
linas correntes de hum rio, que reſguar-
dava hum belliſſimo arvoredo: na ſua
margem achou hum velho cego, e le-
proſo, cuja aſquerosa figura lhe occultou
a Diófanez debaixo do nome de Antionor,
D o
40 AVENTURAS
o qual lhe conta parte de ſeus trabalhos;
e Hemirena ſe retira, temendo ſer co-
nhecida.
CAMINHANDO de noite, e
deſcançando de dia, continua-
va Hemirena a ſua derrota, ſem
que ſe paſſaſſe algum, em que
os ſeus olhos não pagaſſem tri-
buto às memorias de Beraniza.
Já áquelle tempo não chorava a infelicida-
de de Clymenea, e Diófanes, porque ſe ha-
via perſuadido que deſcançavão em Thebas.
Iberio, ſabendo da ſua fuga, fallou
frenetico a ſeu pai, deſcubrindo-lhe as cham-
mas, em que ardia, para que ſe mandaſſem
fazer diligencias, que aos ſeus olhos reſti-
tuiſſem a Hemirena; e como o Rei lhe re-
ſpondeo, que não ſe devia perſeguir aquella
diſcreta reſolução: e que em nenhum tempo
ſoffreria que lhe déſſe a mão para eſposa, a
que havia ſido eſcrava de Artemiſto, por-
que ſe na ſua eſcravidão reſpirava a gran-
deza, no ſeu conſorcio desluſtaria a Ma-
geſtade. Iberio, ouvindo eſtes ultimos deſen-
ganos, deixou a Corte; e deſprezando a eſ-
perança do throno, que renunciou a favor
de Argenea, tão amante, como reſignado
aos preceitos de ſeu pai, determinou reti-
rar-ſe para huma caſa de campo a eſperar
al-
DE DIÓFANES LIV.II.41
alli a morte, fazendo conſtantes ſacrificios
ás ſoberanas virtudes de Hemirena, que co-
mo Bellino com o maior cuidado, e ſuſto
continuava em fugir;porque onde periga o
decóro, equivocão-ſe as cautelas com os in-
dicios de delicto.
Chegando a Corintho, determinou ir
com menos incommodos pelos ſuſtos, me-
dos, e horrores, que padecia, caminhando
de noite. Em huma freſca tarde já cançado
ſe recolhia em o oco de huma grande arvo-
re, quando ouvio huma voz ſuave, que do-
cemente cantava; e ſahindo a buſcar a cau-
ſa de tão ſuave canto, ouvio o brando ſuſ-
ſurro de hum rio, que vagaroſo ſe eſpalha-
va pela relva: continuou a ſeguillo, e por
baixo de um frondoſo arvoredo foi buſcan-
do os pertos daquella voz, que ſuppoſto ou-
via melhor, parecendo-lhe alli ſobrenatural,
deſconfiava de encontrar a ſua origem. Aſ-
ſentou-ſe a deſcançar, vendo a gloria da
cauſa das maravilhas, que obſervava; e re-
parando nos liquidos criſtaes, dizi: Oh
quanto es agradavel, belliſſima ribeira, que
como mageſtoſos movimentos deſpedes as criſ-
tallinas correntes, que prendem, e guarne-
cem eſte ditoſo boſque! E vós, aves inno-
centes, fragrantes flores, e fugitivos deſper-
dicios, gozai do ſolitario ſocego deſte ame-
no boſque. Oh quem pudera trocar comvoſ-
Dii co
42 AVENTURAS
co a forte! Augmentando os regatos, cor-
rião de ſeus bellos olhos innumeraveis la-
grimas: quando, ſendo já quaſi noite, tor-
nou a ouvir aquella ſuaviſſima voz; e indo
em ſeu ſeguimento, vio de longe hum vul-
to, que principiava a temer, não podendo
bem diſtinguir ſe era humano; e vendo que
daquelle tal corpo he que ſahia a doce voz,
foi devagar chegando para aquella parte, e
obſervou que tinha figura de homem, e que
eſtava da cintura para ſima ſem veſtidura al-
guma: o reſto do corpo ſe cubria com hu-
ma pelle de urſ tudo, quanto tinha deſ-
coberto, era veſtido de chagas; a barba
creſpa, e encanecida lhe chegava a cubrir
o peito; os olhos, que parecião ſem luz,
erão cubertos de carna, a cabeça calva, e
da meſma forte chagada, e as mãos enſan-
guentadas pela violencia, com que coçava
as feias feridas, ſentado ſobre huma pedra
junto á maior corrente do rio cantava, em
quanto deſcançava de coçar-ſe. Suſpenſo Bel-
lino de ver o goſto, com que aquelle em
tão miſeravel eſtado ſe achava com o aſque-
roſo ſemblante ſummamente alegre, chegou
a fallar-lhe, e lhe diſſe:
Homem ditoſo, que eſtás gozando deſ-
ta amavel ſoledade, como cantas tão alegre-
mente, ſe te falta a viſta para lograres o
mimo deſtas ſombras? Como póde em ti ha-
ver
DE DIÓFANES. LIV.II. 43
ver alegria, ſe eſtás atormentdo deſſe mal,
que te conſome? Que fazes aqui diſtante de
todo o remedio para o que padeces? Se
aqui te deixou o engano, ou a tyrannia das
gentes, eu te ſervirei, pois das gentes fu-
jo.A eſtas palavras rindo com ſocego, lhe
reſpondeo:
Se me chamas ditoſo, porque eſtou
gozando deſta amavel ſoledade, como repa-
ras na minha alegria? Canto, porque já
não poſſo ver as ſombras, e ſó me diſponho
para as luzes. Como deixarei de eſtar ale-
gre, ſe eſtá para acabar o padecer deſte
mal, que me conſome; e quando o que ſe
conſome, acaba, eſtou onde a diſtancia
dos remedios he o remedio do meu mal?
Não me trouxe aqui o engano, porque abor-
rece as ſolidões, e he occupado nas Cortes.
Não me deixou a tyrannia das gentes, por-
que eu me reſolvi a deixalla. Quando muit-
to me atormenta o rigor do que padeço, a
freſca, e doce corrente me refrigera. Não
quero mais cama, que a que me prepara a
verde relva, nem mais ſaboroſos manjares,
que as hervas, para que me convida a fo-
me. Quando os Paſtores deſtes boſques vem
a ſoccorrer-me, o leite, com que me rega-
la a ſua compaſſiva ſingeleza, me parece
mais ſaboroſo, que o ſuave nectar dos Deo-
ſes. Mas dize-me: Como te não fiz horror,
e
44 AVENTURAS
e te atreveſte a fallar-me? A juſta admira-
ção, (lhe respondeo Bellino) que me cau-
ſou a laſtimoſa figura, me obrigou a fallar-
te, para ver ſe aos meus males podia tam-
bem achar remedio. Eu padeço mais que tu,
pois he interno o meu mal; e como o fugir
das gentes he hoje o que mais me convem,
conſente-me na tua companhia, que a aſpe-
reza da vida, que aqui fazes, mais me agra-
da, que os regalos, de que fujo. Se te não
he aſquerosa (lhe reſpondeo) a figura, que
em mim vês, repartirei comtigo o maior bem
na tranquillidade que lógro. E como a noi-
te já eſtava adiantada, ſe accommodou Bel-
lino para deſcançar, encoſtando a cabeça ſo-
bre as raizes de hum tronco; e para a ou-
tra parte o bom velho, que quando o deſ-
pertavão as dores, principiava a cantar lou-
vores a Jupiter; e invocava os Semideoſes
dos boſques, para que não conſentiſſem que
Eſculapio, filho de Apollo, foſſe alli a cu-
rallo, pois deſejava que tiveſſe mais exerci-
cio a ſua paciencia.
Em amanhecendo, vierão huns Paſto-
res, que vendo o bello macebo, que em
Bellino ſe lhes repreſentava, o levárão a ver
a ſua Aldea, donde voltou obrigado á ſin-
ceridade, com que o tratárão; e deſejando
ſaber quem era o velho enfermo, lhe diſſe:
Já
DE DIÓFANES. LIV.II 45
Já a eſta hora terá entendido que em
mim ſe não occulta algum inimigo teu, e
quizera que me confiaſſe o teu nome, 'e a
cauſa, que para aqui te conduzio.
Chamão-me Antionor: (lhe reſpon-
deo) os meus infortunios não cabem, nem
ainda em larguiſſimos diſcurſos, porque tem
ſido muitos, e os maiores, que até aqui pu-
dérão lembrar ao rigor da deſventura; mas
ſerás ſatisfeito com alguma parte delles. An-
tes que Anfiarao empunhaſſe o ſceptro de
Corinto, vivia eu entre componezes em
hum agradavel retiro de Aganimedes ſeu
pai, que lhe cedeo o governo, por ſe achar
adiantando em annos, e falto de forças, pois
conhecia as que erão preciſas para reger a
Monarquia. Quando deixou o governo, lhe
recommendou que conſervaſſe oconvenien-
te, e reformaſſe o perniciolo: e tambem lhe
advertio que me ouviſſe, pois era Filoſofo,
e tinha noticia das melhores leis, e coſtu-
mes das outras nações. Com eſte motivo fui
levado a huma caſa de campo á preſença de
Anfiarao, que determinou tyrannizar aſſim a
minha tranquilidade, pois a perde quem he
deſtinado para os empregos da Corte.Eu
lhe diſſe, logo que elle me diſpoz a deixar
o campo:
Permitti, Senhor, que eu continue em
guardar os voſſos rebanhos, e eſcuſai-me
das
46 AVENTURAS
das eſtimações de valído. Principiárão no
Mundo as guerras, por haverem muitos Deo-
ſes, muitas leis, e muitos Reis; e antes de
as haverem, moravão os homens em os cam-
pos, comião frutas, dormião em covas, an-
davão deſcalços, e vivião do commum: eu
quero ſó ſervir-vos, como até agora, acom-
panhando os voſſos rebanhos no campo,
ſustentar-me das frutas ſilveſtres, e reparar-
me dos rigores do Inverno debaixo dos ro-
chedos, já que determinão os Deoſes;
porque guardando a melhor lei, pobre, e
deſcalço vivirei em paz, que eſta ſempre ſe
altera nas inquietações da Corte. Oh quan-
to he melhor ouvir o que lá ſe paſſa, que
o viver nella! porque os que não podem va-
ler, eſtão eſquecidos; os que muito valem,
são perſeguidos; os pobres não tem que co-
mão; os ricos, porque o são, não os deixão
comer ſem ſuſto; são muitos os queixoſos,
e poucos os contentes; fazem muitos o que
querem, e poucos o que devem; em fim to-
dos murmurão, e quaſi todos ſeguem os meſ-
mos erros, que condemnão. Bem ſei eu que
os que procurão introduzir-ſe para valídos,
nem merecem ver a Mageſtade, pois eſtu-
dão ſó liſonjealla, para fazer o partido de
ſuas dependencias; e que os Soberanos não
podem com os olhos deſcubrir todas as lu-
zes da verdade, porque trabalhão em eſcu-
re-
DE DIÓFANES, LIV.II 47
recella os que com zelo apparente tratão
de ſues intereſſes, fingindo que amão os
acertos do ſeu Rei, quando he certo que ſó
eſtimão as ſuas grandezas. Se eſtes ſe caſti-
gaſſem com o ſilencio eterno em pena do
mal, que fallão, (viſto ſe habilitarem para
traidores os que mentem ao ſeu Rei, con-
correnso para que ſeja injuſto, ou em fal-
tar á juſtiça, ou em exceder a clemencia)
não ſoffreria enganos a Mageſtade, nem os
vaſſalos deſcreditos; que ainda que ſe não
deſcuidão as luzes do Sol em moſtrar o que
teve occulto a noite, são tão atrevidas as
nuvens, que ſe oppõem á verdade, que de
ſeus horriveis effeitos naſce o muito, que te-
mo o voſſo preceito. Eſtas são as razões,
por que eſpero dever á voſſa compaixão o
ſepultares-me no eſquecimento. Não forão
admittidas as minhas eſcuſas, e fui obriga-
do a fazer jornada no dia ſeguinte, dando
mais hum motivo para eſtimulo da desgraça.
Antes que deixaſſe aquelle amavel ſocego,
chamei os ruſticos, com quem vivia conten-
te: deſpedi-me dos filhos, que comigo prin-
cipiavão a obſervar os movimentos dos Plane-
tas deſſe luzido Firmamento, de outros, que
com mais adiantado conhecimento já hião
colhendo os doces frutos de ſuas applica-
ções; e de outros, que como ſeus pais, ap-
plicando-ſe á cultura dos campos, ſe reco-
lhião
48 AVENTURAS
lhião fatigados para deſcançarem; e can-
tando em ſeu trabalho, eſperavão a precur-
ſora do Sol, ſem que lhes ficaſſe tempo pa-
ra as murmurações, ou inquietações dos vi-
zinhos, e com ſaudoſas lagrimas lhe diſſe:
Eu ſou obrigado, ó filhos, a deixar-
vos, indo viver onde huns ſe alimentão do
mal de outros; e já que os Ceos vos tem
mimoſos, conſervando-vos felizmente neſte
amavel ſocego, augmentai para gloria do
meu trabalho o bom exemplo, com que vos
hei dito, que os pais deveis perſuadir os fi-
lhos a bem obrar: fazei que ſe não eſque-
ção do que lhes enſinei; e que huns admit-
tão os outros em ſe applicarem ao que lhes
pedir a inclinação; e que os outros conti-
nuem ſeus trabalhis, temão o ocio, e todos
exercitem as virtudes. Rogai aos Deoſes que
me não neguem as luzes, com que ſe amão
os inimigos; que poſſa defender os amigos,
amparar a pobreza, e tolerar os contra-
tempos.
Logo que cheguei á Corte, fui á pre-
ſença de Anfiarao, que com muitas honras
me recebeo; e perguntando-me donde era,
lhe reſpondi: Não poderei dizer-vos, ſe ſou
da grande Thebas, nem da Lycaonia, nem
da famoſa Athenas, como reſpondeo hum
grande Thebano; e como ao Sacerdote Ar-
chitas vos reſpondo, que não ſou de The-
bas,
DE DIÓFANES. LIV. II. 49
bas, como Teſifonte,nem de Athenas, co-
mo Ageſilao, nem de Lycaonia, como Pla-
tão, nem de Lacedemonia, como Lycurgo;
naſci em o Mundo, e ſou naturak de todo
o Mundo. Como Anfiarao conheceo que ti-
nha repugnancia em dizer a minha patria,
não fez a maior inſtancia para o ſaber.
Toda aquella tarde paſſámos em con-
verſação delicadiſſima pela goſtosa materia,
que ſe tratou; e quando forão horas, me
conduzírão a hum apoſento dentro em pala-
cio, onde achei tudo com a polidez, que
pedia o lugar, e fui ſervido com eſpeciaes
diſtinções. No dia ſeguinte tornei á preſen-
ça de Anfiaram, e ſe continuárão os diſcur-
ſos do que já ſe havia praticado ao ante-
cedente. Quizera dever-te (lhe diſſe Belli-
no) que ao menos tocaſſes a materia, em
que ſe fundárão eſſes diſcurſos, pois me fe-
guras forão de goſto, e delicadeza. Diſcor-
remos (lhe reſpondeo) nas almas ditoſas,
que nos Elyſios bemaventurados gozão fe-
lizmente a paz, que não interrompe o re-
ceio de perdella. Nos eſpiritos deſgraçado,
que em continuas penas ſe banhão no triſte
rio do eſquecimento. Na gloria, que adqui-
rem nas heroicidades, quando ſe lhes não
oppõe a vaidade, que as desluſtra. Na ſuave
Poeſia, e ſua origem. Nas felicidades do ſecu-
lo dourado, e admiraveis effeitos da razão.
Paſ-
50 AVENTURAS
Paſſados os primeiros dias, já não que-
ria ſó divertir-ſe, mas que em a noſſa con-
verſação tambem ſe trataſſe da utilidade pú-
blica; e que havendo-lhe ſatisfeitoa curio-
ſas perguntas, queria lhe diſſeſſe em que con-
ſiſtia o melhor governo, e obrigações do
Soberano. Ao que reſpondi conforme os
Ceos me inſpirárão. E logo me ordenou que
obſervaſſe, como hião os costumes dos vaſ-
ſallos, ſe ſe guardava a melhor ordem para
o bem público; e ſe ſe adminiſtrava verda-
deira juſtiça. Eu lhe pedi que me commu-
taſſe aquelle trabalho em outro, ainda que
mais cançado foſſe; e não foi poſſivel que
os meus rogos o conſeguiſſe: e como ſa-
ber mandar he mais difficil, que ſaber obe-
decer, ſujeitando-me a tão pezados encar-
gos, lhe roguei que ouviſſe a todos, e creſſe
a poucos; e que eſtes foſſem introduzidos
mais pelo merecimento, que pela confiança,
porque aſſim ſe evitaria que aos commercian-
tes dos enganos ſerviſſe quem ſe atreveſſe a
offuſcar a gloria, e candor de ſuas acções;
e aprenderião as gentes, qual era a verda-
deira felicidade do melhor Principe.
Cantavão aquelles póvos deſopprimi-
dos, florecendo as artes, e o bemj público;
mas ainda aſſim criei infinitos inimigos, ou
porque a inveja não ſoffre alheios louvores,
ou
DE DIÓFANES, LIV. II. 51
ou porquedos beneficios ſe gera a ingrati-
dão, pois naſce com os homens, como ca-
racter, que recebem de ſeu nome, ſendo
nelles genio antigo entregar as dividas ao
eſquecimento. Dentro em palacio me accom-
mettêrão alguns, de quem me dfendi com
honra; e quando cahi ferido, ſe retirárão,
talvez penſando que me deixavão morto. Fui
viſitado de Anfiarao, que com anſia quiz ſa-
ber, ſe ey havia conhecido os que ſe atre-
vêrão áquelle inſulto, o que de mim não
conſeguio, lembrando-me os padrões de im-
mortal gloria, que o Etruſco vinculou á
poſteridade, quando perdoou a Mucio, que
o buſcava para lhe tirar a vida. Em o lar-
go tempo de minha doença concorrião as
gentes, ſentindo mais que eu as proprias
feridas; e dizendo huns no ſeu pranto que
renaſcerião as antigas maldades; outros que
ſe enfraquecerião as virtudes, e a juſtiça; e
outros que ſerião reduzidos ás antigas op-
preſsões. Neſte tempo o tiverão os malevo-
los para cultivarem o Real agrado; e com
o falſo zelo, com que os vaſſalos indignos
tração o engano de ſeu Rei, fingírão ter
grande parte no ſentimento do que me ha-
vião feito: em hum dia lhe trazião á me-
moria os perigos, a que eu me havia ex-
poſto; em outro lhe pedião (como obriga-
dos da amizade, que eu merecia) que acu-
diſ-
52 AVENTURAS
diſſe com algum reparo para os inimigos,
pois eſtes naſcião do bem, que eu o havia
ſervido; e diſcorrendo ſobre a providencia,
que a iſſo ſe havia de dar, dizia cada hum
daquelles o ſeu parecer, e vinhão todos a
concordar, que Anfiarao déſſe a entender,
que aquelle tempo da minha auſencia me ha-
via apartado de ſeu coração, e me não ad-
mitiſſe na ſua preſença, para ſe mitigar o
ardor da inveja, do odio, e do ciume.
Acabada a cura das minhas feridas,
me achei cuberto de lepra, porque os Deo-
ſes benignos, que não ſe eſquecião de am-
parar os meus deſejos, me fazião mimos com
repetidas experiencias da minha conſtancia;
e na eſperança de que, conhecendo a minha
debilidade, me permittirião algum deſcan-
ço, mandei pedir a Anfiarao, que me con-
cedeſſe licenla, para ir reſpirar para huma
pequena caſa de campo, que verias neſſa Al-
dea, a qual deixei, tanto que pude cami-
nhar para eſte ſolitario retiro; e ainda aqui
não ſe me diſpensão as inquietações da Cor-
te, pois ha poucos dias, que fui conſultado
para negocio, em que a minha infelicidade
fazia novo esforço, para combater o meu
ſocego: e he tal a força da minha deſgra-
ça, que podendo de todo auſentar-me, ten-
do o tacito conſentimento de Anfiarao, o
deploravel eſtado, em que me vês, não per-
mit-
DE DIÓFANES. LIV. II. 53
mitte fazer maior caminho, valendo-me aſ-
ſim da companhia detes innocentes Pa#to-
res. Não repito algumas circumſtancias, que
na meſma occaſião forão dignas de reparo,
porque o meſmo fallar me fatiga, que nem
hum pequeno deſagogo conſente o fado aos
perſeguidos. Pois ſabe que os meus infortu-
nios (lhe diſſe Bellino) me obrigavão a a-
companhar-te neſte ameno boſque, tendo
por certo que eſtarias livre dos que vem fe-
ridos do contagio, que ha nas Cortes, e
como com horror tenho ouvido o veneno,
que occultão os corações, que ainda te não
deixão, eu me reſolvo a continuar a minha
triſte peregrinação cheio de exemplos, que
ſeguir, e documentos para publicar. Como
ſou quaſi inſenſivel para os allivios, (lhe re-
ſpondeo Antionor) não te perſuado a que me
acompanhes, mas ſim que te retires dos que
podem inſicionar-te com ſeus vicios, ſe o teu
animo he tão ſincero, como ſe me repreſen-
ta nas tuas palavras. Oh quanto (lhe diſſe
Bellino) he perſeguida a virtude, e pere-
grina a verdade, que occultão aos Sobera-
nois, pois vejo reſplandecer em ti o eſpiri-
to gentil, que ſe deſpreza! Não te admires
do que ouves, (lhe respondeo) repara no
que vês, para que te não enganem a genti-
leza, e eſtimações, pois são ſujeitas ás mi-
ſerias, que padeço. Vai, ó ditoſo, e gentil
man
54 AVENTURAS DE DIÓFANES
mancebo, que eſtás em eſtado de buſcar hum
lugar, que te contente, e deſcance. Roga
aos Ceos que me aſſiſtão; que infundão em
Anfiarao os acerto, o conhecimento da li-
ſonja, a pureza da juſtiça, o augmneto das
virtudes, ſciencias, e o reſguardar o reſ-
peito do throno, ſem perſeguir a innocentes;
e juntamente lhe inſpirem o amar ſempre os
vaſſallos, para ſer delles amado. A Deos,
ó feliz Antionor, (lhe diſſe Bellino) que
como praça cheia do melhor ſocorro, não
temes o ſitio, nem as forças dos inimigos
de fóra. Os teus rogos mais depreſſa hão de
chegar aos Deoſes; e lhes pede que animem
o meu deſalento, que encaminhem os meus
paſſos, e que antes me entreguem á mais
cruel morte, que deixe a honra de reger as
minhas acções.
Com eſta admiravel deſpedida tornou
Bellino triſte, e afflicto a continuar o ſeu
caminho, e trabalhos, ſem mais eſperança,
ou companhia que a razão, e o decóro, que
o encaminhavão a temer juſtamente os ho-
mens, e ſeus venenoſos enganos.
FIM DO SEGUNDO LIVRO.
AVEN-
AVENTURAS
DE
DIÓFANES
LIVRO III
SUMMARIO
Continuando Hemirena como Bellino
a caminhar para Argos, fugindo das
povoações, entrou em huma brenha para
deſcançar, e achou nella a Clymenea, que
não conheceo; e tendo-a por Delmetra,
a perſuadio a deixar tão aſpera vida. Fo-
rão dar a huma Aldea, onde ſe conſer-
várão quatro annos, ſervindo aos Paſto-
res. O disfarce de Hemirena deo cauſa
ao rendimento de Atilia, que procuran-
E
do-a
56AVENTURAS
do-a para ſeu eſposo, as obrigou a deixa-
rem as innocentes Paſtoras, e continua-
rem a ſua peregrinação.
EM huma freſca tarde, quando
as aves cantando ſaudosas ſe
deſpedião das luzes de Febo,
ſahia Bellino de Corintho, e
entrava em Argos, onde de-
terminava deſcançar dos traba-
lhos, com que havia caminhado deſde que
ſahíra da Athenas; e guardando a ordem de
fugir ao porto, em que naquelle Reino deſ-
embarcára cativo, por não ſer conhecido,
procurava occultar a liberdade nas duras pri-
zões do temor. Chegou á boca de huma bre-
nha, que ſe compunha de grandiſſimos pe-
nedos, pelo que, fazendo-lhe horror a ne-
gra ſombra, eſtava immovel; e vendo que
hum vulto vinha de dentro como a buſcal-
lo, lembrando-lhe que podia ſer alguma fe-
ra, o natural receio o inclinava a que te-
meſſe, e a recordação de ſua pouca fortuna
o aconſelhava a que não fugiſſe. Quando ou-
vio huma voz, que dizia: Quem es, o que
duvidas entrar no frio centro deſte rochedo,
que eu habito? Não temas, ném fujas: ſe
es racional, chega a conſolar a quem neſta
ſepultura paga tributo á deſgraça. Não ſe-
ja maior em ti o effeito da covardia que
o da
DE DIÓFANES. LIV. III. 57
o da compaixão, que merece huma infe-
liz.
A eſtas palavras entrou Bellino naquel-
la horrenda cova, e vio huma mulher, que
moſtrava no roſto quebrantado alguns veſti-
gios de formoſura, fummante agradavel,
e parecia ter mais de ſetenta annos. Chegou
a Bellino, e apertando-o entre ſeus braços,
lhe diſſe: Qual ſeria o aſtro benigno, que
te conduzio á minha eſcura habitação? Tal-
vez compadecendo-ſe já das minhas adverſi-
dades, encaminhaſſe para aqui os teus paſ
ſos, porque nem ſempre conſentem que o
fado triunfe dos mortaes: aqui tenho vivido
retirada das gentes, e ſó na ſombra das pe-
dras achei o melhor amparo. E ficando ſuſ-
penſa, e penſativa por algum tempo, lhe
diſſe Bellino: Confia-me o teu nome, con-
tinuando no deſafogo dos teus pezares; por-
que quando ſe repartem communicados, fa-
zem menos violento o ſeu effeito; e porque
a hum infeliz, a quem atropela a deſgraça,
ſempre ſervem de allivio os laſtimosos écos
dos que tambem ſe queixão da fortuna. Bem
quizera ſervir-me da occaſião da fortuna. Bem
quizera ſervir-me da occaſião para os deſa-
fogos; (lhe respondeo) mas como poderei
dizer-te quem ſou, ſe da minha origem pa-
rece que nem as memorias conſervo; que
como apoſtou o deſtino a minha ruina, não
me lembro da que ſou, e me aborreço tan-
Eii to,
58 AVENTURAS
to, quanto da que fui vivo diſtante: mas eu
te ſatisfaço, dizendo que me chamo Delme-
tra, quem a deſgraça roubou da pompa
eſclarecida, e arrojou a hum abyſmo de mi-
ſerias; e reduzindo-me ao mais vil eſtado,
fui entregue a continuos infortunios. As gen-
tes me anniquilárão, deſprezárão-me os alli-
vios, os deſcanços me deſconhecêrão, e me
deſamparárão as riquezas; mas como he mais
poderoſo o animo conſtante, que formida-
vel todo o poder do fado, os trabalhos me
vivificão, para reſiſtir aos ſeus aſſaltos. Se-
parei-me das gentes, e buſquei entre as fe-
ras o amparo, que me negavão os racio-
naes; e debaixo deſtes penedos tenho procu-
rado com lagrimas continuas abrandar a ira
dos Ceos. Nos primeiros dias parece que me
alimentou o pranto; e nos horrores das noi-
tes o grande pavor, e inexplicaveis ſuſtos
me repreſentavão todo o furor do Inferno:
nem ſei dizer-te o medo, que me cauſavão
os tigres, quando vinhão abrigar-ſe dos ri-
gores do Sol. Todo o cuidado era pouco
para me fazer immovel, temendo a ſua ſe-
rocidade: quando os via junto a mim, em
qualquer de ſeus movimentos ſe me figura-
vão os ultimos inſtantes de minha vida; e
ainda que de noite não aſſiſtião aqui, não
era menor o horror, que me cauſava o ala-
rido de diverſas vozes, e canto de avos no-
ctur-
DE DIÓFANES. LIV. III. 59
cturnas; ſem mais abrigo, conſolação, luz,
ou companhia que a das lagrimas, que pro-
duzia a minha deſgraça. Aſſim me lembrava
dos meus, e o eſtado, a que ſerião reduzi-
dos, e com a viviſſima ſaudade tinha o deſa-
fogo de arrancar do peito magoadiſſimos
ſuſpiros; e quando canſava o triſte eſpirito,
adormecia, ou vencida de cuidados, ou que-
brantada de triſteza; quando as féras ſe re-
colhião, ſahia eu com fome tão feia, que
me ſervião de alimento as frutas, e hervas
amargoſiſſimas; e como pelo receio de que
vieſſe alguem, me recolhia logo, não tinha
ſocego fóra deſta brenha, eſperando dever
mais compaixão aos brutos, que a hbitavão;
que aos racionaes, de quem eu fugia; e a-
inda que eſtou em ſitio muito ſolitario, e
diſtante de povoação, era tal o medo, que
muitas vezes dei grandes carreiras fugindo,
por ſe me repreſentar que via ao longe al-
gumas paſſoas, que ſe encaminhavão para
aquella parte. Paſſava todo o dia, e noite
ſeguinte em continuo ſuſto; e quando che-
gava a ſahir com muito vagar, e temor, eſ-
condendo-me com as arvores, e com os mon-
tes, reparava para aquelle lugar, e via que
a algumas pedras tinha dado alheio corpo a
minha fantaſia, e movimento o meu inexpli-
cavel medo: como aquelles culpados, que
em parte nenhuma eſtão ſeguros, pois levão
no
60 AVENTURAS
no delicto o inſtrumento de ſeu caſtigo, por-
que ſe levantão as meſmas pedras a perſe-
guillos: aſſim me via eu atormentada; mas
não era o remorſo o que me condemnava a
tão continuo deſaſſocego; mas fim a cruel-
dade dos barbaros, a quem eu temia, ſem
haver commetido mais culpas para o ſeu
odio, que o entregar-me nas ſuas mãos o
meu tyranno deſtino. O decurſo do tempo
gaſtou em mim o horror da ſepultura, em
que vivo, o temor dos viventes, que me a-
companhão, e o receio dos que me perſe-
guião: a fome, o frio, a crueza dos ali-
mentos, e a aſpereza da cama, já tolero ſem
trabalho; porém nunca ſe diminuo em mim
a força da viva ſaudade, com que todos os
dias lamento a auſencia dos meus, e rom-
pendo em triſtes ais as entranhas deſte ro-
chedo, parece que ao laſtimoſo ſom de meus
inflammados ſuſpiros brotão lagrimas criſ-
tallinas, que fugitivas correm murmurando
de meus triſtes deſvarios. Ha ſei annos que
conſervo aqui a vida para caſtigo de meus
deſacertos, que já a morte em tal eſtado
fora mimo da fortuna: a ruſticidade do paiz,
e o eſtado brutal, em que me vês, já me
não são violentos, porque o coſtume faz na-
tureza; mas he ſem igual o tormento, que
me fabríca a memoria; pois ainda o meſmo
temor das gentes gaſtou o tempo, e não ſei
ſe
DE DIÓFANES. LIV. III.
61
ſe a conſtancia, com que ſoffri o rigor da
tyrannia entre os homens, hoje degenera
em obſtinação entre os brutos; porque ſen-
do já inſenſivel para os males, e atormen-
tando-me ſó a força de innocentes affectos,
tenho feito tão domeſticos os pezares, que
nem me lembro de buſcar allivios. Não me
atemorizou tanto o ver-te, quanto me per-
turbárão as pedras, quando principiei a ſa-
hir deſta triſte ſepultura; e aſſim te digo,
que ſe me buſcas, eu já te peço a morte,
pois me não liſonjea a vida; ſe me es con-
trario, eu me não nego ao odio, nem te re-
ſiſto, pois que chego a appetecer os eſtra-
gos; e ſe acaſo te perſegue a fortuna, con-
ta-me qual foi a tempeſtade, que te arrojou
a eſtas deſertas brenhas, para que eu prin-
cipie a louvar os juſtos Deoſes, que te trou-
xerão para conſolar-me.
Não venho a buſcar-te, (lhe reſpon-
deo Bellino) nem te ſou contrario, mas an-
tes ſinto que o teu mal ſe me communica;
venho atropelado da fortuna, e buſcava no
ſeio deſtas brenhas hum lugar, em que ſem
ſuſto deſcançaſſe; e ſe foſſem mais antigos
os teus males, e talvez menos os teus an-
nos, poderia ſucceder que dos teus traba-
lhos naſceſſen os meus; e como a jor-
nada, que ultimamente fiz, me obriga
a confeſſar-te o meu cançaſſo, dá-me
li-
62
AVENTURAS
licença, para que me encoſte a deſcan-
çar.
Delmetra o conduzio para a parte mais
concava da brenha; e logo lhe advertio que,
entrando as feras para aquelle lugar, não
fallaſſe, nem ſe moveſſe, em quanto ſe não
coſtumaſſem a vello; e deixando-o accom-
modado como pode, ſahio a buſcar algu-
mas frutas ſilveſtres, para ter mimoſo o ſeu
hoſpede. Em deſpertando Bellino, lhe apre-
ſentou aquelles aſperiſſimos regalos, que ac-
ceitou com moſtras de verdadeiro agradeci-
mento. Em quanto ſe recolhêrão os ferozes
primeiros poſſuidores daquella agreſte caſa,
eſteve com attenção Delmetra reparando na
agradavel preſença daquelle mancebo; e o
muito, que mudamente hum olhava para o
outro não lhes cauſava riſo, como ordina-
riamente ſuccede, porque principiando Del-
metra a banhar-ſe em lagrima, Bellino lhe
correſpondeo com outras tantas, e ſe expli-
cavão aſſim os triſtes olhos com a vozes
mais claras, que podião exprimir, o que
hum, e outro coração ſentia. Bellino pela
grande novidade, que lhe fazia o ver-ſe tão
perto daquelles animaes, nem ſe reſolvia a
enxugar as lagrimas, que correndo por ſuas
bellas faces, paravão em ſeus labios de na-
car, e apoſtavão competir com ſeus claros,
e bem ordenados dentes. Quando de novo
en-
DE DIÓFANES. LIV. III. 63
entrava mais alguma féra, ou davão aquel-
las alguns paſſos, era tal o ſuſto, que lhe
parecia perder os ſentidos; e quando prin-
cipiárão a ſahir a paſtar, reſpirou aquelle
opprimido coração; e eſcolhendo a conti-
nuas a ſua derrota: He tempo, Senhora,
(diſſe a Delmetrea) para que me permittas
continuar o meu caminho, tão admirado de
ver-te, quanto agradecido á tua bondade;
e ainda que te deixo, ſerá inſeparavel da
minha lembrança o teu agrado, pois na al-
ma o levo impreſſo; e os prodigioſos effei-
tos da virtude, e temor dos máos, pois fa-
zes tão boa ſociedade com as féras, que te
reſpeitão, quando temes os racionaes, em
quam as iniquidades aggravão tanto aos bons,
quanto me confundem os ſobrenaturaes ef-
feitos, que publicão nos deſertos os prodi-
gios dos Ceos. Como tão apreſſadamente
queres deixar-me, (lhe respondeo Delmetra)
ſem que te mova a compaixão de huma triſ-
te, que debaixo deſtas pedras eſconde a ſua
maldade? E como acompanhavão a eſtas pa-
lavras muitos milhares de lagrimas, não po-
de Bellino reſiſtir á ternura, e determinou
demorar-ſe alli mais alguns dias. No ſeguin-
te lhe pedio infortunios, ainda que mais lhe pa-
recia transformação admiravel ordenada pe-
la ſabedoria de Minerva, para a confortar,
que
64 AVENTURAS
que creatura moral; porque nas ſas acções,
e palavras admirava acertos ſuperiores. Não
he a minha laſtimosa hiſtoria para divertir-
te, (lhe respondeo Bellino) porque meus
repetidos trabalhos ſó poderão augmentar
triſtezas; mas como queres ouvillos, direi
parte delles para ſatisfazer-te.
Naſci em hum paiz muito diſtante deſ-
te: fui ſoccorrido de bens: bem viſto entre
as eſtimações, e ſſiſtido pelos melhores;
mas como os juſtos Deoſes não quizerão
que eu colheſſe os frutos dos regalos, por-
que quaſi ſempre são venenoſos, quando eu
principiava a conhecellos, fui reduzido a
todo o genero de trabalhos; e moderando-
ſe a rigor delles, tomei forças para as maio-
res fadigas. Os precipicios, a que me inten-
tava encaminhar a violencia de huma paixão,
me obrigárão a fugir, vendo de longe os
perigos; e como devo dirigir os meus paſ
ſos a buſcar a patria, eſpero que não os
queiras divertir; e ſe te agrada ir correndo
igual fortuna, deixa a ſociedade das feras,
e acompanha-me, que ao rigor dos infortu-
nios ſó mdera o achar nelles companhia.
Irás recommenda ao meſmo retiro, e ſe-
gredo, de que pende a minha vida. Em
acompanhar-te (reſpondeo Delmetra) buſ-
carei o meu remedio, pois tu ma has reno-
vado o mal, com que já não póde o animo
en-
DE DIÓFANES. LIV.III. 65
enfraquecido; mas vou certa que pelos Deo-
ſes immortaes juras acompanhar-me, como
eu tambem a ti; e ſe na verdade tens hu-
manos ſentimentos, ou es aqui mandado por
ſegredo da eterna ſabedoria, eſpero que as
tuas obras ſejão iguaes ao que influe o teu
amavel ſemblante. Nunca ſaberei deixar-te,
(lhe reſpondeo Bellino) nem temas que pe-
rigue a fidelidade, attenção, e abrigo, que
devem os bem naſcidos ás mulheres, a quem
perſegue a fortuna; porque conſiste a maior
honra em ſer abrigo de honrados; e quan-
fo juras ſeres de mim inſeparavel, eu jun-
tamente o ſervir-te; e ſe não ha couſa al-
guma, que te embarace, he preciſo que nos
determinemos a deixar já eſtes rochedos,
antes que a minha vida experimente a ira
das féras. Vamos: lhe reſpondeo Delme-
tra) e te agradeço, ó brenha compaſſiva,
o amparo de tantos anns, de que ſaudoſa
me auſento, pois achei em ti o lugar, que
me negárão os corações humanos: corrão
agora de ti, ó bella penha, os liquidos
criſtaes, ſem que os perturbe o ardor, que
me refrigeravão. De ti me aparto, ó boſ-
que ſombrio, pardo monte, florecente
prado. Aves innocentes, cantai ſonóras, que
já vos não interromperáõ meus triſtes ais; e fi-
cai ditoſos brutinhos, que do odio o mal não
conheceis, nem do amor o cruel effeito.
Sa-
66 AVENTURAS
Sahírão pouco antes de noite, ſentin-
do huma tal conſolação, que julgavão tri-
unfarem dos paſſados trabalhos, pela ale-
gria, e reſignação, com que ora cahindo,
ora tropeçando forão parte da noite; e ain-
da que algumas vezes hião com ſuſto, e cui-
dado, pelas vozes de eſtranhos brutos, que
parecia paſtavão por aquelles fragoſos mon-
tes, com tudo hiãi tão fortalecidos com a
companhia, que tudo lhes era ſuave. Del-
metra pelo de coſtume de dar poucos paſſos,
fazia o ſeu caminho com grande trabalho;
aſſim forão ſem mais guia que o conheci-
mento, que Bellino tinha das eſtrellas; che-
gárão a huma Aldea, onde as ſerranas erão
formoſas, e agradaveis; e como eſtavão fó-
ra de Argos, e já na campanha de Myce-
nas, ſe offerecêrão ao ſerviço daquelles ruſ-
ticos, e foão admittidos em caſa de Leda,
que veſtindo a Delmetra, lhe encarregou a
aſſiſtencia de uma velha enferma, e entre-
gou ſeus rebanhos a Bellino; e ſuppoſto que
da ſua memoria reſultavão ſempre ſaudosos
effeitos, pois ſe lhe não ſeparavão as cau-
ſas, ſuſpirando auſente da ſua patria, lem-
brando-lhe ſeus amados progenitores, e os
ultimos ſuſpiros de Beraniza, entre a mágoa,
a ſaudade lhe parecia não poder conſeguir
maior felicidade, que o ſocego de animo,
em que então ſe via. Quando apaſcentava
o ga-
DE DIÓFANES67
o gado, cantava ſuavemente, fazendo que
renaſceſſem com a maior gloria os antigos
varões, de quem repetia os mais cadentes
verſos. A' noite ſe recolhia ou molhado a
ſe reparar ao fogo, ou a deſcançar com Del-
metra; e naquella tranquilidade de eſpirito
conſiderava mais rica, e ſumptuosa e chou-
pana que oa palacios, que havia deixado em
Thebas; nem deſejava mais que aquella maior
bem de ſeus males, tendo por mui difficil
chegar á ſuſpirada patria; que ſempre os
trabalhos fazem agigantado qualquer peque-
no deſcanço. Delmetra, que era tida por mãi
de Bellino, conſolando-ſe com tão boa com-
´panhia, e ignorando as obrigações, que lhe
accreſcião para eſſe fim, eſperava acabar na-
quella Aldea os poucos annos, que lhe reſ-
taſſem de vida. As Paſtoras, querendo imi-
tar o canto de Bellino, conſolando-ſe com tão boa com-
panhia, e ignorando as obrigações, que lhe reſ-
taſſem de vida. As Paſtoras, querendo imi-
tar o canto de Bellino, ſe exercitavão em
ſeus innocentes feſtejos. Delmetra juntamen-
te animava aquelles divertimentos, tomando
á ſua contra o inſtruillas: com o que vivião
todos contentes, tornando-ſe os recreios em
eſcolas de civilidade, economia, e recato.
Celebravão-ſe as bodas de Learco paſ-
tor velho, com a bella paſtora Olympia; e
como havia cauſado a todos admiração a ce-
ga obediencia, com que Olympia ſe con-
formára com a vontade de ſeus pais, deter-
minárão feſtejar tres dias aos deſpoſados.
Às
68Aventuras
As paſtoras veſtidas de finiſſima lã de ſeus
cordeirinhos, levando-lhe nas innocentes of-
fertas os repetidos votos da mais pura ami-
zade, a conduzírão para uma freſca fonte,
que guarnecida de arvoredo, convidava com
a delicioſa ſombra. Sobre a verde relva ſe
aſſentárão, os homens a huma parte, e as
mulheres a outra, menos os dous deſpoſa-
dos, que no melhor lugar eſtavão juntos.
Amatirce, irmã de Learco, ſahio do ſeu lu-
gar, deſafiando para o baile, depois do qual
lhe cantárão galantiſſimas canções, tudo ſem
mais arte, ou adorno, que o da agradavel
ſingeleza, e aſſim continuárão alternativa-
mente; acabavão huns, recommendando aos
Deoſes o conſtante amor, e felis conſerva-
ção dos deſposados; outros a pureza de ſuas
obras, e augmento das virtudes; outros que
ſe contemplaſſem, para que conſervaſſem com
alegria o goſto dos primeiros annos: e ou-
tros com muitas graças, elogiando a inno-
cente belleza de Olympia, e zombando das
cans de Learco, lhe dizião que ſerviſſe em
boa paz a Olympia para agradecer tão fe-
liz conſorcio.
Paſſadsa eſtas primeiras diſpoſições do
feſtejo, quizerão ouvir a Bellino, que lhes
repetio as cadencias metricas, em que re-
commendava o eſplendor dos noivos a A-
glaya, o prazer a Thalia, e a Eufrozine a
for-
DE DIÓFANES. LIV. III. 69
formoſura de Olympia, para que a defen-
deſſe da deſgraça, que ordinariamente ſe lhe
atreve. Tambem quizerão que Delmetra con-
correſſe para a função com alguma couſa
util, e lhes déſſe daquelle novo goſto, que
alli lhes havia levado; e aſſentárão propô-
rem-lhe dúvidas, e fazerem curioſas pergun-
tas, ao que deo principio Learco, pois era
a mais ancião, e reſpeitado em tal dia, e
erguendo-ſe, diſſe: Qual he a couſa, que o
homem deve mais amar, e o que mais o af-
flige? Mais deve amar (lhe reſpondeo) a
conſorte bella, e virtuoſa, que elle não me-
recia, e o que mais o afflige he a ſepara-
ção do que ama, e o perder por deſgraça,
o que adquirio o diſvelo. Com muito riſo
applaudírão todos eſtas reſpoſtas, e lhe ro-
gárão que não ſó reſpondeſſe, mas que con-
tinuaſſe a diſcorrer ſobre as queſtões, ou
perguntas, conforme lhe ocorreſſe. Em que
conſiſte a verdadeira amizade? (perguntou
Pachina irmã de Olimpia.) Em ſentirem
dous ſujeitos as adverſidades hum do outro,
(lhe reſpondeo) e ſe alegrarem igualmente
com as proſperidades; e como he difficil
achar-ſe huma com as qualidades de verda-
deira, he preciſo que a prudencia faça a eſ-
colha para ſrem bem ſatisfeitos os precei-
tos da fidelidade. Não póde ſempre deſem-
penhar a boa amizade o ſogeito, que não for
diſ-
70 AVENTURAS
diſcreto, e entendido, pois ſe devem acom-
panhar com o conſelho nas adverſidades, e
reparar dos golpes da inveja nas proſperi-
dades; pelo que não ha couſa, de que mais
careça o coração humano, pois na preſen-
ça adeverte o affecto os deſacertos, e na au-
ſencia coſtuma a lealdade defender dos ini-
migos. Tambem a prudencia, e ſ e ſegredo são
condições preciſas, em quem deve ſatisfazer
aos encargos da amizade; porque aſſim co-
mo o neſcio não he capaz de aconſelhar,
tambem o fallador arruina, quando menos
o deſeja. Ha muitos, a quem ſe póde fiar
a peſſoa, a vida, e o dinheiro; mas o ſe-
gredo ſó aos que com antiga experiencia a-
creditão a maizade, a qual não ſó he obri-
gada a calar o que ſe lhe confia, mas guar-
dar o que vir, e algumas vezes o que ouvir
aos eſtranhos, pelo que ſó aſſenta bem nos
ſogeitos, que cuidão bem o que fazem, e ſa-
bem o que dizem. A peſſoa, que mais ama,
ſe conhece em ajudar com as forças, acon-
ſelhar com affecto, e eſtranhar com pruden-
cia, não eſperando que a buſquem para o
ſocorro nos trabalhos, nem que as finezas
ſe agradeção; porque a amizade naturalmen-
te he generoſa, e não quer mais intereſſe
que o prazer de cumprir com o que deve;
e he ſempre deſaire da generosidade o eſ-
perar agradecimento.
Tam-
DE DIÓFANES. LIV. III.
Tambem reparai, ó ſerranos, que nem
todos os conhecidos são capazes para ami-
gos; porque os que não forem honeſtos, e
bemquiſtos, ſerá melhor eſtimalos, ſe em
alguma cousa o merecerem, que converſal-
los particularmente; não ſó pelo mal, que
podem obrar, mas tambem pelo que os ma-
licioſos ſuſpeitão dos máos; e porque vos
não enganem os que adiantão muito os paſ
ſos da amizade para chegarem á converſa-
ção particular, o que muitas vezes ſuccede
com os moços mal procedidos, e ocioſos.
Eſta cautela he muito mais preciſa na Cor-
te, onde ha muitos, que merecem eſtima-
ção, e muito poucos, que mereçerão ſe lhes
confiem os ſentimentos internos. Em toda a
parte he o affecto da boa amizade mais per-
manente que o amor da ſanguinidade; por-
que a cordealidade dos parentes poucas ve-
zes dura, e o affecto da amizade rara vez
acaba; as ſuas leis promettem muitos guar-
dar, e as ſabem guardar muito poucos, pois
são indiſpenſaveis os preceitos de preſtar,
defender, e acompanhar; pelo que he infe-
licidade o não ter huma, e grande o traba-
lho de ter muitas; e as que são verdadei-
ras, ou falſas, ſó ſe conhecem quando a for-
tuna ſe retira; porque a eſta ſempre ſeguem
os mais, aſſim como á virtude os melhores.
Concluio Delmetra eſte diſcurſo, em que
F lhe
72 AVENTURAS
lhe derão os vivas com grande alegria. Qual
he o peior trabalho das mulheres da Corte?
(perguntou Barnelia) A eleição das cores,
com que pintão a formoſura, (reſpondeo
Delmetrea) pois gaſtão a maior parte do dia em
continuas transformaçãoes, ſem chegarem a co-
nhecer que o natural lhes eſtá melhor; e aſſim
paſsão de deſejo em deſejo, querem, e não que-
rem, manchão-ſe, e deſmanchão-ſe; fazendo-
ſe aborrecer de perto, as que ſe fizerão amar
de longe; e ſem parecerem de manhã as que
são á tarde, não tem mais conſtante eſtado
que em conſervarem aquella indiſcreta opi-
nião. Eſte mal inveterado ſe acha nas mu-
lheres, que tomão lições no ſeminario da
vaidade, onde ſe aprendem mil erros, são
continuos os bailes, recreios, e converſações,
em que na chuſina deſentoada fallão muitas
ao meſmo tempo; humas em dilatados cum-
primentos, outras repetindo hiſtorias mal
applicadas, com as quaes pertendem os cre-
ditos de entendidas; outras ſe fingem ſabias,
fallando nos Eſcritores, e dando a arte aos
Poetas, e outras, que como eſtatuas da vai-
dade na contemplação da ſua belleza, e bi-
zarria, ſe eſtão revendo em ſi meſmas, e
exercitando-ſe em viſagens, e melindres;
porque muitas ignorão que a formosura do
roſto apenas naſce, tem mil contrarios,
que a arruinão; e que ſó faz cara ao tem-
po
DE DIÓFANES. LIV.III. 73
po, e aos trabalhos, a que conſiſte em hum
eſpirito aprazivel, e modeſto, que com ſua-
vidade as faz amaveis, e tão poderosas,
que confundem a ouſadia, tirão as armas ao
atrevimento, e triunfão dos rendidos, ſem
mais trabalho que recommendarem-ſe ao ſi-
lencio, que coſtuma allegar a ſeu favor; e
que em degenerando eſta ſuavidade de eſpi-
rito, perdem o preço para com os que lhes
são ſuperiores, ſe fazem enfadonhas aos
iguaes, inſoffriveis aos inferiores, e abor-
recidas de todos; e quando preparão pa-
ra outrem o veneno, bebem a maior parte.
Mais quizera que ellas ſe divertiſſem
na converſação do meſmo sexo, que admit-
tirem os homens, porque são grandes os
danos da occaſião; e ainda entre as mu-
lheres ſe devem eſcolher as que forem gra-
ves, e comedidas; porque àquelas, que não
tem eſtas circumſtancias, ſuccede algumas
vezes ſerem mais prejudiciaes que os ho-
mens, pois ſe não guardão dos inimigos do-
meſticos. As caſadas devem ſempre acaute-
lar-ſe na preſença das donzelas, pelo que
do exemplo ſe póde recear; aſſim como he
em todas conveniente huma diſcreta eleva-
ção, com que não eſtimem as liberalidades,
nem queirão mais grandezas que o deſpre
zallas; porque as que deſejão mais que o
que lhes permitte a ſua esfera, eſtado, e
Fii poſ
74 AVENTURAS
poſſibilidade, tem mais hum inimigo para
vencer o ſeu coração. O amor em algumas
procede mais da vaidade do eſpirito que da
fragilidade, porque se pagão do applauso
dos que ſó as estimão por ſeus intereſſes;
ſendo certo que as mais das vezes ſe não
louvão aquellas formoſuras com prodigali
dade tão nobre, que não eſperem o premio
de taes louvores; a vaidade, e o amor pro-
prio, que concorrem para ſerem com mui-
ta leveza credulas, também as obriga a tra-
zerem na converſação os rendidos, que deſ-
prezaram, ſendo iſto grave deſcuido da mo-
destia, e deſaire do proprio reſpeito; mas
aſſim perſuadem que são dignas de ſerem
amadas: alegrão-ſe de os verem proſtrados,
especialmente ſe tem qualidades para terem
a estimação das gentes, recebem huma glo-
ria exquiſita, em terem eſcravos, que mais
estimão as prizões, que desejão a liberdade;
e ſe por graça lhes principião a acceitar os
ſacrificios, as offertas, as liſonjas, os pro-
teſtos, e as finezas, muitos vezes de véras
se achão vencidas; porque as diſcretas ſub-
miſsões, ſúpplicas repetidas, e bem ornadas
poezias costumão abalar os montes, pois ſe
de aſſalto as não vencem, o recomendão
a uma constância importuna; nem ha mu-
ralha, que reſiſta a eſte fim, ſe ſe não te-
me ao principio. Ha mulheres na Corte,
que
DE DIÓFANES. LIV. III 75
quem em oitenta annos, que vivêrão, nunca
tiverão mais aplicação que a dos ſeus en-
feites; e he couſa laſtimoſa que deixemos
de enriquecer-nos dos conhecimentos neceſſarios
com a leitura de bons livros, que são com-
panheiros ſabios de honeſta converſação.
Nós não temos a profiſsão das ſciencias,
nem obrigação de ſermos ſabias; mas tam-
bem não fizemos voto de ſermos ignorante.
Há mulheres, que em acabando os primei-
ros cumprimentos já não querem mais que
dizer mal, e fallar em enfeites, e outras ſe-
melhanças ninheiras; eſtas fora melhor que
aprendeſſem a calar, ſe não ſabem tratar o
conveniente; não digo que ſejão ſabias co-
mo as Musas e Sibyllas; mas que confor-
me ſua esféra, e poſſibilidade, ſe appliquem
ás sciencias, e ao que ſirva para a boa di-
recção dos coſtumes, que como não são ani-
maes, que tirem das flores, veneno, não po-
dem abuſar da celeſtial ambroſia, que nos
livros ſe acha; porque o ignorar a gravi-
dade da culpa, e os preceitos da modeſtia,
conduzem para o tropeço. Nem digo que
seja util o lerem toda a caſta de livros,
pois são pernicioſos os que tratão das pai-
xões, que inſenſivelmente costumão intro-
duzir-ſe nos animos; porque ainda que ſe
pintem com agradaveis cores, elevado es-
tilo e invenções honeſtas, nem assim nos con-
vem
76 AVENTURAS
vem lellos, e baſta que nos apliquemos aos
que nos enchem de documentos admiraveis,
fazem temer os effeitos do ocio. A pai-
xão que ſe exercita em alguma boa obra,
diverte as mais, que podem inquietar o eſ-
pirito, e na goſtosa fadiga dos eſtudos tem
a maior gloria o entendimento, vendo pela
memoria deſterradas as trévas da ocioſida-
de, e ignorancia, tirando os melhores ex-
emplos de perfeição. Oh quanto ſerá feliz
a que guardar no coração eſtas ponderações!
pois ſó as deſprezão as que, como aves no-
cturnas, não podem ver as luzes; eſtas são
as que deixão o honeſto, e generoſo de noſ-
ſos coſtumes, com o que nos tirão o credi-
to, pois vivem entre os deleites, e a inve-
ja, que as negão ás venerações, e lhes ar-
ruinão a alegria.
Vós, as ſerranas, que não podeis inſ-
truir as filhas nas sciencias, basta que não
as deixeis viver ocioſas, pois é tão preci-
oso o costumllas com o trabalho quotidia-
no, como ao lavrador o arado, e ao mili-
tar as armas. A natureza dotou aos homens
de mais forças e as mulheres de mais ſub-
tileza de eſpirito, e ás que ſe ſervem della
entregues ao ocio incita paixões ardentes,
que arruinão ao entendimento; que aſſim co-
mo não ha couſa mais amavel que a bonda-
de, não a ha tão ſegura como huma inno-
cen
DE DIÓAFANES. LIV. III. 77
cente, e docil ſinceridade, applicando-ſe eſ-
ta em reprehender os Poetas, deſmentir as
fábulas, e vencer a ignorancia, e a malda-
de, que nos tem por inimigas do ſocego pú-
blico; e perſuadamo-nos de que he ſó bel-
la, e admiravel, a que ſe adorna de pru-
dente moderação em todas as ſuas acções,
e palavras, e só malquiſtas entre a gente ci-
vil, as que com a ocioſidade, e aſpereza de
genios a todos fazem horror, ſem que já
mais lhes lembre que o viver he trabalhar;
nem que houverão póvos, que puzerão fóra
dos ſeus muros aos meſmos Deoſes, que não
aſſiſtião ao trabalho, nem que não deixão de
padecer ultrajes as mulheres, que ſó exerci-
tão o inutil.
Aſſim concluiu Delmetra com inexpli-
cável applauſo; e coube a Amynta o conti-
nuar o divertimento, que o fez perguntan-
do com graça: Quantas são as qualidades,
com que os homens dizem mal de nós? Ig-
norancia, maldade, e loucura. (lhe respon-
deo Delmetra) A primeira ſe acha em hu-
ma certa caſta de neſcios, que para ſe dif-
famarem por novo eſtilo, dão a entender
que tem grande experiencia, e já creſcido
enfado; e como as fraſes dos ſatyricos ſem-
pre são applaudidas (porque he grande o
número dos ignorantes mal morigerados)
fazem a converſação alegre, talvez porque
nun-
78 AVENTURAS
nunca forão bem viſtos; e gavando-ſe de fa-
vores, que elles dizem que recebérão, fa-
zem a vileza contagioſa, pois perdem as re-
galias de honrados os que ouvem, e cele-
brão aquellas graças, indignas de que as
ſoffrão os bem naſcidos. E ſe os que tomão
eſſa empreza, tem tintura de Filoſofos, ou
Poetas, são as ſátyras tão feias, como os
louvores ſuspeitos. A eſtes é o mais gra-
ve castigo o negar-lhes a attenção, porque
as obras, que deixão ler no ſobreſcrito al-
guma deſordem de paixões, he mais nobre
a bizarria de as deſprezar, que o empenho
de lhes reſponder.
A ſegunda qualidade ſe acha nos ho-
mens, que entregues aos vicios não podem
digerir alguns trabalhos, que buscárão com
a vaidade de queridos, ou com as diligen-
cias do atrevimento. Eſtes são como os cães,
que mordidos por aqueles, com quem forão
entender, correm morrendo a todos os que
encontrão; e como os que enganados de hum
pequeno allivio coção a chaga, que accreſ-
centão. Eu quero ſupôr que alguma vez ha-
ja algum (ſe póde ſer) a quem a dor tire
com razão o ſoffrimento; mas nunca o pó-
der ter em fazer geral o vituperio pelo erro
particular.
A terceira ordem deſtes noſſos inimi-
gos são huns melancolicos furiosos, que tem
peior
DE DIÓFANES. LIV. III. 79
affecto que a loucura, porque apenas
declarão guerra a huma peſſoa do noſſso ſe-
xo, logo a intimão a toda a natureza, que
nos defende no ſilencio. Eſtes vendem a vin-
gança como doutrina, e procurão perſuadir
a todos que o menor eſpirito de todos os ho-
mens, que ha no Mundo, tem melhores qua-
lidades que os das mulheres mais capazes
de todo o Univerſo. Eu não intento louval-
las contra juſtiça, pois tem ſido o meu em-
penho advertir-lhes os defeitos, que em mui-
to poucas ſe achão; mas não haverá quem
lhes negue a gloria de que a mais rude es-
tá em mais alto gráo que todos elles, ſó
em conſervar a ſua moderação, e conſtan-
cia em desprezallos. Para os desmentir baſ-
ta ſaber-ſe que as ſuas preſumidas quimeras
tem a origem na loucura, e amor proprio,
como elementos proporcionados. Eſtes diſ-
curſivos se não dizem que as almas tem ſe-
xo, para que forjão diſtinções, que não tem
mais ſubſiſtencia que na sua corrupta ima-
ginação, pois forão igualmente creadas, e
a diſpoſição dos orgãos (de que me dizem pro-
vém a bondade do eſpirito) he tão venta-
joſa nas mulheres, como nos homens? Al-
guns ha tão faltos de eſpirito, e capacida-
de, que se lhes tiraſſem hum ſó gráo, não
lhes faltaria nada para brutoſ; aſſim como
são innumeraveis as heroinas, que ſe tem
vis-
80 AVENTURAS
viſto tão intelligentes, que humas tem pa-
recido milagre nas artes, e outras tem da-
do a entender que elles julgão ignorancia,
o que são efeitos da modeſtia. Não reſplan-
dece em todas a luz brilhante das ſciencias;
porque elles ocupão as aulas, em que não
terião lugar, ſe ellas a frequentaſſem, pois
temos igualdade de almas, e o meſmo di-
reito aos conhecimentos neceſſarios: e o di-
zerem que as noſſas potencias são o refugo
das ſuas, porque não ſabemos entender, a-
juizar, aprender, e queremos ſempre peior,
he ſobra de maldade, e inſoffrivel ſemrazão,
quando ha ſempre nelles mais que reprhen-
der, e nas mulheres muito que louvar, me-
nos naquellas, que muito os attendem, por-
que eles as arruinão. Em fim digão o que
quizerem, e fazei vós o que deveis; que as
que ſouberdes encher as voſſas obrigações,
não achareis entre os bons algum, por mais
inſenſato que ſeja, que vos negue a venera-
ção; que eu ſó eſtou mal com as campone-
zas, que não cuidão mais que em comer,
dormir, e fallar; porque ainda ás grandes
ſenhoras não perdoa a nota, que fação vida
de ſe não ocuparem em couſa alguma, por
que são incuraveis os males, que produ-
zem penſamentos levianos, e momentos o-
ciosos.
Acabando eſte discurso, que foi igual-
men-
DE DIÓFANES. LIV.III. 91
não ſó fora erro mui groſeſeiro, porém exe-
cranda culpa o ſervir-me do que a voſſa
bondade me offerece, porque ſempre eh réo
infame o criado, que nas acções do rendi-
mento ſe accusa de atrevido. Em me eſcu-
ſar e tanta felicidade ſabei que mais nobre-
mente vos ſou agradecido; porque tão al-
tos favores mais me advertem o reſpeitar-
vos: e aſſim perderei as maiores fortunas,
para que não decline a voſſa eſtimação. Bem
sei que o affecto, que me tendes, he filho
de uma innocente ſympatia; mas quem a
este dá entrada com exceſſos poderá paſſar
a extremos vicioſos. He certo que natural-
mente nos amamos, e deſejamos ſer ama-
dos; mas he tão delicada a boa reputação
das mulheres, que para ſe conſervar o cul-
to, que merece a ſua eſtimavel modeſtia,
não ſó devem occultar bem naſcidos penſa-
mentos, mas nem confiallos aos meſmos,
que muito eſtimão. Ah ingrato! (lhe reſpon-
deo Atilia). A quem ſenão a ti devia eu
confiar o que ſinto? Deſcança-me ao menos,
tirando-me a vida. Oh triſtes mulheres, que
se vos repreſentão amaveis aos homens, cheios
de miſerias, e ingratidões para ſer o reme-
dio a morte! Acaba já de matar-me; por-
que me eſtará mais mal o teu deſprezo, que
o affecto innocente, que te confeſſo; que
nas ruſticas choupanas o ſer amo, ou ſer
cria-
92 AVENTURAS
criado, he mais fortuna que nobreza. Ad-
verti, ſenhora, lhe diſſe Bellino, que he
sempre o maior desluſtre do decóro o dei-
xar ver as chammas daquelle incendio, em
que he melhor reduzir as cinzas que moſtrar
as faiſcas; porque ſe o confeſſais no peito,
accommetteo os ſentidos, e ſujeitou o enten-
dimento; e aſſim ſe perde o rumo da razão,
e a rémora da modeſtia, pelo que a amiza-
de não ſe eſtima, nem ſe agradece o con-
ſelho. Se eu inſenſivelmente fui infeliz em
amar-te, (lhe reſpondeo Atilia) ſó he re-
medio o deſcanso de ſer tua eſpoſa, e não
temas que Leda o embarace; porque ainda
que á ſua vontade ſó devo ſujeitar a minha,
ella conhece o teu raro merecimento, e ſuſ-
peita o que eu padeço: e como agora vem
gente, á manhã tornarei aqui para fallar-te.
A eſte tempo chegavão duas Paſtoras,
e ſe retirou Atilia; e Bellino mais afflicto
foi communicar a Delmetra aquelle impen-
ſado trabalho, e ſem lhe deſcubrir o ſe-
gredo de ſeu trage, determinárão retirarem-
se, antes que a tyrannia do amor fizeſſe maio-
res progreſſos; e não eſperando a manhã,
sahírão a continuar a ſua peregrinação.
Com muito vagar, e trabalhos deſcan-
çavão huma tarde em o alto de hum mon-
te, donde deſcubrírão huma grande povoa-
ção. No dia ſeguinte ſe determinárão a ir
vel-
DE DIÓFANES. LIV.III. 93
vella; e entrando nella, ſouberão que eſta-
vão em a nobiliſſima Eſparta. Andarão co-
mo renaſcidos em hum novo Mundo, por
haver muito tempo que ſe negavão aos ſeus
olhos os damnoſos eſtrondos da opulencia, e
os pernicioſos luzimentos da oſtentação, que
mais folgão de ver os eſtrangeiros. Forão a
huns paſſeios, e delicioſos jardins; e como
alli era eſtilo prender-ſe a gente ordinária,
que entrava em hum delles, e aliſtar-se pa-
ra servir nas campanhas, porque a multidão
de povo, que a elle concorria, o tinha deſ-
truido, e ſempre embaraçado, ſendo o que
estava em melhor ſituação, e mais abundan-
te de água, Bellino que o ignorava, ao ſa-
ir delle foi prezo pelos guardas, que não
davão ouvidos a dizerem-lhes, que não ſa-
bia aquelle coſtume; ao que ſó respondião,
que para exemplo, e boa execução da lei
não havia caſo algum exceptuado. Delmetra
com mil lagrimas lhes dizia não ter mais
abrigo, e companhia, que ſeu filho Belli-
no: ao que não davão attenção; e como pe-
lo ſocorro, que dalli ſe mandava para Co-
rintho, succedeſſe no dia ſeguinte embarcar
soldadeſca, em a qual foi também Bellino,
ficou Delmetra em caſa de hum Cabo, que
fazia aquellas expedições, onde fora a ver
ſe com ſeus rogos o livrava de experimen-
tar tambem os trabalhos da guerra; e co-
mo
94 AVENTURAS
via mal ſuccedidas as ſuas ſúpplicas,
dando triſtes ſuſpiros, ſe queixava da deſ-
graça; pelo que lhe mandou dizer Almeri-
na, dona de casa, que ſe não deſconſolaſſe:
e que em quanto quizeſſe ali estar, lhe não
faltaria couſa alguma.
Reparavão aquelles domeſticos, que as
palavras de Delmetra erão brandas, e acer-
tadas: e que ſuavemente chegava a ſi os me-
ninos, que a ouvião com goſto, e attenção.
Aſſim ſe foi juſtificando tanto a ſua capa-
cidade, que Almerina lhe encarregou a edu-
cação de tres filhos, que tinha, e lhe diſſe:
Vós ſabeis, ó Delmetra, o cuidado, que de-
ve dar a boa educação dos filhos, porque
nos meninos, como cera branda, tudo ſe lhes
imprime; e que ſe os máos costumes tem as
raizes na educação, rariſſima vez deixão de
ſer os frutos monſtruosos. A má creação, e
o máo exemplo apoſtão entre ſi fazerem-ſe
conhecer toda a vida. Bem ſei que eſte cui-
dado ſó deve tocar aos pais; mas quando o
eſtilo disfarçado em fantaſtica decencia os
retira de ſeus olhos a maior parte do dia,
devem ter bem examinado o ſogeito, a quem
os encarregão, porque dos máos costumes
dos ſervos inſenſivelmente ſe reveſtem; e como
sei que é difícil achar tantas, e tão
precisas circumſtancias em uns ſogeitos, que
eu me contentava de que tiveſſem bastante
pru-
DE DIÓFANES. LIV. III. 95
prudencia para ſe acautelarem, occultando
aos meninos as ſuas paixões dominantes, re-
conhecendo em vós a mais propria capaci-
dade para tão importante emprego, pelas
virtudes, que em vós tenho obſervado, que-
ro aproveitar-me do acaſo, que para aqui
vos conduziu, e colher eſte eſpecialiſſimo
fruto de vos haver amparado ſem intereſſe,
ſó lembrando-me de que a compaixão com
os perſeguidos he indiſpensavel obrigação
do racional; mas agora vejo que o tempo
afiança a fortuna dos que valem, porque va-
le muito a ſeu tempo.
Eu vos entrego nos filhos o theſou-
ro, que mais deſejo guardar, e defender dos
que intentão roubar-lhes a candidez, e in-
nocencia. Bem ſei que quando he má a in-
clinação, não a vence a educação; mas he
certo que ſe de todo não a deſtroe, ſempre
a modera; e quando não a vença, nem a
modere, eu ſatisfaço como devo, em buſ-
car-lhes os meios úteis, e não conſentir-lhes
o pernicioſo; quanto mais que o tempo,
que ſe gaſta em mortificar-lhes o eſpirito,
bem paga o trabalho, não os deixando per-
der o equilibrio, para que não caião no a-
bysmo de vicios, em que ſe habituão os que
correm com a liberdade, e má inclinação.
O amor proprio, que quaſi ſempre ſenhorea
os animos das mãis, não he baſtante, para
que
96 AVENTURAS
que eu deſconheça as voſſas ſingularidades,
as mais proprias para tal emprego, pois ſei
quanto he pezada eſta obrigação, e que não
conſentir no que convem para a boa educa-
ção dos filhos he naſcido de hum apparen-
te amor, que produz effeitos de odio; e jun-
tamente não quererem modificar-ſe, vendo
com inteireza, e apparente ſocego caſtigar
os filhos.
Como tendes tão claro conhecimento,
(lhe reſpondeo Delmetra) e ſeguis tão ſo-
lidas doutrinas, parece que onde eſtais, ſou
inutil para eſte fim: e bem haveis de ſaber
que melhor effeito faz do animo de hum fi-
lho o ſevero olhar de ſeus pais, que muitas
advertencias de hum bom criado. Bem re-
conheço (lhe respondeo Almerina) que em
parte he aſſim o que dizeis; porém não me
deveis negar, que ha genios, em que faz
melhor impreſsão o conſelho do bom cria-
do, que muitas advertêecias dos pais; por-
que ſe as palavras do criado, que tem cre-
dito, ſe ouvem com effecto, são mais bem
succedidas que as dos pais, que ſe ouvem
com tedio, e horror. A maior parte deſtes
vemos ſempre entre dous extremos, de ca-
rinho indiſcreto, ou rigor demaziado: o
muito carinho foi ſempre a ruina do reſpei-
to: e do rigor demaziado naſce horror, creſ-
ce aborrecimento, e quaſi ſempre acaba em
pou-
DE DIÓFANES. LIV. III. 97
pouco caſo, ou com os delirios da exaſpe-
ração. He certo, Senhora (lhe respondeo
Delmetra), que he difficil a arte da boa e-
ducação; porque por eſſas razões ſe não
permitte aprender errando.
Os tenros ſentimentos da mãi os não
devem conhecer os filhos, e convém não
brincar com elles deſde muito pequeninos,
porque deſde então principia a obrar o reſ-
peito. Bem ſabeis que o voſſo maior cuida-
do ſe deve applicar em que tremão, ſendo
ameaçados convoſco, e que huma voſſa pa-
lavra, ou olhar ſevero, ſintão como o maior
castigo; e como ha occaſiões, que no falar
póde ſer groſſeiro o cuidado, he preciſo que
o voſſo enfado tambem dos olhos o enten-
dão, e que com a maior vigilancia os enſi-
nem a tremer a ira do Ceo, a amar a hon-
ra, a verdade, a pobreza, as virtudes, e as
letras. Não conſistais que lhes fação me-
dos, nem contem hiſtorias ridiculas; por-
que ſe póde aproveitar o tempo, contando as
generoſas acções de Alexandre; as que ſe fi-
zerão de honra, e valor, quando os Gre-
gos forão contra os Troyanos; aquella mais
illuſtre grandeza, com que alguns Sobera-
nos tem perdoado as offenſas; os honradiſ-
ſimos creditos, com que acaba o vaſſalo,
que expoz a vida, defendendo a do ſeu Rei;
o rigor, com que a juſtiça coſtuma castigar
os
98 AVENTURAS
os delictos; a nobreza, com que os offendi-
dos procurão fazer bem a ſeus inimigos; e
quaes são as felicidades, para que as boas
obras conduzem, &c. Eſte he o melhor mo-
do de ſe lhes fazerem amar, e decorar as
acções mais nobres, porque as ouvem com
goſto, e aſſim conſervão na memoria as me-
lhores inſtrucções, e maximas convenientes.
Bem ſei que de ordinário não ſabem de taes
hiſtorias as peſſoas, que lhe coſtumão con-
tar as inuteis, de que toda a vida ſe lem-
bram; mas aſſim como os ſervos, que entrão
de novo em huma caſa, conforme a varie-
dade, que ha entre ellas, aprendem os coſ-
tumes, aprendão tambem algumas hiſtorias
proprias para as repetirem aos meninos, co-
mo repetem as outras.
Pelo que toca aos damnos do máo ex-
emplo, baſtantemente diſcorreſtes, e com o
coſtumado acerto. Ah que ſe muitos pais
ſoubeſſem conhecer quanto são prejudiciaes
as más companhias , e o máo exemplo, não
haveria famílias deſtruidas pelos vicios,
que herdão huns dos outros! E não acabão
de conhecer que o verdadeiro amor para
com os filhos deve conſiſtir em os não inha-
bilitar para os augmentos, perſuadindo-os
com o bom exemplo a que procedão bem,
e amem os livros, dos quaes ſe fazem os
theſouros mais ſeguros; porque ſe a inveja
os
DE DIÓFANES. LIV. III. 99
os intenta roubar, ſó dura a mentira em quan-
to a verdade não chega: são bens livres das
penas dos delictos, morgados, que ſe não
empenhão , e dinheiro, que ſe tranſporta ſem
fadiga, quando huma deſgraça obriga a mu-
dar de huma para outra terra. Onde irá hum
ſabio, que ſe não faça preciſo; e ſsta me-
lhor riqueza falta muitas vezes aos filhos,
porque nunca ſeus pais com o exemplo lhes
ensinárão a procuralla. Ha huma nação, em
que he coſtume reprehender-se o filho fami-
lias pelo primeiro delicto; pelo ſegundo caſ-
tigar-ſe com brandura; e pelo terceiro ſer
morto, e o pai deſterrado; e he certo que
os que os conſentem vicioſos, crião aſſim
os ſeus peiores inimigos; porque eſtes em
muito tempo não matão, e em poucos dias
acaba o pai, a quem o filho com hum deſ-
goſto matou. Quando chegão aos quatorze
annos, ſe encarregão mais que ao cuidado
da mãi, aos olhos do pai, que lhes deve
moſtrar agrado prudente, para ſe animarem
a fallar na ſua preſença, para obſervar ſe
fallão demaziado, ſe não os ſeus diſcursos
acertados, ſe ſe deſcompõem com acções, e
outras ſemelhantes miudezas, para os adver-
tirem a que ſe hajão com modeſtia, e tenhão
civilidade; mas de modo tal, que não to-
mem medo de fallar na preſença dos que os
devem advertir. Vós vos ſabeis portar com
el-
100 AVENTURAS
elles, diſcreta, prudente, e varonil; e não
careceis do que me tem enſinado a experien-
cia; porém não entendais que eu me eſcuſo
de ſervir-vos, porque o farei todo o tem-
po, que me demorar auſente de Bellino;
pois já ſabeis que tenho determinado ir vel-
lo; porque a ſaudade, que o trato das peſ-
soas deixa nos corações, não tem mais cor-
rectivo que uſar como remedio da cauſa do
meſmo mal. Como vejo (lhe respondeo)
que he justa a voſſa reſolução, não poſſo
deixar de conſentir em algum tempo da voſ-
ſa auſencia, contanto que torneis á minha
companhia; mas vede que os ſuceſſos da
guerra são duvidoſos, e talvez que vos ſeria
mais conveniente eſperar em deſcanço cantar
a victoria. Conheço, Senhora, (lhe reſpon-
deo Delmetra), que ao melhor me aconſe-
lhais; mas como a acção he indifferente, e
contínuo o meu cuidado, permitti que eu
ſeja a meſma, que caſtigue a minha impa-
ciencia, no caſo que os meus olhos vão a
ver o deſengano da minha eſperança. Sem em
voſſo filho (lhe diſſe Almerina) reſplande-
cem as voſſas doutrinas, ide vello; pois ſen-
do compendio de virtudes, he digno acré-
dor a tão grande ſaudade. Com eſta ultima
reſolução ficou Delmetra conſolada, e com
forças para continuar na aſſistencia dos me-
ninos, o que exercitou enquanto não hou-
ve
DE DIÓFANES. LIV. III. 101
ve embarcação, que a transportaſſe. Domi-
nava de cada vez mais no animo de Alme-
rina, vendo eſta quão docemente infundia
nos poucos annos o goſto da applicação, e
o deſejo de creſcer em virtudes, e ſciencias,
vindo a conhecer que não são os muitos caſ-
tigos os que dão a melhor doutrina aos me-
ninos, ſe falta quem com prudencia no tra-
to familiar lhes infunda ſuavemente o que
lhes convém; e admirada do que em Del-
metra obſervava, dizia: Como he poſſivel
que em huma mulher vil hajão tão iguaes,
como illuſtres ſentimentos! Quem lhe diſſe
como ſe devião haver em tudo os que naſ-
cem de mais antiga origem? Mas já que os
Deoſes poderoſos quizerão confiar á minha
admiração eſte prodigio das ſuas obras, não
ſerá razão que eu negue a Delmetra a aſſiſ-
tencia do filho; que como eſtas são as joias
mais importantes, que ſó ſe devem guardar
nos olhos das prudentes mãis, eu lha não
fiei, porque nem das luzes da virtude me
devo perſuadir, enquanto não as acreditão
larguiſſimas experiencias; e já as que me dei-
xa querem ſegurar-me ſenão hum inteiro
deſcanço (pois o não devo ter em materia
tão importante) ao menos allivio de meu
preciſo cuidado, quando torne a ſervir-me.
Delmetra ſe auſentou, deixando a todos ſau-
dosos, ainda que na eſperança de que tor-
na-
102 AVENTURAS DE DIÓFANES.
naria ao ſerviço de Almerina pelo muito,
que intereſſava no ſeu agrado, para o qual
concorria o admirar tantas virtudes, que erão
filhas de tão occultos, como preclaros prin-
cipios; pois ſe as acções a eſtes não correſ-
pondem, renuncião os bens naſcidos em o
proprio vituperio toda a gloria de ſeus an-
tigos.
FIM DO TERCEIRO LIVRO
AVEN-
AVENTURAS
DE
DIÓFANES.
LIVRO IV.
SUMMARIO.
CHehando Clymenea a Mycenas, cho-
rou a falſa noticia da morte de He-
mirena, ou Bellino; e ſendo obrigada a
continuar a viagem, chegou a Corintho,
onde achou Diófanes, que com o ſuppoſto
nome de Antionor ſe lhe occultou, não ob-
ſtante o conhecella, pelo que lhe conta ſeus
trabalhos.
H EM-
104 AVENTURAS
EMbarcou Delmetra em Eſpar-
ta com tão exceſſivo prazer,
que eſte parecia querer deſcu-
brir-lhe o ſegredo pelo que a-
mava a Bellino; e como quan-
do o affecto ſoborna com a eſ-
perança de allivio, não ſe temem os naufra-
gios, não a embaraçárão diſtancias, nem a
demora, que aquella náo poderia ter em
Mycenas, onde hia incorporar-ſe com ou-
tras, que tambem transportavão apreſtos de
guerra para Corintho. Chegando a Myce-
nas, onde não teve mais demora que dous
dias, ouviu huma noticia, que pelos ſinaes,
a perſuadio que Bellino havia acabado em
hum encontro, em que dizião forão mortos
ſincoenta ſoldados. Triſte, e magoada cho-
rava de continuo aquella funeſta novidade,
já ſentindo haver deixado a brenha, as fe-
ras, e os montes. Chégarão com boa via-
gem a Corintho; e quando deſejava não fa-
zar deſembarque, eſperando voltar para Eſ-
parta na meſma embarcação, foi obrigada a
ſaltar em terra, onde nem ſe animava a per-
guntar por Bellino, tendo por certo que era
morto.
Hum venerando ancião, que ſobre a
arêa eſtava como obſervando o que ſe paſ-
ſava naquelle porto, vendo as continuas la-
grimas de Delmetra, chegou a perguntar-lhe
a cau-
DE DIÓFANES. LIV. IV. 105
a cauſa de ſeu pranto, e a conſolou, ſegu-
rando-lhe ſer falſa a noticia que chorava;
porque tal encontro não tinha havido; e a
encaminhou a humas camponezas, onde lhe
darião agazalho; e que elle mandaria fazer
diligencia por Bellino, e aviſallo, para
que foſſe falar-lhe. As camponezas a re-
cebêrão com agrado, e repartião com ella
do pouco, que tinhão para ſe manterem.
Paſſados ſinco dias, foi Bellino falar-
lhe, a quem com grandiſſimo alvoroço diſ-
ſe: Não he crivel, amado Bellino, a conſo-
lação, que recebo em ver-te; como he poſ-
ſivel que aos meus olhos ſe reſtitua com vi-
da, o que elles tão de véras chorárão mor-
to? E são tão novos os meus pezares, que
ainda que te eſtou vendo, tenho na alma
impreſſa a mágoa da tua morte. E ſe as más
noticias ordinariamente são certas, ainda não
creio que eſtou comtigo. Bellino, que já não
podia reprimir os impulſos de ſua alegria,
lhe reſpondeo com moſtras de immenſo pra-
zer, affecto, e agradecimento, ſendo o ſeu
goſto, e alvoroço as teſtemunhas do quan-
to he ardente a ſaudade que juſtamente ſe
imprime nos corações humanos; e imagi-
nando que algum novo trabalho a encami-
nhaſſe para alli, lhe pedio o tiraſſe daquel-
le ſuſto. Já ſabes, lhe responde Delmetra,
que fiquei na grande caſa de Almerina, que
Hii com
106 AVENTURAS
com muita bondade me amparou, quando
eu ſó a havia buſcado, para que te livraſſe
daquelle impenſado trabalho, o que ſegun-
do o eſtilo era impraticavel. Paſſado algum
tempo, tivemos hum larguiſſimo diſcurso ſo-
bre a boa educação dos filhos, e me entre-
gou tres, que tinha, determinando deſcan-
çar no meu cuidado. Eu lhe não reſiſti á-
quelle emprego; porque ainda que ſe falta
a prudencia aos pais, he de nenhum, ou
mui pouco effeito a diligencia, e vigilante
cuidado dos bons ſervos, Almerina deſeja-
va acertar, e ſabía ſujeitar as vontade ás re-
ſoluções do entendimento. Com grande re-
pugnancia ouvia fallar no allivio da minha
ſaudade, até que a vencêrão as minhas in-
ſtancias, e embarquei ſem companhia conhe-
cida, valendo-me do privilegio dos meus
annos; porque ainda que eſtes não diſpen-
são na modeſtia das mulheres, he certo que
os mordazes não as conſiderão arriſcadas,
quando o reſpeito da ancianidade as defen-
de. Chegámos a Mycenas; e ouvindo con-
tar de hum encontro, que dizião ter havi-
do, ou me perſuadi por alguns indicios que
tu havias ficado morto, e lamentando nova-
mente o meu deſamparo, e tua felicida-
de, rompia os delirios, pedindo aos Ceos
que me diſpenſaſſem de padecer, e com ma-
goadas vozes dizia: O' brenha compaſſiva,
que
DE DIÓFANES. LIV. IV. 107
que me eſcondias a eſte novo genero de pe-
nas, ó feras crueis, para iſto me reſpeitou
a voſſa ferocidade? Aves innocentes, fon-
tes criſtallinas, quem pudéra trocar o triſte
eſtado, aſſim porque cantais no ameno pra-
do, feſtejando o caçador, que vos dá a mor-
te, como porque alimentais, e refrigerais
aos que gozão a tranqüilla ſoledade dos mon-
tes; e logo vencendo aquelle primeiro aſſal-
to, dizia: Mas que indiſcreto ſentimento he
eſte, que me uſurpa a liberdade? O affecto,
que em mim produzírão as virtudes de Bel-
lino, não he poſſivel que me arraſte a tan-
to exceſſo de pezar; a ſua vida não foi eſ-
trago das feras, e acabou como os que re-
naſcem de acções de honra, e valor; aos
quaes a poſteridade reſguarda as glorias de
ſeus nomes; nem devem ſer baſtante aquella
morte para enfraquecer a minha conſtancia.
Foi á guerra, não vio o triunfo, mas deo
por elle a vida, que os que morrem na ba-
talha ſempre vencem, como victimas da vi-
ctoria; e poderá ſer que foſſe melhor aca-
bar a vida; porque para os homens, que
respirão com o alento, que lhes infunde o
illuſtre ardor de ſeus honrados creditos, he
gloria o acabarem no combate, em que os
seus ficão vencidos. Mas ai, tornava a dizer
afflicta, que pouco me confortão as razões
do meu allivio! Como he poſſivel que o a-
mor
108 AVENTURAS
mor Platonico livre de intereſſe, e cheio de
benevolencia, me arraſte a hum ſentimento
invencivel? Se eu amava as virtudes de Bel-
lino, como me não alegrão as noticias, de
que poſſo inferir o seu eterno deſcanso?
Aſſim triſte, e confuſa paſſei os dias
de minha viagem; e ſentindo havella inten-
tado, já ſe me repreſentava agradavel a bre-
nha, que eu havia regado com lagrimas,
conhecendo o bem, que de todo o mal ſe
póde tirar, e mais vivamente recordava os
primeiros infortunios, como origem de tão
repetidos contratempos, vendo ſe podia aſ-
ſim divertir o rigor da minha mágoa; mas
erão inuteis as reflexões, porque ſempre ſen-
tia mais viva a minha dor, e ſaudade. Che-
guei a deſembarcar com igual deſconſola-
ção; hum venerando velho, reparando em
minhas lagrimas, me perguntou a cauſa del-
las, e me ſegurou ſer falſa aquella noticia,
porque não houvera encontro algum. Elle
me conduzio a eſta caſa, onde muito me
obriga a bondade, com que me favorecem.
Agora dize-me, como tens vivido em terra
eſtranha, e com gentes de diverſos genios,
e coſtumes, porque em taes circumſtancias
ſe exercita a prudencia, ſe acryſola a virtu-
de, e acredita o entendimento. Deſde o pri-
meiro dia, (lhe respondeo Bellino) que nos
ſeparou o acaſo, e a tyrannia do meu cruel
deſ-
DE DIÓFANES, LIV.IV. 109
deſtino, aſſiſtindo-te o meu cuidado, quiz
a providencia que ſe me tiraſſe da memoria
tudo o mais, que podia affligir-me, por
que hum corpo não tiveſſe duas penas. O
tempo não dá lugar a que eu conte meus
primeiros cuidados, e as afflicções, que nos
primeiros dias me negárão toda a alegria,
e eſperança de allivio. O noſſo exercito ſe
acha acampado não muito longe daqui: e
não tem havido encontros, ou avançadas,
porque antes de fazermos algum movimen-
to, propoz o inimigo a paz. Hontem ſe fal-
lou na tenda do Generaliſſimo, que deſtaca-
ria hum grande corpo de tropas para as
fronteiras, onde ſe acha o Rei: e que a paz,
que ſe propunha, era injurioſa. Não ſei se
eu ſerei mandado; e como a occaſião me não
dá tempo para demorar-me comtigo, he pre-
ciſo (já que os Ceos aſſim o querem) que
eu vá acudir á obrigação, para que me deſti-
nou a minha cruel tortura: e roga aos Deo-
ſes, que antes me entreguem ao rigor das
lanças, que me falte o valor, em que influe
a honra: e tornarei a ver-te, quando tiver
licença para demorar-me algum tempo mais
em tua companhia.
Com eſtas apreſſadas palavras ſe reti-
rou Bellino, deixando a Delmetra em tan-
to ſocego, como ſe foſſe restituida a ſeu pri-
meiro eſtado.
Paſ-
110 AVENTURAS
Paſſados alguns dias, veio o veneran-
do velho a viſitalla; e feſtejando-ſe recipro-
camente, perguntou Delmetra, ſe ſe ajuſta-
ria a paz; e lhe respondeo que não: e en-
tendia que com diſſimulação ſe fazia novo
esforço para irem de aſſalto ſobre o inimigo.
Reparava Delmetra na affabilidade, e gra-
to eſtilo, com que ſe explicava; e eſtando-
lhe obrigada pela compaixão, que lhe de-
vêrão as ſuas lagrimas, lhe diſſe, deſejava
ſaber a quem devia tão repetidas attenções.
Não duvidára dizer-vos quem ſou, (lhe re-
ſpondeo) ſe ſe não eſtribára a minha conſo-
lação em que me deſconheção as gentes. Eu
vos conheço; e que são illuſtres... Aqui ſe
adiantou Delmetra aſſuſtada, dizendo: Vós
não podeis conhecer-me, e alguma equivo-
cação vos engana. Não vos perturbe (tor-
nou a dizer-lhe) que eu ſaiba a voſſa ori-
gem, pois ſó digo que conheço ſer illustre
o voſſo agradecido animo, que eſte ſempre
oſtenta o mais nobre coração, aſſim como
as acções, e o ſemblante contém a mais bem
acreditada genealogia. Os Principes em to-
da parte ſe diſtinguem, não em a forma-
tura do corpo, nem na eſpecial immortali-
dade da alma; porque a natureza os organi-
za, e anima iguaes aos outros homens, mas
sim nas acções generoſas, nas emprezas de
gloria, em honrarem as gentes, no deſejo
de
DE DIÓFANES. LIV. IV. 111
de moſtrarem o poder, em amarem a juſti-
ça, ampararem os pobre, e ſerem exemplo
de virtudes; e quando ſe encontra ſogeito,
em que são as boas qualidades indepen-
dentes da ſua origem, pela raridade, ſe lhes
multiplicão os quilates da eſtimação. Eu ob-
ſervo em vós o reſpeitavel ſemblante, e pa-
lavras de brio igual ao mais bem naſcido
agrado; e como vejo que são poucas as mu-
lheres, que cabem nas choupanas, ſabendo
guardar a boa ordem de ſeus coſtumes, creio
que ſois illuſtrada pela alta ſabedoria dos
Deoſes. Não quero ainda aſſim dizer-vos niſ-
to, que por eſtas vizinhanças coſtumem to-
das deſprezar o decóro, pois eſte devem ze-
lar tanto as illuſtres, como as Paſtoras. Não
ſigo o voſſo parecer, (lhe respondeo Del-
metra) porque as que naſcem em ſuperior
jerarquia, devem também nos creditos eſpe-
cificamente diſtinguir-ſe das de inferior naſ-
cimento; porque os encargos da nobreza
mais gravemente lhes recommendão a hon-
ra, docilidade, e moderação, com o que ſe
fazem diſtinctas, e pelo que ſó lhes he per-
mittida a vangloria de darem exemplos ás
inferiores; pois pela decencia ſenhoril, com
que mais ſe negão aos olhos dos homens,
as advertem de que o veneno, ainda que ſe
disfarce em aſſucar, ſempre mata, ſe a quan-
tidade não he pouca. Se a culpa, a nature-
za,
112 AVENTURAS
za, e as paixões são iguaes, (lhe reſpondeo)
tambem deve ſer igual a gloria do recato,
e a pena da indecencia; porque a murmu-
ração pública não conſidera que haja quem
poſſa diſpensar os preceitos da modeſtia a
nenhuma caſta de mulheres; ainda que nas
bem naſcidas hum deſcuido he culpa grave,
e nas humildes huma culpa he ſó deſcuido,
porque a boa educação das ſenhoras tira o
lugar á ignorancia, que ás outras deſculpa:
e he tão ſublime o decóro, que as humildes
com elle ſe ennobrecem; e as diſtinctas ſe
fazem vís, quando o deſprezão: e aſſim hu-
mas o devem conſervar pelo que arriſcão,
e outras igualmente pelo que alcanção. Oh
quanto são inadvertidas as que perdem o al-
gariſmo do preço ineſtimavel da modestia!
que não ſó tem no odio das gentes o ſeu
caſtigo, mas o tempo lhes moſtra, que os
meſmos, que cauſárão a ſua abominavel rui-
na, as eſcarnecem, vituperão, e deſprezão;
e quando ſe demorão em não conhecer o ſeu
enfado, ſe explicão com demonſtrações de
inteiro aborrecimento, e odio.
Algumas mulheres encontro, que, ven-
do-ſe adiantadas em annos, deixão de ſer
comedidas nas palavras; o que ſerá por en-
tenderem que o riſo dos ouvintes he effeito
da ſua graça; ou porque ſe perſuadem que
a ſoltura he privilegio da ancianidade, ſem
que
DE DIÓFANES. LIV. IV. 113
que advirtão que em quanto os delirios da
velhice não as deſobriga de comedidas, ſe
lhes multiplicão as cauſas para a prudencia;
pois não tem a deſculpa dos poucos annos,
que conduz para errar os termos; ainda que
eſtudar os acertos em tenra idade he mere-
cer cultos, e adiantar eſtimações; aſſim co-
mo o reſpeito, que ſe deve aos velhos, he
divida contrahida entre a falta de experien-
cia, e o bom exemplo, e documentos, que
devem dar aos moços.
Tambem vejo que as moças ou con-
versão demaziadamente, ou em vendo gen-
te, fogem, como ſe foſſem animaes de ou-
tra eſpecie, ſem que haja quem lhes diga,
que o fugir ou he incivil groſſeria, ou he
tentar a curioſidade; e que a muita demora
em taes converſações ou as faz ter por levia-
nas, ou ocioſas: e que em deixarem de re-
ſponder a quanto ſe lhes diz, cabe o melhor
conceito da diſcrição; porque o muito fal-
ar ou deſcobre toda a capacidade, ou pu-
blica a indiſcrição, que eſtava occulta: e
que o eſtranharem os proprios elogios, e li-
ſonjas com a mudança de côr, he avisar os
merecimentos da formoſura: e que o abai-
xarem gravemente os olhos, negando-ſe á
attenção dos rendimentos, he conquiſtar os
animos, e vencer imperios na veneração das
gentes. Eſtas, e outras muitas obrigações,
que
114 AVENTURAS
nas donzellas reſplandecem tanto, quan-
to as desluſtra qualquer pequeno deſcuido,
vós melhor que eu as ſabereis, e tereis ou-
vido que muitas aqui eſquecem. Delmetra
admirada de ouvir palavras tão cheias de a-
certo, e deſejando que continuaſſe o diſcur-
so, lhe diſſe: São tão infelices as mulheres,
que baſtando que os homens ſejão bons, el-
las não baſta que o ſejão, porque he preci-
so que tambem o pareção. Não devem accei-
tar, por não agradecerem; nem muito fal-
lar, por ſe não exporem a errar, e porque
não digão, que a que folga de ouvir, di-
zer, e ſe deixar ſervir, não teme, ou não
conhece o perigo, porque a algumas graças
coſtumão os vizinhos chamar deſgraça: e
como a malicia humana já ſe adianta a adi-
vinhar penſamentos, nem na converſação, e
carinho de tratar os parentes deve deixar de
haver cautela. Oh quanto he feliz a que me-
lhor conhece o muito, que arriſca, e o pou-
co, que eles perdem!
Muitas vezes ſuccede que os pais tem
toda a culpa nas inadvertencias da filhas,
pela muita delicadeza, e deſcuido, com que
as crião; e são as ſuas deidades, em cujos
ſemblantes vem a ſua tormenta, ou bonan-
ça. A eſta creação ſe ſegue o multiplicarem-
ſe as loucuras, com o que ſe prende a ra-
zão, as paixões tomão forças, os deſejos
não
não tem medida, nem a vontade tem freio;
e como hum raio deſpedido vão do patrio
poder para a companhia dos maridos; e ſe
alguma vez concordão com as ſuas vonta-
des, he apoucando-lhes a authoridade, pois
ſe não aſſemelhão as qualidades do Sol com
as da Lua, ſenão quando o tem eclipſado:
pelo que vos ouço eſtranhar eſtes coſtumes,
creio não ſerá eſta a voſſa patria, e talvez
que (como eu) vos trouxeſſem aqui alguns
contratempos. A minha patria (lhe reſpon-
deo) é eſſe excelſo Olympo: não há dúvi-
da que eu deixei o meu paiz conſtrangido,
ſendo recommendado aos mais duros gri-
lhões, nos quaes trabalhava de dia, e ſuſ-
pirava de noite pelos que de mim ſeparou
o fado adverſo. Os annos, que aſſim paſſei,
não baſtárão para ſe moderar o pranto, que
todos os dias conſagrava às ſuas memorias,
que as grandezas, faſto, e eſtimações, in-
ſenſivelmente perde quem ſabe conhecer o
pouco que durão; e me conſolava a conſi-
deração de ſer menor o trabalho do pobre
em buſcar de que viva, que o do rico em
reparar o que lhe ſobra; porque he ſó hum
o que cuida em guardar, e são muitos os
que pensão em o roubar; e tambem vendo
que a riqueza, e authoridade quebrantão o
juizo; pelo que he maior o trabalho de ſuſ-
tentar a loucura nas demazias do luzimento,
po-
116 AVENTURAS
poder, e reſpeito, que o que tenho em ha-
ver perdido tudo; pois as ſobras do dinhei-
ro, e o poder convidão para os vicios; mas
os vinculos, que unírão á alma os preceitos
do conſorcio, ſe nem os póde anniquilar a
Parca, não haverá quem os extinga da lem-
brança.
Delmetra lhe rogou quizeſſe continuar
em contar-lhes ſeus infortunios; e vendo ſe-
melhantes aos ſeus as diſpoſições daquelles
trabalhos, lhe perguntou como ſe chamava.
Antinor; (lhe reſpondeo) e não tenho dif-
ficuldade em dizer-vos os paſſos, que me en-
caminhárão a eſte lugar.
Depois de haver ſoffrido impenſados
contratempos, guardava nos campos os reba-
nhos do Rei Aganymedes, a quem por ſa-
bio me havia oferecido Pafo, que ſe não
animou a tirar-me a vida, conforme havia
ajuſtado com o primeiro, que me vendeo,
o qual por certas razões lhe offerecia gran-
de ſomma de dinheiro para executar aquella
tyrannia. Alli gozava eu da ſaudavel tran-
quillidade, que enſinou aos Paſtores o que
guardou os rebanhos de Admeto; quando
tendo noticia de huns eſcravos deſconheci-
dos, que ſe achavão naquella vizinhança,
lembrado-me que podião ſer alguns dos
meus patricios, para os ir ver, pedi licen-
ça a Aldino, que tinha a incumbencia de
ad-
DE DIÓFANES. LIV. IV. 117
administrar aquella Aldeia, o qual ma con-
cedeo acompanhada de cavilloſos conſelhos.
Quando á noite me recolhi, me puzerão em
huma eſcura maſmorra com ordem ſua para
ſe me não dar alimento algum, dizendo que
fora aviſado de que eu procurava ajuſtar com
os meus compatriotas a ſua, e minha fuga.
Mas não conſentindo os Numes neſta falſi-
dade, quizerão que foſſe o Rei áquela ca-
ſa de campo por occaſião de montaria, e lhe
lembraſſe que o eſcravo, que por Filoſofo
lhe offerecêrão, alli vivia: pelo que orde-
nou que eu foſſe á ſua preſença. Diſſerão
-lhe aquelle delicto, que ſe me havia impu-
tado; eſtranhou que ſe procedeſſe com tan-
to rigor, ſem ſer a prova ſufficiente. Logo
fui ſolto; mas como foſſe achado nos bra-
ços da morte, não tive alento para falar-
lhe. Pouco a pouco fui reſtituindo-me, por-
que para lances mais trabalhoſos me reſguar-
davam os Ceos. Aſſim paſſava ſoffrendo ul-
trajes e tyrannias. Huma noite, em que a
recordação da minha infelicidade reforçava
o meu tormento, vi que a caſa ſe hia en-
chendo de fumo. Temendo algum incendio,
ſahi daquelle pobre apoſento; e reparando
que de outro, que eſtava myſtico, ſahião
horrendas labaredas, chamei gente, para que
ſe apagaſſe; e ouvindo que todos ſe magoa-
vão por Aldino, por ſer o fogo no ſeu quar-
to,
118 AVENTURAS
to, lembrando-me do quanto he horroroſa
a vingança, e que podia haver quem ſe per-
ſuadiſſe que eu lhe applicára o fogo, pois
elle cruelmente me quizera caſtigar da cul-
pa, que eu não tinha, ſem temer mais a
morte que os juizos temerarios das gentes,
entrei atrevidamente, rompendo pelas cham-
mas, a buſcar Aldino: e quizerão os Deo-
ſes, (que ſempre coſtumão amparar os acer-
tos) que tomando-o ás coſtas, tirando-o de
entre as chammas, ſe ouviſſe o eſtrondo da
ruina apenas ſahi do perigo. Toda aquella
familia, que julgava obrar em mim a exaſ-
peração , vendo que eu trazia Aldino, com
incrivel alegria huns me apertavão nos bra-
ços, outros ſe me lançavão aos pés, outros
intentavão beijar-me as mãos, e outros bal-
buciantes com lagrimas de goſto não podião
formar palavras. Eu em applicava em uſar de
alguns ſegredos, para o tirar do lethargo,
em que eſtava: o que conſegui logo, por-
que ſe lhe reſtituírão os ſentidos; e contou
que acordára ao primeiro rumor, que eu fi-
zera; e que de huma luz, que deixára jun-
to á porta, pegára o fogo, e ſe achára ſem
mais remedio que eſperar a morte, pois já
não podia reſpirar, nem tinha mais ſahida,
que a que via embaraçada com as chammas.
Voltando para o Rei que alli ſe achava,
disse:
A-
DE DIÓFANES. LIV. IV. 119
Agora ſou conſtrangido a confeſſar-
vos, Senhor, o que pode a minha malda-
de. Antionor voſſo eſcravo me tirou das mãos
da morte, rompendo pelas chammas, por
valer-me a nobreza de ſeu animo para maior
confusão da minha vileza; e como o remor-
so, a divida, e a razão ſempre obrigão,
não poſſo deixar em ſilencio o meu delicto:
não me negue ao caſtigo a voſſa juſtiça; que
quando a culpa he conhecida, deve ſer tão
abominavel aos eſtranhos, quanto horroroſa
ao que a commette; e ſe os Ceos, e a voſſa
clemencia me conſervarem eſte alento, que
reſpiro, e a diſtancia do perigo ou me a-
faſte dos bons propoſitos, ou em retire de
ſer grato ao beneficio, vos peço, Senhor,
que a voſſa grandeza me ſepulte neſſe abyſ-
mo de penas. Aganymedes, deſejando ſaber
o fim daquelle eſtranho caſo, lhe ordenou
acabaſſe de dizello, o que todos com a maior
admiração eſperavão. Esperei, Senhor, (lhe
reſpondeo) que he tão agigantada a minha
maldade, quanto são ſublimes as virtudes
de Antionor, porque he ſabio, he prudente ,
e he elevada a generoſidade de ſeu nobre
peito. Eu ſem cauſa o fiz reduzir á maſmor-
ra, onde vio de perto os ſeus ultimos dias,
ſendo falſo o delicto, que lhe imputou a mi-
nha cavillosa induſtria; porque pedindo-me
licença para ir ver os ſeus compatriotas, eu
I lhe
120 AVENTURAS
lhe aconſelhei com a mais vil maldade, que
ſe foſſe, e não tornaſſe ao voſſo ſerviço,
pois era a fuga o unico remedio de ſua triſ-
te ſervidão. A eſta propoſta me reſpondeo,
que nunca ſaberia fugir quem havia ſuſten-
tado os brazões de tantos vencedores, quan-
do ſe perſuadia que os Ceos o não ordena-
vão. Tornei a inſtar, que como devemos
morrer pela liberdade, aquelle fugir era ven-
cer. Reſpondeo com mais ſevero ſemblan-
te, que os que temem os Deoſes, não fo-
gem aos trabalhos, porque ſe a elles os deſ-
tinárão, também ordenarião o ſeu deſcanço.
Perguntei, como não amava a vida? e me
reſpondeo: Os homens, como eu, mais de-
vem conſervar a honra, que reſguardar a vi-
da. A eſtes exemplos da mais rara conſtan-
cia inſtei, dizendo: Pois como a compai-
xão me obrigou a aconſelhar-te, e a tua
ingratidão deſpreza o que te offereço, não
ſerá juſto que venhas cauſar a minha ruina,
communicando a outros o que te aconſelhei:
aſſim te advirto que não tornes a voltar, ou
te ha de cuſtar a vida. A iſto mais ſabio
me reſpondeo: Eu não devo obrar mal,
porque tu não obres peior, pois nem he baſ-
tante a tua ſagacidade para diminuir a mi-
nha obrigação: quanto mais, que o que he
verdadeiramente bom, tarde, ou nunca he
infamado; e aſſim como regularmente a má
fa-
DE DIÓFANES. LIV. IV. 121
fama he companheira da má conſciencia,
ſendo tu aqui tambem acreditado, ninguem
culpará a tua fidelidade, pois são incontraſ-
taveis as forças da virtude, e as da boa o-
pinião; e como juſtamente nos não deve-
mos fiar de quem não defender a propria
honra, e eu reſguardo-a mais que a meſ-
ma vida, não temas que te deſtrua, pelo
que me confiaſte. Aſſim me deixou tra-
çando a ſua ruina. Eſta he a culpa, de
que me eſtá accuſando Antionor na vida,
que me deo: e com que chego a pedir que
me ſeja perdoado o eſcandalo; que aos que
conhecem a fealdade do proprio delicto he
mais horroroſa a vida, que os rigores do caſ-
tigo.
Aquellas, e outras muitas palavras,
que ſe havião dito, elle as repetio puramen-
te, e eu não as digo por me faltar o tem-
po. Todos ouvião com grande admiração o
acordo, e lembrança de Aldino, em quem
os Deoſes (parece que para culto da verda-
de) inſpirárão todas as minhas palavras, ſe
acaſo o remorſo lhas não tinham preſentes
na lembrança. O Rei, votando para mim,
disse: He verdade o que diz Aldino? Não
tenho mais que dizer-vos, lhe reſpondi. Pois
como (me diſſe) arriſcaſte a vida por quem
te havia promettido a morte, e te fazia ſuſ-
peito contra a boa fé? Não ſabes que não
I ii se
122 AVENTURAS
ſe deve conſervar a vida do que he preju-
dicial ao público? e que ſempre o he o mal
intencionado? e que a propria vida devias
reſguardar ainda a pesar da do contrario?
e que a ruina do credito he mais ſenſivel
que os golpes da morte? Não recea o poder
dos homens (lhe reſpondi) o homem, que
ſó teme os Deoſes; nem obrigão os reſguar-
dos da propria vida, quando as manchas do
ſangue do contrario tomão as cores da vin-
gança: e ao que prejudica o público ſó pó-
de caſtigar o que tem a incumbencia de ad-
miniſtrar a juſtiça. As ſuas maldades não me
desobrigão de valer-lhe, pela meſma com-
paixão, a que me deve mover, quando de-
termina vilmente a minha ruina. O credito,
que me quiz abater a ſua falſidade, aſſás
reſtituido fica pela occaſião de receber a vi-
da daquelle, a quem havia promettido a
morte. Quanto mais, Senhor, que o pri-
meiro conſelho de Aldino parece filho de
hum coração ſincero; e o deſacerto naſceo
do muito, que teme a voſſa ira. Aqui fu-
rioso Aldino em mais alta voz diſſe: Não
he aſſim o que diz, Senhor, porque ſabe
que os monſtruoſos partos da inveja me ar-
rebatárão áquela abominavel esfera de deſ-
acertos: e para ſer, ó Antinor, maior a
tua victoria, e bem viſta a minha confusão,
ſerá a minha morte o inſtrumento do teu
tri-
DE DIÓFANES. LIV. IV. 123
triunfo. Oh, quem rendêra já o eſpirito nos
braços do arrependimento! E como o pálli-
do ſemblante ſe lhe fazia cadavérico e os
olhos ſe lhe cubrião de ſangue, a voz era
tremula, e rouca, não quiz reſponder-lhe,
e pedi ao Rei o mandaſſe a deſcançar; o
que logo ſe fez. A eſte tempo já a gente do
campo, e parte da familia havião apagado
o incendio, que não ateou mais que naquel-
le quarto: nem ſe fallava no que havia pa-
decido aquella parte do palacio, porque a
novidade do que ſe havia deſcuberto em Al-
dino, occupava a admiração de todos, pois
não ſó era ſervo antigo, mas tido pelo mais
verdadeiro, e zeloſo; ſendo que a eſtes os
Deoſes os conhecem, e os moſtra o tempo.
O que lhe cauſou tanto damno, foi o receio
de que chegaſſe aos ouvidos do Rei, que
os companheiros lhes entranhavão não ſer eu
poſto em melhor occupação, pois dava moſ-
tras de ſer na verdade ſabio, pelo bem que
instruia os filhos daquelles ruſticos; e que
ſendo offerecido por Filosofo, era odioſo
o emprego de guardar rebanhos: eſtas pon-
derações lhe introduzírão o veneno nas en-
tranhas.
No dia ſeguinte fui conduzido á pre-
ſença da Mageſtade, que me diſſe: Agora
ſei as virtudes, de que es ornado; e ſe que-
res a liberdade, confia-me verdadeiramente
quem
124 AVENTURAS
quem es, na certeza de que te ſaberei tan-
to eſtimar, como guardar os teus ſegredos.
Não queirais ſaber quem ſou, (lhe reſpon-
di) pois jurei não revelar jamais; mas
ſabei que vos ſirvo, Senhor, obediente ao
meu deſtino, que temo aos Deoſes, e que
amo as letras. Eu igualmente me obrigo ao
teu juramento; (me replicou) e como tam-
bem me deves ſer obediente, não he razão
que não reſpondas ao que te pergunto; e
vendo-me com moſtras de afflicto, mudando
de parecer, diſſe: Mas não o digas, que
he vil maldade empreender que ſe offendão
os Deoſes, ſem mais cauſa que huma curio-
sidade inutil. Quero que te exercites em dar
eſcola a eſtes, a quem principiaſtes a inſ-
truir; e que o caſtigo de Aldino ſeja ao teu
arbitrio. Que maior caſtigo (lhe respondi)
quereis que ſe dê a hum triſte, que correr
com a tormenta da ſua culpa, entregue ao
conhecimento das gentes, paſſando de eſti-
mações a vituperios? Pois ſabe, (me reſpon-
deo) que para ſe conſervar como trofeo da
tua victoria, já eu lhe havia perdoado; e
agora ſó quiz tirar mais huma prova da no-
breza de teu coração: e ultimamente te di-
go que te não dou liberdade, por não ten-
tar o teu retiro, mas que conſideres tella
em os meus Dominios, onde te não faltará
cousa alguma.
Com
DE DIÓFANES. LIV. IV. 125
Com eſtas palavras me deixou conten-
te, e deſcontente, pois os deſcansos de bem
viſto me tiravão a eſperança aos meus de-
ſejos. Quando quiz recolher-me, conforme
o coſtume, fui conduzido a humas caſas da
vizinhança, que achei bem ornadas, e com
criados, que me ſerviſſem. A eſte tempo
Delmetra eſtava ouvindo com grande ale-
gria aquella repentina mudança da fortuna,
e como quaſi era chegada a noite, Antio-
nor, fazendo aqui ponto, ſe deſpedio; e
Delmetra lhe rogou quizeſſe no dia ſeguin-
te continuar a ſua hiſtoria, já que a havia
principiado; pois como ferida de trabalhos
ſe conſolava em ouvillo. Antionor ſe reti-
rou, promettendo ſatisfazella. Delmetra to-
da aquella noite vacillava entre mil conſi-
derações, lembrando-lhe quanto aquelle grato
modo de fallar era ſemelhante ao de ſeu querido
Diofanes, que havia quatorze annos
perdêra. Também lhe corria o ver-lhe
hum ſinal pardo na barba ſemelhante a hum,
que tinha o ſuſpirado conſorte; mas eſtas
conſiderações deſperſuadia o reparar que ti-
nha a cabeça, e o roſto cheio de cicatrizes,
era totalmente falto de dentes, e tinha mui-
to avermelhada a côr, e diverſa da de Dio-
fanes; e não ſe perſuadia que tanta mudan-
ça, e eſtrago pudeſſem obrar os trabalhos,
e o tempo. No dia ſeguinte ſahio a eſperal-
lo
126 AVENTURAS
lo antes de manhã, gaſtando aquellas horas
nas meſmas conſiderações, em que havia paſ-
sado a noite; e ainda que a fontezinha com
ſeus riſos criſtallinos, e aquellas agradáaveis
repreſentações a convidavão para alegrar-ſe,
como deſconfiava da fortuna, ſe perſuadia
que tudo era allivio imaginado, para ſentir
novamente os rigores da ſaudade: e aſſim
tudo, quando havia reparado, lhe tornava
a parecer pelo contrario; e cheia de nova
triſteza adormeceo encoſtada sobre huma pe-
dra da meſma fonte.
Chegando Antionor, e vendo que deſ-
cançava, não a quiz deſpertar para com
mais indivíduação examinar o que lhe havia
parecido em Delmetra; e conhecendo ſer ſua
perdida Clymenea, com immenſas lagrimas
de prazer explicava mudamente ſeu deſme
dido contentamento, como fraſe mais diſ-
creta dos que na verdade ſe amão; e aſſim
immovel, por lhe não uſurpar o deſcanço,
parecia dizer-lhe: Adorada conſorte, ſe os
Deoſes benignos me confião a incomparavel
conſolação de ver-te, como premio da ve-
neração, que conſagro ás tuas virtudes, per-
mitta-me o teu amor que eu me negue ao
teu conhecimento, porque não vejão os teus
olhos os golpes, a que eſtá aqui expoſta a
minha vida, ſe acaſo as ruinas, que tem
obrado em mim o tempo, te não têm dei-
xa-
DE DIÓFANES. LIV. IV. 127
xado ver quem ſou: e já para acabar con-
ſolado, não me falta mais, que ver huma
ſó parte da minha pena em a filha, que em
ti adoro; e como a diminuição, que tinha
na viſta, o obrigou a ajoelhar para melhor
a ver, quando foi a erguer-ſe, tocando na
pedra, a que eſtava encoſtada, a deſpertou;
e cheia de alegria, depois de agradecer-lhe
a attenção, e repetido allivio, lhe pedio qui-
zeſſe continuar a contar a ſua hiſtoria, pois
deſejava com anſia ſaber ſe continuára a ex-
perimentar proſperidades, quem tanto as ha-
via merecido nas adverſidades; e tronando-
ſe-lhe a excitar as eſpecies da ſemelhança:
Não ſei, (diſſe) ó ſábio Antionor, que oc-
culto deſtino, ou ſympathia me influi o a-
mar-te, e me não occorre mais cauſa, que
as ſemelhanças, que em ti obſervo, pois são
de ſogeito, que poſſui o meu coração. E
como vos afaſtaſte de quem tanto amaveis?
(lhe perguntou Antionor) Porque da mi-
nha cruel sorte (lhe reſpondeo) fez entre
nós o fado igual partilha; pois o laço, que
ſó podia deſatar a fria mão de Atropos,
quebrou a tyrannia dos homens. Ah monſ-
tros de crueldade, que não ſabem que he
a morte menos dura, que ſeparar a huma
infeliz daquelle, que lhe deſtinou a sorte!
A eſtas palavras acompanhavão correntes de
lagrimas, que erão novas prizões para o co-
ra-
128 AVENTURAS
ração de Antionor, com as quaes ſe ſentia
desfalecido, para ſe lhe não dar a conhe-
cer; e quando hia quaſi a declarar-ſe, ſe re-
primia, dizendo: Se eu, Senhor, não te-
nho palavras para conciliara a voſſa alegria,
ao menos mereça a voſſa conformidade, e
conſolação a ſemelhança, que em mim achaſ-
tes; e ſuponde que ſou o meſmo, que o
que he origem de tanta lagrimas, em de-
ſejar que ſe modere o rigor da voſſa pena
para gloria dos Deoſes, merecimento voſſo,
e juſta vaidade minha. Ouvi meus trabalhos,
porque os alheios concilião forças para to-
lerar os proprios.
Já hontem ouviſtes, como de ſervir
paſſei a ſer ſervido, e que com aquelles cam-
poneses eſtive ſinco annos bem aſſiſtido, e
eſtimado; e lembrando-me daquella ſabedo-
ria, que enſinára aos ruſticos a terem cuida-
do na agricultura, que deſprezavão por pre-
guiça, e ignorancia; e que Apollo inſtruí-
ra outros a gozarem mais docemente do ſo-
cego, e fertilidade de ſeus campos; eu os
fazia colher os frutos, com que a terra en-
xuga o ſuor dos lavradores, e aproveitar as
flores da melhor Primavera nos annos, que
os ajudão para recolherem com que paſſem
no Inverno de ſuas velhices; e como no meſ-
mo trabalho guardavão a boa ordem, e pro-
porções, erão eſtas agradaveis á viſta, ſer-
vin-
DE DIÓFANES. LIV. IV. 129
vindo-ſe dos delicioſos rios, e fontes, com
o que parecia haver alli acabado o ruſtico,
e que aquella montanha ſe transformára em
delicioſos jardins. Os lavradores, vendo-ſe
abundantes, eſperavão no campo que os a-
legraſſe a Aurora, promettendo-lhes o dia:
aſſim cantavão alegres no trabalho, que os
deſcançava, e cubrião os montes com ſeus
rebanhos.
Tambem os admittia a fazerem offer-
tas aos Deoſes, e lhes proteſtarem nas vi-
ctimas a candidez de ſeus corações. Orde-
nei que em dias determinados tiveſſem ſeus
jogos, e danças pastoris; porque o mode-
rado, e público divertimento faz que ſe não
aborreça a fadiga quotidiana; pois ſe aos
moços applicados não ſe permittirem diver-
timentos públicos, os buscarão particulares,
talvez com o eſcândalo; porque não he poſſi-
vel que todo o tempo ſe gaſte em eſtudos,
e acções heróicas: quanto mais que eſtas
meſmas ſe aprendem nas illuſtres que ſe re-
preſentão. E não tem o perigo (lhe pergun-
tou Delmetra) de também aprenderem o
pernicioſo neſſes divertimentos? Não, (lhe
reſpondeo Antionor) porque os lances de
amor a natureza os enſina; e os de fidelida-
de, conſtancia de animo, honra, valor, e
temor dos Deoſes aſſim ſe infundem no ani-
mo da plebe, como me moſtrou a experien-
cia,
130 AVENTURAS
cia, pois não havião odios, murmurações, nem
ocioſos, porque ſuavemente os havia feito
applicar a exercicios de que ſe utilizavão;
e lhes conſentia divertimentos, em que tam-
bem ſe inſtruião no que lhe convinha: e
aſſim faltava tampo aos mordazes e não
havião ocioſos, que eſtabeleceſſem a eſcola
dos vicios.
Os meninos, em que eu obſervava ha-
bilidade, tambem ſe applicavão a eſtudos,
tirando huma grande parte do tempo ás ſuas
traveſſuras; e os outros hião com ſeus pais
dar principio a deſconhecer a preguiça. Aſ-
sim me conſervava ſem mais trabalho, que
as penosas recordações de meus primeiros
infortunios, quando me chegou hum aviſo,
para ir á preſença de Anfiaráo, que me or-
denou o acompanhaſſe para a Corte, ao que
muito reſiſti, mas ſem effeito, e não tive
mais remedio, que deixar a flauta aos Paſ-
tores; e depois de diſpôr a alguns, chamei
a todos, e lhes diſſe: Já ſabeis, ó mil ve-
zes ditoſos, que eſtais gozando as flores, e
colhendo os frutos deſta amavel ſoledade,
que ſois mimoſos dos Deuses, pois vos li-
vram dos tumultos das Cortes, onde huns ſe
alimentão do mal de outros, e que eu vivia
em ſocego, e vós experimentaveis a fertilida-
de, com que as terras, ſem deſcançarem to-
do o anno, repartião convoſco todo os ſeus de-
li-
DE DIÓFANES. LIV. IV. 131
licioſos frutos, que trabalhaveis para lhos
mereceres. Já tem ſido tão grande o meu
deſcanço, que ſou obrigado a deixar-vos,
ó ditoſos Paſtores, que em paz, e alegria
ouvis repetir ao éco as voſſas ſonoras vozes:
Oh quanto he feliz o povo, que he ſujeito
a Senhor ſabio, pois buſca todos os meios
para lhes conſervar a ſua felicidade, e aman-
do a cauſa do bem, que logra, come deſop-
primido o fruto de ſeus trabalhos, aſſim,co-
mo o Rei, que deſpreza o amor dos vaſſal-
os, tem mais que temer na falta deſte, que
os ſubitos no poder; e lembrando-me da-
quelles vinculos da natureza, que intentara
deſtruir a crueldade das gentes, dizia mais
triſte: Ai de mim, que nem cheguei a lo-
grar inteiramente eſte amavel ſocego, pois
já entro a penſar em maximas de governo;
mas ſe nos trabalhos naſce da conformida-
de o merecimento, os Deoſes ſempre juſtos
me hão de reſtituir á minha primeira felici-
dade. Bem vedes como entre vós acabou o
ruſtico, e eſtais coſtumados a obedecer, a
trabalhar, e a amar a applicação: conſervai-
vos com fidelidade, deſintereſſe, desejo de
honra, e temor dos Numes: diverti-vos in-
nocentemente ſobre a verde relva á ſombra
dos delicioſos arvoredos; e quando coroa-
dos de flores feſtejares a Ceres, e a Diana,
lhes farei a melhor offerenda, em lhes leva-
res
132 AVENTURAS
resbos corações deſpidos de affectos nocivos,
e conhecereis quão doces, e ſuaves são eſ-
tes innocentes prazeres: não canseis de cul-
tivar as terras e conſervai a ſingeleza, pa-
ra gozares felizmente a formoſura de que
eſtão adornados eſtes campos. Com recipro-
cas lagrimas me apartei triſte, afflicto, e
ſaudoso. Tanto que cheguei á Corte, fui
levado á preſença de Anfiaráo, que com de-
monſtrações de urbanidade me recebeo.
São eſtimaveis, ó ſábio Antionor (me
diſſe), as tuas prendas, e direcções, que ex-
perimentando-ſe nos bem morigerados coſtu-
mes dos ruſticos, e nos campos fertilizados
com a tua aſſiſtencia, e prudentes reflexões,
foi juſto que ſe puzeſſe de parte a conve-
niencia daquelles, a quem com mais vonta-
de acompanhavas: porque he razão, que
prevaleção dos intereſſes do público aos do
particular, e aos do particular tambem os
do Soberano; já as camponezas ſabem co-
mo devem fazer ſacrificios ao decóro, já a
agricultura experimenta os beneficios da na-
tural Filoſofia, ficão remediados os produ-
ctos da ocioſidade, e entre aquelles campo-
nezes bem eſtabelecidas as tuas doutrinas;
que os documentos, que ſe ouvem com af-
fecto, são leis, que já mais ſe virão que-
brantar: he tempo, para que as tuas maxi-
mas, que eſtiverão tão deſconhecidas, ve-
nhão
DE DIÓFANES. LIV. IV. 133
nhão a ter exercicio entre a eſtimação das gen-
tes. Bem ſabes que as ſciencias são o pre-
mio de ſi meſmas, como bens, que o tem-
po reſpeita: mas eu me lembrarei ſempre,
que os merecimentos ſó os exalta quem vê
bem as ſuas luzes, aos quaes tanto ama a vir-
tude, como teme a maldade. Sinto, Senhor,
(lhe reſpondi), que vos deſſem de mim hu-
ma idéa, que eu não ſaberei deſempenhar;
e como ſeja tão arriſcado o perto do Sobe-
rano, quanto deſconhecida a felicidade do
ruſtico ſocego, ſem que ſeja o meu intento
negar-me ao voſſo ſerviço, vos peço que
me eſcuſeis ás eſtimações da Corte. Não
dando ouvidos a iſto, principiou a fazer-me
muitas perguntas com ſubtileza e enge-
nho.
Em goſtoſos diſcurſos ſe paſſárão os pri-
meiros dias, e entre outras muitas pergun-
tas, me diſſe, queria ſaber qual fora o pri-
meiro Rei? E depois de lhe haver reſpon-
dido, continuei, dizendo: Conforme a va-
riedade de nações, coſtumavão nomear os
póvos aos ſeus Principes, os Argivos lhes
chamavão Reis, os Bythinios Ptolomeos, os
Egypcios Faraós, e os Siculos Tyrannos,
e aſſim as mais nações; mas he certo ſerem
mortos os que forão, e que morreráõ os que
vierem, porque a morte tanto reſpeita o a-
rado no campo, como o throno em Palacio.
No
134 AVENTURAS
No principio do Mundo ao máo Governa-
dor chamavão tyranno, e ao bom chamavão
Rei: daqui vereis, Senhor, como eſte no-
me de Rei eſtá conſagrado a peſſoas, que
são uteis ao bem público; os Romanos, que
trabalhão para ſenhorearem o Mundo, fa-
zem Reis para os regerem, e Capitães para
os defenderem. Entre os Gregos, Perſas,
Aſſyrios, Medos, Troyanos, Paleſtinos,
Parthos, e Egypcios houverão Principes mui-
to illuſtres; e eſtes não punhão a ſua glo-
ria em titulos, mas ſim nas acções heroicas.
Já que me tens dito o principio dos Reis,
(me diſſe) quero ouvir-te, como devem con-
ſervar, e reger o ſeu Reino, o qual he o
mais glorioſo Imperio? O mais glorioſo
(lhe reſpondi) he o que os Principes alcan-
ção, conquiſtando juſtamente; e contra o
Real decóro o que com ſem-razões poſſuem,
aſſim como lhes he injurioſo largar a paci-
fica poſſe, quando as razões não são con-
vincentes; pelo que he muito preciſo fazer
applicação na arte de reinar, por não dila-
tar com os dominios o pezo dos encargos,
ou os não augmentar, largando com deſ-
cuido o abrigo dos vaſſalos; porque ſe os
Principados tyrannicos ſe alcanção por for-
ça, e com as armas ſe ſuſtentão; os que são
bem poſſuidos com a razão ſe ſuſtentão, e
com os póvos ſe defendem. São tão pezadas
as
DE DIÓFANES. LIV. IV. 135
as obrigações dos Soberanos, que ainda que
tenhão o valor de Aquilles, a riqueza de
Creſo a prudencia de Platão, e a conſtan-
cia de Catão, ſe a eſtas virtudes faltarem
outras de que tambem ſe alimenta o bom
nome entre ſeus ſubditos, lhes fará mais
guerra a inveja, que ſe não deſcuida em
procurar os deſcuidos dos que tem virtu-
des.
Não repugna á prudencia, mas a a-
credita a bondade do Rei, que communica
as couſas arduas a ſeus fieis, e ſabios fami-
liares; porém de ſorte, que ſabendo-ſe que
os ouve, não ſe entenda que o governão:
aſſim como he preciſo ouvir aos vaſſalos, e
não os tratar com deſabrimento; porque não
conſiſte a Mageſtade na aſpereza de tratar
as gentes, pois em quanto não ſão deſpa-
chados, não he juſto que vivão queixoſos,
e porque o Soberano ſe faz amavel pela bon-
dade, e não pela authoridade. Tambem he
preciſo reflectir que a demaziada ſoltura tem
arruinado muitas Repúblicas; pois nunca os
Gregos, os Epirotas, e outras nações pudé-
rão ſujeitar as que aſſolou, e perdeo a mui-
ta liberdade, porque eſta não carece de me-
nos prudencia para conſervar-ſe, que de va-
lor para ſe ganhar. Nas Repúblicas mais
bons infamão, e mais furtos fazem dous ho-
mens livres, que duzentos ſujeitos. Não ha
K ri-
136 AVENTURAS
riqueza na vida humana, que ſe iguale á li-
berdade; nem ha tambem couſa mais peri-
goſa, ſe não a ſabem mediar. Eſta ſim ſe
deve ganhar, comprar, procurar, amparar,
e defender; mas he preciſo que ſó ſe con-
ſinta uſar della, não como convida a von-
tade, ſim como permitte a razão, porque
ſe não perca em poucos dias pelo muito uſo,
podendo conſervalla a moderação em toda
a vida. A liberdade de Falaris perturbou os
Gregos, e a de Catilina eſcandalizou os Ro-
manos. Muitos são os que deixam de fazer
mal, porque não podem, e poucos porque
não querem. Com eſtas, e outras ſemelhan-
tes ponderações determinava acabar o meu
diſcurſo; mas como Anfiaráo me ouvia goſ-
toſo, ordenou que continuaſſe a diſcorrer
ſobre como ſe devia haver o Rei amavel,
e os coſtumes, que mais prejuizo fazem ás
Repúblicas. As deſpezas demaziadas, (lhe
reſpondi), e as praças guarnecidas de vaga-
bundos. O que não devem conſentir os So-
beranos, porque hão de dar conta aos Deo-
ses immortaes dos coſtumes, e bens das ſuas
Repúblicas, não como ſenhores, mas como
tutores: e aſſim devem caſtigar aos que mal
obrão, e premiar aos que bem ſervem; por-
que ainda que não forão companheiros dos
vaſſallos nas culpas, o ſerão nas penas. A
perpétua eſtabilidade de hum Reino ſó coſ-
tu-
DE DIÓFANES. LIV. IV. 137
tuma conſervar a recta diſtributiva de pre-
mios, e de caſtigos; porque aſſim como eſ-
tes são remoras da maldade, coſtumão a-
quelles obrigar as vontades, e conciliar a-
mor, animando para as heroicidades; e em
ſe premearem os merecimentos, ſe publicão
leis para crear benemeritos; e caſtigando
hum reo, ſe põe o mais forte padrão, pa-
ra que ninguem o ſeja; aſſim como ao So-
berano tanto devem amar os bons, como te-
mer os máos, fazendo que ſe não perſiga a
humildade, e que a ambição, e vingança
acabem logo no ſupplicio, com que os fa-
vorecidos da fortuna conheceráõ que eſta não
he ſegura, não a afiançando boas obras; e
aos que injuſtamente perſeguir a deſgraça,
animará alguma juſta eſperança; e como he
preciſo mais animo para vencer os vicios,
que valor para accommetter os exercitos, o
Rei que não for caſto, he preciſo que ſe-
ja cauto, para não dar eſcandalo aos vaſſal-
los, com o que augmentárão as glorias de
ſeus nomes Alexandre, Marco Aurelio, Sci-
pião, e outros varões admiraveis. Tambem
me lembro, que aconſelhava Platão aos A-
thenienſes, que elegeſſem Governadores, que
fossem juſtos, conſtantes, verdadeiros, pru-
dentes, e generoſos, porque os grandes Se-
nhores são temidos pelo poder, e amados
pelo dar: pois he certo que os não ſeguem
K ii tan-
138 AVENTURAS
tantos pelo que devem, quantos pelo que
esperão, aſſim como o bom exemplo, e as
grandezas igualmente recommendão aos vaſ-
ſallos, que os ſirvão de boa vontade.
Hum dos trabalhos dos que governão
a República he o ajuizarem-lhes o que pen-
são, e repararem-lhes em tudo o que fazem:
os Athenienſes reparavão em Simonides,
que fallava muito alto, e não ſe lembravão,
que vencêra a batalha Marathonia: os La-
cedemonios, que Lycurgo não andava direi-
to, e lhes eſquecia que reformára o ſeu Rei-
no: os Romanos, que Scipião dormia ron-
cando, e não fazião memoria de que ven-
cêra Carthago; porque os homens, que vi-
vem ſem emprego, nem occupação, não ſa-
bem conhecer o que os ſeus Soberanos he-
roicamente emprendem, porque ſó os deſ-
cuidos conhecem. Vós bem ſabeis, Senhor,
que deveis eleger vaſſalos, para os empre-
gos conforme ſeus talentos, porque o ſupre-
mo governo ſó conſiſte em governar os que
governão, e eſcolher os que tenhão verda-
deira idéa de governo, que ſejão ſabios, e
bem morigerados, porque tenhais nelles inſ-
trumentos hábeis para effeituarem os voſſos
deſignios, recommendando-lhes ſempre que
reparem, que dos pequenos receios alguma
vez naſcem os maiores acertos; e como ſa-
beis o referido, parece eſcuſado que eu o
re-
DE DIÓFANES. LIV. IV. 139
pita, ſabendo que nem ſempre he a ver-
dade bem acceita. A iſto me reſpondeo com
enfado: Para uſares da licença, que te dou,
e obedeceres ao que ordeno, não he preci-
ſo que apures o meu ſoffrimento. Continua-
rei, Senhor, em dizer-vos a verdade do que
alcanço, (lhe reſpondi) porque nos vaſſal-
los de honra ainda depois de mortos devem
as memorias de ſeus nomes reſponder ſem-
pre as verdades.
Os melhores Reis não são os que me-
lhor diſcorrem, mas ſim os que trazem no
coração eſcrita a Lei, ſendo as ſuas obras
a melhor pratica da meſma Lei; aſſim como
não devem permittir as regalias de valído
aos ſogeitos, a quem inhabilitou o naſcimen-
to, ſe eſte ſe não enobreceo com as ſcien-
cias, porque ordinariamente não são creados
com horror á mentira, e eſtando fóra dos
encargos da nobreza mentem ſem receio, e
aſſim destroem os honrados, e de toda a ſor-
te que podem, fazem mal aos bons; e por-
que poucas vezes deixa de ſer ſoberbo o que
chega a hum auge de fortuna, que não eſ-
pera, nem merece; eſtes por mais incapa-
zes dão idéas de governo, como as podem
dar os que ignorão as Leis, que são as que
coſtumão governar; e como preciſamente vos
haveis de ſervir de homens, não vos eſque-
ça que eſtes quaſi ſempre são enganoſos: e
ve-
140 AVENTURAS
vede, Senhor, que os Deoſes vos não fizerão
Rei com outro fim mais, que para ſerdes pai
deſte povo, a quem deveis dar o tempo com
amor; que o que mais ſacrifica o ſeu goſto
ao bem público, he o que he mais digno
de reinar, tendo mais confiança nas ſuas o-
bras, que nas ſuas palavras, porque eſtas
aſſustão, e as obras animão, pois he o bom
exemplo o que melhor excita o exercicio das
virtudes, e mais ſeveramente reprehende os
vicios; o que com inteireza ſó póde fazer
quem não dá cauſa aos reparos. Oh quanto
he feliz o Rei, que triunfa dos vicios, pa-
ra que convidão os deſcanços, porque todos
o ama, e ſervem de boa vontade! e ſe al-
guma vez erra, não o eſtranhão, como cul-
pa, porque o vem, como deſcuido. Já mais
ſe vio acertar (diſſe Anfiaráo) quem ſe não
aconſelha com a ſumma razão, que nos inſ-
pira os acertos, e nos enſina a uſar do en-
tendimento; eu não tinha reflectido em ſeus
admiraveis effeitos, agora o conheço, ven-
do reſplandecer a verdade no que me has
dito; e ordeno que te informes do que ha
no meu Reino, porque ſó quero que ſe con-
ſerve no antigo eſtado o que for conve-
niente.
Com eſtas palavras me deixou cheio
de ſuſto pelo que me encarregava; e como
para dúvidas, os recurſos aſſim me negou
to-
DE DIÓFANES. LIV. IV. 141
todos os meios, me recolhi ao meu apoſento
triſte, afflicto, e perturbado, pois devia con-
deſcender com a ſua vontade em huma em-
presa tão ardua, como digna de receio. No
dia ſeguinte ſahi com diſſimulação a infor-
mar-me do que dizião os pobres, e como
vivião os ricos, e os que adminiſtravão a
juſtiça: depois de haver concluido eſta dili
gencia, procurei inſtruir-me nos livros, e
Leis do Reino. Paſſado todo o tempo, que
me foi preciſo para averiguação tão impor-
tante, fui á preſença de Anfiaráo, e lhe diſ-
ſe: Sabei, Senhor, que o voſſo Reino, que
ha pouco mais de tres annos, que gover-
nais, ſe acha reduzido a hum eſtado miſe-
ravel; não ha nelle caminho algum, que
ſeguro ſeja; não ha lugar privilegiado, nem
quem queira cultivar os campos; o commer-
cio eſtá arruinado, porque ſe lhe quebran-
tão os privilegios, e não ha verdade; os
que admittis no voſſo agrado ſervem-ſe da
voſſa authoridade, arruinando os creditos,
e corrompendo as voſſas Leis: accudi às ba-
lanças da juſtiça, fazei mercês aos naturaes,
mandai que não ſaia para fóra a voſſa moe-
da, alliviai os tributos, e não deis credito
ás vozes da vileza ignorante. Se tens conſi-
derado (lhe diſſe Anfiaráo) os meios para
evitar os damnos, quero ouvillos. He certo,
Senhor, (lhe reſpondi) que não ſó naſce o
Rei
142 AVENTURAS
Rei para defender os ſeus dominios com a
lança, mas tambem para governar os ſeus
vaſſallos com prudencia; não ſó para deſ-
truir inimigos, como tambem para extirpar
vicios; e não ſó para ir á guerra, como
tambem para reſidir na República , manten-
do em boa ordem a juſtiça: e aſſim mandai
guardar inviolavelmente as voſſas Leis ſobre
os pleitos civís, e nos criminaes que ſe mo-
derem; porque as ſeveras, e rigoroſas ſe fi-
zerão mais terror, que para ſe execu-
tarem ſempre, pois que os juſtos Deoſes
mais nos remunerão ſerviços, que caſtigão
delictos. Não conſintais que ſirvão as occu-
pações homens ambicioſos, pois não ha na
República animal mais pernicioſo, que o
que ſerve com a ambição de ſe lhes com-
prarem as dependencias. Tambem deveis
cuidar em que ſó ſe dem os cargos da juſti-
ça a homens doutos, e de conhecida pru-
dencia; porque os que principião a exerci-
tar as letras ſó tem a sciencia nos labios,
e antes que acertem, perturbão a Repúbli-
ca; porque ſabendo o que dizem os livros,
e não o que enſina a experiencia, ſerão bons
para advogar, porém não para julgar. Os
Juizes, de quem ſe deve fiar a República,
devem ser rectos no que ſentenceão, com-
paſſivos no que mandão, honeſtos no viver,
ſoffridos nas injurias, e comedidos nas pa-
la-
DE DIÓFANES. LIV. IV. 143
lavras. Entre os Romanos ſó podem ſervir
de Cenſores os que paſsão de quarenta an-
nos, e são caſados, tidos por honestos, me-
dianamente ricos, e experimentados em ou-
tros officios da República, porque a arte de
governar ſe acha com a prudencia, ſe de-
fende com a ſciencia, e com a experiencia
ſe conſerva: não ſó devem ſer ſabios os Mi-
niſtros, como tambem nobres; porque aſſim
como augmenta á ſciencia o luſtre da nobre-
za, tambem he eſmalte da nobreza a ſcien-
cia, que a acompanha. Para haverem bons
ſoldados na guerra, baſta que os homens ſe-
jão valeroſos; mas para governar, e admi-
niſtrar bem a República, he preciſo que te-
nhão ſabedoria, nobreza, e prudencia, por-
que eſta virtude sabe diſcernir entre o cla-
ro, e o eſcuro, entre o nocivo, e o util,
o que ſe deve appetecer, ou deſprezar; e he
tão propria virtude do Soberano, quanto
preciſa no que reger a juſtiça, aſſim como
he da nobreza hum grande effeito o vencer
as paixões proprias. A primeira claſſe de no-
bres creou Theſeo em Athenas, e lhes deo
as maximas de bizarrias, a que a nobreza
excita; e o que ſe eſquece de executallas
tanto ſe deſmente de nobre, como deſmere-
ce a ſua claſſe, que não conſiſte ſó nas pre-
claras proſapias, pois o deſcançar na anti-
ga origem; vivendo entre os vapores dos
vi-
144 AVENTURAS
vicios, he offuſcar as glorias dos antigos;
e para empregos de alta ponderação, os que
fazem vida com as maldades, ainda que ſe-
jão filhos de Jupiter, ſe devem reputar por
indignos; porque a nobreza, que não de-
clina, he coſtumada a dar o melhor lugar
á razão, ſendo obrigada a executar o mais
ſublime que a illuſtra. Radamante, e Mi-
nos forão tidos por dignos deſempenhos do
Ceo pelas acções, com que glorificárão a
nobreza; mas para ſe gozarem ſeus privile-
gios, he preciſo que com as obras, ſe mere-
ça o illuſtre eſplendor da fidalguia. Não he
regra geral, que todos os mecanicos ſe en-
ſoberbeção com os grandes augmentos, mas
os bem naſcidos são mais habeis para taes
empregos; muitas couſas ſe devem levar com
o rigor, que pede a juſtiça, (como já diſ-
ſe) e em outras ſe deve moderar as leis, pa-
ra o que he preciſo que o Juiz ſeja ſabio
para determinar com acerto, e nobre para
moderar o rigor do Direito. Muitos varões
illuſtres primeiro ſervírão as Repúblicas,
adminiſtrando juſtiça, que empunhárão os
Sceptros, diſtribuindo theſouros, pois ſe não
devem prover as peſſoas de officio, mas os
officios de peſſoas. Os Soberanos podem dar
riquezas, mas não a vara da juſtiça, que ſó
ſe deve entregar a quem mais a merece. Se
os Juriſconſultos forem ignorantes, como po
de-
DE DIÓFANES. LIV. IV. 145
derão julgar os voſſos vaſſalos? Mas pode-
rão ſer ſabios, ambicioſos, e mal intencio-
nados, (diſſe Anfiaráo). Se forem apaixo-
nados (lhe reſpondi) em arruinar os inimi-
gos, ou favorecer os amigos contra juſtiça,
ſerá conjuração de máos, e não confedera-
ção de bons, como devem ſer; e ſe os er-
ros naſceram da ſua má intenção, ſó elles
ſerão culpados; mas ſe errarem por igno-
rantes, ou dementes, não ſerá ſó ſua a cul-
pa. Havendo muitos ſabios, não ſe conſen-
tiráõ nas occupações os que forem mal in-
tencionados, o que ſe não póde executar,
quando faltão, ou são poucos, porque he
neceſſario ſoffrellos á cuſta do povo, pois
ha occaſiões, em que ſe fazem preciſos; e
como todas as leis humanas eſtão fundadas
mais ſobre a razão, que ſobre opiniões,
muitas vezes mais acertará o rustico do cam-
po, que alguns graduados nos eſtudos; pois
ha caſos, em que mais ſe devem governar
pelo que a verdade lhes enſina, que pelo
que as leis determinão; para o que são pre-
ciſas as circunſtancias, que vos hei ponde-
rado, e que eſtas ſejão regidas pelo temor
dos juſtos Deoſes, para que fação viva re-
flexão, em que ſó tem lugar o deſobedecer
ao Rei unicamente, para cumprir com a mais
alta lei, e falar ás leis, ſó por obedecer ao
Rei, naquellas, que elle anima; e ainda que
or-
146 AVENTURAS
ordinariamente, quando o Rei he juſto no
que empreende, são os vaſſalos rectos no
que julgão, ſempre he preciſo que lhes deis
ordenados, com que ſuſtentem o reſpeito, e
eſplendor de ſeus lugares.
Se quizerdes, Senhor, conſervar a poſ-
ſe de diſtribuir riquezas, reger eſtados, e
animar o Sceptro, deveis acudir ao voſſo
Reino, mandando como Soberano, e não
izento de ouvir os voſſos vaſſallos, e ver
algumas vezes as provas da ſua juſtiça; por-
que não conſiſte a grandeza da Mageſtade
em os ter com a maior ſubmiſsão aos ſeus
pés, mas sim no vigilante cuidado de mui-
to bem os governar, porque ſó os tyrannos
procurão ſer temidos, e o melhor Rei tam-
bem deve querer ſer amado, vendo o mui-
to que tem, e quanto deve dar ás obriga-
ções de seu officio, tendo o maior prazer
em ſoccorrer a pobreza, fazer amar as vir-
tudes, e conhecer os homens aſtutos, e ava-
ros, que o rodeão, pois que aos ſeus enga-
nos eſtão ſujeitos os mais ſabios Monarcas;
e como não baſta para operar nos animos
das gentes a authoridade Regia, e ſubmiſ-
são dos vaſſallos, he preciſo ſenhorear ſua-
vemente as vontades, para que os homens
conheção as grandes ventagem, que levão os
que melhor ſervem.
Os homens grandes nas ſciencias ſe fa-
zem
DE DIÓFANES. LIV. IV.147
zem com regalias, izenções, e boa renda.
Se os meſtres não tiverem grandes augmen-
tos, eſtimações, riquezas, e privilegios, co-
mo haverão moços, que gaſtem os melho-
res annos de ſuas vidas em continuos eſtu-
dos, ſe para tanto trabalho os não ſobor-
narem grandes eſperanças?
Tambem conſeguireis facilmente ha-
verem muitos peritos nas artes, e em todos
os empregos mecanicos, fazendo-lhes maio-
res conveniencias, que os mais Principes;
e os que ou morrerem em voſſo ſerviço, ou
chegarem a hum certo número de annos,
vão a deſcansar com baſtante, de que man-
tenhão ſuas familias, e com augmento á pro-
porção de ſuas occupações; e determinando
premios, e regalias para os que chegarem
a hum certo auge de perfeição em ſeus of-
ficios, todos ſe hão de eſmerar para os me-
recerem, e deſde o berço enſinaráõ aos fi-
lhos a ſeguirem os paſſos, em vão al-
cançar a ſua felicidade; e a outros trará a
fama de Reinos eſtranhos, vindo buſcar os
augmentos, e eſtabelecimento, que tiverão
os primeiros, que lhe ſervírão de eſtimulo,
e os diſcipulos applicaráõ todo o cuidado,
por chegarem ao eſtado de ſeus Meſtres.
Ordenai que ſe caſtiguem os falidos,
como réos de temeridade; e que ninguem
poſſa commerciar, arriſcando bens alheios,
nem
148 AVENTURAS
nem mais que ametade dos prpprios; por-
que o meio para ter muito he não querer
demaziado. Ajudai o augmento dos vaſſal-
los, privilegiando as companhias, e pondo
penas aos que ſe lhe oppuzerem: dai intei-
ra liberdade ao commercio com favoraveis di-
reitos, e premios a quem o augmentar, de
ſorte que os vaſſalos ſejão ricos, e os eſ-
trangeiros contentes; e que eſtes levem huns
generos, tragão outros; e entre os commer-
ciantes elegei alguns mais capazes para go-
vernarem o commercio, e a eſtes deveis hon-
rar, e reſarcir a falta da ſua negociação,
pois toda lhes deve ſer prohibida; e orde-
nai que ſe caſtiguem ſeveramente os enga-
nos, as negligencias, e demaziado faſto,
porque de taes imprudencias ſe aproveitão
as outras nações: favorecei as fabricas, e
premiai aos que as intentarem, animando-
os, para que não deſmaem, e para terem
effeito os melhores inventos, e a eſtes de-
fendei-os da inveja: mandai erigir outras, e
m que os cegos, e aleijados trabalhem nos
lugares, onde forem poſtos, que aſſim ſe faz
em alguns Reinos, onde florecem as artes,
vivem melhor os pobres, e não ſe experi-
mentão tantos effeitos da ocioſidade: e vede
que de repente ſe não podem emendar os er-
ros da República, que ſe introduzírão pou-
co a pouco; não conſistais que ſe alterem
os
DE DIÓFANES. LIV. IV. 149
costumes, que não offendem os Deoſes,
nem prejudicão ao bem commum, pois he
preciſo haver grande cautela em emprender
novidades no governo; porque são os ple-
beus tão faceis em ſe inquietarem, como as
conſtantes aguas do mar, que se com qual-
quer vento ſe alterão, a plebe com hum
pequeno motivo ſe perturba, pois he com-
poſta de muitos ſogeitos, que ignorando os
preceitos de honrados, e faltando-lhes as
forças da nobreza, lhes ſobrão as das lin-
guas para temerarios delirios. Ha muitos po-
liticos, que dão arbitrios mais por conve-
niencia propria, que pelo bem público: pois
ſe são ambicioſos, procurão ſó fazer bom
o partido de ſeus intereſſes; e ſe vingativos,
cuidam ſempre em ſatisfazerem os deſejos de
ſeus máos corações; e por eſta cauſa havia
huma Lei entre os Athenienſes, pela qual
não tinha voto na República o que queria
ter conveniencia no que aconſelhava.
Vede, senhor, que por mar, e por
terra he preciſo que ſe tema o voſſo poder,
ſe reſpeitem os voſſos vaſſalos, e deſeje a
voſſa amizade; e para melhor ſe conſeguir
eſte fim, mandai que os voſſos artificeis tra-
balhem com mais cuidado nos eſtaleiros,
porque he preciſo que huma groſſa armada
conſerve o voſſo reſpeito; e porque ſe hou-
ver alguma occaſião, em que diſſimuleis com
os
150 AVENTURAS
mais Principes, conheção que ſois pru-
dente, e generoſo, certos em que não ſof-
freis falto de forças; e mandai que os ſol-
dados ſejão attendidos, e bem pagos, pois
aſſim ſe fórmão exercitos de voluntarios, que
são os que melhor coſtumão ſervir.
Tambem he preciſo que honreis os
Templos, temais os Deoſes, e ampareis os
pobres, que mais ſentem que ſe não conſer-
vem em fiel equilibrio as balanças da juſti-
ça; porque o Rei, em que reſplandecem eſ-
tas virtudes, dá exemplo aos amigos, e o
não podem deſtruir os inimigos; e fazei que
haja conſtancia nos negocios, que forem con-
venientes ao bem público, porque não con-
ſiſte a boa direcção em ſe determinarem,
mas ſim em que tenhão boa execução, e eſ-
tabelecimento, reveſtindo-vos de ſoffrimento
para com os importunos, e de prudencia
para diſſimular com os deſcomedidos, por-
que o bom Principe ha de perdoar as offen-
ſas proprias, e caſtigar as injurias da Ré-
publica; e aconſelhando-vos com a Mageſ-
tade, ſentireis grande prazer pelos que en-
riqueceſtes, e perdoaſtes, pois são condições
do voſſo officio reger com amor os vaſſal-
los, perdoar-lhes, e remunerar ſerviços, re-
commendando ſempre que não opprimão os
pobres com a cobrança dos tributos, porque
he maior a culpa de rouballos, que o
me-
DE DIÓFANES. LIV. IV. 151
rito de ſocorrellos. He certo que o melhor
Rei não cuida em adquirir theſouros, mas
ſim em aſſiſtir aos ſeus vaſſallos, tomando
as armas ſó contra Principes ſoberbos, e ex-
ercitos formados, mas não contra o General
fugitivo, pois ſó devem pelejar com os que
reſiſtem, e diſſimular com os que fogem;
porque não he para os generoſos perſeguir
o pobre timido, que noa ſe anima a eſperar,
nem ſe atreve a accommetter.
Também deveis, Senhor, reparar que
o governo, que ſó faz a vontade, he o mais
cheio de deſacertos; e que o eſtilo mais al-
to de emendar, he ſaber ſer exemplar; e
que o melhor modo de eſtabelecer hum ſua-
ve Imperio, eſtá em mandar, como quizera
ſer mandado, e não obrar em tudo, como
senhor abſoluto; porque entre os mortaes
não ha authoridade tão grande, que não te-
nha ſobre ſi os Deoſes immortaes; pois quem
tem dominios para poſſuir, tambem tem hu-
ma ſó morte para eſperar. Oh quantos liſon-
jeiros tem profanado a voſſa preſença com
enganos, não a ſabendo gratificar com a
verdade! E reflecti, Senhor, em que os que
ignorão as obrigações de bem naſcidos, deſ-
conhecem a grandeza da Mageſtade, e por
eſta razão os grandes, e a nobreza são deſ-
tinados para ſervilla. Logo não me hei de
ſervir (diſſe Anfiaráo) com outra caſta de
L ho-
152 AVENTURAS
homens, ainda que dignos ſejão? Não ſó
são grandes, (lhe reſpondi) e nobres os que
procedem de antiga, e preclara geração,
porque tambem as ſciencias fazem grandes,
e ennobrecem os ſogeitos; e o admitir, e
engrandecer eſtes he preciſo, para inſpirar
a todos o amor das letras, e infundir-lhes
ſuavemente o eſpirito eſtudioſo; e deſtes tam-
bem os tereis, mandando moços nobres, e
bem inſtruidos para Reinos eſtranhos, onde
ſe appliquem ao politico, e ao militar, e
aſſim achareis ſogeitos capazes, quando vos
forem preciſos, uſando da cautela de os man-
dar á voſſa cuſta para os Reinos, que não
ſejão dos voſſos confinantes. Na Monarquia,
que he falta deſta qualidade de grandes, ha
muitas occaſiões, em que com deſaire dos
nacionaes ſe lhes conhece a falta de taes for-
ças, pois são tão preciſos os Juriſconſultos
para os cargos da juſtiça, como os politi-
cos eſtadiſtas para o governo no que lhes to-
ca; porque não baſta que hajão ſoldados pa-
ra formar exercitos, he preciſo tambem o
maduro conſelho para arriſcar os vaſſallos,
defender os dominios proprios, ou caſtigar
os alheios. O homem, que he valeroſo, ſe
lhe faltar a prudencia, muitas vezes ſe ar-
riscará degenerando a valentia em temeri-
dade; mas o que he prudente, e valeroſo,
he invencivel. E não havendo aquella qua-
li-
DE DIÓFANES. LIV. IV. 153
lidade de ſabios, a quem ouvirá o Rei,
quando for obrigado a fazer a paz, ou de-
clarar a guerra? Não conſiſte ſó a felicida-
de do Soberano em ganhar victorias, pois
he a maior a conſervação, e augmento do
bem adquirido; para o que he preciſo que
as armas tenhão pazes com as letras, pois
onde aſſim não ſuccede, poucas vezes ſe can-
tão os triunfos; e pela meſma razão as pal-
mas são tidas por glorioſas inſignias das
mãos, que maneão as armas, e das cabe-
ças, que dão o maduro conſelho, o que ſe
nos enſina, quando em Minerva tambem a-
doramos Pallas; porque invocando a Deoſa
das batalhas, nos aſſiſtirá também a da ſa-
bedoria, que conduz para as victorias.
No que vos diſſe ſobre as diſtinções,
ſó quiz moſtrar que são indignos de verem
de perto os Soberanos aquelles, a quem as
primeiras doutrinas não fizerão aptos para
lhes aſſiſtirem, pois que o ſerem bem viſtos
lhes infunde tal authoridade, que tratão mal
as gentes, aborrecem as ſciencias, deſtroem
a juſtiça, são livres no fallar, e diſſolutos
no obrar; e por eſtas e outras razões, que
tenho ponderado, domina o odio, e a in-
veja na maior parte dos corações, as fabri-
cas eſtão paradas, o commercio eſtá arrui-
nado, labora a ocioſidade, os ſabios ſe re-
tirão, os bem morigerados ſe eſcandalizão,
L ii os
154 AVENTURAS
os pobres padecem, os vicios ſe augmentão,
e os Militares ſe deſconſolão; ſendo que
huma ſentinella fiel he a mais forte mura-
lha de huma Cidade, pois não teme a pra-
ça invasões inimigas, ſe eſtão vigilantes os
ſoldados. Não reſplandece a verdadeira pro-
ximidade, que diſtingue dos brutos aos ra-
cionaes, nem aquelle ſanto temor dos juſtos
Deoſes, que he remora das paixões domi-
nantes, e mais preciſo theſouro dos cora-
ções das gentes, com o qual ſe adquirem
os prazeres mais puros, a abundancia, que
he permanente, e aquella ditoſa ſinceridade,
que infunde prudencia, paz, juſtiça, e ale-
gria. Oh quanto he feliz o povo, a quem
governa hum ſabio Rei! e quanto he mais
feliz o Rei, que he author da ſua felicida-
de, e que eſtá vendo na virtude dos vaſſal-
los reſplandecer a ſua, ſendo muita mais
que temido, quando he amado, pois todos
ſervem goſtoſos aos que dilatão docemente
o ſeu dominio nos corações, que ſuſpirão
pela ſua conſervação, o que conſeguem, ſen-
do fieis aos Deoſes, cautos nos perigos, af-
faveis para os ſeus, benignos para os eſtran-
geiros, e deſprezadores dos proprios appe-
tites, e immortalizando aſſim os ſeus glorio-
ſos nomes, governão com tranquillidade as
ſuas Repúblicas: e quanto tambem he mais
feliz, que o Rei, aquelle vaſſallo, que deſ-
can-
DE DIÓFANES. LIV. IV. 155
cança livre de tão pezados encargos, e ſe
contenta de huma vida innocente, aborre-
cendo os prazeres da Corte, no melhor re-
creio de cultivar com as ſciencias o proprio
entendimento, que a qualquer parte, para
onde o arroje a deſventura, leva comſigo os
cabedaes, que ſe tranſportão ſem riſco, pois
he incomparavel a felicidade dos que em ſo-
cego tomão o ſabor ao que achão eſcrito?
Não entendais, Senhor, que no que digo
pretendo eſtabelecer-me no voſſo agrado,
quando ſei que a verdade anda fugitiva,
porque he mal viſta; mas como não pude
negar-me ao voſſo preceito, não devo faltar
em dizer-vos o que ſinto, o que ouço, e
o que convem: perdoai-me, ſe acaſo vos
deſagradão as minhas ponderações, deſpi-
das de adornos, e cheias da mais brilhante
verdade, que como he tão vil, e horroro-
ſa a mentira, antes quero ſujeitar-me a que
me ſepulte a voſſa indignação nas ruinas de
tal tempo, que ſer complice no voſſo enga-
no; e ſe me julgais algum merecimento,
deixai-me, Senhor, fugir dos homens, por-
que me não enganem, que eu eſtimo renun-
ciar as riquezas, (no caſo de mas prometter
o voſſo agrado), porque me não corrom-
pão, e darei de mão ás honras, porque me
não enſoberbeção; e ſe acaſo tenho ſido de-
maziado, ainda que as minhas palavras naſ-
cem
156 AVENTURAS
cem de hum coração ſincero, e verdadeiro,
a voſſa bondade me deſterre de huma Corte
deſordenada.
Com eſtas, e outras muitas couſas, que
não repito, acabei aquelles diſcurſos. An-
fiaráo com as lagrimas nos olhos me aper-
tou entre ſeus braços; e ainda que de en-
ternecido não pode proferir palavra algu-
ma, deo moſtras de ſeu bem diſpoſto animo.
Forão conhecidos os aduladores, remedea-
das as oppreſsões do público, deſterrados os
vagabundos, os empregos repartidos pelos
benemeritos, punidos os malfeitores, e am-
parados os pobres; as terras já ſe cultiva-
vão, e abundantes repartião com ſeus filhos
os frutos á proporção de ſuas fadigas; con-
tentavão-ſe as gentes em lhes não faltar o
preciſo, obſervava-ſe a paz, alegria, e con-
cordia, com que todos vivião; os pais en-
ſinavão os filhos, coſtumando-os deſde ſua
primeira infancia a aborrecerem o ocio, e
deſprezarem o ſuperfluo; e ſó os que ſe ha-
vião mantido de enganos, trazião nos ſem-
blantes a culpa. As vozes do povo parecia
quererem chegar á preſença dos Deoſes, pe-
dindo-lhes me conſervaſſem no agrado de
Anfiaráo, que até então havia perdido o tem-
po de ſe fazer amar, e com repetido con-
tentamento dizião: Bemaventurada he a noſ-
ſa patria, que nos vê fartos, amando as
vir-
DE DIÓFANES. LIV. IV. 157
virtudes, temendo os Deoſes, e obedecendo
ſuavemente ás Leis! Bem haja quem ſe ar-
riſcou para favorecer aos pobres, que pa-
decião; aos ricos, que ſe deſpenhavão, e
ſe caſtigar a maldade, que florescia, oppri-
mindo a todos, e nos tem feito amas a vi-
da ſincera, e aborrecer os vicios. Aſſim di-
zião os que havião chorado opprimidos, e
neceſſitados. Os ſoldados vivião tão conten-
tes, que parecia deſejarem a guerra para ſe
moſtrarem gratos ao ſeu Rei, deſprezando
os perigos, e ſacrificando a ſeu reſpeito as
proprias vidas.
Não ſe ouvia fallar em ladrões, fal-
ſarios, ou homicidas, porque os primeiros
forão logo caſtigados, e tirada na ocioſida-
de a primeira cauſa de taes effeitos: era
deſconhecida a affeminação, que aos homens
faz indignos, deſprezados os ſoberbos, deſ-
terrados os effeitos da ambição, e avareza,
e abominada a ingratidão. Não era culpa do
Soberano (diſſe Delmetra) a deſordem, que
chorava o povo, mas ſim dos que lhe oc-
cultavão as luzes da verdade. Os Ceos, (re-
ſpondeo Antionor), que ſempre são próvidos,
crião aos Principes com alta capacidade pa-
ra reinarem; mas he tal a maldade dos ho-
mens, que com ſeus enganos fabricão a ſua
propria ruina. Anfiaráo era docil, compaſſi-
vo, magnanimo, e entendido; mas a eſtas,
e ou-
158 AVENTURAS
e outras virtudes eſcurecião o ſer demazia-
damente credulo, e inconſtante; o que pro-
duzia inclinações, e aversões puerís, que lhe
desluſtravão o talento; erros, que havião
introduzido em ſeu animo, os que com a-
trevimento hião á ſua preſença cheios de vi-
cios; e ainda que aquelles póvos ſe conſide-
ravão naquella ditoſa era de ouro, não ſei
dizer-vos, Senhora, os grandes trabalhos,
a que me reduzírão os productos da inveja,
e os impulſos da maldade, que rompendo
em blasfemias, conferião huns com outros
a minha ruina; e aſſim perſuadírão a An-
fiaráo, que as gentes ſe rião de que elle me
eſtiveſſe ſujeito, e ſem liberdade, pela mui-
ta confiança, que me permittia, para atre-
ver-me a fallar-lhe com demaziada ſoltura,
e inteireza, transformando a ouſadia, e re-
prehensões em ſerviços do bem público. Co-
mo Anfiaráo os attendia, pouco a pouco
lhe forão introduzindo o aborrecer-me, pe-
lo que já me não ouvia com o antigo agra-
do, que eſte he hum dos males, que fazem
os Principes, em ouvirem os que totalmen-
te ignorão quaes ſejão as mais importantes
maximas, e primeira gloria do Soberano.
Huma noite indo da Real camara para o
meu apoſento, ao paſſar de hum jardim, me
ſahírão quatro homens; e como logo vi que
hião a encontrar-ſe comigo, lhes diſſe ain-
da
DE DIÓFANES. LIV. IV. 159
da diſtante: Quem ſois, amigos? e que que-
reis? Se intentais tirar-me a vida, ſabei que
me uſurpais o que eu menos eſtimo; e ſe
quereis vilmente obrar alguma acção em meu
ultraje, crede que a morte me he tão pou-
co horroroſa, quanto amavel a honra, que
sempre vereis em mim, enquanto no Mun-
do exiſtirem as minhas cinzas. Sem tomarem
a reſolução de inveſtirem comigo, eſtiverão
algum tempo immóveis; e eu inſtei com ſo-
cego: Se quereis de mim alguma couſa,
(lhe diſſe) eu não vos fujo, nem vos temo,
quando não, deixai de tomar-me os paſſos,
porque nem vós ahi eſtais bem, nem eu a-
qui. A eſtas palavras ſe resolvêrão; e de-
pois de largo tempo de pendencia, me fe-
rírão gravemente, de que logo cahi ſem a-
cordo. Acudiu gente, retirárão-ſe aquelles
barbaros, e eu ainda fóra de ſentidos fui le-
vado para curar-me.
Tanto que Anfiaráo ſoube eſta novida-
de, me honrou , viſitando-me, e com as
maiores inſtancias quiz ſaber quaes havião
ſido os aggreſſores daquelle delicto; e ſup-
pondo que eu os conhecêra, buſcou todos
os meios para obrigar-me a dizello em con-
fiança; mas como o abuſo havia alli intro-
duzido, que as Mageſtades podião ceder os
creditos da palavra a favor do ſeu goſto, e
intereſſes, depois de lhe reſiſtir quanto pu-
de,
160 AVENTURAS
de, me reſolvi ultimamente a dizer-lhe:
Nunca podereis, Senhor, obrigar-me a di-
zer-vos quaes forão os que me ferírão; eu
pudéra dizer-vos, que os não conheci, mas
nem em tal caſo poſſo faltar á verdade; vós
me prometteis honras, e riquezas, para que
os entregue; as riquezas ſerião padrões da
minha injúria; e as honras eſtatuas para caſ-
tigo de tal vileza, o que baſtaria para dar
forças aos meus inimigos, que ſempre me
verão conſtante para lhes valer, e perdoar;
porque mais devemos amar a honra, e te-
mer os Ceos, que eſtimar as vidas, e buſ-
car indignos augmentos. Se es zeloſo do bem
público, (diſſe Anfiaráo), como não concor-
res agora, para que ſe caſtiguem os malfei-
tores? Não conſiſte ſó o caſtigo daquelles
(lhe reſpondi) o conſervar-ſe limpa a eſ-
pada da juſtiça; ſe o Palacio eſtivera repa-
rado da guarda Real, que he preciſa diſtin-
ção dos soberanos, pois ſe deve compôr dos
melhores, a quem a nobreza faz fideldignos,
não haverião temerarios, que uſaſſem pro-
fanar o ſagrado de voſſos jardins; quanto
mais, que ſe quereis caſtigar aquelles, re-
forçai as penas para a obſervancia das no-
vas Leis, e não vos deixeis perſuadir de ig-
norantes, que eſte he o caſtigo mais pro-
prio, e ſensivel, que podeis dar aos máos,
que eu não ſó lhes perdoo, mas lhes farei
to-
DE DIÓFANES. LIV. IV. 161
todo o bem, que couber nos dias, que me
reſtarem de vida, pois forão o motivo de
que me honraſſeis, e o ſerão de to-
marem mais forças as voſſas Leis a favor
dos bons coſtumes, ſciencias, governo, e
pobreza; e ſe eſtas feridas me entregarem
á morte, darei graças á mão, de quem as
recebi, vendo que os Numes ſe ſervem de
inſtrumentos vís para emprezas de gloria.
Com demonſtrações de compungido me diſ-
ſe Anfiaráo: Eſtas forão as mais qualifica-
das provas da tua virtude, e conſtancia; e
por não canſar-te mais, me retiro novamen-
te confuſo, e admirado de tanta prudencia.
Com eſtas palavras me deixou Anfiárao con-
ſolado, pois fiquei crendo, que outra vez
ſe esforçaria a ſer verdadeiro pai de ſeus
vaſſallos.
No largo tempo da minha moleſtia ſe
não deſcuidava a maldade, buſcando o ge-
nio do Rei para traçarem melhor os ſeus
enganos; (que a tanto ſe expõem os que
deixão conhecer os ſeus dominantes), e co-
mo naquelle tempo ſe fingírão com falſo ze-
lo pela compaixão, que moſtravão terem de
mim, lhe pedírão que me não admitiſſe em
sua preſença, em quanto não ſocegaſſem os
malignos effeitos do odio, e inveja. Quan-
do acabei com os remedios de tão prolon-
gado padecer, vendo-me quaſi cego, e cu-
ber-
162 AVENTURAS
berto de lepra, mandei pedir que me dei-
xaſſ ir para os montes, onde acabarião de
curar-me a pureza do ar, a doçura das aguas,
os manjares innocentes, e ruſtica tranquilli-
dade; logo me concedeo a pedida licença,
e me mandou para a caſa de campo, na qual
foſſe aſſiſtido com todo o preciſo. Não to-
lerei as aſſiſtencias mais que os primeiros me-
zes; tanto que principiei a ver alguma cou-
ſa, e tive forças para poder dar alguns paſ-
ſos, logo deſpindo o que da Corte me ha-
vião levado, fui habitar para os boſques,
onde via pouco as aves, as fontes, as flores,
e mal os compaſſivos Paſtores, que me ſoc-
corrião mais do que eu havia miſter, pois
com a vida auſtera ſe curão os achaques da
abundancia; veſtido de pelles de brutos prin-
cipiei a mudar o que tinha corrupta com as
materias da Corte; e refrigerando-me em
huma freſca ribeira, curei a lepra; ou por-
que para curar o meu mal baſtava tirar-lhe
a cauſa, ou porque os Deoſes para occultos
fins me querem vivo. Aſſim eſtive por aquel-
les deſertos em paz, em quanto Anfiaráo ſe
não lembrou de me conſultar ſobre eſta guer-
ra, o que vos communicarei na certeza de
voſſa prudencia, e bom juizo; e ſe jurardes
aos eternos Deoſes, ficar immovel, guar-
dando o maior ſegredo a quanto vos deſcu-
brir. Crede (lhe reſpondeo Delmetra) que
ſe
DE DIÓFANES. LIV. IV. 163
ſe preciſo he, juro, e vos não culpo a
cautela eſcusada, pois me não conheceis.
Mandou Anfiaráo (continuou Antionor) hum
confidente ſeu communicar-me que o ſo-
berbo Iberio, ſeu confinante, lhe mandára
propôr, que ſe logo logo não fizeſſe condu-
zir com decencia a ſeus Eſtados o grande
Diófanes, Clyminea, e Hemirena, de quem
ſe ſervia com ſoberba, e ultraje, havendo-
ſe buſcado tantos annos pelo Mundo com
juſta mágoa de ſeus vaſſallos, e amigos,
paſſarião ſeus exercitos a arrazar-lhe as
praças, e aſſolar-lhe os póvos; e ſuppoſto
que havia lembrado o buſcar-ſe aquella fa-
milia por todas as Comarcas de Anfiaráo,
ainda que não havia indicio algum de que
viveſſem em ſeus dominios; como aquella
propoſta acompanhava muita ſoberba, e fal-
ta de civilidade, havião votos, que ſe ap-
pareceſſem, ſe lhes cortarião logo as cabe-
ças, e poſtas ſobre as muralhas, irião as tro-
pas ſenhoreando-lhe as terras, e paſſando á
eſpada quantos ſe lhe opuzeſſem, pois ſó
eſta era a melhor reſpoſta de tão injuſta ar-
rogancia; mas que ſempre queria ouvir as
prudentes reflexões, que eu ſobre eſte nego-
cio faria, e vos repetirei o que me lembrar
de huma carta, que no dia ſeguinte me eſ-
creveo.
"Eſta he a occaſião, em que mais care-
ço
164 AVENTURAS
>>ço do teu conſelho, (me dizia), as tuas ſa-
>>bias ponderações me faltão para reſolver
>>com acerto. Já te fiz ſaber a arrogancia do
>>ſoberbo Iberio; agora te digo, que me fal-
>>les com liberdade, e não te lembres de al-
>>gum deſabrimento meu, porque deſte ſeria
>>cauſa o deſprezar do mal, que eu obrára, e
>>não do bem, que tu me aconſelhavas; por-
>>que ſempre conheci que os Principes inte-
>>reſsão mais em hum sabio, que na verdade
>>he virtuoſo, que em poſſuir mais hum Rei-
>>no; pois mais conſervão os bons ſabios com
>>o conſelho a República, que o augmentão
>>os valeroſos com o que conquiſtão; e agora
>>vejo que os que tenho ſobrão para affligir-
>>me, e para o conſelho me faltão; porque
>>vivendo muitos de os dar, os acertão muito
>>poucos. Dize-me o que entendes, pois os
>>Deoſes te infundem o melhor, e me inſpi-
>>rão a ouvir-te."
Eu lhe reſpondi: Eſtimo, Senhor, as
mercês, com que a voſſa grandeza me atten-
de, no que me confiais; mas eſpero dever
á voſſa alta comprehensão, que vos não of-
fenda em reſponder-vos, guardando as pro-
porções á honra, com que devo obrar, pois
he o mais alto bem da natureza, em cujas
ſagradas leis não têm imperio as Mageſta-
des, que ſendo arbitras das vidas, e bens de
ſeus vaſſallos, o não são ſó daquelle, que a
tu-
DE DIÓFANES. LIV. IV. 165
tudo o mais leva excellente vantagem. São
grandes as conſequencias de hum erro em
negocio tão importante. Pelo que, contem-
plando na minha obrigação, e eſtado, em
que me acho, ſó farei algumas reflexões,
porque he juſto o cuidado, que me diſpen-
ſa de dizer-vos tudo o que entendo.
Os Monarcas da mais elevada pruden-
cia não receão a guerra pelo que obraráõ
os ſeus exercitos, mas ſim pelo que orde-
nará a fortuna, a qual não quer outro al-
vo para o ſeu cruel emprego, ſenão o que
mais ſeguro ſe conſidera; porque a todos to-
ma contas, e não as ſabe dar a ninguem:
nem ſe lembra dos vencidos, pois apura o
ſeu rigor com os vencedores. Lembrai-vos
de que os Principes, que no Mundo houve-
ram mais illuſtres, mais nome tiverão por
clementes, que por triunfantes, pois não ha
victoria completa, ſe não traz lances de cle-
mencia; porque o vencer he de humano, e
o perdoar de Divino. Iſto me lembra, Se-
nhor, a reſpeito da innocente familia, que
onde quer que ſe acha, padece e não tem
parte na ſoberba, de que tanto vos offen-
deis: quanto mais, que uſar de piedade,
quando o rigor he incitado, augmenta a glo-
ria do generoſo. Preparai-vos para as bata-
lhas, tendo exercitos numeroſos, e boas
naus para as armadas; que poderá ſer que
iſ-
166 AVENTURAS
iſto baſte para vos livrar da guerra; porque
o Rei, que por mar, e por terra eſtá prom-
pto para offender, e ſe defender, muitos con-
correm para as ſuas ſatisfações, e allianças,
pois que a todos ſerve a ſua amizade, diſ-
farçando algumas couſas, de que tomarião
vingança, ſe o viſſem enfraquecido. Não ſei
que contenha gloria, valentia, ou razão o
parecer de que ſe tiraſſem as vidas aos que
mudamente padecem, quando na voſſa, e
dos voſſos vaſſalos não ſó experimentarieis
os golpes da eterna juſtiça, como tambem
as forças de ſeus ſubditos, e alliados. Eu
morrerei ſempre pela verdade, moſtrando-
vos com a razão que o ſangue clamará, pe-
dindo o caſtigo da tyrannia.
Tambem não he juſto que ſoffrais ul-
trajes, que ſe oppõem ao ſoberano culto da
Mageſtade; mas antes que reſolvais a
caſtigar naquelles vaſſalos a imprudencia de
ſeu Rei, vede primeiro ſe lhes fizeſtes al-
gum aggravo, com que provocaſſeis a ſua
arrogancia; porque o fazer guerra aos ho-
mens algumas vezes enſina a honra; mas o
fazella á juſtiça he loucura: e ſe juſtamen-
te ſois queixoſo, eu me perſuado que fa-
zendo ſaber ao Mundo a voſſa offenſa, de-
pois de bem preparado para caſtigar a Ibe-
rio, eſte vos ha de ſatisfazer, alcançando da
ſua indiſcrição, admirado, e corrido da voſ-
ſa
DE DIÓFANES. LIV. IV. 167
ſa moderação. Com eſte arbitrio ſe augmen-
tará a voſſa authoridade, reſpeitando-ſe a
voſſa clemencia, e temendo-ſe o voſſo po-
der, ſem que se arriſquem os vaſſallos, nem
eſtes paſſem pelo ſuſto do voſſo perigo; pois
ſabem quanto he difficil o conſeguir hum
bom Principe; e que ſe as ſuas vidas ſe
compraſſem, muito darião os Aſſyrios pela
de Belo, os Perſas pela de Artaxerxes, os
Troianos pela de Hector, os Gregos pela
de Alexandre, os Lacedemonios pela de Ly-
curgo, e os Carthaginezes pela de Annibal;
e que mais ſe devem reverenciar os ſepul-
chros deſtes, que os palacios, que os máos
habitam. Em fim, Senhor, eu me vejo per-
plexo para reſponder-vos: e mereça-vos o
diſvelo, com que vos hei ſervido, o livrar-
me de tão grande embaraço, porque para
aconſelhar me he preciſo fazer muitas refle-
xões: e há occaſiões, em que he mais con-
veniente pegar nas armas, que eſperar pelo
conſelho; quanto mais que para eſte em ma-
teria tão importante he preciſo prudencia,
bom juizo, lição, ancianidade, e deſintereſ-
sſe. Algumas circumſtancias deſtas ſe podem
achar em mim; porém como me faltão as
mais preciſas, não levareis a mal a minha
eſcuſa, e receio, pois pelo que ja vos acon-
ſelhei, creio eſtar hoje entregue ao conhe-
cimento, e odio das gentes; e ſó vos digo
M que
168 AVENTURAS
que reſguardeis as regalias do throno, de
que são cuſtodios os soberanos: e juntamen-
te vos lembre, que o tyranno põe o ſeu di-
reito nas armas para fazer crueldades, e ſe-
nhorear o alheio, e o Rei juſto na Lei pa-
ra caſtigar ſó os delinquentes, conſervar-ſe,
e pedir o que ſe lhe deve.
Com eſtas, e outras ſemelhantes pala-
vras dei fim á minha reſpoſta; e como os
meus inimigos temião que eſta occasião no-
vamente me introduzſſse com Anfiaráo, quan-
do ſe rompeo a guerra, lhe diſſerão que ſe-
ria mais conveniente que eu vieſſe para aqui
para obſervar, e o aviſar das deſordens, que
houveſſem, porque o vião inclinado a levar-
me em ſua companhia para as fronteiras, on-
de ſe acha; quando me chegou o aviſo,
chorei com os criſtallinos regatos, ſuſpirei
com as aves, deſpedi-me das flores, quei-
xei-me dos montes, que ſe não abrião a eſ-
conder-me das gentes; e perdendo a ſombra
dos boſques, triſte, confuſo, vacilante
troquei o veſtido, que me curou, por eſte,
que talvez me acabe a vida. Delmetra affli-
cta diſſe: E tendes noticia que ſe buſquem
os que são a cauſa da guerra? Não; (lhe
reſpondeo Antionor); mas eſtou certo que os
Deoſes tem á ſua conta o livrallos das mãos
da tyrannia, porque são obrigados a defen-
der a innocencia; ſe acaſo tiverdes delles
al-
DE DIÓFANES. LIV. IV. 169
guma noticia, não os façais conhecer, mas
antes ſerá juſto aviſallos, para que ſe ouvi-
rem fallar de ſi, eſtejão tão advertidos, que
os não accuſem os ſemblantes, ou algum in-
tempeſtivo retiro. Não ſei, nem ſaberei,
onde vivem, (reſpondeo Delmetra) ainda
que muito os tenho ouvido nomear; e to-
mára ſaber qual foi a razão, por que Ibe-
rio tomou tão grande parte no que experi-
mentavão? Entende-ſe (lhe reſpondeo An-
tionor) que faria liga com o Principe Ar-
nesto, quando ſahio a buſcar Hemirena,
com quem eſtava deſpoſado. Delmetra não
podendo reprimir hum effeito da ſua pena,
ſe banhava em lagrimas; e querendo diſfar-
çar o que sentia: Não ſei (diſſe) como An-
fiaráo em tal occaſião ſe deixou perſuadir
dos teus contrarios. Antionor por lhe con-
ſentir o deſafogo, paſſando pelo reparo das
lagrimas, que bem entendia, lhe reſpondeo:
Buſcárão Armelinda, que era huma dama
pernicioſa, a quem o Rei por ſua belleza,
e vivacidade attendia; não lhe lembrando
que os homens, que ſeguem os paſſos de
taes mulheres, os dão para as ſuas ruinas,
contentes de ſeu engano; porque quando en-
tendem que os amão pelos dotes da nature-
za, elas ſó lhes eſtimão as generoſidades;
e aſſim livres das crueis cegueiras do amor,
os enganão, eſcarnecem, e entregão.
Mii Mas
170 AVENTURAS
Mas reparo (lhe diſſe Delmetra) que
muitos dos que dão remedios para os que
amão, jamais ſouberão curar-ſe. Eu não
fallo (lhe reſpondeo) nos que licita, e re-
ciprocamente ſe amão, ſim nos que primei-
ro ſe perdem inteiramente, que conheção o
fingimento, com que são enganados, poden-
do inferillo de que os tratem com mais ca-
rinho quando mais recebem, ou muito pe-
dem: aſſim Armelinda foi obrigada com da-
divas a dizer a Anfiaráo que ſe compade-
cia do eſtado, em que me conſiderava; por-
que ſe eu foſſe chamado para a Corte, ſe-
ria entregue aos meus inimigos com grave
perigo da minha vida; e ſe elle me levaſſe
em ſua companhia, tambem não era menor
o riſco, porque ſe ajuntaria materia para o
fogo, que ſe havia atalhado com o meu re-
tiro; mas que ſe condoia de que eſtiveſ-
ſe fazendo vida tão aſpera, ſem mais cauſa,
que amar a verdade, e deſejar os acertos do
Soberano. Anfiaráo dizem que ficára triſte,
e penſativo, por lhe não ocorrer o reme-
dio, ou a providencia, que ſe devia dar em
occaſião, que neceſſitava ſervir-ſe de mim.
Armelinda, que com lagrimas havia acom-
panhado as ſuas ponderações, fingindo que
lhe ocorrêra meio proprio, e conveniente,
diſſe, que me mandaſſe conduzir a eſte por-
to para o aviſar de tudo o que ſe paſſaſſe,
não
DE DIÓFANES. LIV. IV. 171
não chegando á noticia das gentes, que eu
viera mais do que curioſamente. Eſte enre-
do, e outras mais circumſtancias dele me
contou Balenio, criado de Armelinda, que
para aqui me acompanhou, a fim de ir ga-
nhar alviçaras, quando levaſſe a certeza de
que eu aqui ficava; deſta ſorte ſe traçavão
os enganos da Mageſtade, que entendia aſ-
ſiſtir naquelle coração, em que ſó tinha lu-
gar o intereſſe.
Eſta he a menor parte de meus tra-
balhos, e a que vos poſſo communicar; e co-
mo não ſei ſe me dilatei mais do que de-
via, perdoai o incommodo, e permitti que
eu me retire, e em outro dia me contareis
o que aqui vos trouxe com a meſma pureza,
com que eu vos diſſe os meus paſſos. Del-
metra não conſentio que ſe retiraſſe, dizen-
do, que repartirião entre ſi o que as ſerra-
nas para ella houveſſem reſervado. Antionor
acceitou a innocente offerta; e conhecendo-a
melhor do que era conhecido, ſe ſentia ar-
rebatar de goſto, e conſolação. Foi Delme-
tra a caſa; e tomando o que lhe eſtava re-
ſervado, buſcou algumas frutas, e prevenio
o mais, que era preciſo para hoſpedar An-
tionor, que não achára menos a Corte, e
grandezas de Thebas, pois o ſervia Delme-
tra, que com o innocente aſſeio das ſerranas
fazia competir o prazer de Antionor, e a
sua
172 AVENTURAS
ſua tão pobre, quanto ſincera vontade. Não
lhe deo manjares delicados ſemelhantes aos
que lhes havião ſervido em Thebas, mas
ſim dos innocentes, em que não periga a
ſaude, compunha-ſe finalmente o jantar de
hervas, frutas, leite, e favos de mel. Agora
vejo (lhe diſſe Antionor) qual he o goſto
dos que com alegria comem; porque eſtes
manjares, que me permitte a voſſa bondade,
me são mais ſaboroſos, que os delicadiſſi-
mos, que de ſua Real meza me fazia parti-
cipar Anfiaráo, quando me havia recommen-
dado o acautelar as deſordens de ſeu Reino.
Dizei-me: como vieſtes dar a eſtes domi-
nios? Pois creio que ſois de paiz diſtante,
pelo muito, que vos queixais da fortuna.
Tenho jurado aos Deoſes (lhe reſpondeo
Delmetra) não revelar todos os meus infor-
tunios, e ſó te digo, que tem ſido tantos,
que a vida já me he pezada, porque o meu
cruel deſtino, retirando-me ás grandezas,
me entregou á crueldade dos barbaros; pe-
lo que fugindo das gentes, habitei as bre-
nhas, fiz ſociedade com os brutos, que me
fizerão melhor companhia, que me havião
feito os racionaes, e perſuadida deixei as
feras, que havião ſido compaſſivas, como
se entendeſſem, que ſe deve ter compaixão
de quem perſeguida de todos buſca abrigo
debaixo das pedras.
A-
DE DIÓFANES. LIV. IV. 173
Acompanhei a Bellino, que com ſeme-
lhante fortuna me havia encontrado entre os
rochedos. Chegámos a Eſparta, onde por
ignorar hum eſtilo, foi entregue aos traba-
lhos de Militar, e rapidamente o negárão
á minha companhia: vendo aqui ſó a vello;
e como conſegui o que muito deſejava, ſou
obrigada a voltar para a meſma Cidade, e
deixar a alegria deſtes montes, onde, não
obſtante as vizinhanças da guerra, eu ſentia
o eſpirito em paz; e ſe houveſſe acaſo tão
venturoſo, que me confiaſſe aqui a compa-
nhia de dous ſogeitos, dos quaes ha muitos
annos que ando auſente, ſem mais eſperan-
ça, ou allivio,que o que permitem os triſ-
tes ſuſpiros, e lagrimas ardentes, com que
infelizmente lhes ſacrifico a mais viva ſau-
dade, eu me retirára conſolada, pois maior
felicidade não eſpero, nem deſejo; mas co-
mo com duplicados pezares me deſengana a
minha cruel fortuna, e poucos dias me reſ-
tão de aqui eſtar, porque eſtá acabado o
tempo, em que prometti retirar-me, ſerá
preciſo que do allivio de ouvir-te princi-
pie a deſpedir-me. Aſſim eſperava Delme-
tra tirar huma ultima prova, com que to-
talmente deſenganaſſe a ſua quasi perdi-
da eſperança, pois a deſanimava o pare-
cer-lhe, que aquellas poucas ſemelhanças,
que a inquietavão, erão aquelles doces
en-
174 AVENTURAS
enganos, com que ſempre ſonha o de-
ſejo.
Que póde obrigar-vos (lhe diſſe An-
tionor) a voltar tão apreſſadamente a Eſ-
parta?Não me obrigão os parentes, (lhe
reſpondeo), porque dos que vive ſó conſervo
as imagens na memoria para inſtrumentos da
minha mágoa. Não me levão as amizades,
porque como he difficil conhecer as verda-
deiras, vivo conforme á vontade, que de
todas me ſeparou, porque não foſſe engana-
da; não me chamão os bens, porque tenho
experimentado que o maior de todos he de-
pois de os poſſuir perdellos com igual ſem-
blante; nem me levão negocios, ou depen-
dencias, porque depois da deſgraça de per-
der tudo, tenho a felicidade de não deſejar
cousa alguma, conhecendo que he mais im-
portante ſervir aos Deoſes no eſtado, que
elles determinão, pois são as felicidades hu-
ma vaidoſa liſonja do tempo, que tem prom-
pta a vontade para deſcuidos, e loucuras,
ſendo de todos bem acceitas, em quanto não
tem inteiro conhecimento ou do pouco, que
durão, ou do muito, que he eſtreita a vida
para poſſuillas; e ainda que eſtas, em quan-
to não chega a morte, pintão a vida com
as mais agradaveis cores, apenas os dias ſe
terminão, moſtrão entre ſombras, que as que
forão eſtatuas para idolatrias, ſe transformão
em
DE DIÓFANES. LIV. IV. 175
em obeliſcos para ſentimentos, ſendo igual
ao pezo de como ſe poſſuírão a dor pene-
trante de as deixar; pelo que vou ſó cum-
prir a palavra, que he todo o bem, que me
abona, porque eſta não ſó obriga aos ho-
mens, pois ainda que eſtes ordinariamente
a suſtentão para reſguardo de ſeus intereſ-
ſes, não ha entre elles, e as mulheres mais
differença, que terem elles mais forças pa-
ra o trabalho, e campanhas, ſendo tão diſ-
ſolutos em ſuas acções, que já ſe lhes diſ-
penſou o reparo público, e ellas natural-
mente dóceis, compaſſivas, mais ſujeitas a
encargos, e mais fortes, e conſtantes na mo-
deſtia. Antionor, que a ouvia com goſto,
ſentindo o deſprazer da ſua auſencia, lhe
rogou não apreſſaſſe tanto a ſua partida, e
ajuſtou tornar a vella no dia ſeguinte. Del-
metra ficou ſentindo de cada vez mais viva
a ſua ſaudade; e ſem poder averiguar a ver-
dadeira origem daquelle exceſſo, dizia af-
flicta: Qual he a cauſa da nova revolução,
que dentro em meu peito ſinto? Eu não tra-
tava os racionaes, e por iſſo os não amava?
Mas não póde ſer eſte o motivo, por que
eu já havia tratado outros, e mais me in-
clinava a temellos, que a amallos. Pois qual
he o incentivo deſte affecto, que me pren-
de, para não continuar os passos do acerto?
Será a ſemelhança, que nos trabalhos tenho
com
176 AVENTURAS
com Antionor? Também não, que de per-
ſeguidos eſtá o Mundo cheio, e eu já mais
me via arraſtar tanto do affecto, como ago-
ra me vejo, mas eu tambem amo intima-
mente a Bellino; porém com os ſeus traba-
lhos tem mais connexão os meus infortunios,
e ſomos companheiros. Ah que ſe os meus
annos não foſſem a melhor prova do inno-
cente amor, que ſinto, com razão me diſ-
putara ſocegos o decóro!
He certo que Venus, e Cupido ſó ad-
mittem moços, que os ſirvão, liberaes, que
diſpendão, neſcios, que ſoffrão, diſcretos,
que fallem, prudentes, que calem, fieis,
que agradeção, e conſtantes, que preſerve-
rem; em mim não ha circunmſtancias alguma
destas, e ſei que amo puramente a Antionor.
Que juizos formaria eu, ſe viſſe entre os pe-
rigos dos poucos annos creſcer tanto a vio-
lenta paixão do amor entre ſogeitos eſtra-
nhos? E que mal conſiderão as gentes, que
dos interiores ſó podem julgar bem os Ceos,
que ſabendo qual he o riſco de ajuizar pe-
lo ſemblante a culpa do coração, ſó para ſi
o reſervárão, pois ao mal muitas vezes oc-
culta hum aſpecto agradavel, e o bem de-
baixo de hum melancolico ſemblante se a-
borrece; e he certo que as virtudes são coſ-
tumadas a deſmentir sinaes. Oh quanto são
errados algumas vezes os juizos, que ſe fór-
mão
DE DIÓFANES. LIV. IV. 177
mão pela eſtreita amizade dos ſugeitos! Ave
innocente, que em teu ſuave canto paſſas de
um a outro raminho, gozando felizmente
a freſca tarde, e os candidos orvalhos da
bella Aurora, ſem que o teu amor pertur-
be o teu deſcanço; fonte criſtallina, que
murmurando corres, ameno prado, monte a-
legre, boſque ſombrio, e bellas flores, quan-
do vos vereis, ſem que as lagrimas contí-
nuas tirem a luz aos meus olhos? Conſorte
amado, queridos filhos, Bellino, Antionor,
ai de mim! que eſtrella cruel he a que ſem-
pre vai accreſcentando mais cauſas para o
meu mal? pois parece que a ſuave conviven-
cia das gentes degenera no meu tormento.
O' Jupiter poderoſo, ſe neſſa eſfera lumino-
ſa tendes poder nos Deoſes, e o orbe eſtre-
mece com os finaes da voſſa vontade, como
não amparais huma infeliz, que noa acha
lugar no Mundo? Mandai que Minerva,
como parto da voſſa cabeça, e em vós meſ-
mos gerada, encaminhe os meus paſſos, co-
mo já fez, livrando aos bons mortaes. Eu
amo em Antionor as virtudes, que nelle reſ-
plandecem, e não ſou neſciamente, como
Narciſſo era de ſi namorado, ainda que am-
bos ſomos eſtimulos da deſgraça, e muito
ſemelhantes na deſventura; mas em tudo
quanto vejo, e quanto alcanço, encontro deſ-
aſo-
178 AVENTURAS
aſocegos, pesares, e cuidados. Não receio
que tenha o filho amado nas brenhas a cruel
morte de Adonis, mas ſempre o chóro, con-
templando nas ſuas cinzas frios deſpojos da
ſua vida. Eſpoſo amado, ſe deſcançarás neſ-
ſe ditoſo Olympo, ou andarás pelas brenhas,
como Alcides, devorando as feras? Queri-
da filha, a que extremo te haverá chegado
a crueldade das gentes? Se te lembrará que
te adverti valerem mais os creditos da mo-
deſtia, que as poſſes de todo o Mundo; e
que antes que perigue o decóro, convem
primeiro acabar a vida, em que são conti-
nuos os combates, a que ordinariamente he
ſujeita a formoſura e diſcrição, ainda quan-
do reſiſte ás liſonjas com diſcreta, e pruden-
te vivacidade, e que mais grata ſe conſerva,
e zomba do tempo, que intenta o ſeu deſ-
luſtre, conſervando a ſingela moderação,
que ſublima a belleza, e esforça o coração
para as virtudes, pois o não admittir mui-
tos adornos da vaidade, he reprehender as
que ſe fazem eſcarnecidas, fugindo com el-
les nas azas do tempo; e ſe acaſo te eſque-
cem, querida filha, os meus documentos, e
deixas de ſervir a Diana, ſejão deſtruidos
pelos ſeus ſervos, que caſtigárão a Acteon,
os inſtrumentos do teu deſaſocego. Ai de
mim! onde ficou a tranquillidade, com que
eu
DE DIÓFANES. LIV. IV. 179
eu gozava a ſociedade dos meus? Onde eſ-
ta a que então era, e onde veio a que ho-
je ſou? Com quanta mágoa ſe haverá lamen-
tado em Thebas o meu tragico fim? Quem
lhes diſſera o eſtado, para que eramos deſ-
tinados. Amado conſorte, eu quiz crer que
te via, porque ſempre a imaginação repre-
ſenta aquelle bem, que ſe deſeja; mas fui
como o triſte, que ſe acaſo alguma vez ſo-
nha lances de alegria, quando acorda, mais
chóra o mal que ſente. Eu ſonhava que te
via, para renaſcer de hum engano mais viva
a mágoa de perder-te; mas ſe acaſo has paſ-
ſado a gozar o deſcanço immenſo, mereça-te
o ardente amor, que te conſagro, que attra-
hindo a ti eſte eſpirito attribulado, aca-
bem as lagrimas de tão dilatada ſeparação,
e ſeja eu conduzida a ver-te entre os deſcan-
ços.
Com eſtas laſtimoſas vozes parecia que
Delmetra deſafiava a compaixão dos meſmos
irracionaes no deſconcerto, com que ora ſe
lembrava de huns, ora de outros, tornando
outra vez áquelles meſmos, moſtrando aſſim
que a memoria lhes miniſtrava de cada vez mais
de que magoar-ſe; e recolhendo-ſe a caſa ſe
lhe deſcontárão as horas de allivio pelos rizos,
com que as paizagnas ou zombavão de ſua ocio-
ſidade, ou ſentião mal de tão larga converſa-
ção;
180 AVENTURAS DE DIÓFANES.
ção; mas como não achava em ſi que acau-
telar, fez não as entendia por ſe não pri-
var do ultimo allivio, que ſó eſperava ter
no dia ſeguinte.
FIM DO QUARTO LIVRO.
AVENTURAS
DE
DIÓFANES.
LIVRO V.
SUMMARIO.
HEmirena como Bellino buſca re-
petidas vezes a Clymenea, que
tinha por Delmetra; e como o odio não ſabe
deſcuidar-ſe para fazer ſuas prezas; pren-
dem a Diófanes, e Clyminea por traido-
res: foge Clymenea da prizão por induſ-
tria de Hemirena; e a Diófanes o per-
mittem ſeus inimigos, que o mandavão ao
ſupplicio, por temerem as averiguações
da verdade. Hemirena ſalva de hum nau-
fra-
182 AVENTURAS
frágio a Clyminea, e a Arneſto, que com
disfarce ſahíra a buſcalla; e continuão a
caminhar para a patria, sem ſe conhece-
rem, fugindo ſempre aos inimigos da vir-
tude, que por todo o Mundo andão diſ-
perſos.
CANTAVÃO docemente as aves,
feſtejando a Aurora, quando
Delmetra, não obſtante o que
ſe lhe havia dado a entender
ſobre a converſação de Antio-
nor, ſahio buſcando o benigno
Zefyro, que com a fragrancia das flores con-
ciliava allivio a ſeu triſte coração: foi ao lu-
gar do dia antecedente, e toda a manhã eſ-
perou com ſuſto, e cuidado: voltou a caſa
a buſcar alguma couſa, em que ſe ocupaſ-
ſe, porque abominava na ocioſidade a pri-
meira origem de vicios; e chegando An-
tionor, fizerão tregoas as ſuas apprehensões.
Bem ſei (lhe diſſe) que eſtarieis perſuadida
a que eu vos faltaria, pois vos vejo tanto
de aſſento neſte lugar; e ainda que tardei
por vos diminuir o incommodo, perdoai-me,
se julgais culpada a minha attenção. Sería
mais ſenſivel a demora (lhe reſpondeo Del-
metra) a não eſtar eu coſtumada a negar-ſe-
me todo o genero de allivio; e como eſte
he
DE DIÓFANES. LIV. V. 183
he eſtimavel pelos documentos, que tiro da
tua converſação, ſerá juſto o meu pezar,
quando me falte.
Eſtando neſtas palavras chegou Bellino, a
quem o affecto obrigava a uſurpar ao deſcanço
as horas, que podia tomar, para que viſſe a
Delmetra: paſſárão os tres com grandes con-
tentamentos o reſto da tarde, Antionor per-
guntando a bellino, donde era?Não te direi
donde sou, (lhe reſpondeo), porque baſta que
te diga, que naſci como hum monſtro, a quem
a meſma natureza parece que deſprezou, por-
que conjurando-ſe com a fortuna contra mim,
me entregárão aos mais crueis contratempos:
fui uſurpado aos meus, e perſeguido dos eſ-
tranhos; mas achei hum coração tão nobre,
que movendo-ſe á compaixão de tantas per-
ſeguições pelo meſmo, que me favorecia,
entendo que experimentou o duro golpe da
morte, e que fiquei aſſim como alma eter-
na para ſentir, com razão immenſa para
chorar: fugi das gentes, e encontrei com os
encargos Militares: e he tão igual a minha
deſventura, que não fazendo tregoas os meus
pezares, conſervo a vida para continuos com-
bates da deſgraça. Antionor vendo como o
gentil ſoldado deixava cahir algumas lagri-
mas, a que acompanhavão as de Delmetra,
com grande compaixão o conſolou; e como
os retiros do Sol annuncião os pertos da
N- noi-
184 AVENTURAS
noite, ſe deſpedírão ambos de Delmetra,
que determinando fazer no dia ſeguinte a
ſua viagem, ſe recolheo a caſa de cada vez
mais triſte, e ſaudoſa.
Como o tempo da guerra he favoravel
para os deſgraçados, a quem domina o eſ-
pirito de vingança, os inimigos de Antio-
nor, que ſe não descuidavão em excogitar
meios para a ſua ruina, ſabendo que havia
ido áquelle lugar, e que ſe apartava largo
tempo a communicar Delmetra, o accuſárão
por ſuſpeito de inconfidencia.Na madruga-
da daquella meſma noite, dando repentina-
mente em caſa dos paizanos, que havião
concorrido para tanto mal, pelo que mur-
murárão os ſeus reparos, prendêrão Delme-
tra, que foi levada a hum carcere privado,
e na meſma hora foi prezo Antionor, não
porque entendeſſem haver nelle culpa, nem
porque aſſim o pediſſem as cautelas da guer-
ra, ſim porque com a ſua ultima ruina con-
ſeguião os máos a ſua vingança, e outros
ficavão livres de ſeus juſtos arbitrios. Derão
conta a Anfiaráo, que era facil em crer, e
transformar em odio o affecto: o que ordi-
nariamente conſegue a maldade das gentes,
quando ſe não deſcuida de recommendar a
fingimentos, e enganos a ruina de ſeus pro-
ximos: mandou o Rei, que huma eſquadra
o acompanhaſſe até á Corte, onde viſtas as
pro-
DE DIÓFANES. LIV. V. 185
provas da ſua culpa foſſe juſtiçado: chegou
com applauſo de ſeus inimigos, e juſto pran-
to dos que conhecião, e amavão as ſuas vir-
tudes: determinárão logo tirar-lhe a vida,
ſem mais culpas, que o haver eſtado em
converſação particular com Delmetra, que
ſabião era mulher eſtrangeira, que não de-
clarava a ſua nação, e a quem fallava lar-
go tempo, e com cautela; e ainda que An-
tionor dizia o que continhão os ſeus diſcur-
ſos, não lhe admittião eſtas confiſsões, nem
querião dar credito ao pouco, que lhe ou-
vião. Ao quinto dia de ſua prizão foi avi-
ſado de que no ſeguinte iria ao ſupplicio,
para o que ſe diſpoz com incrivel animo;
e vendo na ſua fatal deſgraça ſer a deshon-
ra mais cruel, que horrivel a morte, por-
que ſe neſta eſperava os deſcanços, na cau-
ſa sentia huma dor intoleravel, e perdendo
o acordo dizia: O' tyrannos, que perſeguis
a verdade, ſe intentais matar-me, não per-
cais a occaſião de fazer bem a hum deſgra-
çado; aqui eſtou não invulneravel, como o
forte Aquilles, pois tendes em meu peito o
lugar mais prompto para as feridas; não de-
moreis os golpes da horrenda vingança, pois
não sou invencivel, como o Grego Alcides;
mas ſe quereis matar-me com deshonra, não
poderá tolerar eſſe golpe o grande Diófanes,
pois já vos confeſſo haver corrido a tormen-
N ii ta
186 AVENTURAS
ta dos mais cruel deſtino, a qual me entre-
gou aos barbaros, que me vendêrão; e ſa-
bendo eſtes quem eu era, e que o Principe
Arneſto me buſcava, receando as circum-
ſtancias deſte caſo, ſe o ſegredo ſe deſcubriſ-
ſe pelo meſmo Capitão, que me cativou,
davão importante premio a quem me tiraſſe
a vida, o que diſſerão ſe executára com
os poucos, de que tiverão noticia, e que
exiſtião da minha comitiva, crueldade, de
que ſó reſervárão o marinheiro, que lhes
deſcobrio quem eu era; e como para maior
infortunio me reſervou o fado, não ſe ani-
mando Pafo a fazer aquella impiedade, me
offereceo ao ſerviço do Rei; e ignorando a
razão, por que intentavão matar-me pedio
que me occupaſſem fóra da Corte, onde baſ-
taria a protecção da Mageſtade para me de-
fender daquelles contrarios. Padeci mil in-
fortunios, ſoffri os contraſtes, a que me ſu-
jeitou a maldade dos homens, não tendo al-
livio na mágoa, com que me lembrava da
crueldade, que experimentaria minha amada
filha, que havia ficado em caſa do meſmo
indigno capitão e igualmente havia chora-
do a deſgraça da conſorte, que he eſſa a
quem chamais Delmetra. Não me forão in-
ſupportaveis os enredos, com que fui perſe-
guido, nem as falſidades, com que já em
outro tempo me culpárão; mas não poderei
to-
DE DIÓFANES. LIV. V. 187
tolerar, que me tireis a vida, padecendo o
meu credito: porque o ſagrado culto, que
ſe lhe deve, defenderei até o ultimo inſtan-
te, que tiver eſte alento que reſpiro, pois
naſci recommendando-ſe os brazões ſo-
beranos de meus antigos; e ſou illuſtrado,
para que as minhas acções reſguardem as
glorias de ſeus nomes, o que conſiſte em
não consentir manchas na honra, e grandeza
de animo, me temer ſó aos Ceos, em am-
parar os perſeguidos, e valer aos inimi-
gos.
Eu não ſei alterar a paz, nem pertur-
bar a poſſe dos Monarcas, pois o defendel-
los he o primeiro encargo da mais illuſtre
nobreza; eu eſtou innocente no que falſa-
mente me impultais, ſe intentais matar-me,
torno a dizer-vos, que eſpero ſem ſuſto a
morte; mas ſe cuidais deſtruir o que ſó con-
ſervo de meus antigos predeceſſores, acaba-
rei inſeparavel deſte lugar, lutando comvoſ-
co, ó bárbaros, que determinais dar-me, af-
frontoſa morte, pois ſei que primeiro ſe de-
ve entregar a vida, que conſpirar contra hum
ſoberano, e que mais que o Rei ſó a hon-
ra ſe reſguarda, e aſſim vede o que deter-
minais; e ſabei que a minha conſorte Clyme-
nea ignora que em Antionor ſe occulta Dió-
fanes, pois eu conhecendo-a, lhe não reve-
lei o ſegredo, por lhe não duplicar os ſuſ-
tos,
188 AVENTURAS
tos e cuidados, a que dava cauſa a malda-
de dos que me perſeguião; e não creiais que
vos digo quem ſou para negar-me á morte,
pois buſcaveis a Diófanes para lhe tirar a
vida, mas ſim para juſtificar a minha inno-
cencia, pois pelo meſmo, que deſcubro, in-
tentareis fazer corpo ao delicto, que não
tenho; os juſtos Deoſes, que me aſſiſtem,
punirão a voſſa crueldade, e ſe juſtificará
ſer bem naſcida a reſiſtencia, que farei por
não morrer, como vil, obrando ſempre como Soberano.
A eſtas vozes de Diófanes não davão
attenção alguma, dizendo ſerem ſubtilezas,
com que eſperaria, que o mandaſſem paſſar
para o inimigo com a capitulação da paz.
Eſtando já com poucos horas de vida, che-
gou hum aviſo de Anfiaráo, que movendo-
ſe aos clamores do povo, ordenava que ſe
não juſtifiçaſſe, sem que foſſem á sua preſen-
ça as provas do ſeu delicto. Com eſta im-
penſada novidade ficárão os malevolos cheios
de ſuſto, e terror; huns dizião, que ſe lhe
deſſe veneno, outros lembravão o perigo de
ſer conhecido, e em fim aſſentavão, que ſó
lhe ſeria conveniente dar-lhe lugar a fugir,
o que com grandes deſpezas conſeguírão; e
como Diófanes não era ſabedor do aviſo de
Anfiaráo, logo que da prizão foi ajudado
para a fuga, por mãos, que fingião pieda-
de,
DE DIÓFANES. LIV. V. 189
de cuidou em retirar-ſe com preſſa, e cau-
tela. Neſte tempo ſe achava Delmetra no
carcere privado, a fim de dizer o que o que con-
tinhão as ſuas converſações, ſem que foſſe
poſſivel darem credito à verdade, que lhes
confeſſava; e como lembraſſe que na ultima
tarde lhe aſſiſtíra tambem o ſoldado Belli-
no, e creſcia a curioſidade de inveſtigar-ſe
aquelle ſegredo, concorrêrão os bem inten-
cionados, para que ſe fizeſſe algum genero
de careação, para o que foi levado a hum
apoſento vizinho ao em que eſtava Delme-
tra, e pela juſtiça lhe erão determinadas as
perguntas, ſem que houveſſe incoherencia al-
guma, que acuſaſſe Delmetra, que ultima-
mente perguntou, ſe ſabia o que era feito
de Antionor? E ordenárão ſe lhe reſpon-
deſſe, que fora logo prezo para a Corte,
e que vendo-ſe condemnado á morte, decla-
rára ſer o grande Diófanes, que ſendo ca-
tivo pelos barbaros, eſtes tirárão as vidas á
mais gente de ſua comitiva, pelo que tam-
bem paſſára Hemirena, ſua filha, e que iſto
deſcubria, para que por outro motivo o ma-
taſſem, porque os homens bem circumſtan-
ciados primeiro davão as vidas, que deixa-
vão de ſer fieis aos Soberanos; e com elle
ſe achava experimentando os rigores da mais
baixa fortuna, ſó eſtava em eſtado de ante-
pôr (como Principe, e bem morigerado) os
reſ-
190 AVENTURAS
reſguardos da honra aos da vida; pelo que
não o verião ir ao ſupplicio, como réo in-
fame, vil, e indigno, pois em todo o even-
to era grande tão ſoberano, como infeliz.
Qual foi o fim de tão cruel injuſtiça? (per-
guntou Delmetra). Que áquella hora ſeria
morto (ſe lhe reſpondeo).A eſtas palavras
rompeo afflicta com o mais triſte pranto; e
ſofrfocando-ſe em lagrimas, dizia:
Como ſerá poſſivel que eu poſſa to-
lerar eſte golpe maior que todos? O'inhu-
manos, qual foi o poder, que vos deo a ty-
rania para me uſurpares o que me havião
confiado os Deoſes? Ai, amado conſorte,
eu temia amar em ti huma pequena ſombra
tua, e agora vejo que o mudar a vida, e
deſcanços della, destruio a galhardia illuſ-
tre de teu amavel ſemblante, e que erão em
mim os receios delirios do goſto; e quem
ſenão tu, fallaria com tanta erudição, e a-
certo? Como, ó Miniſtros do triſte Reino
de Plutão, deixas de tirar-me eſte pequeno
reſto de vida, que me deixaſtes? Confor-
tem-me os Ceos benignos ou me ſepultem
os montes.
Bellino, que até alli ignorava o que
ſe havia deſcuberto em Antionor, ſabendo
tão importante novidade, deixava cahir de
ſeus olhos infinitas lagrimas; os circumſtan-
tes ſe retirárão certos na innocencia dos con-
ſor-
DE DIÓFANES. LIV. V. 191
fortes; mas como a inveja, e odio maqui-
navam eſtabelecer os ſeus enredos, diſſerão
a Bellino, que não deſtruiſſe a ſua boa o-
pinião em laſtimar-ſe daquelle pranto, por-
que os ſoldados valeroſos se diſtinguem pelo
ſangue, que moſtrão, e os cobardes pelas
lagrimas, que chorão; e que ſe era Delme-
tra mulher de Diófanes, não provava a ſua
innocencia, mas dava mais força para a ſuſ-
peita do ſeu delicto, e que brevemente ve-
ria executar em Delmetra a meſma ſentença
de Diófanes, ou Antionor. Ouvindo eſtes
opproprios contra a verdade, imaginava Bel-
lino traças para valer a Delmetra; e aquel-
la noite introduzindo-ſe com hum ſervo da-
quella caſa, que parecia compadecer-ſe do
laſtimoſo caſo, havendo-lhe obſervado os
ſentimentos, lhe rogou o encaminhaſſe para
valer àquella infeliz, que perdeira a vida
innocente; e como a boa perſuação tem gran-
de poder, e acode o Ceo com prodigios aos
corações ſinceros, conſeguírão ambos mover
o animo a Barnaxe, a quem eſtava recom-
mendado o reſguardo, e cautelas da prizão,
para que na noite ſeguinte deſſem liberdade
a Delmetra, o que executárão com felicida-
de. O reſto da noite caminhárão com a preſ-
ſa, que pedia o caſo; e continuárão a or-
dem de caminhar de noite, e deſcançar de
dia. Sahindo daquelles dominios já hião com
me-
192 AVENTURAS
menos ſuſto, ſem que em todo aquelle tem-
po deixaſſem as lagrimas de dizer a mágoa,
com que lamentavão a morte de Antionor.
Huma noite (pela decadencia de forças de
Delmetra) tomárão o acordo de pedir aga-
salho a huma Paſtora, que as recolheo pa-
ra huns curraes de gado, a qual era tão po-
bre, quanto generoſa, e com incrivel agra-
do as rogou, para que alli se demoraſſem,
offerecendo os ſeus cabritos, e cordeiros.
Determinando Bellino conciliar algum
allivio á magoada mãi, lançando-ſe-lhe aos
pés, rompeo neſtas palavras: Senhora, e
amada mãi da minha alma, não dura a deſ-
graça mais do que em quanto não chega ao ul-
timo gráo, a que fomos reduzidas, eu ſou
a voſſa filha Hemirena, os infortunios me
obrigárão a uſar deſte veſtido, eu vos não
conheci até o dia, que na prizão vos fallei,
e aſſim também ignorava quem me occulta-
va Antionor. As ultimas deſgraças de meu
eſtimavel pai me moſtrárão as luzes, que em
vós eſcondião as impreſsões de tão calami-
toſo tempo, tendo juntamente por certo que
já ambos deſcançavão em Thebas; e quan-
do nelle chóro a maior de noſſas infelicida-
des, alcanço para conſolar-me a fortuna de
beijar-vos a mão.
Delmetra abſorta com o goſto de ver
reſuſcitada a filha, que havia chorado mor-
ta,
DE DIÓFANES. LIV. V. 193
ta, e com a mágoa do tragico fim de ſeu
conſorte, emmudeceo ſem ſaber resolver ſe
era ſonho, ou realidade o que ouvia, até
que o goſto meſclado com a pena que decidio a
queſtão com hum mar de lagrimas, a que
correſpondião os apertados laços, e alegre
semblante. Que nova primavera (continuou
Bellino) he a que em vós vejo, pois como
Sol, e chuva ao meſmo tempo acompanhão
tantas lagrimas a voſſa alegria. Como he
poſſivel (reſpondeo Delmetra) que poſſa eu
explicar-te o que ſinto, ó filha querida, ſe
ainda eſtou duvidando, que para mim ſe
guardaſſe um prazer tão grande? Quem
diſſera que a dura mão, que deſunio de An-
tionor o feliz eſpirito de Diófanes, viria a
moſtrar-me a ſuſpirada filha! Mas tu não es
Bellino? Sim, que a Hemirena já ſepultou
a crueldade dos barbaros. Não zombes de
mim, gentil mancebo, que eu te amo deſ-
de o primeiro dia, que teus infortunios
te moſtrárão aos meus olhos; e ſe tantos ex-
ceſſos devo á tua compaixão, para que me
escarneces? Bem ſei que as deſordenadas ac-
ções, a que me obriga huma dor violenta,
te poderão ſegurar a minha loucura, e eſta
deſculpar as tuas graças; não te admires de
ouvir-me, admira-te de que eu vivia, quan-
do recebo golpes no coração. Levanta-te,
Bellino, que te ſuſpende? E reparando mais
nel-
194 AVENTURAS
nelle, e temendo alguma traição, continuou:
Qual he a cauſa deſſas lagrimas? Oh infe-
liz! não ſei que ſinto, que a cada inſtante
me annuncia o temor novos trabalhos. Que
crueldade te infundiria a maldade dos ho-
mens? Que me acode? Ai da mim! Não
vos alieneis, Senhora (lhe reſpondeo), com
o que vos parece diſſimulação; não deis
vozes, temendo que eu ſeja algum traidor,
que como me déſtes o ſer, eu devo defen-
der-vos á cuſta da propria vida. He poſſivel
que tal conceito façais de Bellino? Como
vos eſquecem as qualidades, que dizeis ha-
verem em mim, e em que tanto confiaveis?
Eſtas palavras ouvia Delmetra com tanta at-
tenção, que eſpantando os olhos, com o roſ-
to pállido, e toda tremula, ainda temia que
alli executaſſem alguma tyrannia por mãos
daquelle meſmo, de quem tanto ſe fiava;
pois ouvíra, que ſe appareceſſem aquelles,
por quem ſe fazia a guerra, ſe lhes tirarião
as vidas. Vós me haveis chorado morta,
(continuou Bellino), eſſa chaga quaſi havia
curado o tempo; e que maior annúncio pa-
ra novos cuidados voſſos, que a vida, que
eu ainda conſervo. Lembrai-vos que me le-
vaveis deſpoſada com o PrIncipe Arneſto pa-
ra aſſiſtir aos ſeus jogos; que o voſſo pri-
meiro filho cahio ferido no mar, que o ſe-
pultou; que eu fiquei deſmaiada no porto
os
DE DIÓFANES. LIV. V. 195
dos barbaros; que me recomendaſtes o con-
ſervar a candidez do decóro, e tiveſſe con-
ſtancia nos trabalhos; que erão muitos os
da comitiva, com que ſahimos de Thebas.
Baſta, baſta, (reſpondeo Delmetra, mudan-
do inteiramente de ſemblante, e acções) fi-
lha minha, já vejo que aſſim como a muita
alegria mata, eu ſahi do lethargo de hum
prazer deſmedido com os delirios de afflicta.
Graças aos Ceos poderoſos, que chega a
bonança de tão larga tormenta, e ſe alegra
o coração, em que ſó tem achado lugar ha
quatorze annos mágoas, ſuſtos, horrores, e
saudades. He poſſivel que te vejo? Sim, que
já vou deſcubrindo os veſtigios da tua for-
moſura, que eſcondia o trage, e occultava
a induſtria. He poſſivel que chegas a ſer
reſtituida á minha companhia? Já não temo
os poderes da fortuna inimiga, pois me con-
forta para mais combates hum allivio ſem
igual.Mais ai! (dizia, mudando de côr, e
deixando cahir os braços, que apertavão a
filha; a qual com ſuſto receava que aquel-
les intervallos foſſem principios de loucura.)
Ai, conſorte adorado, (continuava) como
póde ſer inteira a alegria, de quem foi a
origem da tua injurioſa morte? Ah, que na
vida de hum infeliz ſempre ſe alimenta a
deſgraça, ſe acaſo impreſſa na alma não he
com ella ſem limite! Senhora, (lhe diſſe
Bel-
196 AVENTURAS
Bellino) chegou a noſſa deſventura a dar os
ultimos paſſos, cheguemos tambem a dar as
ultimas provas da noſſa reſignação; e ve-
nhão ſobre nós os montes, ou ſe abra a ter-
ra para tragar-nos, e não ſe perca hum eſ-
crupulo de conſtancia, para tolerarmos com
fortaleza as eternas determinações; e acabem
as lagrimas, porque o proſeguir no deſafo-
go he querer a debilidade apreſſar os deſ-
canços com a morte; a minha dor he á me-
dida da voſſa mágoa, eu ſei ſentir as infa-
mias, como quem de vós naſceo, mas tam-
bém conheço que o vencer as paixões he o
triunfo mais illuſtre: e pra buscar-vos al-
guma conſolação, ouvi, Senhora, o que me
ha ſuccedido, e conhecereis que não há mal
tão grande, que não poſſa haver outro maior;
e reflecti nos perigos, de que reſguar-
dárão as Eſtrellas, para lhe ſeres grata em
moderar o voſſo pezar.
Já ſabeis como fiquei entregue aos bar-
baros naquelle cruel combate da deſgraça, on-
de a perda dos ſentidos erão bloqueios, com
que o deſtino quiz moſtrar vencida a minha
conſtancia. Quando ſe me reſtituírão, as la-
grimas erão continuas; ſem igual o medo, e
inexplicavel a dor, pelo que nos havia ſucce-
dido; continuamente chamava por vós, e ſó
repetião, como écos da minha ſaudade, os ma-
goados ſuſpiros; as mulheres me maltratavão,
os
DE DIÓFANES. LIV. V. 197
os homens ſe compadecião de minha afflicção,
e canſaço, pois eu fui deſtinada a trabalho
groſſeiro; mas como em cada hora ouvia re-
petir no meu coração os voſſos documentos,
não me affligia tanto o aborrecimento das
mulheres, quanto me atormentava a piedade
dos homens; e tambem obſervei fazerem-ſe
ellas eſcarnecer pelo muito, que fallão, e
pouco, que ſoffrem, ſendo que pelo calar
ſe amão, e pelo ſoffrer ſe venerão. Pelas
continuas deſuniões, que havião a meu reſ-
peito, entre os homens, e mulheres daquel-
la caſa, em que fiquei, me vendêrão a huns
foraſteiros, que me levárão a Athenas, e me
offerecêrão ao ſerviço da Princeza Beraniza.
Forão tantos os favores, e eſtimações, a que
me chegou o agrado daquella Heroina, que
eu já não ſentia mais que os trabalhos, e
auſencia dos que me havião dado o ſer, e
que tiveſſe aquella felicidade tão deſgraçado
principio, que perdia de viſta as em que eu
havia naſcido. Beraniza vendo-me ſempre
triſte, inſtou, para que lhe diſſeſſe a causa;
e ainda que eu não tinha certeza do que or-
denaſtes em a noſſa ſeparação, me determi-
nei a communicar a minha pena, pedindo a
liberdade de meus progenitores, a qual as
PrinceZas Beraniza, e Argenea pedírão ao
Rei ſeu pai, e com os ſignaes, que eu de
vós dei, ſe paſſárão ordens para vos buſca-
rem,
198 AVENTURAS
rem, e que com toda a decencia foſſeis reſ-
tituidos ao noſſo paiz, comprando-ſe a voſ-
ſa liberdade, ou tirando-vos violentamente,
onde quer que o impugnaſſem, e que foſſeis
conduzidos por mar, ou por terra, onde de-
terminaſſeis, com a grandeza, e faſto, que
pedião taes peſſoas. Mas qual foi a razão,
que tiveſte, (perguntou Delmetra) para não
pedir tambem a tua liberdade? Não foi ou-
tra (lhe reſpondeo) mais, que não querer
Beraniza ſeparar-me da ſua companhia; e
ſuppoſto que me offereceo mandar-vos levar
áquella Corte, onde foſſeis tratados com o
maior eſplendor, eu o não admitti, porque
ſó quiz conduzir-vos ao throno, porque diſ-
tante delle ſempre ficaveis ſujeitos ás con-
tingencias do tempo, e aſſim me ſacrifiquei
a ſervir toda a vida, porque não houveſſe
alguma occaſião, que vos diſputaſſe o deſ-
canco, pois o não póde ter quem vive ſu-
jeito em Corte eſtranha, havendo naſcido
para fazella em dominios proprios; aſſim de-
terminei que a minha ſaudade incuravel re-
medeaſſe o pranto dos que talvez vos cho-
ravão morta, lembrando-me de vos ouvir
dizer, que era nobreza de animo o arriſcar
o deſcanço proprio a favor do ſocego pú-
blico. Com eſta razão vos conſiderava no
eſtado, que havieis perdido; e quando ſe
me repreſentavão os applauſos, com que ſe-
rieis
DE DIÓFANES. LIV. V. 199
rieis recebidos na minha ſuſpirada patria,
a alegria, que em todos me parecia ver, me
obrigava a banhar em lagrimas de goſto,
e ternura, e na pena, que me reſtava da-
quelle bem, que eu já mais lograria, ſó me
animava a innocente vangloria de haver cum-
prido com os preceitos de minha obrigação;
porque aſſim como devemos o ſer aos pais,
ſomos obrigados a tolerar todo o trabalho,
que conduz para mais os honrar. Beraniza
era ſummamente agradavel, tinha exceſſiva
graça, deſgarre, e affabilidade para com as
gentes, e tão ſabiamente ligava a eſtas ama-
veis qualidades o animo varonil, e os Reaes
penſamentos, que nos negocios politicos da-
quelle Reino, e dos eſtranhos não ſe deter-
minava couſa alguma, ſem que o ſeu pare-
cer afiançaſſe os acertos; porém tanto ſe en-
tregava á dominante paixão dos eſtudos, que
na goſtoſa converſação dos bons livros, e
aſtronomicas obſervações paſſava inſenſivel-
mente os dias, e muitas noites, o que me
obrigou a dizer-lhe:
Não ſei, Senhora, como não temeis
huma applicação tão exceſſiva, que ſuppoſto
ſeja com moderação o mais decente realce
de formoſura, he no exceſſo inſenſivel peri-
go de voſſa vida; e já que a voſſa bondade
me permitte o deſafogo do que ſinto, eſ-
pero que a voſſa benigna grandeza me deſ-
O cul-
200 AVENTURAS
culpe, porque em quanto o affecto diſcorre,
quaſi ſempre o reſpeito eſquece. O continuo
eſtudo, em que ſe emprega a voſſa diſcreta
curioſidade, tem degenerado em ſuſto noſſo;
e ainda que parece que o tempo, e ſeus a-
trevimentos reſpeitão as heroinas, que já
mais ſabem temellos, também não he razão
que façais deſperdicios da formoſura, mal-
tratando a voſſa amavel delicadeza, a que
sempre he opoſta a fadiga, e o diſvelo,
com que vos negais a todo o genero de deſ-
canço. Compadecei-vos, Senhora, deſte po-
vo, que ama tanto as voſſas virtudes, quan-
to teme os voſſos perigos, porque em vós
deſcanção as eſperanças, que lhes negão as
moleſtias de Iberio, e me perdoai, ſe acaſo
vos offende a verdade, que me animo a di-
zer-vos ſendo oppoſta ás acções do voſſo
goſto; e ainda que aſſim ſatisfaço ás obriga-
ções, que me impõe o voſſo agrado, ſe me-
reço caſtigo pelo ardente, e verdadeiro ze-
lo, que me obriga a fallar-vos com tanta
liberdade, eu me não nego aos eſtragos, com
tanto que não perca a voſſa graça. Conhe-
ço (me reſpondeo) que he bem naſcido o
zelo, que te obriga, e aſſim farei ao públi-
co ſacrificios do meu goſto, moderando o
meu primeiro divertimento, que como os
dias dos mortaes tem termo certo, não me
devo conter por acautelada, mas ſim como
agra-
DE DIÓFANES. LIV. V. 201
agradecida. Porém vede, Senhora, (lhe re-
pliquei) que ao adorar o precipicio ſe ſegue
o cahir nelle, e que as vidas podem ter
maior, e menor termo pelos decretos con-
dicionaes. Ultimamente conheceo que de hu-
ma vida preciſa devem ſer tantos os reſguar-
dos, quantos são os prejudicados na ſua fal-
ta. Antes que ſe concluiſſe o diſcurſo, che-
gou o Principe Iberio que tambem a per-
ſuadio a moderar os exceſſos; e por não dei-
xar em ſilencio as admiraveis maximas, e
documentos, que daquella converſação re-
commendei á memoria, vos repetirei parte
daquelles diſcurſos, que trocando a nature-
za de preciſos á carencia particular com a
conveniente utilidade publica, fizerão goſ-
toſiſſima converſação. Creio, Senhora,
(lhe diſſe Iberio), que a voſſa prudente
vontade dará o melhor lugar ao voſſo cla-
ro entendimento, para que não haja cir-
cumſtancia, que dê a entender ás gentes,
que as voſſas prendas ſingulares ſejão vai-
doſo deſprezo da voſſa vida. Eu ſou in-
ſenſivel á ambição dos applauſos, (lhe re-
ſpondeo) mas não ao horror das violentas
paixões, que tomão corpo com o habito
da ocioſidade; do exercicio da util appli-
cação ſe alimenta mais ſegura virtude; a
eſta meſtra de acertos anda unido o eſpiri-
to de prudencia, e providência, o valor in-
O ii tre-
202 AVENTURAS
trepido, e a moderação aprazivel, pelo que
pouco temo hum perigo remoto, e muito
receio hum desſpenho proximo. Proſegui no
que vos diverte, (lhe diſſe o Principe) po-
rém moderai o que póde prejudicar-vos;
aſſim como reconhecendo eu que he deshon-
ra dos Principes o eſcuſarem-ſe ao trabalho
das campanhas, porque não ſendo razão,
que ſe ponha em dúvida a valentia do que
manda, e deve ſer modêlo dos que obede-
cem, pois he o ſeu esforço o que infunde
valor nos ſeus exercitos; tambem devo re-
flectir que he igual a obrigação de não buſ-
car os perigos, quando o não requere o
Real decóro, e a utilidade pública; pois
ſendo virtude o valor, muda de natureza,
ſe mais parece temeraria vaidade, que zelo
de honra, e amor dos póvos; o que valero-
ſamente ſe precipita, mais que bizarro, he
furioſo, e como o louco, que deſpreza a vi-
da, já mais he ſenhor de ſi; altera a boa
ordem Militar, dá exemplos de temerida-
de, e arriſca exercitos, antepondo á ſegu-
rança da cauſa commua a ſua vanglorioſa
ambição, pelo que mais merece eſtatuas pa-
ra o ſeu caſtigo, que padrões para as me-
morias das ſuas façanhas; e ſe conforme a
precisão ſe deſprezão os perigos e augmen-
tão as providencias, pela meſma razão ſe vos
diſpensão eſtes trabalhos, e cuidados, e a
voſſa
DE DIÓFANES. LIV. V. 203
voſſa delicadeza requere a moderação nos
eſtudos. Eu não ignoro, (lhe reſpondeo Be-
raniza) que ſendo em vós muito preciſo o
eſtudo, he em mim applicação curioſa; mas
como para os encargos dos Soberanos não
ha diſtinção de ſexo, pois que o tempo, ca-
ſos, e acaſos coſtumão repartir dominios,
não deixa de ſer conveniente, que ſe com a
Aſtronomia me divirto, com a Hiſtoria tam-
bem me inſtrua, pois nela obſervo que nem
nos melhores homens ſe acha tudo o que he
preciſo para o bem público, porque em ca-
da hum delles ha diverſidade de genios,
ideias, inclinações, e aversões; e quanto mais
póvos ha para reger, mais peſſoas ſe neceſ-
ſitão para ſe lhes confiar o bem commum,
e real authoridade, ſendo inexplicavel a
difficuldade, que ha em conhecellos ao tem-
po de repartir os encargos; aſſim como a
condição privada tem tal cautela em occul-
tar os proprios defeitos, que ordinariamen-
te ſó a morte os deſcobre, e pela meſma
razão reſplandecem os talentos dos que pro-
curão dever á induſtria o occultar a propria
ignorancia, e ſentimentos, em quanto não
alcanção os lugares, a que aſpirão; mas co-
mo a authoridade põe em prova toda a ca-
pacidade dos ſogeitos, eſta he a que deſco-
bre a malicioſa cautela, que os inculcou,
porque os grandes poſtos, e lugares multi-
pli-
204 AVENTURAS
plicão, os objectos do merecimento, ou do
eſcandalo; eſte ſó o tempo conduz á preſen-
ça dos ſoberanos, porque as pernicioſas po-
liticas não dão todo o lugar á verdade.
Tambem admiro como as acções dos
que regem Imperios todo o Mundo as ob-
ſerva, e as julga com o maior rigor, ſup-
pondo-os com mais forças, e nelles juntas
quantas perfeições a natureza repartio por
todos os homens do Univerſo, ſem reflectir
que ſuppoſto ſejão ſemideoſes as Mageſta-
des, tambem as rege influxo infinito, que
as sujeita a impoſſibilidades, e embaraços,
porque aſſim caſtigão os Deoſes poderoſos
aos póvos ingratos, e que ainda o mais pru-
dente, virtuoſo, entendido, valente, gene-
roſo, e ſabio ſempre he homem, tem limi-
tes o ſeu entendimento, e mais virtudes; tem
humores, coſtumes, e paixões; não he ſen-
hor abſoluto dellas, porque vive rodeado
de peſſoas aſtutas, e ardiloſas, e que ás for-
ças humanas alguma vez hão de render os
enganos, e trabalhos, que traz comſigo a
doce fadiga de reinar; e que Ulyſſes, que
foi o exemplo dos Reis da Grecia, teve er-
ros, e defeitos, que muito mais avultarião,
ſe Minerva o não levára pelos caminhos da
virtude para fugir aos rigores da contraria
fortuna; e que não obſtante os defeitos, que
teve, foi paſmo de toda a Aſia; pelo que
baſ-
DE DIÓFANES. LIV. V. 205
baſta que quando empunhardes o ſceptro,
procureis imitallo, lembrando-vos ſempre
que as Mageſtades ou de todo perdoão, ou
com mágoa caſtigão, e que com os inferio-
res he o perdoar o mais ſublime eſtilo de re-
prehender, e ſe deſmente de generoſo o co-
ração, que ſe não abranda ás lagrimas hu-
mildes do arrependido, e aos diſcretos ro-
gos do attribulado, pois ſem demora enſinão
as afflicções a melhor Rhetorica; mas tam-
bem he preciſo ver, que nem ſempre a com-
paixão he virtude, porque a alguns aggra-
vos ſerá igual o merito de os caſtigar á cul-
pa de os commetter; porque quando as in-
jurias são publicas, e repetidas, para exem-
plo ſe caſtigão, e pelo eſcandalo ſe não per-
doão.
Para conſervardes a opinião de ter a-
mavel docilidade, nunca deſprezeis o con-
ſelho dos que tiverem para o dar as quali-
dades preciſas; mas para os acceitar, conſul-
tai primeiro em vós aquella vigoroſa virtu-
de, que ſabe ſeparar do util o pernicioſo;
e reparai que da exceſſiva aſpereza alguma
vez tem ſuccedido haverem mais homens,
que ſirvão, que fieis que guardem, e que
os que ſem zelo ſervem, ſem affecto aſſiſtem,
ſó por intereſſe defendem, ou por medo pe-
lejão, nem como dadivas ſe applacão, nem
com pouco ſe contentão; porque os que ſe
não
206 AVENTURAS
não animão com o eſcudo da juſtiça, ou com
o valor, que o brio infunde, a cobardia os
perturba, ou a ambição os muda. Vós ſois
bem inſtruido, e tendes aquella alta capaci-
dade, com que profundamente contemplão
os Principes no ſeu Reino, quando ſe diſ-
põem para o poſſuir; mas aſſim como com
reſpeitoſa attenção me reprehendeis os ex-
ceſſos, quiz moſtrar-me agradecida com o
que vos lembro; e porque ſabeis que he igual
a pena da culpa, que ſe commette, á do
bem, que ſe deteſta, as minhas reflexões al-
guma vez hão de ſervir-vos para não ſer
inutil parte da minha applicação, que pro-
metto moderar, mais por amar o conſelho,
que por temer as ruinas. Iberio, que com
inexplicavel goſto ouvíra a Beraniza; a ſa-
tisfez com demonſtrações do mais diſcreto
carinho, e ſingular reſpeito, concluindo aſ-
ſim aquelles admiraveis diſcurſos. Argenea
ſegunda Princeza tambem me amava, e mo-
deramente ſe divertia com a muſica, e
com a caça, em que Diana bella ſe exerci-
tava. Aſſim paſſei ſinco annos, conſolando-
me com entender, que havia ſido a cauſa
do voſſo deſcanço. Principiou Beraniza a pa-
decer de huns accidentes, que não puderão
moderar os remedios, pois não impedírão
os crueis paſſos da morte; e em huma tarde,
eſtando nos meus braços, rendeo o eſpirito,
dei-
DE DIÓFANES. LIV. V. 207
deixando-me recommendada ao Principe Ibe-
rio, para que me fizeſſe conduzir a Thebas;
e não obſtante, eſte motivo da minha con-
ſolação, as invenciveis correntes das minhas
lagrimas erão annuncios de que o coração
antevia, que com apparato de fortuna ſe
maſcarava a minha deſgraça. O Principe foi
o inſtrumento de todas as que ſe ſeguírão,
porque continuou a ver-me com exceſſo tal,
que temi que do circulo imperfeito, que for-
mava o ſeu cuidado, e compaixão, foſſem
os extremos vicioſos; pelo que me reſolvi
a retirar-me, deſprezando indecentes eſpe-
rança no ſilencio da noite, ſahi como o ho-
mem mais deſprezivel. Padeci ſuſtos, fomes,
perigos, e afflicções; e quando buſcava, on-
de eſcondia pudeſſe deſcançar, encontrei
comvoſco, e principiaſtes outra vez a tomar
parte nos meus infortunios. Não me culpeis
o haver uſado da diſſimulação de taes veſti-
dos; porque como os maiores trabalhos, e
deſgraças, que acontecem ás mulheres, são
originados pelos enganos dos homens, que
os cegos de amor, ou de ſeus deſordenados
coſtumes, lhes prendem a liberdade, e as
encaminhão aos precipicios, pareceu-me que
só eſcondendo-me aſſim aos ſeus olhos, ca-
minharia com menos riſcos. Tão pouco te-
nho que culpar-te, querida filha (lhe re-
ſpondeo Clyminea), que dou graças ao aſtro
be-
208 AVENTURAS
benigno, que te infundio eſſe acerto, pois
he ſem dúvida que o recato he o melhor
dote das mulheres, com que as formoſas ad-
quirem adorações, as bem parecidas amor,
e as feias eſtimação; e aſſim como a modeſ-
tia deve ſer o primeiro adorno, tambem os
meſmos, a quem não liſonjeão os eſcrupulos
da ſeizudeza, apenas lhes conhecem a facili-
dade, as tirão das mãos da fineza, e as en-
tregão ao rigor do deſprezo, e eſquecimen-
to: entre os reſplendores do decóro ſe con-
templão na formoſura vislumbres de divin-
dade; porque quando as mulheres pela lou-
cura ſe facilitão, não ſó perdem o ſer, a
belleza, e a gloria, mas ſe fazem abomi-
naveis, e eſcarnecidas dos meſmos, a quem
ſervem; pois he tão melindroſa a eſtimação
de huma diſcreta dama, que de muitos an-
nos de cuidado perde o merecimento em hum
dia de deſcuido; e quando não houveſſem
razões tão nobres para conſervarem a ſenho-
ril gravidade, baſtaria que reflectiſſem, que
em deixando de deſprezar as oblações dos
rendimentos, paſsão logo a ſer indignas de
bem naſcidos ſacrificios, ſendo nellas infa-
me deſaire, o que he nelles timbre da mo-
cidade. Já me não ſerá dura a morte, pois
ſei como te houveſte pelo Mundo, entre bar-
baros ſem amparo, nem conſelho, de que
ſempre carecem os poucos annos, e mais,
quan-
DE DIÓFANES. LIV. V. 209
quando lhes aſſiſte a formoſura; lembravão-
me as deſgraças, que te podião acontecer,
os riſcos, a quem podião conduzir-te os do-
tes da natureza. Entre eſtas, e outras mui-
tas conſiderações rompia os Ceos com laſti-
moſos ſuſpiros, e lhes dizia: O' Eſtrellas be-
nignas, como me encaminhaſtes a tão gran-
de tropel de afflicções? Não me ſeria cruel
a ſervidão, ſe não tivera que ſentir mais,
que a dureza das prizões, onde ſó me que-
branta o pezado grilhão, que na alma ſinto
neſte profundo pélago de penas, e cuidados,
em que fluctúo. Perdi o melhor conſorte de
quantos havieis deſtinado a todas as mulhe-
res; talvez porque eu não ſabia merecello,
não o quiz conſervar a voſſa grandeza: per-
di o ſer de tal ſorte, que eu quaſi duvido
ſe fui ſempre a que eſtou ſendo. Não parti-
cipa das minhas ſaudades aquelle faſto, em
que ſempre ſe reſpirão venerações, porque
a opulencia, o trato da Corte, os parentes,
os ſervos, e divertimentos paſſou tudo por
mim tão velozmente, que lhes não reſerva
lugar algum a minha memoria, pois toda
occupa a filha, que dos meus olhos arreba-
tou o mais tyranno deſtino, temendo mais
do que a Parca os ſeus deſacertos. Oh quem
pudéra a aconſelhar-te, pará que ſoubeſſes te-
mer o venenoſo affecto dos homens! Quem
pudéra dizer-te em que conſiſte a melhor
for-
210 AVENTURAS
formoſura, para não ouvires liſonjas, deſ-
prezando a indiſcreta vaidade! Quem pudé-
ra chegar com eſtas vozes a teus ouvidos,
para que foſſes na verdade deſenganada do
pouco, que vale huma vida inconſtante, ſe
não adquire hum deſcanço immenſo! Ai,
filha das minhas entranhas, quanto he limi-
tado o ſenſitivo dos pais, ainda para recear
os deſacertos dos filhos! Quem diſſera que
os regalos com que foſte creada, havião
de degenerar em miſerias, e deſamparos,
pois te conſidero eſcrava deſprezivel: em
que parou o recato, e gravidade, com que
foſte educada? Eu te reſguardava dos olhos
das gentes, porque ſabia que no teu eſtado
são tão ſublimes os eſplendores da belleza
em huma Senhora, que mais ſe contemplão,
que ſe communicão; agora ſem reſguardos
te chóro em mãos inimigas. Neſtas conſide-
rações, e triſtes vozes huma dor vehemente,
ou paixão radicada me rendia a Morfeo;
mas como o cuidado he oppoſto ao deſcan-
so, tornava logo a deſpertar, dizendo: Mas
como dos meus braços te arrebatárão ſem a-
cordo? Talvez que o ſuſto te uſurpaſſe de
todo o brando alento. O dura Parca! Hu-
ma vez ſerieis benigna, ſe cortaſſeis por hu-
ma vida tão ſujeita a contratempos. E aſſim
ſó me ſocegava o julgar-te nas mãos da mor-
te; mas já vejo que os Numes compaſſivos
te
DE DIÓFANES. LIV. V. 211
te reſguardárão, para que huma infeliz vieſ-
ſe a ter o maior allivio. Mas que digo, ſe
morreo, como vil, o que tão adornado de
virtudes me havia tocado por sorte? Quem
me diſſera, que aquelle venerando ancião
attrahia a ſi o meu affecto, não ſó pelo que
parecia, mas sim pelo que era? Quem po-
derá mais crer nos enredos do Mundo, que
apenas acaba hum ſuſto, já vai diſpondo ou-
tros maiores? Se haverá tempo, que me a-
legre, quando vejo que eſte ſó conſerva a
conſtancia nas crueis mudanças? Quem eſti-
mará as diſtinções, com que huns naſcem
de nobres, outros de humildes, ſe todos são
igualmente ſujeitos aos contraſtes da fortu-
na? Quem deſejará riquezas, e eſtimações,
ſe mil annos de tempo para as poſſuir tem
tanto ſer, como hum dia, que paſſou para
deixar tudo?Aſſim chorava até agora tam-
bem as tuas acções; agora que te vejo, e
me ſatisfaço de como viveſte, já me parece
que aquelle pezar não ſenhoreava o meu a-
nimo; porque as razões que encontro na
morte de Diófanes, parece que intentão ar-
rancar-me do peito o coração.
Não ſe chorão as mortes dos que dei-
xão vinculados á poſterioridade os ſeus glorio-
ſos nomes, ſó ſe sente a ſaudade, que de
hum dia para outro vai curando o tempo.
Oh quanto ſe ultraja a innocencia, que dei-
212 AVENTURAS
xa padrões para o eſcarmento! Ah cegos
Miniſtros da maldade, que lhes não lembra
que ſerão ſeveramente julgado pelos que pu-
nirão, ſem mais culpa, que as que lhes im-
putárão a inveja, avareza, e odios! Como
não advertem, que o rigoroſo Averno os
ameaça com huma eternidade de penas em
cada erro, que authorizão com juſtiça?
Como roubão a honra das gentes, ſe he
fruto, que não tem reſtituição? Como caſ-
tigão falſos homicidios por paixões particu-
lares, ſe as vidas, e deſamparos nunca po-
dem reſarcir? Como chegão a mandar ao
ſupplicio por eſtranhos intereſſes a hum pai
innocente, ſe a falta, que experimentão os
orfãos, nunca tem reſtituição? Como ven-
dem a juſtiça dos que não tem meios para
os ſobornos, ſe a verdadeira Juſtiça os vê
para os caſtigos? Ah cegos mais deſgraça-
dos, que eu, e todos os que ſoffrem as ſuas
injuſtas crueldades, ſatisfazendo-as, como
famintas feras, no ſangue innocente de ſeus
proximos, a quem tirão os creditos, vidas,
e bens, tendo a maior ventura os que os ſof-
frem com animo conſtante! Ah deſgraça-
dos, que não advertem quanto he eſtreita a
vida para o logro de tão grandes roubos,
e ſe contentão de que continuem os ſeus
máos nomes nos filhos, que ficão abundan-
tes, e introduzidos, como ſe não houveſſem
Jui-
DE DIÓFANES. LIV. V. 213
Juizes ſuperiores, que lhes arruínem os ſeus
mal fundados edificios! Diófanes ſem culpa
acabou vilmente, porque menor caſtigo não
merecião a minha ſoberba, e deſordens; e
como falta a nobreza do animo, em quem
ſe conſola com a deſtruição dos inimigos,
e em mim ſe executou o maior golpe naquel-
la crueldade, os Ceos querião haver pieda-
de com os que cegamente o mandárão ao
ſupplicio, para que conhecendo agora os
ſeus atrozes deſacertos, adminiſtrem a ver-
dadeira juſtiça. Bellino, que suſpenſo ouvia
as magoadas vozes da mãi, com muitas la-
grimas lhe diſſe: Bem ſabeis, Senhora, que
os bons são no Mundo deſconhecidos, em
quanto nelle exiſtem, e que deſde ſeu prin-
cipio forão ſempre os virtuoſos perſeguidos,
e invejados os merecimentos, e que a re-
ſignação nos trabalhos he o que move a com-
paixão dos Ceos: a voſſa mágoa não reſuſ-
cita mortos, e da voſſa vida depende a mi-
nha. Não vos ſeria mais violenta eſta má-
goa, ſe choraſſeis com a injuſta execução
tambem a noticia, de que eu eſtava ſervin-
do ao recreio daquelle Principe? Diverti eſ-
ſa triſte recordação, e contai-me os paſſos,
que déſtes para eu tonar á fortuna de aſſiſ-
tir-vos. Os Ceos me amparem, (lhe reſpon-
deo Clymenea), que eu quero diſpôr-me para
reſiſtir ao pezar do que elles determinão.
O
214 AVENTURAS
O dia, em que nos dividimos, em le-
várão á huma caſa humilde, pouco diſtante
daquelle porto; aquella gente incivil zom-
bou toda aquella noite de minhas lagrimas,
fazendo-me muitas viſagens, como parece
que entre elles era coſtume. Logo no dia
ſeguinte me fizerão caminhar em companhia
de hum delles, e ſinco marinheiros noſſos;
e depois de tres dias de jornada, em que
paſſámos muito mal os dias pelo canſaço, e
fomes, e peior as noites, porque tambem
faltavão as camas, chegámos á Cidade de
Argos. Aquelles inhumanos procurárão in-
teirar-ſe de quem eu era; mas como já o ti-
nha prevenido, conforme o havia ajuſtado
com Diófanes, não o pudérão conſeguir; os
meus tinhão o cuidado de me pouparem ao
trabalho, dizendo ſer perſeguida de varios
achaques, e que em me fatigando cahia gra-
vemente enferma. Com eſte pretexto elles
muitos da numeroſa familia daquella caſa,
que era huma das mais diſticntas da Cida-
de, ſendo eu o deſprezo de todos; e como
me tinhão por inutil, ſe lembrárão de me
mandarem para huma caſa de campo com o
emprego de tratar de cães, e mais bichos
curiosos. Não me era eſtranho o vil exerci-
cio, em que me via, mas ſim que eu hou-
veſſe de gaſtar tão mal o tempo, vivendo
ſem
DE DIÓFANES. LIV. V. 215
ſem applicação alguma, lembrando-me das
muitas vezes, que te dizia terem muito pou-
co eſpirito as mulheres que ſe empregavão
em couſas pouco uteis e em continuos a-
ctos de divertimento, ou em aliſtarem os
que paſão pela rua, não ſe lembrando de
que as que pouco ſe deixão ver, não ſó lo-
grão privilegios de deidades, mas dão lu-
gar aos clarins da fama, que as recommen-
da aos repetidos votos da veneração; e pe-
lo goſto de ſerem viſtas, e melindres da o-
cioſidade, arriſcão o bom conceito, que ſó
alcanção as applicadas, e as que gravemen-
te ſe retirão; e como das acções das Senho-
ras ſe reveſtem as ſervas, as que ſe não ſa-
bem regular, ficão inhibidas da ſeveridade,
com que reprehende quem não concorre
para o mal, com o exemplo. Quando tudo
iſto me lembrava, tinha a conſolação de eſ-
tar livre de alguma parte daquelles encar-
gos pelo muito, que he difficil conſervar a
perfeição da verdadeira mãi de familias; ou
ſeja pela educação dos filhos, em que todo
o cuidado he pouco, ou pela modeſtia, e
bons coſtumes das peſſoas, de quem ſe ſer-
vem, de que muito dependem as grandes ca-
sas, para que o reſpeito as tenha por ſagra-
das. Tanto que e coſtumei áquelles, com
quem vivia, buſquei modo de ganhar-lhes
as vontades, conforme ſeus genios, para os
P per-
216 AVENTURAS
perſuadir a ſe governarem com melhor eco-
nomia, para os filhos ſe ſujeitarem aos pais,
os moços reſpeitarem os maiores, e ſe ap-
plicarem, e para as mulheres darem maior
preço á ſua eſtimação no reſguardo de ſuas
peſſoas, em que se acautelarem no fallar, e nos
exercicios quotidianos, e eu as enſinava ao
que ellas podião admittir, por ſer grande a
sua ruſticidade. Aſſim occupava o tempo,
que me ſobrava do que me havião encarre-
gado; e tanto lhes grangeei os animos, que
quando as lagrimas cahião de meus olhos,
não ſó ſe entriſtecião, mas buſcavão meios
para conſolar-me. Os campos pela maior par-
te não os cultivavão, porque os ſeus mora-
dores fugião ao trabalho; as mulheres uſa-
vão com muita demazia dos adornos, e não
ſabião mais que cantar os louvores de Ve-
nus; a formoſura, graças, delicadeza, e a-
legria igualmente brilhavão nos ſeus olhos;
e tudo tão affectadamente, que não ſe via a
nobre ſeveridade, e o eſtimavel pejo, que
he o que ſe faz mais agradavel na belleza,
porque tudo erão artificioſos enfeites, e a-
dornos profanos, com os quaes olhavão,
buſcando quem viſſe os gracioſos deſdens,
com que nos corações accendião a mais vio-
lenta paixão; em fim quanto nellas se ob-
ſervava, era deſprezivel, demaziado, e en-
fadonho.
Fui
DE DIÓFANES. LIV. V. 217
Fui ver o Templo de Venus com os
mais daquella caſa, que todos os annos lhe
hião fazer offertas, onde admirei o primor
da arquitectura. Alli concorria innumeravel
gente a fazer ſuas offerendas, e ſe queima-
vão ſempre odoriferos aromas; uſavão todos
de tanta deſenvoltura, que eu fugindo de vel-
los me recolhia a caſa, em quanto não fui
para Argos, onde ſe havião moderado mui-
to os máos coſtumes. Poucos dias depois de
haver chegado de Cythéra, eſtando huma
noite na pobre cama, a que me via reduzi-
da, em uma caſa ſem luz, entrárão duas
peſſoas daquella familia, e acaſo ſe chegá-
rão para a parte onde eu eſtava, e inad-
vertidamente tratárão certos negocios, que
requerião tanto ſegredo, que buſcárão a-
quella hora para os communicarem; mas os
Ceos, que a todos vem, não quizerão que
ſe retiraſſem com a certeza de não ſerem
ouvidos; porque repreſentado-lhes o medo,
que entrava gente na caſa, quizerão chegar-
se mais para o canto, em que eu eſtava, e
cahírão, tropeçando em mim; e quando
ſe certificárão de que havia ſido illusão o que
ſe lhes repreſentou, me perguntárão, ſe eu
ouvíra o que elles havião tratado. Bem via
eu que lhes ſeria duriſſima a verdade; mas
como ſei que a todo o riſco ſempre ſe deve
uſar della, que a mentira não ſe conſerva,
Pii que
218AVENTURAS
que a verdade he eſmalte de bem naſcidos,
nobreza de humildes, e ſuſtento de pobres,
ainda que algum tempo me demorei em lhes
responder quaſi tentada a mentir, ou por
que trato dos indignos principiava a mu-
dar-me os coſtumes, ou porque com a falta
da converſação dos bem morigerados, que
ſuavemente enſina a bem obrar, principiavão
a eſquecer-me os bons habitos, quando ira-
dos repetírão a meſma pergunta, reſpondi:
Eu tenho ouvido o que falaſtes, e me paſ-
mo da traição, que havieis urdido: rogo-vos
que deixeis paſſar alguns dias antes de exe-
cutardes os voſſos intentos, porque neſſe tem-
po chegareis a abrir os olhos da razão; e
reparai como quiz o Ceo, que eu foſſe in-
formada das voſſas maldades, para moſtrar-
vos que a nenhuma cautela eſperem dever
as gentes, que no ſilencio os occulte ao caſ-
tigo de ſeus delictos; o rigor do tempo me
tirou da caſa, em que ſabeis que eu me re-
colhia; a bondade dos mais ſervos me con-
ſentio em hum canto deſta; a minha peque-
nez me tem aqui, ſem mais luz, que a que
tenho para moſtrar-vos os feios deſpenhos,
para que vos encaminhão os voſſos deſignios:
temei a ira dos Deoſes, e vede que não de-
ve viver no Mundo o que com acordo erra
tão horrivelmente, deſprezando os aviſos da
razão, que coſtuma repreſentar a fealdade
dos
DE DIÓFANES. LIV. V. 219
dos delictos. Ouvírão immóveis eſtas pala-
vras; e affaſtando-ſe, eſtiverão fallando, ſem
que eu lhes percebeſſe palavra alguma, até
que em deſunidos pareceres dizia hum: Não,
não ha mais remedio, que tirar-lhe a vida.
Reſpondia o outro: He muito violento, e
faltam as forças, quando a colera não ajuda.
E ſe lhe reſpondia: Eu ſerei o executor,
baſta que o conſintais. A que tornava o ou-
tro a replicar: não vos digo que o façais,
mais dai-me tempo para retirar-me, e obrai
o que quizerdes; mas vede que o ſangue in-
nocente algum dia ha de accuſar-vos. A eſ-
tas palavras fiquei ſem ouvir mais rumor al-
gum, a cada inſtante eſperava a morte, fe-
chando os olhos; e abaixando a cabeça pa-
ra os golpes, via com o maior horror o fim
da minha tragedia, e ultimamente me reſol-
vi a dizer: Onde eſtais, ó cegos, que para
que nunca acerteis, as ſombras vos eſcon-
dem o alvo, que buſca a voſſa tyrannia? E
já cançada de eſperar-vos chamo: Aqui eſtá
quem não commeteo mais culpas para a voſ-
ſa crueldade, que o naſcer ditoſa, para vi-
ver infeliz comvoſco: acabai de alliviar-me
do mal immenſo, que na voſſa companhia
padeço; e ſacrificai huma vida innocente,
offerecendo o meu ſangue nos altares da voſ-
ſa ferocidade. Ficárão ainda immó-
veis, e em tal ſilencio, ou fallando com tal
cau-
220 AVENTURAS
cautela, que eſtando eu perſuadida a que ſe
haverião retirado, ſe chegárão a mim, e
me diſſerão, que ſe queria a vida, havia de
auſentar-me dalli, e me livraſſe de ſer viſ-
ta, porque em qualquer lugar, onde foſſe
conhecida, ſeria entregue á morte cruel,
e que me parte alguma me aconteceſſe fal-
lar no que lhes ouvíra. Eu o prometti com
verdadeiras expreſsões, e lhe diſſe: Fugi-
rei com o maior cuidado, não por me li-
vrar da morte, que em toda a parte lhe ſe-
rei ſujeita, mas para que vivais ſem a inquie-
tação dos receios; nem revelarei o que vos
ouvi, não ſó por conſervar os juramentos,
que faço, mas por não aprenderem a idear
os que ſó tem má inclinação, e lhes falta
a ſubtileza para urdirem os ſeus enredos,
que eſte he o perigo, que tem entre os máos
a eſpeculação da maldade, e entre os bons
o muito, que os eſcandaliza. Interrompêrão
o mais, que hia a dizer-lhes, ſegurando-me
que os ſeus ſequazes eſtavão eſpalhados, e
a todos informarião com as circumſtancias
para me tirarem a vida e, que logo logo
ſahiſſe dalli, penſando bem em não ſer viſ-
ta; e pegando em mim com tyrannia, me
levárão ás cegas, ſem mais veſtido, que a
cuberta da pobre cama, que me davão; aſ-
ſim me levárão á porta de hum jardim, e
me puzerão na eſtrada.
Fui
DE DIÓFANES. LIV. V. 221
Fui caminhando o mais que pude no
pouco tempo, que reſtava da noite: reco-
lhi-me em hum boſque ſolitario, onde a fra-
queza, e canſaço julguei darião fim a meus
infortunios; porém não o conſentio aſſim o
fado, pois não era ainda ſatisfeito de meus
trabalhos. Continuando a fugir, não podia
andar ſem grande incommodo; porque pelo
muito, que canſava, me era logo preciſo
buſcar onde me eſcondeſſe. Era tal me-
do, com que me via no eſcuro da noite pe-
los campos, que algumas vezes me parecia
ouvir deſordenados gritos, extraordinarios
aſſobios, e medonhas vozes, tudo effeitos
do medo, e eſperava nas noites de luar não
ir tão afflicta; mas chegadas que forão, me
ſuccedeo pelo contrario, porque via fantaſ-
mas, com que as delicioſas ſombras dos ar-
voredos augmentavão o meu horror; em fim
a fome era contínua, em quanto ella me não
enſinou a comer frutas agreſtes, e hervas,
conforme as produzia a terra. Tambem me
aproveitava de alguns bichos, que ſe cria-
vão nos rios, comendo-se logo que podia
apanhallos; os olhos transformados em vi-
vas chagas pela contínua corrente das lagri-
mas, hião perdendo a luz, que me encami-
nhava; a côr do roſto eſtava tão destruida
pelo contínuo pavor, e afflicção de eſpirito,
que huma tarde, chegando a hum regato
pa-
222 AVENTURAS
para refrigerar a ſede, que me atormenta-
va, e reparando no ſemblante, que moſtra-
va o liquido criſtal, gritei afflicta: Ai triſ-
te! crendo ſer alguem, que ſe chegava a
mim; e voltando logo ſem ver peſſoa algu-
ma, aſſentei ser eu a meſma, que me deſ-
conhecia, pelo deploravel eſtado, em que
no pállido ſemblante ſe copiavão os meus
trabalhos. Aſſim paſſei ſinco mezes daquelle
inexplicavel tormento, até que achei a gru-
ta, em que me viſte, onde fiz aſſento, en-
tendendo ſer aquella a minha ſepultura, pois
me faltava o alento para continuar o cami-
nho, e ignorava ſe hia a encontrar-me com
os meus contrarios, ou ſe me retirava del-
les; e neſta dúvida, ſentindo vizinha a mor-
te, me recolhi ao centro daquelle rochedo,
que ſe achava então livre das feras; mas
quando principiou a ſer intenſo o calor do
Sol, me vi em novos ſuſtos porque come-
çavão a entrar os moradores, que eu não eſ-
perava.
Não ſei dizer-te o medo, que me cau-
ſavão, quando reparavão em mim; huns ra-
pavão a terra, outros como roſnando ſe che-
gavão tanto, que pegando com os dentes no
panno, que cobria, me voltavão de hu-
ma parte para a outra, e ficava eu immovel
no meſmo lugar, onde havia cahido. A eſ-
te tempo vinhão outros, que me paſſavão
por
DE DIÓFANES. LIV. V. 223
por ſima, ora ſaltavão brincando, ora da-
vão branidos horrendos, e principiando a
morder-ſe enfurecidos, me repreſentavão to-
das as Furias, e horrores do triſte Reino
de Plutão. Acabou aquelle mais feio dia, e
com as ſombras da noite me forão deixan-
do pouco a pouco: melhorei-me da figura,
em que tinha ficado immovel, porque o me-
do nem me deixava reſpirar com liberdade.
Deſejava antes caminhar, que ſujeitar-me á
ira daquelles brutos; mas não ſó me emba-
raçavam a decadencia de forças, e falta de
viſta, mas tambem a incerteza da ſituação,
em que eſtava, e o caminho, que deveria
tomar, e eſcolhi aquella morte, por me fal-
tar todo o remedio.
Na caſa, em que fiquei na Cidade cho-
rando a tua auſencia, me encarreguei, co-
mo ſabes, da educação de huns meninos,
que ſuppoſto lhes buſcavão os meios, que
lhes conciliaſſem a boa inclinação, os do-
mesticos da meſma caſa deſtruião todo o ef-
feito daquelle trabalho, como ordinariamen-
te ſuccede. Tambem quizerão alli ſaber na
verdade, quem eu era, dizendo não ſe acha-
rem nas mulheres humildes as circumſtancias,
que para aquelle emprego em mim ſe admi-
ravam, como ſe para a educação dos filhos
tiveſſem aquellas menos pezada obrigação;
não me entregárão a filha, porque he the-
ſou-
224 AVENTURAS
ſouro tão importante, que ſem muito larga
experiência não ſe confia mais, que ao vi-
gilante cuidado das mãis. Sahi a buſcar-te
e encontrei o chamado Antionor, de cujos
diſcurſos renaſcia de cada vez mais viva a
minha ſaudade pela ſemelhança, que tinhão
com os de meu amado Diófanes; mas no
ſemblante o achava muito diverſo, ſem re-
flectir que a natureza não nos parece que
pinta com as meſmas cores a todos, porque
a huns dota com regalos, deſcanços, e Pa-
lacios magnificos, e a outros ſó com forças
para reſiſtirem aos rigores do tempo, ſem
mais reparo que o da ruſtica choupana; ſen-
do que não ha mais differença entre huns,
e outros, que huma antiga poſſe de fortu-
na, que faz o eſtabelecimento, e recommen-
da aos reſpeitos, e reſguardos as peſſoas, a
que chamados illuſtres, e nobres; e aquel-
les, que deſtituidos forão ſempre de bens
na contínua fadiga do trabalho, que os ſuſ-
tenta, os maltrata o tempo, e os faz enca-
necer de medo, são tidos por humildes,
ainda que todo tivemos a meſma primeira
origem; aſſim mo occultárão as impreſsões
do tempo, que tambem conduzírão para o
eſtado, em que me vês: agora convem de-
terminar o caminho, que devemos ſeguir,
ainda que me falta o alento para dar mais
paſſos, porque em todos parece que me che-
go
DE DIÓFANES. LIV. V. 225
para os precipicios. Oh feras crueis, que
se me houveſſeis tirado a vida, já teria eu
encontrado com aquelle magnanimo eſpiri-
to, que nos Elyſios deſcança! e agora ſem
allivio chóro a morte infames, que padeceo;
e não ſei ſe he menos credito da mágoa não
ſacrificar a vida nas aras do ſentimento. Con-
ſolai-vos, senhora, (lhe diſſe Bellino) e
reparais que os Deoſes vos defendem, e pode-
rão offendellos as voſſas vozes: parece-me
que continuemos eſte caminho, a ver ſe en-
contramos com algum deſcanço nas vizi-
nhanças da patria, ou ſe cança a deſgraça,
que nos ſegue.
A gracioſa Paſtora, que com o rom-
per da manhã ſahia a apaſcentar o ſeu re-
banho, chegou alli a cumprimentallas, e
com galanteria lhes offereceo ſua pobre chou-
pana, para que ſe demoraſſem todo o tem-
po que quizeſſem. Dizei-me ſe deſcançaſ-
tes, (lhe diſſe) e ſe vos agrada ficar na
minha companhia? Eu me hei de alegrar
muito, e agora bem ſabeis que eu não poſ-
ſo eſtar comvoſco, porque hei de miſter ir
para o monte com os seus cordeirinhos,
ou vinde comigo: tomareis o freſco, ouvi-
reis dos Paſtores as melhores cantigas, e a
graça com que tambem cantando as Paſto-
ras lhes reſpondem: vereis as lindas aves,
que alegres vão para os ſeus ninhos, e a-
dor-
226 AVENTURAS
dormecereis ao ſom, que faz o correr da
fonte: eu repartirei comvoſco da minha po-
breza, fiaremos a lã, para o que nos for
preciſo, e aſſim em paz, ſem a ſoberba dos
ricos, nos coſtumaremos a viver contentes.
Delmetra lhe reſpondeo agradecida: Por al-
guns dias acceitaremos o que o voſſo bom
animo nos offerece; e paſſados eſtes, iremos
obrigadas ſó a continuar a noſſa jornada,
porque os Deoſes poderoſos não querem que
tenhamos muito deſcanço.
Aſſim ſe demorárão ſó tres dias, e no
fim delles ſaudoſas ſe apartárão da agrada-
vel Paſtora, continuando ambas a fugir das
vizinhanças da maldade. Quando chegavão
a alguma povoação, punhão todo o cuida-
do no retiro, e não deſcançavão, em quan-
to ſe não vião longe dos ajuntamentos, que
ſempre conduzem para inquietações; já prin-
cipiavão a ver, como huma pequena luz,
que lhes moſtrava a eſperança, no perto,
que já eſtavão de Thebas; e como para eſ-
te fim, a que ſó aſpiravão, lhes era mais
conveniente fazer hum pequeno embarque,
eſperárão alguns dias, que houveſſe embar-
cação; e cuidando que aſſim terminavão ſuas
peregrinações, e infortunios, vírão que ain-
da não havia cançado a deſgraça; porque
tendo embarcado, deo logo a embarcação
fortemente contra huma rocha, em que a-
ca-
DE DIÓFANES. LIV. V.
cabou a maior parte da gente. Sobre humas
taboas ſe ſalvárão peſſoas, e entre
eſtas eſcapou Bellino, que reparando que
Delmetra havia acabado com os mais, que
faltavão, levantou os olhos aos Ceos, di-
zendo: O' Deoſes poderoſos, como ainda ſe
não applacou a voſſa indignação? Como
conſentiſtes que acabaſſe huma vida tão pre-
ciſa, e na minha ſuſtentais a mais inutil?
Eu me hia coſtumando a perder o horror,
que os primeiros dias ſenti na companhia
dos homens diſſolutos; e agora, que já me
envergonho de vellos, como me tirais a mais
preciſa companhia? Ah que parece que zom-
bais cruelmente de meus trabalhos! Oh in-
feliz mocidade, que entre perigos ſe paſſa!
E conſentem os Deoſes em huma vida enfa-
donha, para apurar merecimentos? O' bar-
bara eſtrella, fazei que eu deſcance já na
ſepultura; pois que aſſim como a cerva fe-
rida corre com a força da ſua dor, levan-
do comſigo o dardo, que a atormenta, ſem
allivio levarei impreſſa na alma a juſta cau-
ſa do meu pranto; mas huma, e mil vezes
tornarei a pedir-vos, que me livreis por qual-
quer modo do ar, que he corrupto pelos
vicios, pois são males, que ſe tem introdu-
zido para opprimir o Mundo, onde os en-
fraquecidos, que ſe envergonhão da virtu-
de, querem tomar o lugar dos conſtantes,
pa-
228 AVENTURAS
ra que a virtude não creſça. Com eſtas
juſtas conſiderações eſtava Bellino naquella
praia continuamente olhando para a rocha,
em que havia acabado a ſua conſolação; e
obſervando que ſobre a meſma eſtavão dous
pequenos vultos, que ſe movião, ora lhe pa-
recião, enganos da viſta, ora queria perſua-
dir-ſe, que não erão corpos, que formava
a ſua fantaſia, mas ſim realidades o que ob-
ſervava; e vendo que aquelles penedos ti-
nhão eſtado mais deſcubertos de agua, e que
a enchente lhe fazia parecer de cada vez
mais pequenos os objectos, communicou o
ſeu reparo a algumas peſſoas, que alli ain-
da ſe achavão, huns chorando pelo que ha-
vião perdido, e outros conſolando-os, pois
que tinhão eſcapado com a vida; e tanto que
aſſentárão que era gente, que para alli ar-
rojarião as aguas, corrêrão afflictos a buſ-
car quem os ajudaſſe a acudir aos que eſta-
vão vendo, como ſe lhes chegava a morte;
e em huma lancha ſe aventurárão a ſahir,
lutando com as ondas; e ſuppoſto que o ven-
to, que cauſára aquella deſgraça, eſtava mui-
to mais brando, os mares eſtavão ainda tão
levantados, que muitos tiverão por temeri-
dade a reſolução de irem ſalvar aquelles,
com o perigo de ſe perderem todos; pelo
que ſó quatro ſe animárão a irem com Bel-
lino a executar aquella acção de piedade, e
lou-
DE DIÓFANES. LIV. V. 229
louvavel deſprezo da vida: forão com gran-
de riſco; e quando com muito trabalho ti-
nhão vencido meia parte da diſtancia, já
temião perder as proprias vidas, e não te-
rem remedios os que intentavão livrar da mor-
te, porque os mares de cada vez mais ſo-
berbos cruelmente os ameaçavão, e os pene-
dos com preſſa hião acabando de cubrir-ſe
de agua: erão continuos os clamores, que
já ouvião, dos pobres afflictos, que de hu-
ma para outra parte andavão ſem ſocego,
pois a morte de cada vez mais ſe lhes avi-
zinhava com a enchente; o perigo dos com-
paſſivos de casa vez era maior, porque lhes
faltavão as forças para continuarem a ma-
near os remos. Não parecia Bellino dama
delicada; porque como robuſto ſoldado, a-
nimando os companheiros, ſe pegava com
incrivel valor ao ſeu remo, até que permit-
tio o Ceo, que abrandaſſem os mares; com
inexplicavel trabalho tirárão os afflictos da-
quelle lugar infauſto, porque o rochedo em
parte eſcorregava tanto, que não podião ſe-
gurar os pés; e em outras de muito ferido
das aguas tinha pontas agudiſſimas, e con-
chas de mariſcos, que os maltratavão. A-
chou-ſe Carpache, filho de hum dos que ſe
havião animado para ir tambem valer-lhes,
e o outro era hum gentil mancebo, chama-
do Albenio: voltárão todos para terra, e
com
230 AVENTURAS
com menor trabalho chegárão a deſembar-
car. Bellino, havendo já ſatisfeito à nobre
ternura de ſeu animo, tinha de allivio ſó a
parte, que á ſua mágoa accreſcentavão aquel-
les dous, pois lhes valêra, não valendo á
ſua dor, e ſem eſperança alguma chorava a
infeliz morte de Delmetra, a quem elle ha-
via conduzido áquelle naufragio, pois não
conſentira em ficar gozando em ſocego a
companhia da innocente Paſtora; e encoſ-
tado a hum tronco, junto ao qual deſcança-
va Albênio das fadigas, e ſuſtos, que tão
de perto lhe havião moſtrado a morte, com
lagrimas, e ſoluços moveo a compaixão de
Albenio, que intentado divertillo com al-
gumas hiſtorias, que o podião, conſolar, tam-
bem lhe perguntou os mais ſucceſſos, de que
ouvia lamentar-ſe, dos quaes não conſe-
guio mais, que ouvir huma limitadiſſima
parte, porque os ſuſpiros, e arrancos do co-
ração magoado não davão lugar a proferir
muitas palavras, pois quando a dor he in-
tensa, a mudez melhor a explica; e vendo
que ſe augmentavão as demonſtrações do pe-
sar, que no principio eſtiverão reprimidas
pelo paſmo, ſuſto, e deſacordo: He tal a
voſſa mágoa, (lhe diſſe Albenio) que já
tenho tomado nella huma grande parte; e ſe
não poſſo ſervir-vos de allivio, vos ſervirei
de companhia, ſendo de vós inſeparavel.
Não
AVENTURAS 231
Não poſſo admitir o que me offerece a voſ-
ſa bondade, (lhe reſpondeo Bellino) pois
me reſolvo a buſcar huma brenha, onde a-
cabe os meus triſtes dias. Não podereis con-
ſeguir (lhe replicou) que eu de vós me a-
perte, pois he impiedade grande o deſam-
parar hum triſte, deixando-o entregue aos
eſtragos da pena; e aſſim vos digo, que eu
eſtou de animo de ſoffrer os impulſos da voſ-
ſa repugnancia, com tanto que de vós me
não aparte; vede para onde determinais ca-
minhar, ou ſe quereis ficar aqui. Como ve-
jo que a voſſa porfia he tão nobre, (re-
ſpondeo Bellino) ſerão ſem effeito as de-
monſtrações da minha repugnancia; eu de-
termino continuar por eſtas praias buſcan-
do o cadaver, de quem he filha a minha
mágoa, porque ao menos poſſa beijar-lhe
a generoſa mão, e dar-lhe ſepultura; e va-
mos, que eu aſſim louco, e perdido, nem
mais terei hum leve penſamento de alegria.
Partírão ambos, e a poucos paſſos lhes
anoiteceo, ficárão naquellas praias, em que
toda a noite Bellino ſuſpirava, e Albenio
diſcretamente o procurava conſolar, lem-
brando-lhe (com hiſtorias muito proprias)
quanto ſomos ſujeitos á inquieta rota da for-
tuna, ou véla, que buſca as mudanças do
tempo; e que aos magnanimos não apoucão
infortunios, nem affligem deſgraças, vendo
Q com
232AVENTURAS
com fortaleza laurear-ſe-lhes o ſoffrimento
com o aplauſo dos prudentes: quando os
principiou a favorecer a luz da Aurora, con-
tinuárão o ſeu caminho.
Paſſados ſete dias, lhes diſſerão humas
ſerranas, que alli tinhão saído os cadave-
res de humas mulheres, que pelos ſinaes en-
tendeu Bellino ſeria uma ſua amada mãi,
o que novamente chorou; e determinando
ir ao lugar, onde ſe haviam ſepultado para
ſeu inteiro deſengano, não o conſentio Al-
benio, ponderando-lhe o eſtado, em que já
eſtarião. Deſperſuadido deſta diligencia, e
ſem determinações da parte para onde iria,
continuou a prolongar-ſe por aquellas triſtes
praias, ſem eſperança alguma de allivio; e
não ſe animando a deixallas, ſe demorou
dezeſſete dias; e em huma noite, deſ-
canſando ſobre a arêa, quando a mágoa lhe deſ-
pertava mais os ſentidos, pois ſempre affli-
cto converſava com a ſua pena, lhe parecia
ouvir ao longe huns laſtimoſos gemidos.
Communicou o ſeu reparo a Albenio, e to-
da a noite vacillárão, ſem aſſentarem don-
de vinhão: corrião para a parte da terra a
ver ſe os ouvião, como de mais perto, co-
nhecião que mais ſe lhes retiravão: conti-
nuavão para huma, e outra parte da praia,
igualmente lhes parecia que ſempre ouvião
os triſtes ecos: e ſem ſaberem formar juizo,
ſó
DE DIÓFANES. LIV. V.233
ſó aſſentavão que vinhão da parte do mar,
o que tinhão por impraticavel; e com a luz
da manhã, applicando mais diligencias
para verdadeira averiguação, fizerão reparo,
que alli havião ao longe varias ilhas; mas
como erão diſtantes, não podião di-
viſar, ſe havia nellas couſa alguma, e jun-
tamente lhes parecia que já não ouvião as
ditas vozes, ſem o reparo de que eſta falta
ſuccedia, quando totalmente tinha acalma-
do o vento, o que não obſtante, ſe reſolvê-
rão a demorarem-ſe alli aquella noite, para
ſe certificarem ſe fora illusão, e as tornárão
a ouvir ainda antes da noite; porque refreſ-
cando a tarde, o brando Favonio as tornou
a conduzir aos ſeus ouvidos; porém ſe lhes
repreſentavão mais diſtantes, talvez por ſer
mais brando o vento. Aſſim paſſárão com
igual confusão; e ouvindo o meſmo todo o
dia ſeguinte, ſe determinárão a buſcar mo-
de aportarem áquellas ilhas, pois lhes
não ocorria que de outra parte pudeſſem
naſcer as triſtes vozes. Os rúſticos daquella
montanha tinhão por delirios o que dizião
terem ouvido; e muito mais, que eſperaſſem
achar gentes em taes lugares, onde dizião
não haver coiſa alguma, em que ſe alimen-
taſſem mais viventes, que algumas aves, que
eſperavão o que lançava o mar; mas de to-
da a ſorte reſolutos forão em huma embar-
Q ii ca
234AVENTURAS
cação, que remedeárão, como pudérão, e
na primeira Ilha não achárão peſſoa alguma.
Indo a portar ás outras com igual diligen-
cia, quando já quaſi vião que fora inutil o
ſeu trabalho, (na penultima, que faltava
de averiguar) achárão a Delmetra; e hum
homem, que parecia eſtar dando os ultimos
alentos, tambem o trouxerão para terra, on-
de em poucos minutos faleceo. Os monta-
nhezes, que eſperavão na praia, zombando
daquelle delirio, admirárão tão raro ſucceſ-
ſo, e ajudárão a dar ſepultura ao cadaver,
ſendo as honras funeraes o cantar daquelles
ruſticos, que com funebres canções o con-
duzírão á ſepultura. Quando Delmetra en-
trou em ſi, diſſe: Filha querida, eu já não
eſperava mais golpes, que o que em mim
eſtava para executar a morte. He poſſivel
que torno a ver-te, quando tinha por certo
que acabáras no naufragio? Não ſei dizer-
te, como me ſalvei em tão horrendo eſtra-
go, porque deſde o inſtante, em que deo a
embarcação contra a rocha, até que me vi
ſobre aquella Ilha, tive perdido o acordo,
ou a memoria, entendo que pegados a hum
remo fomos arrojados áquele lugar; dous
homens, que he hum o que ſepultámos a-
gora, e outro, que logo faleceo, achando-
ſe com huma ferida na cabeça, e com a
maior pena o vi acabar ſem remedio, ali-
men-
DE DIÓFANES. LIV. V. 235
mento, ou conſolação alguma; as aves de
rapina forão logo ao frio cadaver, e lhe co-
mêrão os olhos, e mais carne do roſto, e
mãos, pois não fazião caſo da pouca força,
com que eu as enxotava; e aſſim fui vendo
com indizivel horror tirar os galhardetes da
gentileza, e ficar em arvore ſecca e horren-
da figura da morte; já me ſentia ſem animo
para aquelle, que eu penſava ſer o ultimo
trabalho da minha triſte vida, e quaſi des-
falecida dizia ao infeliz, que me acompa-
nhava: A ira dos Deoſes não tenho ainda
applacado com as lagrimas de outros peza-
res, que ſempre chóro, pois caſtigão minhas
maldades com a viſta deploravel deſſe hor-
rendo eſpectaculo; e não ſei ſe o que eſta-
mos vendo com tanto pavor, e deſengano
da vida, nos accuſará de negligentes; e poſ-
to que nos faltão as forças, e inſtrumento
para abrirmos ſepultura, trabalhemos como
pudermos, para que ſe execute eſta acção
de piedade, que os Ceos nos hão de con-
fortar, já que não forão ſervidos, que aca-
baſſemos no fatal conflicto, para que em ca-
da minuto de vida ſentiſſemos a mais dila-
tada morte; e lembrando-me a cauſa de meus
cuidados, dizia: Ai, filha querida, conſor-
te amado, que occulto arcano he eſte, que
dilata a mais deſgraçada vida, ſe enfraque-
cido o peito já não póde tolerar a força de
tan-
236 AVENTURAS
tantos golpes? Com eſtas, e outras ſeme-
lhantes vozes ſe explicava a minha pena; e
bebendo lagrimas, fui trabalhando na ſe-
pultura, como pude. O triſte companheiro,
que de ſusto julgo havia emmudecido, ten-
do o pállido ſemblante cadaverico, e os o-
lhos sempre eſpantados, explicava a ſua bar-
bara dor com ações, que me atormenta-
vam; porque ſendo ſujeito a eſtar algum tem-
po, como em lethargo, quando tornava a
ſi, levantava os olhos ao Ceo, e ora punha
às mãos na cabeça, ora batia no afflicto
peito, e aſſim arrancava das entranhas os
mais ardentes ſuſpiros. Dous dias gaſtámos
em abrir a ſepultura, o corpo já com ter-
rivel fetido, e grande multidão de bichos,
que tambem eſtavão nos lugares, que havião
eſcamado as rapinas, com grande trabalho
o ſepultamos; e recordando eu o noſſo ulti-
mo fim, via como ſe arruinão os edificios
da vaidade naquele hediondo padrão, em
que melhor eſtavão gravadas as letras do
deſengano; os dias paſſava, clamando aos
Ceos; as noites com medo inexplicavel, ou-
vindo os bramidos dos monſtros marinhos;
e os ſoberbos roncos das ondas, que quan-
do alli quebravão os montes da criſtallina
eſpuma, me fazião temer a ſua ſoberba; e
quando ouvia o ſevero rumor, que fazião
ao longe, ſe renovava a minha ſem igual
ſau-
DE DIÓFANES. LIV. V. 237
ſaudade; a fome nos obrigava a comer to-
da a caſtra de bichos, que lançava de ſi o
mar, ſem mais eſperança de allivio, que o
que nos promettia a morte; então conheci
ſer aquelle trabalho o maior de todos, pois
quaſi tinha extincto a lembrança dos que no
primeiro dia chorava, queixando-me do fa-
do, que nos dividíra, e ultimamente ſó me
lembrava a feia preſença da morte, que ao
meſmo tempo, que a deſejava para termo
de tão cruel deſamparo, a temia como ulti-
mo eſtrago do meſmo tempo; e á propor-
ção, com que o gritar me enrouquecia, per-
dia tambem as forças; até que a ſabedoria
dos Numes, que aſſiſtem aos viventes, e a-
codem aos que deſampara a fortuna, te inſ-
pirou o valer-nos, amada filha, meu unico
remedio, e alento da minha eſperança.
A eſtas palavras, com que ſe explica-
va a alegria de Delmetra, apertando nos
braços a bella filha, que reparava em que
o deſacordo, e alvoroço da mãi, quaſi fa-
zião conhecer aos circumſtantes o ſeu fingi-
mento: Conſolai-vos, Senhora, (lhe diſſe)
que aqui eſtá o voſſo querido filho Bellino,
já não ha cauſa para os delirios; eu ſou o
meſmo, que ſempre vos aſſiſtirá, em quan-
to o permittirem os Deoſes: deſcançai para
podermos continuar a buſcar a deſejada pa-
tria, porque a conſtancia no emprehender
he
238 AVENTURAS
he coſtumada a obrar prodigios; mas ſe a-
caso vos determinardes a deſprezar a pouca
diſtancia, que nos convida, aqui poderemos
paſſar os ultimos dias, gozando amavel
ſocego deſtes deſertos; e ſuppoſto que co-
nheço ſer aqui a paz mais permanente, de-
ſejára tambem que não perdeſſemos o fru-
to de tão agigantados trabalhos, que tanto
tem adiantado a noſſa eſperança. Não ſei,
filho, (lhe reſpondeo Delmetra) ſe caſti-
gam os Ceos a noſſa porfia, pois vemos que
com deſventuras atalhão os noſſos paſſos.
Antes com infortunios (lhe diſſe Bellino)
coſtumão experimentar os mortaes para os
fazerem dignos de felicidades. Como
foſtes quem agora me deo vida, (diſſe Del-
metra) e eſtou paga daquella, que em mim
tiveſte, governa os meus paſſos, que eu ſe-
guirei o que te for inſpirado. Os montanhe-
zes ouvião admirados, eſtes diſcurſos, e Al-
benio mudamente obſervava as bem ajuſta-
das palavras da mãi, e do filho, e quanto
ſe fazia amar o agradavel ſemblante de Bel-
lino; e deſejando não deixar a ſua compa-
nhia, lhe diſſe: já que vos tenho acompa-
nhado eſtes dias, e tambem vos devo a vi-
da, ſou obrigado a caminhar comvoſco, e
ſeguir os voſſos paſſos. Não queirais (lhe
reſpondeo Bellino) participar de noſſas deſ-
graças; os noſſos paſſos vai ſempre contan-
do
DE DIÓFANES. LIV. V. 239
do o fado, e não ſerá juſto que tambem to-
me parte nos voſſos eu ſou o que devo
confeſſar-vos toda a conſolação, que aqui
tenho, pois me tirou a voſſa companhia das
mãos da exaſperação; e para vos ſer agra-
decido, não conſentirei que nos acompa-
nheis, para não tomar parte nas noſſas in-
felicidades. Não temo (lhe reſpondeo Albe-
nio) os rigores da ſorte mais adverſa, por-
que dos maiores já eu tenho larga experien-
cia, e me recolho para hum paiz, que não
he daqui diſtante; e quando chegar ao lu-
gar, que ſeja oppoſto ao voſſo caminho,
ſerei obrigado a deixar-vos. Não poderemos
fazer caminho continuado, (lhe diſſe Del-
metra) nem talvez proprio para os voſſos
intentos, porque nos havemos de demorar,
onde nos convidar a ſoledade com as ſom-
bras para o deſcanço; e não ſó vamos fu-
gindo á deſgraça, que nos ſegue, mas tam-
bem como delinquentes nos retiramos dos
que nos buſcão; eſte ſegredo vos confia a
minha agradecida vontade, pois nos convem
não levar mais companhia, ou rumo, que o
que o nos permittirem as eſtrellas; mas ſem-
pre levaremos na memoria a bondade, com
que nos quereis acompanhar. A eſtas pala-
vras cedeo Albenio, deſperſuadido de que
o admittiſſem na ſua companhia, e no
dia ſeguinte ſe deſpedírão, continuando
Del-
240 AVENTURAS
Delmetra, e Bellino a ſua trabalhoſa jor-
nada.
Em poucos dias chegárão a huma gran-
de povoação; e ignorando onde eſtavão,
lembrados do que lhes havia ſuccedido em
Eſparta, ſe houverão com a maior cautela;
mas não baſtou todo o cuidado para evitar
o que lhes falta de padecer. Junto ás mu-
ralhas deſcançavão, e não paſſando dalli,
entendião livrarem-ſe das gentes; mas como
havia grande cuidado, e cautela em averi-
guar quem entrava naquella Cidade, chegá-
rão duas ſentinellas para reconhecellos; e
julgando ſer Bellino deſertor, o levárão lo-
go á prizão, em que ficou para deſcubrir
que erão; donde vinhão, e que querião.
Delmetra com lagrimas dizia eſtavão deſ-
cançando, e que lhe ſoltaſſem Bellino para
poder continuar a viajar, ſem fazer alli de-
mora; e como ſe não movião a tão juſtas
ſupplicas, lhe diſſe Bellino: Vós me haveis
reduzido a eſta prizão injuſtamente, pois
não advertis que aos que vão correndo o
Mundo, não deveis caſtigar, porque igno-
rão os voſſos coſtumes, e por iſſo nós deſ-
cançavamos áquella ſombra ſem malicia; eu
ſou filho de Delmetra, vimos de hum paiz
amigo voſſo; e ſe ainda aſſim nos quereis
maltratar, he mais abominavel a voſſa por-
fia, e ſem razão, que inſupportavel a noſſa
deſ-
DE DIÓFANES. LIV. V. 241
deſgraça, e trabalhos. Onde nos levareis,
que os juſtos Deoſes não vejão a noſſa in-
nocencia? Onde iremos, que com juſta cau-
ſa nos não poſſamos queixar da voſſa iniqui-
dade? Nós não proſeguimos a noſſa pere-
grinação, mas vós caminhais para os caſti-
gos, que eſperão as injuſtiças. A eſtas pala-
vras enfurecidos, tratando-o muito mal, o
deixárão na prizão, onde mais ſentia o ſuſ-
to de Delmetra, que o proprio incommo-
do; ainda que tinha por hum novo genero
de tormento o eſtar entre hum ajuntamento
de malfeitores, dos quaes erão as acções,
e palavras indicios de ſuas depravadas vidas;
pelo que chegou a temer que conheceſſem o
ſeu disfarce; e reduzida a huma pena,
e conſternação, ſe reſolveo a dizer ao Mi-
niſtro Arnezio: Bem quizera eu, senhor,
conſervar hum ſegredo, que me tem defen-
dido da maldade dos homens; porém vejo-
me preciſada a eſtar com eſtes, que não temem
a juſtiça, não amão os Deoſes, nem reſpei-
tão o Soberano, já perdêrão os bens, e não
deſejão a vida; e como da companhia dos
máos se faz contagioſa a maldade, receio
demorar-me aqui; e aſſim ſabei que eu naſ-
ci a que não pareço, que hum naufragio me
trouxe aqui, he que a mulher, com quem fui
achada, é minha triſte mãi, que alli deſ-
cançavamos, para no dia ſeguinte continuar-
mos
242 AVENTURAS
mos a noſſa jornada; aſſim vos peço, que ſe
quereis demorar-me na prizão, me tireis da
companhia deſtes, a quem temo imitar, a-
inda que ſeja mais eſcura, e eſtreita outra
qualquer, para onde me mandeis. Como he
tão nova (lhe reſpondeo Arnezio) a idéa,
com que me intentas perſuadir, não devo
admittir a tua ſúpplica. Vede, Senhor, (re-
plicou Bellino) que não pretendo eſcuſar-me
ás averiguações do fim, que nos trouxe, pois
ſó me afflige, que ſe me faça preciſo ouvir
a eſpeculação de toda a caſta de maldade
entre rebeldes, e malfeitores. Já Arnezio
voltava, fazendo pouco caſo, quando Belli-
no com mais reſolução: Ouvi-me, Senhor,
(lhe diſſe), e me valha a voſſa compaixão:
Eu ſou huma mulher deſgraçada, que me
vali de veſtido improprio para viajar com
menos perigo; não permittião os Deoſes,
que vós reveleis a peſſoa alguma eſte ſegre-
do, nem me deixeis entre culpados e per-
verſos: ampare a voſſa compaixão os meus
bens naſcidos ſentimentos, e ſe vos inſpire
o meu reſguardo, e a minha liberdade pa-
ra conſolação de quem mais afflicta me eſ-
pera. Arnezio ouvindo tão ajuſtadas refle-
xões, lhe diſſe paſſaria para ſua caſa (o
que logo ſe executou), onde ſeria aſſiſtida
com o preciſo, em quanto ſe não determi-
nava a sua ſoltura. Delmetra foi em ſeu ſe-
gui-
DE DIÓFANES. LIV. V. 243
guimento, e ficou inſeparavel da porta da-
quella caſa para onde a recolhêrão. Arne-
zio, que ſó ſabia que o gentil Bellino era
a beliſſima Hemirena, (ainda que ignora-
va eſte nome, e mais prerrogativas delle)
perſuadido de huma violenta paixão, huma
tarde, em que já a vontade perdida de viſta
o entendimento: Adorada Senhora, (lhe diſ-
ſe) eu ſacrifico á tua belleza o dominio de
meu alvedrio, e ſerei com grande exceſſo
ſatisfeito, ſe me não negares a tua benigna
attenção. Bellino com ſeveridade, e arro-
gancia lhe reſpondeo: Os voſſos ſacrificios
já mais ſerão bem acceitos, nem podereis
deſculpar para com os Ceos o haver aſſim
abuſado do ſegredo, que vos confiei, não
como a homem fragil, mas sim como a quem
ſó deve empregar-ſe em incenſar os altares
da Juſtiça; não vos demoreis em ver-me,
porque me ſerá menos violento o viver com
os máos, que eſtão em caminho de pagar a
ſua culpa conhecida, que com os que fingin-
do rectidão, os reveſte a hypocriſia. A eſ-
tas palavras ſe apartou dalli Arnezio triſte,
e confuſo; no dia ſeguinte, ainda que lhe
não fez mais confiſsões do ſeu neſcio ren-
dimento, para fugir daquelle perigo, ſe
lançou Bellino de huma janella com tanta
felicidade que ſem receber moleſtia algu-
ma, encontrando-ſe logo com Delmetra,
(que
244 AVENTURAS DE DIÓFANES.
(que era inſeparavel daquellas paredes) pro-
digioſamente ſahírão da Cidade; e conti-
nuando a caminhar com cautela, e cuidado,
davão graças a Minerva, a quem attribuião
aquelle admiravel ſuceſſo.
FIM DO QUINTO LIVRO.
AVEN-
AVENTURAS
DE
DIÓFANES.
LIVRO VI.
SUMMARIO.
COntinuando Clymenea, e Hemirena
a caminhar ainda como Delmetra,
e Bellino, conforme coſtumavão, ſe reco-
lhêrão a hum boſque, onde achárão a Dió-
fanes, que ſe lhes deo a conhecer, e com
inexplicavel alegria continuárão a via-
jar juntos; e eſtando para concluirem as
ſuas jornadas, ſe encontrárão com Arneſ-
to, que fazendo completo aquelle goſto,
fo-
246 AVENTURAS
forão todos para Thebas. Os Thebanos
com infinito prazer feſtejárão os ſeus So-
beranos, e Arneſto ſe recolheo para De-
los com ſua conſorte Hemirena, que com
iguaes demonſtrações de affecto, e conten-
tamento foi recebida, e principiárão nos
deſcanços a colher os frutos de tão agi-
gantados trabalhos.
TENDO caminhado Bellino, e
Delmetra com o vagar, que
requeria declinação de for-
ças, que lhe fazião ſentir os
annos, e trabalhos, pois ou já
violento o eſpirito o animava,
ou as deſtruidas forças não a deixavão an-
dar mais, que muito poucas horas do dia,
huma tarde ſe recolhêrão a hum delicioſo
boſque, onde determinavão demorar-ſe, ven-
do-o agradavel, e ſolitario. Sentadas junto
a huma fonte, que docemente corria, re-
cordavão ſeus paſſados infortunios; depois
de noite ſentírão hum rumor, como que da
eſpeſſura ſahia uma grande féra; ouvírão
huma voz ſuave que cantava os louvores
de Ceres, e Pomona, que fertilizão a ter-
ra; as glorias de Aſtrea, que ſuſtentára a
juſtiça; a origem de Minerva, que com ſua
ſabedoria vinha a inſtruir os mortaes; os
cul-
DE DIÓFANES. LIV. VI. 247
cultos de Diana, que caſtigou a Acteon; e
os horrores do Reino de Plutão; e queren-
do fugir de hum vulto, que vinha buſcan-
do a fonte, forão ſentidas, e lhes diſſe a-
quella fantaſma com voz alta, e rouca: Quem
ſois, que a eſta hora vos atreveis, a entrar
na minha morada ſombria? Não ſe animá-
rão a reſponder-lhe, porque de medo quaſi
perdião os ſentidos, pois entre as ſombras
o mais que podião ver era um vulto preto,
que lhes parecia ſer de eſpantoſa eſtatura,
e que em huma das mãos trazia hum curvo
cajado; depois de hum pequeno intervallo,
continuou em cantar os ſuſtos de Galatea,
que deſdenhava a Polyfemo; a deſgraçada
morte de Pocris, a quem Zefalo tirou a vi-
da, e os receios de Siques, tendo em ſeus
braços Cupido, e finalmente invocava o po-
der de Jupiter, queixando-ſe dos homens;
aſſim chegou á fonte, e encoſtando-ſe a hu-
ma pedra, adormeceo.
Quando o principio do dia deſterrava
os horrores da noite, vírão (daquella diſta-
ncia para onde ſe retirárão) hum homem to-
do cuberto de pelles de urſos, menos os bra-
ços, que tinha nús, creſpa, e branca a
barba, e de aſpecto venerando: muito de-
vagar chegárão a vello; e quando obſerva-
vão a muita ſemelhança, que tinha com An-
tionor, deſpertou, e aſſustando-as com o re-
R pen-
248 AVENTURAS
pente de ſe erguer, não as deixou fugir; e
fazendo hum pequeno reparo em Delmetra,
lhe diſſe: Eſpoſa amada, que favoravel aca-
ſo te conduziu aos meus braços? Graças a
Jupiter ſoberano, que chego a ver-te ſem as
prizões, que me obrigavão a negar-me ao
teu conhecimento. Delmetra emmudecida de
goſto ficou por alguns minutos, ſem que a
ſua alegria ſe explicaſſe, e ſó com demonſ-
trações de immenſo prazer ſe saudavão
os amantes conſortes, até que Bellino, lançan-
do-ſe aos pés de Antionor, ou Diófanes:
Aqui tens, Senhor, (lhe diſſe) a tua filha
infeliz, que os Deoſes compaſſivos, depois
de tão repetidos trabalhos, encaminhárão
impenſadamente á tua preſença. Diófanes tão
goſtoſo, como admirado, advertindo ſer He-
mirena o chamado Bellino, parecia que em
ſeu peito não cabia prazer tão deſmedido;
e olhando para a conſorte, e para a filha,
moſtrava não dar credito á grande conſola-
ção, que estava recebendo. Depois de dar
graças aos Ceos, por tão eſpecial beneficio,
diſſe a Hemirena, lhe contaſſe os ſuceſſos
de ſua peregrinação. Ao que reſpondeo até
o tempo, que na gruta fez liga com Cly-
menea ignorando os vínculos da natureza.
Clyminea lhe diſſe deſejava muito ſaber,
como ſe tinha livrado da morte? Já ſabeis
(lhe reſpondeo Diófanes) os trabalhos, que
pa-
DE DIÓFANES. LIV. VI. 249
padeci por acudir ao bem público, e boa
adminiſtração da juſtiça. Tambem não igno-
rais quaes ſejão os inconvenientes, que ſe
ſeguem a ſer o Rei frouxo, e de animo in-
conſtante; os Deoſes me livrárão da morte
por hum guarda, que affectando compaixão,
me poz em liberdade, jurando-lhe eu pelas
frias aguas da Estygia não ſer viſto, e guar-
dar ſempre o ſegredo, de como tivera liber-
dade naquelle Reino. Paſſando ás vizinhan-
ças daquelles dominios, huma freſca madru-
gada, querendo refrigerar os ardentes effei-
tos do canſaço, cheguei a huma fonte, e
juntamente huns serranos, que fallando em
mim, ſem me haverem nunca viſto, me con-
tárão a minha meſma hiſtoria; tendo eu
levado impreſſo na memoria aquelle, que
me livrára com tão rara compaixão, cheguei
a conhecer que tudo forão máquinas da mal-
dade, para ſe não averiguarem as falſida-
des, com que me querião tirar a vida; e co-
mo agora já nos favorecem tanto os altos
Deoſes, parece que com eſte mimo querem
moſtrar-nos, que ſe applacou a ſua indigna-
ção.
Aſſim continuou Diófanes os mais dias,
que tomárão para o deſcanço, pois com a
ſua agradavel converſação divertia a con-
ſorte, e filha, por quem tanto havia ſuſpi-
rado, e as fazia ouvir os delicioſos frutos
R ii dos
250 AVENTURAS
dos bons documentos, e gozar com alegria
o mimo das flores: entoavão ſuavemente as
tres vozes os louvores da primeira cauſa de
todas as couſas. Clymenea lhe contou os tra-
balhos, de que fora perſeguida no largo
tempo da ſua auſencia, dizendo: já em Co-
rintho ouviſte meus eſtranhos infortunios,
e agora direi, como depois de Hemirena me
perſuadir a deixar as brenhas, fiámos as vi-
das á ruſtica ſinceridade, e fic´smos em hu-
ma aldea, ſervindo a huma serrana, que me
encarregou o cuidar de ſua mãi velha para-
lytica, e a Hemirena os ſeus rebanhos. Alli
recordámos quanta ſemelhança tem com os
bemaventurados campos do deſcanço o ſau-
dAvel retiro das montanhas; a maior parte
daquelLes rUſticos vivião de ſeus gados, e
colheitas, e erão de genios dóceis, compaſ-
ſivos, livres de malicia, e naturalmente a-
legres; as mulheres tinhão amavel ſincerida-
de, erão honeſtas, e cuidadoſas. A' propor-
ção do conhecimento, que, hião tendo de
noſſos genios, creſcia o affecto, e reſpeito,
com que nos tratavão, e em nós a compai-
xão de ſua mal empregada ruſticidade, por-
que, deſejavão acertar, e não era invencivel
a ſua ignorancia; as horas, que são deſti-
nadas para o deſcanço em alguma parte do
dia vinhão buscar-me para huma ſombra
perto da minha aſſiſtencia, onde as Paſtoras
can-
DE DIÓFANES. LIV. VI. 251
cantavão as mais innocentes canções, e os
Paaſtores alegremente proaſeguião em tocar
os aſeus ruaſticos inaſtrumentos entre as flores,
e fragrancias, que diffunde a primavera, aaſ-
aſim me liaſonjeavão, para que os inaſtruiaſaſe
no conhecimento do quanto he feliz a vida
ruaſtica; huns discorrião aſobre o Favonio a-
gradavel á vida humana; outros com termos
proprios, e innocentes figuravão as fadigas,
de quando a terra aſequioaſa eaſpera que o in-
verno a aſatisfaça; outros com mais engenho
diaſcorrião nos frutos, com que o outono en-
xuga o aſuor dos lavradores; e outros com
mais graça aſe lembravão, de como no in-
verno aſe recolhião molhados, e deaſcançan-
do ao fogo, cantavão em desafio; assim se
regozijavao com o goaſto do que he mais ad-
miravel nas obras da natureza. Eu inaſtruia
as donzellas a contemplarem na modeaſtia,
e recato, dizendo aſer nellas tão igual a glo-
ria da aſezudeza, quanto prejudicial, e deaſ-
prezavel qualquer deaſcuido; ás ou-
tras advertia, que a mulher, que mais eaſti-
mação merece, he a que menos falladora aſe
oaſtenta; porque os meaſmos, que celebrão
as graças, e deaſembaraço, as murmurão de
chacorreiras; e que he tão delicada a noaſ-
aſa gravidade, que não aſó devemos conaſer-
valla nas obras, e em não fallar o indecen-
te, mas em não admittir a converaſação do
il-
252 AVENTURAS
illicito. Acabado eaſte melhor divertimento,
hião continuar o aſeu trabalho, e eu me re-
colhia a ver minha enferma. Hemirena na
freaſca madrugada aſahia com aſeus rebanhos,
e cantando aſuavemente, louvava a aſabedoria
ditoaſa, que interrompeo a gloria dos delei-
tes, as virtudes dos heroes, e a aſublime gran-
deza dos Deoaſes; accudião a ouvilla as Paaſ-
toras, que tambem cantavão com agradavel
aſingeleza, e as inaſtruia para entenderem as
poezias heroicas, em que aſe exercitava.
A bella Atilia, filha de Leda, a quem
aſerviamos enganada pela gentileza da que
aſuppunha aſer Bellino, lhe communicou a-
mantes penaſamentos, determinando com el-
le aſeus deaſpoaſorios; e como eu não era aſa-
bedora daquelle disfarce, Hemirena me com-
municou o que aſe lhe havia dito, dizendo,
que recuaſava a acceitação daquelle favor,
porque não queria aſujeitar a liberdade aos
contínuos cuidados do conaſorcio; e que pa-
ra aſe livrar do perigo, a que podia con-
duzillo a affecto de Atilia, aſeria convenien-
te fazer hum retiro repentino; o que execu-
támos logo aquella noite, deixando o ama-
vel aſocego, antes que o amor tomaaſaſe mais
forças.
Com os coaſtumados incommodos de
fugitivos fomos até Eaſparta, onde Hemire-
na, por entrar em hum jardim, foi lavada
pa-
DE DIÓFANES. LIV. VI. 253
para ſervir na campanha dos Corinthos, a
quem os Eſpartanos ajudárão antes do ſitio
(que os fingimentos ainda quando são pre-
ciaſos, não deixão de dar trabalho) daqui
por diante ſabes o que paſſámos, até que
fomos prezos. Eu te não tinha conhecido;
e quando Hemirena me diſſe quem eras, o
que ella tambem não ſaberia, ſe lho não
diſaſeſſem os barbaros Miniſtros de Corintho,
novamente chorei os noſſos infortunios; e
Hemirena conhecendo as maiores razões,
que lhe accreſcião para valer-me, conſeguio
por hum escravo a minha liberdade; paſſá-
mos alguns dias ſem deſcanço, nem allivio,
chorando ſempre a tua morte; embarcámos
com o projecto de buscarmos a patria, pois
já não tinhamos eſperança de que tu nos
buſcaſſes; e como por ter eſtado Hemirena
em Athenas era preciaſo que tiveſſemos gran-
de cautela, faziamos aquelle embarque pa-
ra mais depreſſa fugirmos aos cuidado, e ſuſ-
to, com que alli deviamos eſtar; hum nau-
fragio me conduzio a hum lugar, onde per-
dia a eaſperança do ſoccorro; mas como He-
mirena havia eaſcapado, me tirou daquelle
aſitio infauſto, onde os eſqueletos da morte
erão fieis eſpelhos da minha pouca vida;
continuámos no antigo projecto; e quando
temiamos o que em ti ſe nos repreſentava,
e recordavamos os noſſos continuos infor-
tu
254 AVENTURAS
tunios, o conhecer-te parece que acabou de
affugentar a deſgraça.
Aſſim acabou Clymenea a ſua larga
hiſtoria, e Diófanes determinou com a Hemire-
na contaſſe o que lhe tinha ſuccedido, ao
que obedeceo com a graça, e ſuavidade,
com que coſtumava explicar-ſe; e muitas ve-
zes os pais com lagrimas de ſolido goſto
ouvião como a filha ſe deſembaraçara de lan-
ces apertadiſſimos. E acabando a narração
de tantos trabalhos, e combates: Os Deo-
ſes te defendêrão (lhe diſſe Diófanes) e tem
tomado á ſua conta a nossa felicidade; elles
já mais deſamparão aos que ſabem glorificar
as ſuas obras. Quem diſſera, que eſperando
eu neſte lugar ſolitario, que a cada inſtan-
te me chegaſſe o ultimo trago da morte,
me eſperava o primeiro prazer da minha
vida?
As lagrimas, com que a ternura expli-
cava o ſeu incomparavel jubilo, não davão
lugar a continuar com a expreſsão das pala-
vras; e com a mais elegante fraſe de hum
brando coração dizia com os olhos, o que
para expreſſar não chegão a dizer os termos.
Depois deſtes primeiros effeitos do goſto,
ſe lembrárão de Almeno, que falecêra no
combate, e do que haveria diſcorrido Ar-
neſto ſobre a ſua deſgraça; que não póde
haver tão ſeguro contentamento, que não
en-
DE DIÓFANES. LIV. VI. 255
envolva alguns pezares. Principiárão a ca-
minhar determinados a embarcar, quando
chegárão ao porto conhecêrão alli Albenio,
que tinhão deixado nas praias do naufragio;
fizerão ſociedade aquella noite, em que elle
fez as maiores expreſsões de contentamento
a Diófanes, contando-lhe como devêra a vi-
da ao que ſuppunha ſer Bellino, Clymenea,
e Hemirena, lembrando-ſe de ſeus traba-
lhos, ſuſpiravão por concluir aquella parte,
que lhes faltava para chegarem a Thebas.
Albenio, que não podia já encubrir os effei-
tos da mágoa, deixou cahir algumas lagri-
mas, dizendo: Não ſerião tão grandes os
voſſos trabalhos, não ſendo Thebanos; eu
chóro,e chorarei ſempre as memorias de
alguns; os voſſos infortunios poderão cor-
reſponder a menor parte dos meus, mas ſe-
rei contente, ſe os Deoſes ſe ſervem de meu
ſoffrimento. Diófanes cheio de curioſidade,
que originárão eſtas palavras, lhes fez di-
verſas perguntas: e vendo que Albenio lhe
não reſpondia a algumas, como o que o op-
primia o receio: Não temais (lhe diſſe)
ó Albenio gentil, o homem que em mim
vedes, pois ſou um deſgraçado, que indo
a ligar-ſe com hum dos do voſſo paiz, fui
reduzido a eſte eſtado; e como não foi tão
forte a pobreza, que pudeſſe arruinar aquel-
le animo, que ainda conſervo, ſe buſcais a-
bri-
256 AVENTURAS
bgo, eu juro aos Ceos amiparar-vos, ſe me
reſtituirem a Thebas. Albenio, mudando in-
teiramente de ſemblante, lhe diſſe: Vós ſe-
reis acaſo algum dos da comitiva do infeliz
Diófanes, que ha mais de quinze annos, que
foi entregue aos barbaros? e entendendo-ſe
que fora ſepultado nas cavernas do mar os
primeiro oito, não fizerão os ſeus vaſſal-
los e confederados mais que chorar a ſua
desgraçada morte; e depois de ſe paſſar to-
do aquelle tempo, havendo indicios de que
era vivo, (pelo que deſcubria a ſua alta
capacidade, ſabedoria, e virtudes) ſe espa-
lharão alguns a buſcallo. Eu ſou (lhe re-
ſpondeo) o meſmo Diófanes, que depois de
tantos annos de lethargo, torno a mim,
pois já me conſidero em Thebas, onde ha
muito poderia eſtar, ſe tivera noticia de
Clymenea, e Hemirena, que ſempre buſca-
va ſaber, onde as tinha a deſventura, para
me retirar, e tornar ſobre os Argolicos,
que mas deverião fazer entregar, ſatisfazen-
do-me como o proprio ſangue tão avultadas
injurias. Albenio, dando-lhe os braços, diſ-
ſe: Agora vejo as noſſas culpas forão
ſemelhantes na preſença dos Deoſes, ou eſ-
tes igualmente nos amão, pois com iguaes
trabalhos nos purificárão, para que viſſemos
renaſcer tambem aqui igual a noſſa eſperan-
ça de felicidade. Diófanes, que com a maior
ſuſ-
DE DIÓFANES. LIV. VI. 257
ſuſpensão ficou admirando o que podião con-
ter eſtas palavras, e não conhecendo Ar-
neſto pelo muito, que eſtava quebrantada a
ſua gentileza, que tambem destruião algu-
mas cicatrizes, deo lugar ao reparo de Al-
benio, que continuou, dizendo: Como não
conheceis o infeliz Arneſto? que depois de
haver chorado huma perdida eſperança, en-
tendendo (como todos) que a tormenta do
infauſto dia e voſſo embarque vos teria da-
do no mar a ſepultura, ſabendo que em Eſ-
parta havia quem dava noticias voſſas, e que
vos achaveis com voſſa familia em huma cruel
ſervidão, fui conſultar o luminoſo Deos pa-
ra ſahir a buſcar-vos, o qual me reſpondeo,
como Jupiter, quando ſahiſte paras Delos,
conforme ſe divulgou: Vai, que o ſilencio,
e a fortaleza te hão de dar a victoria. A-
juntando mais eſta cauſa a meus bem naſci-
dos extremos, para offerecer de cada vez
mais vivos ſacrificios, embarquei em Athe-
nas encuberto, indo para Eſparta; como
os que a impulſos de ſeu amor desprezárão
as vidas, deixárão as patrias, e abandoná-
rão Imperios: cheguei a Eſparta, onde ge-
mião os póvos opprimidos com huma cruel
fome, e peſte. Achava-ſe aquelle porto guar-
necido de gente, que indo logo ás embar-
cações, aliſtavão a todos os que vinhão por
ſeus nomes, e patrias; quando forão á mi-
nha,
258 AVENTURAS
nha, perguntárão, donde eu era o Antreo,
meu eſpecial confidente, que lhes diſſe era
Cretenſe; e principiando a deſgraça a to-
mar-me os paſſos com fatilidades, apenas o
ouvírão, tratárão de meu deſembarque, e
me levárão a Palacio com feſtivas demonſ-
trações, acompanhado de ſonoros inſtrumen-
tos, e innumeravel povo, que cheio de ale-
gria ſe regozijava, dizendo que eſtavão a-
cabadas as ſuas oppreſsões, pois diſſera o
oraculo, que a fome, e peſte ſe applacaria
com o ſangue dos que tinhão levado a peſte,
e que eſte enigma accuſava tres Cretenses.
Neſte cruel conflicto invocava eu continua-
mente os Deoſes, para que me inſpiraſſem
o ſalvar a vida.Cheguei á preſença da Ma-
geſtade, que com agradavel ſoberania me
diſſe:
Gentil Cretenſe, a quem os Ceos ha-
vião deſtinado para ſalvar ao meu povo, os
do teu paiz trouxerão peſte a Eſparta; e tu,
ſendo á manhã ſacrificado, nos deixarás ſau-
de, fazendo caminho para os Elyſeos bema-
venturados, pois foſte aqui mandado para
victima de tão importante ſacrificio. Não ſe
verificão em mim, Senhor, (lhe diſſe) os
Cretenſes, que eſperaveis, pois conforme o
que dizeis devem ſer tres. Os Deoſes (me
reſpondeo) coſtumão ſervir-ſe de que os
mortaes dem principio a abrandar a ſua ira;
e
DE DIÓFANES. LIV. VI. 259
e como ha dias, que obſervamos que os Ceos
com auſpicios felices annuncião o noſſo re-
medio, não venha a cobardia a diſputar-te
o merecimento. Vede, ſoberano Senhor,
(lhe repliquei) que os Deoſes não ſó ſenão
ſervem deſte ſacrificio, mas com elle ſerá
mais creſcida a ſua indignação, pois são o-
brigados a defender-me; e que não baſta
que hum aſtro me eſteja prognoſticando a
morte, e que outros muitos me vejão com
igual aſpecto, ſe ao meſmo ponto as Eſtrel-
las deſconhecidas com oppostas influencias
deſtroem os que á morte me conduzem. Qual
ſeria a gloria de grande Thebas, ſe não naſ-
cêra um Epaminondas, que ſoube melhor
livrar de oppreſsões ao ſeu povo; e ſe a-
caſo determinais que ſe execute eſſa cruelda-
de, vos juro pelos Deoſes benignos, que ſe
hão de conjurar contra vós os Ceos, e virão
ſobre vós os raios, que forjou Vulcano, pa-
ra que vejais que o meu ſangue não ſó não
applaca, mas augmenta a ſua ira. Eſtas pa-
lavras ouvio o Rei, como que lhe fazião
impreſsão, e mandou aos guardas, que me
recolheſſem: toda a noite ſe ouvírão vozes
acompanhadas de ſuaves inſtrumentos. No
dia ſeguinte me forão reveſtir para aquelle
acto, e me levárão para o Templo de Ju-
piter, onde já ſe achava innumeravel povo,
e o Sacerdote venerando, que devia fazer o
ſa-
260 AVENTURAS
ſacrificio. Em chegando o Soberano, não
pode Antreo ſupportar aquella violenta dor,
a que excita a verdadeira amizade, e lhe
diſſe: Não permittão os Ceoss, que a minha
culpa entregue á morte a Albenio. Eu fui,
Senhor, o que diſſe, que elle era Cretenſe,
eu por elle me offereço ao ſacrificio, não ſó
amigo, como Theſeo, mas por ter faltado
á verdade, conhecendo ſer a minha vida tão
inutil, quanto a ſua preciſa; e aſſim juro na
preſença de Jupiter ſoberano que não he
Cretenſe, como eu diſſe. Mandou-me per-
guntar, quem eu na realidade era? donde
vinha? e ſe haverião alli teſtemunhas da mi-
nha verdade? Ao que reſpondi em alta voz:
Sacro Nume, vós que ſabeis que não ſou
Cretenſe, que he preciſo que eu gyre o Mun-
do em baixa fortuna, ſem delicto algum,
que me accuſe, de que não devo deſcubrir quem
ſou, que a decencia ſoberana me enſina a
callar, a não temer à morte, e a ſoffrer
contratempos, acudi pela verdade, pois ſois
a melhor teſtemunha do que ſinto, e do que
digo. Todo o povo principiando a inquie-
tar-ſe fazia hum tal rumor, que muito me
affligia; o Rei, e o Sacerdote eſtavão ſuſ-
penſos, não ſabendo reſolver-ſe. Pouco a
pouco foi o Ceo cubrindo-ſe de feias nu-
vens, que parecendo determinavão acabar o
dia, com infinitos relampagos, e raios a-
mea-
DE DIÓFANES. LIV. VI. 261
meaçavão aquelles tyrannos. Vendo eu que
os Ceos ſe diſpunham a favorecer-me, diſſe:
Povo obſtinado, como não temeis as vozes
dos Ceos, que reprehendem o que determi-
na executar em mim a voſſa inqüidade? Eu
não ſou Cretenſe: mas ſe quereis tirar-me a
vida, acabai com meu tormento, pois tenho
menos que temer na morte, que vós nos no-
vos caſtigos, que ſentireis. A eſtas palavras
reſpondeu o Ceo com hum raio, o qual ca-
hindo pouco diſtante do Templo com as rui-
nas, ferio tres homens, que banhados em
ſangue, recolhêrão a elle, porque com bal-
bucientes vozes pedião que os levaſſem ao
Sacerdote. Sacro Miniſtro, (diſſe hum dos
tres moribundos) aqui tendes as victimas pa-
ra o ſacrificio, nós ſomos Cretenſes; e co-
mo nos negavamos a eſte acto de piedade,
principiárão os Ceos a executallo. Oh povo
feliz! que os Deoſes ſe empenhão pela tua
tranquillidade!
Aſſim rendeo aquelle os alentos, ten-
do já acabado os outros, que alli chegárão
com poucos veſtigios de vida. He inexplica-
vel a admiração, com que todos eſtavão em
caſo tão novo, que lhes accendia a curioſi-
dade de indagar quem eu era. Com feſtivas
demonſtrações me levárão outra vez a Pala-
cio, onde fiquei, e huns me veneravão, e
outros me contemplavão. No dia ſeguinte
me
262 AVENTURAS
me diſſe o Rei: He tempo, amigo, de me
confiares quem es? Eu ſou obrigado a fa-
vorecer os teus deſignios, e quero conſer-
var a tua amizade, pois vejo que os Deoſes
te ouvem, e os Ceos te defendem. Sou o-
brigado, senhor, (lhe reſpondi) a não re-
velar o ſegredo, que me tirou do meu paiz,
e eſpero que não duvideis da pezada obri-
gação, que mo recommenda. Deixou a em-
preza, e com demonſtrações iguaes me tra-
tou o mez, que alli me demorei.
As gentes reſpiravão já alliviadas, e
me reverenceavão, tendo as minhas reflexões
por predicções infalliveis. Quando vi que já
não exiſtia alli quem déſſe noticias voſſas,
me auſentei, embarcando para Argos; e era
tal a impaciencia, com que vos buſcava,
que em cada minuto me parecia ver extin-
to o ſoffrimento, que ha eſperanças, as
quaes nas dilações falſamente chamão enga-
noſas. Aſſim fui ſem temer oppoſtas con-
tradicções, como o Athenienſe Codro rom-
pia eſquadrões contrarios, buſcando a mor-
te; lembrava-me que não ſem myſterio o
meu Nune conſentíra, que me auſentaſſe da
patria, pois que as plantas ſe fazem admi-
ráveis tranſplantadas; e recordando a ſua
reſpoſta, que me recommendava o ſilencio,
e fortaleza, que ſe figura na pezada colum-
na, que nos ſanguinolentos aſſedios, antes
que
DE DIÓFANES. LIV. VI. 263
que ſe largue, ſe perde a vida, ſahi com a
mais conſtante reſolução. No ſegundo dia
de viagem huma denſiſſima nevoa nos oc-
cultou o rumo, e depois de alguns dias de
contínuo ſuſto deo a embarcação ſobre a a-
rêa, pois não houverão forças, diligencias,
ou clamores ao Ceo, que nos livraſſem da-
quelle perigo, de que ſó eſcapárão ſinco peſ-
ſoas. Quando vi que dos criados, que me
acompanhavão, ſó exiſtião Antreo, e Arci-
das, lamentava com a maior mágoa ter ſido
eu a cauſa de ſua deſgraçada morte, e que
talvez que os Deoſes já ſe offenderião de
meus amantes exceſſos. Quizemos ver onde
eſtavamos, e nos achámos em huma terra
montuoſa, de que não tinhamos conhecimen-
to; fomos entrando por ſeu eſpeſſo arvore-
do, e topámos com gente agreſte, e tão in-
culta, que ſe ſuſtentavão de caça, e frutos
ſilveſtres; abrigavão-ſe em mal armadas chou-
panas, e vivião em contínua guerra entre ſi;
os primeiros chegárão com furia a nós, per-
guntando quem nos dera licença para irmos
alli? E como a ſua ruſticidade entendia me-
lhor, lhes diſſe, que tiveſſem compaixão de
noſſa deſgraça, pois haviamos naufragado,
e buſcavamos remédio á fome, que nos mal-
tratava. Ao que reſpondêrão, que quem al-
li entrava, ou jurava viver com elles, ou
logo ſe lhe dava morte, pois não querião que
S ſa-
264 AVENTURAS
ſabendo-ſe de ſua livre habilitação, foſſe al-
gum Rei avaro inquietar a ſua liberdade,
a qual não eſtavão em eſtado de defender;
eu lhes ſegurei que viviriamos com elles,
ao que me obrigou a falta de armas, e de
mais alguma gente. Sem conſolação chora-
vamos o noſſo deſterro, pois não viamos
meio algum, que nos déſſe liberdade, e com
ardentes ſuſpiros me magoava da belliſſima
Hemirena, vendo caſtigados os delirios de
buſcalla, não ſabendo merecella; aſſim paſ-
ſava ſem eſperar mais allivio, que a morte.
A preguiça daquella gente era incompara
vel; e como a da ocioſidade não ſó ſe gerão
os vicios, mas ſe alimentão moleſtas cogita-
ções, Arſidas, e Antreo ſe occupavão em
tirar a lã de algumas pelles, de que erão
alli quaſi todos os vestidos; e os outros,
conforme pudérão, a enſinárão a fiar ás mu-
lheres: eu me applicava em triſtes poeſias,
e curióſas experiencias das plantas, aguas,
e frutos, que faziamos recolher em eſtado
de ſervirem de alimento, quando pelo rigor
do tempo coſtumava padecer aquella agreſ-
te gente. O trigo, que ſó recolhião do que
no anno antecedente cahia pela terra, guar-
davamos; e ſemeando-o no ſeguinte, a fer-
tilidade o tornava com tanta abundancia,
que o repartiamos com os vizinhos, que
tambem aſſim aprendião. Deſta ſorte fomos
fa-
DE DIÓFANES. LIV. VI. 265
fazendo vida com os pesares, e concilian-
do tão ſuavemente aquelles animos, que no
ſegundo anno de ſua triſtiſſima companhia
já me ouvião com reſpeito, e me buſcavão
para tirar as dúvidas, que ſempre tinhão
entre ſi; e como eu lhes hia fazendo ſaber
quanto he importante a ſujeição da gente,
que he domeſtica pela razão, ſe forão per-
ſuadindo de ſer mais conveniente ſujeitar a
huma cabeça, que ponha as outras sem or-
dem, que terem todas a maior deſordem na
meſma liberdade abſoluta.
Já as mulheres fiavão, e tecião, e ti-
nhão goſto de ſe occuparem em uteis curio-
ſidades, aborrecendo a antiga ocioſidade.
Neſtes melhores productos da minha deſgra-
ça tinha eu por certo não terião fim os meus
ſuſpiros; e ainda que alli muito me ama-
vão, não havia dia algum, em que eu não
procuraſſe mover a compaixão dos Ceos,
que vião meus internos ſentimentos. Conhe-
cendo aquelles barbaros os damnos da ſua
liberdade, me buſcárão huma noite, e todos
ao meſmo tempo querião dizer-me, que me
querião obedecer, pois me eſcolhião para
ſeu Rei; eu lhes reſiſti a tão pezada incum-
bencia, porque ſabia quaes erão os ſeus in-
convenientes, e lhes diſſe: Já que aſſim vos
offereceis á ſujeição, amando tanto a liber-
dade, não he razão que ſejais por mim en-
S ii ga-
266 AVENTURAS
ganados, pois he certo que ſó o engano coſ-
tuma trocar a ſeu gosto a ordem de todo o
evento, a ſerie da idade, e os nomes dos
heroes: ſe entendeis ſer eſte o maior obſe-
quio, com que me agradeceis o enſinar-vos
a viver, ſabei que ſe não modera o rigor
da contraria fortuna para com aquelle, que
vive expoſto a ſeus furores, ſe o não orde-
na eſſa esfera luminoſa, que eu experimen-
to inimiga, ſendo obrigado a ſoffrella; e
que o motivo cruel das paixões, que fizerão
aſſento em meu deſgraçado peito, he, e ſerá
ſempre o unico objecto de meu emprego, e
que a tormenta de violentos affectos he ſó
o que póde agitar meus triſtes eſpiritos, que
para todo o mais exercicio eſtão enfraque-
cidos. Para ſe effeituarem voſſos juſtos in-
tentos, careceis de eleger entre vós hum ſo-
geito de eſpirito illuſtre, que não ſuſtente o
orgulho da ſoberba, que deſpreze os iracun-
dos; não alimente as chammas do amor no-
civo, que aborreça a vingança; que tema
os Deoſes, e ſeja capaz de ſuſtentar a juſti-
ça, e amar a clemencia, aconſelhado pela
induſtria, que coſtuma emendar, deſprezan-
do os erros, e louvando os acertos; que aſ-
ſim como he objecto das Muſas no louvor
dos merecimentos convidar a merecello,
tambem ha culpas, que de intentar pela vio-
lencia a ſua emenda ſuccede que em lugar
deſ-
DE DIÓFANES. LIV. VI. 267
deſta ſe achão maiores ruinas. A virtude coſ-
tuma enſinar agradavelmente, pois he inſ-
trumento opportuno para ſeparar o verda-
deiro do falſo; e fazendo-ſe arbitra dos co-
rações, empenha os affectos a obedecer do-
cemente, e aſſim pelo melhor caminho en-
caminha, para que o bom não ſe opprima,
nem o indigno ſe exalte; e levando a habi-
tar com os Numes, a quem dá forças a fa-
vor dos coſtumes ajuſtados para triunfarem
da maldade, o faz que a fortuna ampare aos
que não são dominados pelo ocio; pois não
póde haver ſagrado, que reſguarde, a quem
a malicia dos ocioſos não corrompa: eu co-
nheço que errais no conceito, que formais
de mim; e ainda que do louvor injuſto al-
guma vez naſce a mais vigoroſa virtude,
porque excita a merecello, ſempre o deve
temer a cautela; porque he tão venenoſa a
liſonja, que com ſeu doce encanto penetra
os corações, tirando-lhe o conhecimento do
muito, que he conveniente o aborrecella, e
com extraordinaria atividade ſe faz offen-
ſa, que agrada, e engano, que alegra ain-
da aos meſmos, que o conhecem.
Se quereis viver em paz, ter forças,
engenho, fama, e reſpeito, pedi a Aſtrea,
que vos inſpire o que deveis eleger, não
vos deixando ao arbitrio da fortuna, que
iniqua, e deſigualmente coſtuma repartir,
ain-
268 AVENTURAS
ainda que tambem ſeria damnoſa a igualda-
de entre as gentes; porque o que entende-
mos ſer a origem do odio, e inveja, he o
que quaſi ſempre mais fortemente nos liga;
porque o muito, que huns dependem dos
outros, faz que ſeja neceſſidade o noſſo af-
feceto, pois carece o forte do ſabio, para
que o ajude; o ſabio do forte, para que o
defenda; o pobre do rico, para que o ſuſ-
tente; e eſte do pobre, para que o ſirva; e
do que parece intereſſe naſce a união, por-
que os creditos, a fé, a paz, e amizade de
taes principios ſe gerão; e aſſim como os
elementos são entre ſi differentes, tambem
ſomos entre nós diſcordes; mas deſta meſma
diverſidade ſe deriva a concorde harmonia,
que com a eterna lei da razão nos conſer-
va, e rege, não obſtante o fazer-nos a deſ-
igualdade réos, loucos, e infelices; réos,
porque o alheio deſejamos; loucos, porque
entendemos merecer mais do que poſſuimos;
e infelices, porque não amamos a verdade,
e nas adverſidades accuſamos a natureza, e
o Mundo, porque aos noſſos damnos ſe
conjurão; o que naſce de nos perſuadir o
amor proprio, a que nos são dívidas as proſ-
peridades; mas eſte amor, que aſſim he in-
diſcreto, ſeguindo o rumo da razão, he a
fonte mais limpa de honeſtos deſejos, pois
quem a ſi não ama, a quem poderá amar?
Do
DE DIÓFANES. LIV. VI. 269
Do proprio amor bem ordenado naſce a-
quelle affecto, que propaga tanto, que paſ-
ſa á prole, á patria, á amizade, e aos con-
junctos, o qual em ſeus motos ſe alarga,
como quando na agua ſe lança a pedra; for-
mando hum circulo, outros muitos ſe lhe
ſeguem; que ainda que o primeiro ſeja o
maior, ſempre he tão igualmente nobre,
que adorna o eſpirito; e quanto mais ſe a-
larga, tanto he no racional mais proprio.
O odio, a ira, a inveja, e outros affectos
são os que nos fazem perverſos, e de que
naſcem as deſordens, que nos eſcondem o
mais ſeguro porto, profanando o tribunal de
Aſtrea, a eſcola de Minerva, e a paleſtra
de Marte, mas aſſim como eſtes affectos com
a ſoltura nos condemnão, ſeguindo-ſe o ru-
mo da razão, tudo he tranquilidade, e mais
eſplendores da virtude, não ſendo aſſim im-
poſſivel que o homem viva contente da ſua
ſorte, porque aos exceſſos oppoſtos ſabe
conſervar em paz, e enſinando a tolerar deſ-
igualdades, dilata os animos, ordena o a-
mor, moſtra o ſemblante da mentira; a ma-
ligna inveja, que com a compaixão quer eſ-
conder-ſe, a cobardia, a que chamão pru-
dencia, a vingança tida por zelo de honra,
e o ardil temerario, que como valor ſe ap-
plaude, pois não ha forças para ſeparar os
vicios da virtude, ſenão levão as luzes da
ra-
270 AVENTURAS
razão, que ſabem moſtrar os damnos, cor-
reger os blasfemos, amparar innocentes, caſ-
tigar atrevidos, pagar bem a quem ſerve,
defender a verdade, e guardar fé aos ami-
gos. Eſta inſigne meſtra de acertos tanto me
aſſiſte, como a vós, para elegerdes outro,
que faça eſtudo de muito bem vos gover-
nar; pois que mais vos póde enganar a pou-
ca experiencia, que de mim tendes, que a
dos que naſcérão dos que entre vós morrê-
rão.
Os que por geração, ou doutrinas deſ-
cendem de Catão em Athenas, de Lycurgo
em Lacedemonia, e de Ageſiláo em Lycao-
nia, são privilegiados não ſó pelo que me-
recem os vivos, como pelo que obrárão os
ſeus, que já são mortos, porque as ſuas glo-
rioſas memorias são vivos deſpertadores, que
os excitão ás heroicidades; e ainda que o
blazonar do que obrárão os proprios anti-
gos ſeja vaidade, e das proprias façanhas
loucura, o blazonar deſtas he ſoffrivel, e
das outras ſó tem lugar, ſe ſervem de eſti-
mulo para os acertos, renaſcendo os novos
creditos dos antigos; porque o trazer ſem-
pre á memoria o deſcender de bons, e ſer
máo, he infamia, e maior gloria o ſer bom,
havendo herdado as virtudes; aſſim como
os que tem animo para não fugir, genero-
ſidade para dar, moderação no fallar, e cle-
men-
DE DIÓFANES. LIV. VI. 271
mencia para perdoar são os que ſe habilitão
para dignamente ſubirem ao throno, dos
quaes deveis procurar hum entre os voſſos
nacionaes para vos reger, porque são gran-
des, e algumas vezes irreparaveis os dam-
nos que ſe ſeguem de ſer o Soberano eſ-
trangeiro: buſcai quem ſeja capaz de con-
ceber grandes penſamentos, e tenha conſtan-
cia para os pôr em execução. Dizeis que a
minha ſabedoria he ſó capaz de governar-
vos, a iſto como um ſabio vos reſpondo,
que não ſei couſa mais certa, que ſaber que
pouco ſei. He certo que os que na verdade
são ſabios, coſtumão attrahir a veneração
das gentes; porque ſempre nelles resplande-
cem as luzes, que por virtude de ſuas obras
não póde apagar a morte; pelo que he tão
lamentavel nos ſabios, como a vida nos neſ-
cios, o que nos enſinou Demosthenes, quan-
do o tyranno lhe perguntou, por que cho-
rava a morte do Filoſofo? ſendo-lhe impro-
prio o chorar. Ao que lhe reſpondeo: Não
choro que morreſſe o Filoſofo de Athenas
mais choramos a vida dos máos, que a mor-
te dos bons.
Vós venerais em mim as ſciencias, que
não tenho, e as virtudes, que não exercito,
quando he tão arriſcada eſta apparencia,
quanto ſeguro tellas, ſem que pareça. Os
ho-
272 AVENTURAS
homens naturalmente são mudaveis nos de-
ſejos, varios nos penſamentos, inconſtantes
nos propoſitos, e nos fins indeterminados;
pelo que ſendo facil entendellos, he difficil
o conhecellos; e os que correm Mundo,
lamentando deſcuidos de ſua fortuna, ſe vi-
vem de ſi deſcontentes, como poderão ſer
conſtantes em contentar os eſtranhos, pois
não ſuſpirão mais, que ſerem reſtituidos com
honra ao ſeu paiz; porque a fortuna he mais
cruel com aquelle, que não deixa gozar o
que tem, que com o que não tem que lhe
pede: mereça-vos em fim a compaixão de
hum deſgraçado, que o não façais reduzir
aos erros, que coſtumão introduzir-ſe nas
Cortes, onde as noticias ordinariamente são
falſas, as amizades fingidas, ſem termo as
vaidades, as eſperanças enganadoras, e as
invejas contínuas; os que mais ſe viſitão,
peior ſe tratão; os que melhor ſe fallão,
peior ſe querem; buſcão-ſe os que fogem,
e menos ſe paga a quem melhor ſerve; mas
não obſtante eſtes erros da Corte, são maio-
res os que devem obrigar-vos a buſcar quem
vos governe; porque onde não ha ſuperior,
não ha lei, ſem eſta não ha juſtiça; ſe não
ha juſtiça, não ha paz; e onde não ha paz,
tudo he guerra, e deſordem: a authorida-
de, o poder, e a grandeza do Soberano he
a eſcola de bons exercicios, e hr centro de
vi-
DE DIÓFANES. LIV. VI. 273
vcios oi lugar, que he ſem ſenhor. Não en-
tendais que eu me eſcuſo á pezada carga de
cuidados, diſvelos, e mais trabalhos da Ma-
geſtade, pois ſei que não devo voltar a ca-
ra aos perigos; e deſconhecendo o medo,
ſempre me liſonjeio dos que fazem maior
vulto, e ſei que não he alvo dos empregos
do magnanimo o buſcar applauſos ás ſuas
heroicidades, porque para os acertos ſó
buſca o ponto de cumprir com o que de-
ve, cuidando mais em merecer, que conſe-
guir louvores, aſſim com não viu Aquilles
o luzido throno, porque ſó attendia ás ſuas
conquiſtas.
Com eſtas, e outras eſcuſas, e refle-
xões paſſámos toda a noite; e fazendo repe-
tidas inſtancias á minha renitencia, ſe forão
deſconſolados, deixando-me ainda mais pa-
ra temer novas prizões da minha triſtiſſima
vida; mas foi inutil toda a minha repug-
nancia, porque muitos dias, noites em
disforme alarido procuravão perſuadir-me,
dizendo que o eſtranho ſucceſſo de meu nau-
fragio lhes advertia, que os Ceos me man-
davão para os governar, e que eu havia de
amparar ſeus deſejos, pois lhe enſinuára os
admiraveis effeitos da ſujeição. Com eſtas,
e muitas mais razões me obrigárão a dizer-
lhes, que lhes faria leis, a que obedeceſſem,
e conforme ellas tomarião ſeu acordo. Com
gran-
274 AVENTURAS
grande alegria acceitárão eſte principio do
meu tacito conſentimento; conforme pude,
e me ocorreo, as eſcrevi; e quando ſe a-
juntárão a ouvillas, com incrivel conſolação
ſe me lançavão aos pés. Paſſados os dias,
que lhes diſſe tomaſſem para ſe conſultarem,
vierão buſcar-me para o pequeno palacio,
que lhes enſinárão a fazer os meus, e outros,
que (como nós) deſgraçadamente alli ſe a-
chavão. Com muitas demonſtrações feſtivas
me levárão primeiro ao ſeu oraculo, que
era dedicado a Nemeſis, e com ſeus ruſti-
cos inſtrumentos me offerecêrão áquella dei-
dade, e lhe ſacrificárão candidas victimas;
em Palacio me eſperavão as mulheres, e fi-
lhos menores com repetidos vivas, e á pro-
porção do affecto, e reſpeito, que me ti-
nhão creſcia a minha obrigação e ſe aug-
mentava a dor, com que nem lembrava, quan-
to erão diverſos os fins, para que eu enca-
minhára os meus primeiros paſſos, e com la-
grimas, que elles julgavão expreſſivas de
ternura, exhalava pelos olhos a mais viva
ſaudade naquelles productos de uma perdi-
da eſperança.
Aſſim tomei aquelle encargo, a que
não pude eſcuſar-me, com a condição de
que em os governando quatro annos para
os pôr em ordem, largaria o governo a
quem elles elegeſſem; e que acabando o
ſub-
DE DIÓFANES. LIV. VI. 275
ſubſequente, me deixarião retirar. São inex-
plicaveis os admiraveis effeitos da união,
pelo que obſervei no decurſo de tão limita-
do tempo, todos ſe applicavão com o maior
cuidado aos empregos, que entre elles re-
parti: fiz que ſe tranſportaſſem a viver jun-
to a hum delicioſo porto de mar; e princi-
piando a chegarem alli embarcações, os en-
riquecêrão de artifices, levando os delicio-
ſos frutos do mar, que a terra fertil lhes dava a-
gradecida á cultura, que principiava a ex-
perimentar. Paſſo por muitas, e admiraveis
circumſtancias daquelle prodigioſo tempo,
porque não quero que o incomparavel goſto
de communicallos degenere em incommodo
voſſo. Diófanes, que com ſua amada con-
ſorte, e filha ouvião a Arneſto com inex-
plicavel prazer, não lhes parecendo dilata-
da a narração daquelles ſuceſſos, lhes ro-
gárão continuaſſe em dizer-lhes, como ſe
tirára de tão ſuaves prizões, e deixaria o
reſto de ſeus trabalhos para o dia ſeguinte.
Paſſados aquelles annos, (continuou) foi
eleito Antreo, que ſem dúvida tinha as mais
proprias qualidades para a dignidade Real;
e conforme haviamos ajuſtado, conſentírão
no meu retiro tão magoados, como confor-
mes: eu me regozijava de meus trabalhos,
vendo-os ſociaveis, laborioſos, applicados,
e concordes. Antreo logo deſpedio os mo-
ços
276 AVENTURAS
ços mais capazes a gyrarem o Mundo, huns
para aprenderem coſtumes, e linguas, ou-
tros a nautica, outros as ſciencias, outros
a milicia, e outros as artes mecanicas.
Para commerciarem com honra, e fe-
licidade, eu lhes havia introduzido o horror
á mentira, ordenando que pela primeira vez,
que faltaſſem á verdade, foſſem advertidos;
pela ſegunda privados de ametade dos ſeus
bens, que ſe applicarião ás deſpezas das eſ-
colas públicas; e pela terceira perderião tu-
do para o cofre do commercio, ou compa-
nhia, obrigada a defender aquelle porto
com a protecção Real, ſendo prohibidos de
commerciar, e tidos por indígnos de ſocie-
dade, e ſó ſe lhes permittiria agencear de
que ſe ſuſtentaſſem em empregos vís. Na-
quelle breve tempo lhe havia feito princi-
piar Collegios para os diſtinctos, pois ſem
elles não florecem em ſciencias as Monar-
quias; e tambem eſcolas para os inferiores,
cujas diſtinções tinhão princípio, conforme
os talentos, virtudes, applicação, valor, e
fidelidade; e Antreo, ſeguindo as meſmas
maximas, mandou conduzir Meſtres dos ou-
tros paizes. Quando me deſpedi no Templo
de Minerva, e no de Apollo, que forão as
minhas primeiras emprezas, lhes diſſe com
lagrimas, obrigadas ás muitas, que derra-
mavão: Sabei, amados vaſſallos, que não
ſou
DE DIÓFANES. LIV. VI. 277
ſou ingrato em deixar-vos, pois devo ir
honrar o proprio terreno, pelo que he pre-
ciſo de que de vós me aparte: rogai aos Deo-
ſes, que me encaminhem, porque ſe achar
o bem, que buſco, vos ſaberei dizer quem
ſou; e como o affecto, com que me tendes
tratado, fez liga offenſiva, e defenſiva com
a minha obrigação, tereis ſempre, como a-
migos, a todos os que me ſeguirem.
Quando os caſos forem mais que as
leis, e maximas, que vos dei, lembre-vos
que são tão limitadas as providencias huma-
nas, que ainda que muito diſcorramos, não
ſe podem prevenir todos os eventos futuros;
porque a idéa, que buſcamos para eſtabele-
cer fortunas, muitas vezes em deſgraças ſe
transforma, no caminho da proſperidade ſe
encontrão adverſidades, de alguns conſelhos
acertados obſervamos ſucceſſos reprehenſiveis;
o que premeditamos para ſer feliz a liber-
dade, nos conduz ao cativeiro; e o que tra-
balhamos pela paz, muitas vezes fomenta
a maior guerra, pois ſó as determinações
do Ceo são inteiramente perfeitas; e tende
diante dos olhos, que ſe alguma vez erra
quem ſe aconſelha; rariſſima vez acerta o
que ſó pelo proprio juizo ſe governa.
Lembrai-vos que os ſucceſſos humanos
ſeguem os paſſos do tempo, e que eſte co-
mo não he eſtavel não são aquelles ſegu-
ros,
278 AVENTURAS
ros, nem duraveis; aſſim como o homem he
naturalmente mudavel, porque de alegre paſ-
ſa a eſtar triſte, de pacifico a irado, de ap-
petecer huma couſa a amar logo a que lhe
he contraria, pois não mudou Proteo tantas
vezes de ſemblante, como em hum dia mu-
da ao homem de conceitos. Para cumprirdes
com os preceitos de voſſas obrigações, ten-
de preſente que ao inſtante de naſcer ſe ſe-
gue o de acabar; que as delicias são inimi-
gas da virtude; que ſó hum prudente retiro
de occasiões póde acautelar erros futuros;
que entre os inimigos he mais nobre a ge-
neroſidade, e fidalga a attenção, como com
Dario nos enſinou Alexandre; que os que
tomão os encargos da amizade, moſtrão que
não ha entre dous amigos mais que hum ſó
coração, de que devem fazer proprios os
intereſſes da vida, e honra, pelo que os
Cretenſes pintão Jupiter com tres olhos,
querendo ſymbolizar nelle a verdadeira ami-
zade; porque tendo-os triplicados, e domi-
nando o Ceo, a terra, e o mar, ſignificão
aſſim que contra o poder da verdadeira ami-
zade não prevalecem os adverſarios mais for-
tes. Lembre-vos tambem, que nas acções
dos pais de familias não têm deſculpa os deſ-
cuidos, porque nos filhos reverbera a luz do
vigilante cuidado, como as do Sol nos mais
aſtros; e he tanto o que das boas doutrinas
de-
DE DIÓFANES. LIV. VI. 279
dependem os bons coſtumes, que muito mais
ſe alegrou o Macedonio, tendo Aristoteles
para inſtruir o filho, que quando vio naſci-
do Alexandre, porque os documentos a-
perfeiçoão o ſer ao homem, que naſce in-
forme; e para gozardes felicidades no bem,
que tanto procuraſtes, ultimamente vos di-
go, que de hum entendimento obſtinado,
que faz liga com a vontade ſem freio, naſ-
cem a inobediencia, e a ſoberba, de que
são vapores temeridades, e atrevimentos;
que chegão a pôr em contingencias, e pe-
rigos a gloria, e tranquilidade pública; e
já que a ſujeição, a que vos offereceſtes,
vos vai moſtrando quaes ſejão as regalias da
nobreza, procurai fabricar eſtatuas, que ſe-
jão por vós-outros colocadas nos altares da
honra, porque das heroicidades naſcem os
mais illuſtres ſogeitos, que como a Alexan-
dre fez Magno o querer imitar a Aquilles,
e as victorias de Milciades elevárão a The-
miſtocles a tão ſuperior esfera, que lhe pu-
zerão a coroa entre os melhores de Athe-
nas; não vos deſanime para aſpirardes a gran-
des emprezas o não procederdes de preclaras
proſapias, que ſe eſſes são obrigados a ſe
remontarem, como a Aguia, buſcando a luz
das mais altas façanhas, em vós ſerão mais
ventajosos os creditos, buſcando adiantar-
vos em tão acreditadas glorias, ſendo que
T no
280 AVENTURAS
no conceito de Homero são poucos os fi-
lhos que imitão as proezas de ſeus pais.
Com eſtas, e outras muitas adverten-
cias, que conſervo na memoria, determina-
va dar fim á minha deſpedida: porém An-
treo com ſaudoſas demonſtrações, lançando-
ſe-me aos pés, (não como o que era, ſim
como o que fora) poſſuido de vehemente
paixão, que nos animos coſtuma radicar a
união da verdadeira amizade, me diſſe: A-
mado Principe, já que meu occulto deſti-
no de vós me aparta, mitigai a minha dor,
confortando-me com as voſſas virtuoſas, e
ſoberanas maximas. Eu o tomei entre meus
braços, e reciprocamente banhando-nos em
lagrimas, lhe diſſe: Amigo fiel, reſguarda
os meus ſegredos, e em a noſſa divisão fa-
çamos o maior ſacrificio aos Numes, pois
aqui nos encaminhárão para remedio deſte
povo, que nos ama, e com docilidade te
obedece. Bem ſabes que eu ſou obrigado a
deixar-te por aquella decente cauſa, que ou
eſpero merecer, peregrinando pelo Mundo
á cuſta de trabalhos, ou offerecer-lhe a vi-
da, qual victima deſgraçada nos altares da
conſtancia, pois he a auſencia o bloqueio
decoroſo, que rende a fortaleza de hum co-
ração nem naſcido; e como as chammas to-
márão forças em materia apta, ſe hum aſſo-
pro antes podia apagallas, hoje em cada
mi-
DE DIÓFANES. LIV. VI. 281
minuto de ſaudades um ſuſpiro as accende.
Quem diria a Priamo, que para reduzir
Troia a infuaſtas cinzas, baſtaria pôr os
olhos para admirar a belleza de Helena? E
quem advertiria a Dido, que a cortezania
de tratar o foraſteiro lhe havia de dar a ſua
meſma eſpada para caſtigar no proprio co-
ração as culpas da leviandade, porque as no-
doas da honra ſó ſe tirão com o ſangue?
Mas já que cheguei a tão infeliz eſtado, e
he preciſo que me auſente, não quero per-
der agora o tempo de ajudar-te, recommen-
dando-te que advirtas a teus ſubditos, que
para exercitarem o bem, ſe apartem do mal;
e os que não cahirem em público, repre-
hende-os em particular; e como não tens
forças baſtantes, procura as da união, que
coſtumão vencer formidaveis exercitos: ad-
verte que haja compaixão dos pobres foraſ-
teiros, e vigilancia em ſocorrer a quem
buſcar amparo; como em defenderem mais a
patria; que os parentes; que os que quize-
rem a coroa trabalhem por merecella; que
os que andarem com os prudentes, chegarão
aonde quizerem; que quando as inimizades
ſocegarem, não as deſpertem; que para re-
frear paixões, ſe lembrem de que hão de
morrer; que não caſem ſó pelas riquezas,
que os que recebem beneficios, ſaibão que
vendem a liberdade; que gaſtem o preciſo,
Tii e
282 AVENTURAS
e no que puderem vivão comſigo; que não
dem voto, em quanto duvidoſos pensão;
que para ſe ſaberem haver, reparem nas ad-
verſidades os que nas proſperidades forão
fingidos; que deſprezem os intereſſes, em
que o credito ſe arriſca; que quando eſco-
lherem mulher, vejão a que mais ſe retira,
e ſe adorna de ſilencio; que cerrem os ou-
vidos á murmuração; que não ſe alegrem
nos males dos inimigo, favorecendo-os,
ainda que o não peção, pois quem quer o
mais glorioſo troféo, perdoa offenſas, pro-
curando para as injurias o remedio do eſ-
quecimento; que para gozarem os theſouros
da paz, não offendão a ninguem; que para
acabar bem, he preciſo não principiar mal,
que o callar tem ſeguro o premio, e que
os maiores eſtão deſtinados para os que no
bem perſiſtirem; e não te eſqueça que o
Rei generoſo he o que mais aſſiſte nos co-
rações, ſendo mais rico, e feliz o que mui-
to diſpende, que o que muito recebe. Man-
da que o Paſtor tire a lã ás ovelhas, não
conſentido que lhes tire a pelle, nem que
os Templos herdem os mortos, porque as
caſas ſagradas não carecem de mais reparos
para ſe ſuſtentarem, que os alicerces da pie-
dade, pois que os ſantos Miniſtros mais de-
vem creſcer em virtudes, com que edifi-
quem, que nos bens, com que ao povo en-
fra-
DE DIÓFANES. LIV. VI 283
fraquecem; e quando vires reſplandecer o
effeito dos bons documentos, ſentirás aquel-
la incomparavel conſolação, que ſe reſerva,
para o que ſabe ſer pai de ſeus vaſſalos, os
quaes em ſe julgando ſeguros no amor de
ſeus Monarcas, tanto lhe jurão fé pelos au-
gmentos, com que os premêão, como lhe
votão fidelidades, abraçando os grilhões,
com que os caſtigão, para o que traze di-
ante dos olhos, que para conſeguir o amor
dos ſubditos, he preciſo amar o bem comp-
mum, e não fazer o que prohibes, medin-
do forças, antes que te declares, por-
que não cahe temerariamente quem adiante
olha.
Com eſtes, e outros muitos documen-
tos conclui a deſpedida de Antreo; e por-
que era preciſo que dalli tambem sahiſſe oc-
culto, no ſilencio da noite principiei a ca-
minhar para hum porto de mar, levando ſó
Arſidas, e quatro ſervos paizanos; e como
não era razão, que me auſentaſſe ſem as
diſtinções que naquelle eſtado erão preci-
ſas, vendo que muitos eſtavão determinados
a acompanhar-me, fingi deixar a partida pa-
ra o dia ſeguinte, e antes de ver a Auro-
ra, cheguei a hum porto de mar, donde ſa-
hia huma embarcação para Athenas, em a
qual no meſmo dia embarcámos com grande
alegria.
A
284 AVENTURAS
A primeira noite de meu embarque,
como me ficava todo o tempo livre, pois
não penſava em maximas de governo, prin-
cipiei novamente a vacillar ſobre o cami-
nho, que haverieis tomado, e ſe ſeria certa
a noticia de eſtardes no ſerviço de Anfiaráo,
conforme publicárão as vozas do voſſo en-
genho, e raras qualidades, pois não ſabe
o tempo ſofrer, que hum ſabio eſteja en-
cuberto: lembrava-me ſe terieis falecido, ou
voſſa conſorte, e filha, que arraſtava ſem
deſmaios as minhas venerações, ou ſe vos
haverião ſeparado os contratempos; e diſ-
correndo neſte vaſto motivo de minhas triſ-
tes memorias, adormeci: talvez que Mor-
feo por compaixão de meu atribulado eſpi-
rito ordenaſſe aquelle myſterioso deſcanço;
mas como não deſcança a alma, que vigi-
lante ama, nem dorme o coração amante,
ſonhei que deſembarcava em huma ſituação
ſolitaria, e que ſeguindo hum valle agra-
davel, fora dar a hum lugar agreſte, onde
não ſe vião aves, nem plantas: tomado de
fumo de ſulfureo, que ſahia de uma horroro-
ſa caverna, e ouvindo hum medonho eſtron-
do, ſentia tremer toda aquella terra, de
que fora tal o meu pavor, que endurecen-
do-ſe-me os cabellos, cuberto de frio ſuor,
hum tremor no corpo me precipitava na ca-
verna, onde me fallava o melancolico velho
Ca-
DE DIÓFANES. LIV. VI. 285
Caronte, e me dizia, que o ter cahido na-
quella eſcura habitação, não fora ſem que o
determinaſſem os Deoſes, para alli tam-
bem buſcaſſe aquelles, por quem ſuſpirava;
e ainda que para eſte fim me offerecia a ſua
barca, eu não podia ver mais que multidão
de mortos, e rogava a Caronte me enca-
minhaſſe a ver o throno de Plutão, ao que
logo me ſatisfazia; e chegando a ver o ſeu
pállido, e enrugado ſemblante, obſervava
que ſeus humidos e eſpantados olhos ſó
empregava ſem furor em ſua eſpoſa Proſer-
pina, que eſtava a ſeu lado; o throno da-
quelle Deos terrivel era collocado ſobre as
vinganças, que vertião ſangue; o odio ce-
go, a inveja bebendo o ſeu meſmo veneno;
as vontades, que incitão os damnados ze-
los, e os mal naſcidos diſvelos; a hum la-
do eſtava a cruel, e pállida devoradora a-
fiando continuamente a fouce comas feias
companheiras, que não cançavão em ſeus
empregos; as eſpantosas visões, e horrendas
fantaſmas, que maltratão os vivos, eſtavão
ao outro lado ſempre inquietas; Plutão fa-
zendo-me eſtremecer com ſeu furioſo olhar,
e triſte aſpecto, me dizia com rouca voz:
Se os que buſcas forão ſeparados dos cor-
pos, ſó os poderás achar naquella parte do
meu Reino, que he deſtinada aos que forão
poderoſos; e já que chegas a violar eſte ſa-
gra-
286 AVENTURAS
grado, não te demores em meus dominios.
Fui com preſſa para aquella parte; buſ-
cando hum rio pelo impetuoſo ſuſurro, que
ouvia, cheguei a vello com inexplicavel ad-
miração, pois ſó ſe compunha de fogo, e
incendiadas pedras, e freneticas ſerpentes,
que ora ſubmergindo-ſe nas chammas, ora
voltando enfurecidas humas com outras, hião
levadas do ardente incendio: eu invocava a
Jupiter, Minerva, e Apollo, para que me
confortaſſem, e defendeſſem. Indo adiante,
via huma innumeravel multidão de atormen-
tados, por haverem procurado as riquezas
alheias com enganos, traições, e cruelda-
des; os adulteros ſem diſtinção de ſexo,
porque alli erão igualmente caſtigados; os
filhos inobedientes, e os traidores, os quaes
ainda depois de venderem os preceitos da
honra, e violarem os juramentos, padecião
menores penas, que os hypocritas, pois ſó
as deſtes excedião a todas as outras, que aſ-
ſim o determinavão os tres Juizes; porque
não contentes os hypocritas de ſerem tão
máos, como os impios, procurárão ſer tidos
por bons, arruinando os creditos das virtu-
des, e os frutos do bom exemplo; e os Deo-
ſes, de quem zombárão, empregavão o ſeu
poder no caſtigo daquelles inſultos. A eſtes
ſe ſeguião outros de culpas, a que o vulgo
chama politicas; e os que no Mundo não
são
DE DIÓFANES. LIV. VI. 287
são tidos por delinquentes, ingratos, men-
tiroſos, liſonjeiros; e os que julgárão te-
merariamente, ou fallárão fingindo zelo,
ou compaixão, arruinando a innocencia por
paixões particulares; e os que aos Deoſes
forão ingratos, tinhão mais penas que as
maiores inquidades. Via finalmente os ator-
mentados, que abuſárão do poder; de huma
parte huma Furia lhes repreſentava ſeus vi-
cios, alli vião as perverſas inclinações, com
que amárão os aduladores, a exceſſiva mag-
nificencia tirados dos póvos; a ignorante al-
tivez, com que maltratárão os homens, que
devião fazer felices; a inſenſibilidade, a ſo-
berba, e falta de caridade, com que com-
prárão com ſangue ou o terreno alheio, ou
o temor dos vizinhos, e occupados ſó em
regalos, não vião de que choravão os ſub-
ditos. Logo outra Furia os accuſava, repe-
tindo os injuſtos louvores, que tinhão rece-
bido; tudo alli os contradizia, os deſpreza-
va, e confundia, e nunca ſe livrarão da
triſteza, e pavor, que de ſi tinhão, pois
não podião deſpir a propria natureza, ſem
que foſſe preciſo mais para caſtigo, que os
ſeus meſmos delictos. Outra Furia lhes tra-
zia preſente os condemnados, que produ-
zírão os ſeus deſcuidos, fazendo-os atormen-
tar com as penas de todos elles, e aſſim eſ-
tavão deſgraçadamente divididos de ſi, e
uni-
288 AVENTURAS
unidos á raiva, e dor, que lhes communi-
cava a perdida eſperança.
Tambem via caſtigados os que antepu-
zerão as delicias de huma vida affeminada
ao trabalho, e diſvelo, porque ſe comprão
as diginidades, e com eſte motivo ſe impro-
peravão huns aos outros, trazendo-ſe á me-
moria os regalos, deleites, e deſcanços, em
que ſe tinhão perſuadido, que eternamente
ſerião reſpeitados; e lançando-ſe as maiores
maldições, erão ſeveramente caſtigados, não
pelo mal, que fizerão, ſim pelo bem, que
deixárão de fazer, imputando-lhes todas as
culpas da ocioſidade, negligencia, e eſque-
cimento da lei. Muito me admiro o ver
entre penas os que havião acabado com boa
opinião, huns por ſe terem deixado domi-
nar de malevolos, e outros males,
que ſe havião feito com o eſcudo da ſua au-
thoridade. Grande era a compaixão, com
que os via, lembrando-me quanto lhes he
difficil conhecerem a verdade, e a ſi meſ-
mos, ſendo ſujeitos a tão pezados encargos
em huma vida tão curta, em que tambem o
forão as invejas, ſuſtos, oppoſições, e miſe-
rias. A' viſta daquelles eſpelhos do meu pe-
rigo, dizia: Oh quanto he bemaventurada
a vida ſincera dos que eſtando perto do thro-
no, não ſe apreſsão para ſubir a elle!
Aſſim hia buſcando huma luz, que de
lon-
DE DIÓFANES. LIV. VI 289
longe via, até que cheguei á bemaventura-
da habitação dos juſtos, onde deſcançavão
os bons Soberanos, que ſabiamente gover-
nárão os vaſſalos, e ſeparados dos outros
juſtos, gozavão muito maior felicidade, e
em delicioſos boſques matizados de belliſ-
ſimas flores, guarnecidas de liquidos criſ-
taes, onde a fragrancia, a freſcura, e doce
harmonia das aves formavão huma inexpli-
cavel delicia, aſſiſtião aquelles bons Princi-
pes; alli parecia não chegar a aſpereza do
inverno, nem o ardente rigor da canicula.
Não lembrava a guerra, pois tudo era paz,
nem o dia ſe acabava, pois erão alli conſ-
tantes os reſplendores. Não ſe vião veſtigios
de odios, vinganças, zelos, temor, ou in-
veja: junto aos bemaventurados ſe diffundia
a agradavel luz, que as alimentava, a qual
tanto a elles ſe interna, e incorpora que
a reſpiravão, a vião, e a ſentião, de que
naſcia aquella tranquillidade infinita, onde
jamais ſe via a morte, enfermidades, af-
flições, temores, ou remordimentos, nem
podião interromper aquella felicidade as eſ-
peranças, diſcordias, ou pezares, porque
era immutavel; a alegria eterna, e a gloria
Divina, que ſempre nelles ſe renovava, re-
cordando o auxilio, e favor dos Deoſes,
que os fizerão ir pela mão da virtude para
acertarem o caminho entre tantos perigos.
To-
290 AVENTURAS
Todos lhes cantavão louvores, e fazião hu-
ma ſó voz, uma ſó felicidade, e hum ſó
penſamento; admirava-me ver os poucos,
que deſcançavão, o que entendo ſerá, por-
que poucos reſiſtem ao poder, e deſprezão
adulações.
De huma parte para outra vos buſca-
va; e vendo cheio daquella ditoſa luz a Al-
meno, dando-lhe os braços, com inexplica-
vel reſpeito, e regozijo: Como te vejo a-
qui em figura mortal? (me diſſe) E que-
rendo reſponder-lhe, não ſei que ternura,
ou prizão não me deixava pronunciar pala-
vra. Já que os Deoſes te amão, os resſguar-
dão, (continuou) adverte em ſeguir o eſ-
treito caminho das virtudes, prevenindo lu-
gar neſta morada de interminavel paz. Tu
naſceſte para reinar, e não te entregues ao
deſcanço, e regalo, por não arriſcares o
bem terno, e real reputação, porque eſta
não tem minuto de tempo, que não ſeja o-
brigada aos pezados encargos de ſeu offi-
cio, pois quem o ſerve he devedor de ſi
meſmo, ſendo de infinito pezo qualquer pe-
queno deſcuido; não baſta não fazer mal,
porque he preciſo fazer todo o bem a fa-
vor dos eſtados; pelo que, amado Arneſto,
arma-te de valor contra si meſmo, contra
as paixões, e liſonjas, ſendo no teu gover-
no hum vivo modêlo de heroes ſoberanos,
e
DE DIÓFANES. LIV. VI. 291
e bom pai dos ſubditos; porque os que en-
chem as ſuas obrigações, gozão aqui os
maiores, bens, que lhe podem os Deoſes
outorgar. Perguntei-lhe quem erão os que
eſtavão apartados dos que gozavão a mais
ſoberana luz? São os heroes, (me diſſe)
que recebem o premio do ſeu valor, e glo-
rioſas emprezas; e os mais que eſtão por
eſſes delicioſos boſques, são os que nunca
offendèrão os dictames da razão; os que dei-
xárão os tumultos, e nos retiros louvárão
os Deoſes, e não offendêrão as leis; os que
chorárão ſeus delictos, e os que a ninguem
fizerão mal. Oh quanto ſerás feliz, ſe tive-
res ſempre lembrança das penas, e dos deſ-
canços!
Com eſtas palavras, parecendo-me que
de mim ſe apartava, fui a dar-lhe os bra-
ços; e como a huma ſombra, vi que não
podia ſatisfazer meu interno affecto. Com
eſte ſuſto acordei, e tão fóra de mim, que
me pareceo ver em huma clariſſima nuvem
a ſabia Deoſa, que me offerecia palmas; e
a da belleza, que com o cego filho nos bra-
ços de mim ſe rião. Tornando inteiramen-
te aos ſentidos, achei Arſidas, e os compa-
nheiros, que com ſuſto cuidavão em deſ-
pertar-me, parecendo-lhes ſombra da morte
aquelle dilatado deſcanço: logo me contá-
rão, que hum célebre commerciante, que al-
li
292 AVENTURAS
li hia, lhes diſſera que havia tempo, que
em Athenas ſe tinha deſcuberto huma Prin-
ceza Thebana em Real ſerviço; e que o
Principe Iberio, encantado de ſua rara bel-
leza, determinava deſpoſar-ſe com ella, ao
que ſe ſeguíra deſapparecer repentinamen-
te; e que todos dizião, que a mandára ma-
tar o Rei, para ſe malograrem os intentos
do filho, mas que a Thebana ſe achava com
Iberio em hum retiro: logo interrompi eſ-
tas palavras com ardentes ſuſpiros; e apar-
tando-me dos que taes noticias me davão,
não havia crueldade, que não me lembraſ-
ſe, tranſportado em amantes delirios. Já me
eſquecião as ſombras horrendas, e a luz
brilhante dos bemaventurados eſpiritos, e
em meu laſtimoſo pranto dizia: Oh tyran-
na lei de amor! Qual foi o neſcio, que te
deo de lei as ſagradas forças? que ſe a na-
tural a todas as mais prevalece, e eſta man-
da reſguardar a propria vida, e attender ao
bem commum, ao meſmo tempo he tran-
ſeunte á tua eſſencia tirar a paz ao com-
mum, e ter odio á meſma vida? Chore-ſe
em Delos ſem remedio a minha auſencia,
já que eſtas crueis contradições me obrigão
a deſejar para allivio o inſtante de eſpirar
neſte inſtante, que reſpiro. Qual ſerá a ſer-
pente, baſiliſco, ou crocodilo, que não ſe
encerre em mim, pelo veneno, que intro-
du-
DE DIÓFANES. LIV. VI. 293
duzem os zelos em hum triſte coração, pois
ſó exhalo furores, reſpiro vinganças, e mor-
tes fulmino? Mas ai de mim! Se a offenſa
não ſe prova, de que procede o que ſinto?
Oh vida infeliz, em que os contentamentos
paſsão, como as ſombras velozes, que nem
os veſtigios deixão, e os triſtes pezares ſó
são permanentes! e neſte pequeno theatro
fazemos papel na tragedia da inconſtancia,
que quando de repente não acaba, o ter
fim he infallivel! E ſe a ſoledade dos mon-
tes he allivio de pezares, que os triſtes di-
verte, os corações dilata, as afflicções mo-
dera, os eſpiritos alegra, e os olhos recrea,
ſahirei daqui ſó a buſcar eſſe ultimo reme-
dio da minha total ruina, onde aprendendo
a mais alta filoſofia, me exercitarei naquella
pratica ſciencia, que conduz para o melhor
fim, e ponha-ſe de todo o parentheſis en-
tre a Mageſtade, e o aſſociavel de homem
com os ruſticos na ſincera vida no campo.
E tu, ó Nume infauſto, que zombas dos
mortaes, negando aſſim as regalias de ra-
cional, e os dominios da razão ainda aos
que são mais ſabios, ſe te abrandar meu
conforme padecer, executarás em mim na
primeira acção da tua piedade o ultimo gol-
pe da tua tyrannia.
Chegou Arſidas a lembrar-me, que o
dia ſe paſſára, ſem eu tomar alimento al-
gum,
294 AVENTURAS
gum, ao que me queria obrigar o ſeu affe-
cto, e cuidado. Bem conhecia eu que aquel-
la noticia não era baſtante para ſuſtentar em
mim tão vehemente paixão; mas he tão a-
ctivo o amor, que he verdadeiro, que baſ-
ta ſonhar com a offenſa, para perder o ſo-
cego. Cheguei a deſembarcar; e determi-
nando eſperar a morte nos campos de My-
cenas, como o mal ſem remedio de cada
vez tomava mais forças, me perſuadírão a
fazer viagem para Athenas, onde a verdade
acabaſſe de matar-me, ou curaſſe os meus
delirios; aſſim fui de cada vez mais magoa-
do, e ſó tinha allivio em retirar-me dos meus,
que quando me buſcavão, não podia dizer-
lhes mais, que: Retirem-ſe; pois a tão
cruel tormenta era deſaffogo o meu pranto
ſucceſſivo; que os que são feridos de amor,
entendem que ſó he allivio o chorar, e aſ-
ſim com eſtes indicios cobardes me dava a
conhecer amante, ſem que foſſe poſſivel en-
trar em mim, por mais que em mim refle-
ctia, conhecendo que era oppoſto ás minhas
obrigações o affeminado affecto, a que me
via rendido. Cheguei a Athenas, onde co-
nheci que huma Furia, para me abrazar o
incendio da ira, outra para accender em
mim a vil inveja, e viva dor de perder a
ſuſpirada fortuna e outra para accuſar im-
pureza, onde aſſiſtia innocencia, ſe havião
tranſ-
DE DIÓFANES. LIV. VI. 295
transformado no commerciante, que deo tão
falſas noticias, pois era alli indiſputavel a
virtude de Hemirena, e fui informado da
cauſa, por que Iberio declarára guerra a
Anfiaráo; que ainda era indicio de ſeu
rendimento, a fuga de Hemirena me ſegu-
rava, que não fora correſpondido; pelo que
tão pouco reſpirava eu já pelo coração da
vingança, que me levava a tirar-lhe a vida,
que como aventureiro, fui ao campo, onde
(debaixo das bandeiras de Iberio) tomei ar-
mas contra Anfiaráo; e acompanhado dos
meus, buſquei ſatisfazer as voſſas injurias,
lavando as armas no ſangue dos Corinthios,
aos quaes me chegavam tão temerario es-
forço, que matando muitos, tambem mui-
tas vezes fui ferido; e como alli ſe obſer-
vaſſe o ardor, com que os buſcava, entran-
do o Generaliſſimo na dúvida do que faria
para concluir o ultimo ſitio, e ſuppondo em
mim occultas qualidades, que lhe lembravão
ouvir-me, me fez conduzir á Real tenda
para dar meu parecer; e depois de atten-
cioſos cumprimentos, lhe diſſe:
São attendiveis as razões, que origi-
não a voſſa dúvida; mas os ſitiados tem per-
dido já huma grande parte de gente, pois
tem ſido contínuo o fogo; e como não tem
tido ſocorro, ainda que era muito grande
a guarnição, por força eſtá diminuta. Bem
V con-
296 AVENTURAS
conſidero quaes são as ſuas muralhas, e que
fazerem frente ſem reſguardo a hum exerci-
to creſcido, mais que valor, ſerá temerida-
de, e contra o pondunor das noſſas armas
dar lugar a que entre ſoccorro; e porque
poderão julgar ſer fraqueza não os ſervir-
mos deſta occaſião, a todo o riſco me pa-
rece que o aſſalto ſe deve dar ſem demora.
Aſſim ſe determinou para a madrugada do
dia ſeguinte, em que os Ceos com rios de
agua parecia que nos deſpertavão; e vendo
eu que havia alguma omiſsão por cauſa da-
quelle tempo, fui reſoluto á preſença de
Iberio, (que mal ſabia quem eu era) e lhe
diſſe: Os Ceos, Senhor, não querem to-
mar-nos os paſſos, mas antes nos chamão a
tão ſoberana empreza; porque aſſim como
Jupiter com os ſoberbos Titões pelejou com
raios, e nos noſſos corações infunde o bel-
lico ardor, com celeſtial agua, e fogo tam-
bem nos adverte, que não devemos perder
tempo: eu vou á muralha, mandai que me
ſigão. E tomando a minha bandeira, e eſ-
pada, e Arſidas huma eſcada, ſubindo por
ella, reparei que os aſſediados ſe tinhão re-
colhido da tempeſtade. Apenas me vi ſobre
a muralha, batendo a bandeira, acclamei a
victoria por Iberio, e em breve tempo ſe
achou por varias partes coroada da noſſa
gente. Deixei cair a escada para morrer,
ou
DE DIÓFANES. LIV. VI. 297
ou vencer, os outros me imitárão; e para
que o inimigo não déſſe junto ſobre os que
démos o aſſalto, partírão varias eſquadras
para divertillo por outras partes, e a mais
gente ſe empenhavam na brécha, em que mui-
to já ſe havia trabalhado. Entretanto que ſe
diſputava eſta empreza, ſe adorava em Ibe-
rio huma animada imagem de Mavorte, pois não
reſguardando a vida, tomava ſempre o
lugar, onde havia maior riſco. Era tal a
gritaria, que aquelles barbaros fazião, que
baſtaria para aſſombrar o animo mais forte,
ſe da noſſa parte os eſtrondos Marciaes das
caixas, e dos clarins não nos avivaſſem o
mais illuſtre furor, ſendo Cupido o Com-
mandante da parte ſuperior do exercito: mais
de nove horas durou o ſanguinolento com-
bate, o inimigo deixando-nos vencer, acu-
dia ſó á brécha; e os noſſos não ſó com
animo incrivel ſe empenhavão em continuar
na entrada; mas ſe haviam repartido, como
bem diſciplinados. Conſeguimos entrar vi-
ctorioſos; e foi tal a mortandade, que an-
davamos ſem reparos ſobre os mortos. Cele-
brada a victoria com Reaes demonſtrações,
publicavão dever-ſe a mim o triunfo: pedí-
rão os inimigos os preliminares da paz, e
Anfiaráo mandou juſtificar na preſença de
Iberio, que vós não exiſtieis em ſeus domi-
nios, e que quando vos conhecêra fora de-
V ii pois
298 AVENTURAS
pois da voſſa fuga; a qual ſe provou, fican-
do bem caſtigadas as voſſas injurias. Na ſe-
guinte noite caminhei para ſeguir meu deſ-
tino, pois ſe demoravão os exercitos, para
ſe concluirem as ſatisfações: querendo ſahir
de Athenas, fui prezo, e reduzido a ferros,
em quanto não ſe justificárão as minhas ac-
ções: continuei meu caminho, embarcando
para Thebas com grande conſolação, pois
tinha por certo, que já lá eſtarieis, por oc-
culta inſinuação de Anfiaráo. Hum naufra-
gio, que me teve entregue á morte, me
deo a conhecer a Bellino, a quem devo a
vida, e Delmetra vos poderá contar os ma-
ravilhoſos ſucceſſos daquelle contratempo;
eſtes forão alguns de meus trabalhos, que
os repito para ſatisfazer-vos, e não os po-
derei numerar, nem para agora he juſto recor-
dallos mais, pois já permitte o fado, que
o prazer tome para ſi algum tempo, ainda
que entendo que Hemirena, e Clymenea a-
cabárão nas mãos dos barbaros, e ſoffocado
de mágoa ficou ſem poder proferir mais pa-
lavra. Pois ſabei (lhe diſſe Diófanes) que
em Delmetra ſe occulta Clymenea, e em
Bellino a que para voſſa eſpoſa eſtava pre-
conizada, que fugindo de horroroſos peri-
gos, ſe valeo da diſſimulação, que vedes.
Arneſto com vivas demonſtrações de inexpli-
cavel alegria, tendo ainda por impoſſivel,
que
DE DIÓFANES. LIV. VI. 299
que para tanta ventura eſtiveſſe deſtinado,
ſe lançou aos pés de Clymenea, e Hemire-
na cheio de regozijo, amor, e reſpeito. O
repentino contentamento lhe embargou a voz
de ſorte, que convertido em admiração, não
fazia mais que admirar, como aquella bel-
leza o havia conſervado no engano, ſem lhe
confiar allivio em ſeu amante cuidado, quan-
do naquellas praias acompanhou; e refle-
ctindo nas novas obrigações, que lhe ac-
creſcião para adoralla, pois lhe havia dado
a vida, rompendo em diſcretas expreſsões
de ſeu jubilo, e juſto amor, concluio com
os ſentimentos de não ſer eterna a ſua vida,
para com ella lhe renunciar huma felicidade
infinita em que recebeſſe immortaes cultos
a ſua formoſura.
No dia ſeguinte cheios de immenſo
contentamento embarcárão ainda incognitos:
chegárão a Thebas, onde continuava Dió-
fanes por ſua Real ſuceſsão em hum filho
pequeno, que tinha deixado, ao qual entre
os applauſos achárão com dilatada prole.
Forão alli os feſtejos os maiores, que ſe po-
dião conſiderar; já as lagrimas dos que cho-
ravão continuamente por aquella amavel fa-
milia tinhão ceſſado; as gentes ſahião de
ſuas caſas, rompendo os Ceos com as vozes
dos vivas, com que hião ver aquelles, que
chorárão ſepultados nas margens do turbo
Le-
300 AVENTURAS
Lethes; os parentes offerecião victimas pa-
ra os ſacrificios em reconhecimento do be-
neficio, que dos Deoſes recebião; Diófanes,
e Clymenea eſtavão patentes para ſerem viſ-
tos dos que não davão credito ao que ſuc-
cedia; alli lhes contavão as repetidas dili-
gencias, que por elles ſe havião feito; e
que não achando noticia alguma, huns di-
zião que teria a náo ido a pique na tor-
menta, que naquella occaſião houvera; ou-
tros, que terião dado em mãos de barbaros,
que lhes tirarião as vidas, depois de os rou-
barem; e as demonſtrações funebres, que
publicamente ſe havião feito, ao que acom-
panhárão as lagrimas, e clamores de todo
aquelle povo. Diófanes com inexplicavel con-
ſolação vendo tão bem ſazonados os frutos
da ſua auſencia nas exceſſivas demonſtrações
do goſto, com que o recebião, e eſtavão
governados por Bireno, lhes recommenda-
va, que para ſerem conduzidos ás felicida-
des, conſervaſſem nas adverſidades a conſ-
tancia do animo, e a reſignação com a von-
tade dos Deoſes; que as emprezas juſtas não
as deſamparaſſem por ſe lhes difficultarem,
porque ſó o que he pernicioſo não coſtuma
ter muitos oppoſtos; que temeſſem os Deo-
ſes, amando a lei, e augmentando os cul-
tos da juſtiça, e fidelidade dos Soberanos,
que em quanto lhes demorão os premios,
lhes
DE DIÓFANES. LIV. VI. 301
lhes acryſolam os merecimentos, ſendo a de-
mora dos augmentos realce da felicidade,
que chega quando menos ſe eſpera, ainda
que o deſejo impaciente os annos transforme
em ſeculos. Forão perdoados os delictos, e
poſtos em liberdade os delinquentes, menos
os que eſtavão em pena de morte, porque
eſtes forão exterminados; e ſe ordenou, que
apreſentando ſeu paſſaporte na raia, ou ao
ſahir daquelle porto, ſe lhes déſſe certa por-
ção de dinheiro para continuarem ſuas via-
gens, ou jornadas, e que a ſentença de mor-
te teria vigor, ſe algum dia tornaſſem a
entrar naquelles dominios. Repartírão-ſe pe-
los orfãos, e viuvas grandes porções de di-
nheiro: deo-ſe liberdade a todos os eſcra-
vos, que alli ſe achárão, que a huns a com-
prárão os Soberanos, e a outros a derão os
ſenhores com aquelle exemplo: pagárão-ſe
todas as dividas aos vaſſalos, que moſtrá-
rão não terem meios para ſatisfazerem a ſeus
acrédores; dotárão-ſe as donzellas pobres,
e os meninos da meſma qualidade forão ti-
rados ás viuvas, e repartidos pelos Colle-
gios de artes, e ſciencias.
Todo aquelle mez, em que com hum
bando ſe noticiárão ao povo as mercês, que
lhes farião, continuamente eſtavão entrando
na Corte os que vivião diſtantes, os quaes
chegavão tocando ſeus inſtrumentos, e can-
tan-
302 AVENTURAS
tando com agradavel ſuavidade os triunfos
de ſeus Soberanos, e as felicidades de The-
bas, e com lagrimas de alegria apoſtavão
fazer expreſſivas demonſtrações do mais ter-
no contentamento. Os ruſticos á viſta de Pa-
lacio formavão com ſingeleza os ſeus bailes
ao ſom de ſuas flautas, e logo depois ſe en-
caminhavão para o Templo, levando inno-
centes offertas, onde os da Corte havião of-
ferecido grande parte de ſeus theſouros, e
hião aſſiſtir aos cultos, queimando continua-
mente precioſiſſimos aromas. A eſtas demonſ-
trações gratulatorias aſſiſtião de manhã os
Soberanos, e de tarde á Academia das ſcien-
cias, que em Palacio ſe fazia, onde erão
admittidos homens, e mulheres a darem con-
ta do progreſſo de ſeus eſtudos, ſendo pre-
miados conforme a ventagem, que ſe leva-
vão, e huma parte da noite ſe paſſava em
outros divertimentos, em que o prazer com-
petia com a grandeza, e luzimento, os eſ-
trangeiros concorrião a admirar tão eſtron-
doſa feſtividade. Paſſados alguns dias, che-
gárão os de Delos com huma eſquadra Real,
e com igual admiração, que regozijo vírão
o ſeu Principe, e concorrêrão para os ap-
plauſos, formando jugos, em que com Mar-
cial deſtreza, e bizarria levavão os premios,
e davão os vivas aos ſeus Soberanos, que
acabado aquelle mez, forão embarcar acom-
pa-
DE DIÓFANES. LIV. VI. 303
panhados da Corte, milicia, e povo, que
meſclava com a preciſa ſaudade o diſcreto
contentamento; depois de militares movi-
mentos, com huma ſalva geral ſe concluio
a deſpedida.
Chegando felizmente a Delos, erão eſ-
perados com iguaes demonſtrações de prazer;
a marinha não ſó ſe guarneceo logo de ſol-
dadeſca, mas de magnificos carros de tri-
unfo, onde ſuavemente ſe cantava, e de bem
ordenadas danças, que ſe compunhão de fi-
guras ricamente veſtidas: em ſe fazendo o
deſembarque luzidiſſimo, forão aſſim acom-
panhados aquelles Principes, formando as
vozes dos clarins, dos mais inſtrumentos, e
dos vivas huma tão celeſte melodia, que re-
preſentava o Ceo na terra; em iguaes diſ-
tancias eſtavão arcos, bem formados, onde
parecia que agradavelmente as Muſas ſe ex-
ercitavão, e de alguns, que guarnecião os
vaſſallos, em cujos corações havia Arneſto
depoſitado os mais ſeguros theſouros, ſe lan-
çava dinheiro ao povo. Forão ao Templo
de Apollo, que com admiravel grandeza, e
pompa ſe achava adornado, e illuminado;
e por não fazer enfadonha a narração da-
quelles cultos, e obſequios, ſe deixão á me-
lhor conſideração.
Depois de jurarem os Principes, e
grandes, que já mais naquella ilha ſe con-
ſen-
304 AVENTURAS
ſetiria que houveſſem eſcravos, porque ſe-
rião reſtituidos á inteira liberdade os que,
como cativos, alli chegaſſem, ſe encaminhá-
rão para o Palacio, e as mais feſtas ſe repe-
tírão todas as que ſe havião feito em The-
bas, e pelo meſmo tempo todas as referidas
mercês. Paſſado aquelle mez, deſtinado ás
graças, e feſtejos, ſe retirárão para Thebas
os que tinhão ſahido a acompanhar os Prin-
cipes, e ſahio Arneſto a viſitar os hoſpi-
taes, que ficárão ricos, pois deo o Principe
generoſo exemplo á piedade. Concluindo eſ-
ta louvavel diligencia, foi ver os arſenaes,
onde reprehendeo ſeveramente os deſcuidos,
e deſpertou os negligentes, para que ſe me-
lhoraſſem. Quiz ver as ſuas Tropas, e fa-
zendo-as exercitar na ſua preſença, accreſ-
centou os Militares, e deſpendeo com elles
tanto, que mais parecia pai liberal, que ſe-
nhor eſquecido; pois conhecia com larga
experiencia, que a grandeza dos exercitos
faz indeclinavel o reſpeito das Mageſtades,
a gloria dos ſoberanos, e a opulencia dos
vaſſallos; e a eſtes ſuave o pezo das armas o
agrado do ſeu Rei, os honrados adiantamen-
tos, e o ſoldo, que os ſuſtenta; porque ſup-
poſto que não haja couſa alguma, que poſſa
ſer inteiro equivalente da vida, o ſuppre a
honra, e a fidelidade, quando a fome não
quebranta, nem o credito padece.
De-
DE DIÓFANES. LIV. VI. 305
Depois deſte louvavel, e mais preciſo
empenho, ou deſempenho de ſuas maximas
admiraveis, ordenou que o miniſterio devaſſaſ-
ſe dos Militares, e eſtes do miniſterio na
ſua preſença, para que foſſem menos ſuſpei-
tas as averiguações da verdade; e vendo que
a vara da juſtiça muitas vezes ſe torcêra com
o pezo dos ſobornos, e que os que ſe apro-
veitárão de huma injuſta authoridade havião
deſprezado os ameaços da culpa, e os vati-
cinios da razão, ordenou que foſſem logo
acabar no ſupplicio, pois tinhão ſido o fla-
gello dos pobres, o eſcandalo dos bons, e
o terror dos póvos; porque como bramão
aos Ceos os clamores da verdade, ainda que
o caſtigo ſe deſfira, ſempre o perverſo tem
a pena dos ſeus delictos. Com as cabeças
daquelles ſe guarnecêrão as muralhas da Ci-
dade, ſendo padrões do exemplo aquelles
deſpojos da vida, onde exiſtindo as geladas
cinzas da culpa, fallava a mudez do horror
aos corações comprehendidos. Os que tinhão
dado inteira ſatisfação ás ſuas obrigações,
forão premiados com honras, e riquezas tão
avultadas, que parecia querer aquelle ſobe-
rano reſervar para ſi ſó o prazer de repar-
tir os theſouros, ou que apoſtava exhauríl-
los, depoſitando-os no amor dos ſeus vaſſal-
los, onde o Rei juſto, e generoſo tem o
mais firme throno, e o Imperio mais ſegu-
ro;
306 AVENTURAS
ro; e aſſim como contemplando em os aug-
mentos exercitava as vozes, com que o povo
pedia aos Numes que lhe eternizaſſem o ſeu
Principe, tambem ſe ouvião os vivas, quan-
do pelo patibulo ſe desoccupava o Mundo
daquelles, a quem a auſencia do ſoberano
dilatára os caſtigos; pois he a morte dos
máos a vida dos bons, e a promptidão dos
remedios o melhor remedio para o mal.
Tendo Arneſto concluido todas as cau-
tellas, com que o ſeu vigilante cuidado cau-
ſava admiração aos eſtranhos, e animava o
exemplo dos ſeus, pois distribuia glorioſos
premios, e executava juſtos caſtigos, chegá-
rão alli tres náos vindas da ilha de Nác-
ſia, que com vozes de ſonoros clarins vi-
nhão publicando contentamentos. Logo fi-
zerão aviſo da chegada de Iſicles, Embai-
xador que Anteo mandava a cumprimentar
Arneſto, e offerecer-lhes urſos, e leões em
tributo dos beneficios, de que era devedor
áquelle povo. No dia ſeguinte ſe deo ſole-
mne embaixada com grande luzimento, e
pompa, tornando-ſe a renovar os jubilos da
chegada de Arneſto, porque os vaſſalos con-
tentes com o ſeu ſoberano não ſoffrião as
recordações do mal paſſado, ſem que expreſ-
ſando o bem preſente repetiſſem votos da
mais pura fidelidade, e feſtivas demonſtra-
ções do mais vivo contentamento. Depois
que
DE DIÓFANES. LIV. VI. 307
que as Mageſtades forão cumprimentadas de
formalidade, Arneſto com lagrimas de ſau-
doſa conſolação recebeo huma carta de An-
teo, a qual era eſcrita na fórma ſeguinte:
"A vós, Principe Arneſto, enviamos
noſſo contentamento, amor, e reſpeito,
pois vos devemos a noſſa felicidade, e ro-
gamos aos Deoſes conſoladores que vos
aſſiſtão.”
“Ouvindo-ſe aqui as noticias de voſ-
ſa chegada a Thebas, ſe revelárão todos
os voſſos ſegredos, e que os ſeus ſobera-
nos achárão bem experimentada a fideli-
dade dos vaſſallos, e bem creſcidos os
frutos de os ter governado com amor,
paz, e juſtiça, (que tudo Bireno manti-
nha em boa ordem) e qual fora a voſſa
entrada em Dellos, e a celebridade do
voſſo ſuſpirado conſorcio.Julgai qual ſe-
ria a conſolação, com que eu me lembra-
va de noſſos myſteriosos infortunios, quan-
do eſte povo agradecido rompia em vo-
zes expreſſivas do mais fiel contentamen-
to, dizendo na preſença da ſacra eſtatua
de Apollo:
O' Deos luminoſo, já vemos que erão
voſſos influxos, com que amavamos a Ar-
neſto! Já vemos que era imagem voſſa a luz,
com que nos attrahia! Já vemos que erão
ſuaves raios do Ceo as vozes, com que
nos
308 AVENTURAS
nos perſuadia a bem obrar! Já vemos que
era influxo Divino o ardor, com que ama-
vamos as ſuas virtudes! E quem, ſenão hu-
ma imagem voſſa aſſiſtida de Jupiter, e Mi-
nerva nos faria amar a concordia, que he
origem do augmento, e deſprezar a diſcor-
dia, que tudo conſome? Quem nos faria eſ-
timar a brilhante eſpada da juſtiça? Quem
com a capa de huma deſgraça fora argu-
mento da mais elevada virtude? Só o que
naſcendo para reinar, e nos foi por vós en-
viado para remedio de noſſas dilatadas tri-
bulações.
Donde viria homem mortal, que ſem
vislumbres de Divindade nos fizeſſe tão ſua-
vemente obedecer ás leis, amar as letras,
exercitar as virtudes, buſcar a ſujeição, con-
templar nos ſoberanos, ſujeitar aos traba-
lhos, e honrar os Deoſes, mais que aquel-
le, que concebendo os maiores penſamentos,
não perdia inſtante de cogitar ſobre o bem
deſte povo, que parecia reſpirava pelo co-
ração de Arneſto? Ó luz eterna! Oh Deo-
ſes benignos! aſſiſti-lhe, e defendei da con-
traria fortuna, para que ſeja ſempre honra da
patria, e gloria dos vaſſalos. — Com eſtas
exclamações ſahião do Templo, e não deſ-
cançavão de cantar louvores voſſos, reco-
nhecendo as cauſas, de que procedião as
voſſas amaveis circumſtancias.
Mui-
DE DIÓFANES. LIV. VI. 309
Muito me alegro, quando me lembra
que vos exercitei nas armas, e ſciencias,
que como honrado vos ſervi e como fiel
vos acompanhei; e aſſim me liſongea a fa-
ma, publicando as voſſas ſupremas virtudes,
e me ſuavizão o pezado encargo de gover-
nar eſtes vaſſallos, porque vos reconhecem
por ſenhor ſupremo; e já que vós me ele-
vaſtes ao lugar, em que me vejo, he razão
que façais felices as minhas reſoluções, pois
juro aos eternos Deoſes ſeguir ſempre os voſ-
ſos dictames. Bem ſabeis que os varões, que
admirárão as gentes, ſe fizerão dígnos mais
pelo pouco preço, que derão aos grandes
lugares, que pelas vitorias, que tiverão;
porque para vencer inimigos na guerra mui-
to concorre a fortuna; mas para deſprezar
a propria grandeza ſó a heroica magnanimi-
dade: pelo que vos peço, ſenhor, que atten-
dais á oppreſsão, em que vivo, ajudando-
me a deſcer do throno, onde o diſvelo he
continuo, he pouco o mais dilatado tempo,
o trabalhar he divida, o deſcanço he culpa,
o acerto he obrigado, o deſacerto he ſem
deſculpa, o perigo he ſem limite, e he li-
mitada a humana capacidade para o encar-
go, que finge doces fadigas para o poſſuir,
ſendo amargoſiſſimas para o reſponder. Oh
quanto he indeſculpavel a vaidade dos ho-
mens, pois eſta os encaminha áquella ſubli-
me
310 AVENTURAS
me esfera, onde mais ſe encontrão precipi-
cios do ſocego, que firmeza nos favores da
fortuna! E quando não houveſſe maior cau-
ſa para fazer horror o falſo prazer de rei-
nar, baſta ver que ordinariamente do de quem
mais nos fiamos são as bréchas, por onde
ſe rende a fortaleza do mais juſto Monar-
ca, os ſentinellas que vigião os noſſos deſ-
cuidos, os eſpias do engano, os eſcudos dos
máos, e as armas dos indignos. E como he
poſſivel que reſiſtamos ao fogo, que nos faz
a malicia deſtes, ſe nos achão deſcuidados?
Com a boa fé nos enganão, e com fingi-
mentos nos prendem, conſpirando contra os
noſſos creditos liſonjeiros, mentiroſos, trai-
dores, e fingidos; porque (entre outros mo-
tivos) o degenerar a juſta veneração, que
ſe deve ás Mageſtades, produzio o veneno
do reſpeito, que desfigura a verdade em che-
gando á preſença dos ſoberanos, que a deſ-
conhecerião deſpida, porque ſe a vem he
com adornos.
“Onde irei, ſenhor, que encontre quem
deſconheça a grandeza, e me diga quanto
ſente? Onde acharei hum amigo tão nobre,
que me aconſelhe ſem ſe haver aconſelhado
com o proprio intereſſe? Onde acharei hum
homem tão leal, que amando ſó os meus
acertos, ſuſpenda o pezo, que me opprime,
ſem que faça maior pezo arraſtado pelo o-
dio?
DE DIÓFANES. LIV. VI. 311
dio? Onde acharei hum ſabio prudente, que
creia o muito, que amo a verdade, e que
a mentira aborreço? Onde acharei hum juſ-
to compaſſivo, que me aviſe de que chorão
os pobres, de que ſe laſtimão os que não
tem valedores, e de que ſe doem os quei-
xoſos? Oh mil vezes infeliz grandeza, pois
affugenta as luzes da verdade, e conſiſte em
não deſatar os laços do engano, em que do-
cemente reſpira! Eu não poſſo ver tudo; e
os que melhor vejo, menos merecem; os
que menos ſe retirão, mais me afaſtão de
acertar; o que mais amo, melhor me en-
ganão; os mais capazes ſe me occultão, e
os incapazes os conheço, quando os damnos
os deſcobrem.
“As voſſas doutrinas, e o meu diſvelo
tem produzido aqui homens excellentes; mas
inteiramente perfeitos ou os não ha, ou são
rariſſimos; porque o ſabio ſoberbo parece
que quando he mais preciſo, menos convem
occupallo; o que tem contra ſi o odio do
povo não ſei ſe he mais util entregallo ao
eſquecimento, que chamallo, para que ſir-
va; o que eſtuda mais ſobre a propria con-
veniencia, que ſobre o que convem á Ré-
publica, duvido ſe he menor a falta, que
me faz, que o engano, a que me arriſco;
e o que ou ha de ſer bem viſto; ou ha de
maquinar vinganças, entendo que he mais
X con-
312 AVENTURAS
conveniente buſcar meios de contentallo, que
dar-lhe emprego. Em fim dizei-me, ſenhor,
o que entendeis, que eu desejo trocar a ſu-
prema grandeza da Mageſtade pelo ſimples
ſocego do livre paſtor, pois que os Deoſes
nos creárão livres, e he em todos natural o
amar a liberdade, ainda que a cegueira dos
homens introduzio no Mundo que era mais
para appetecer a eſcravidão mandando, que
a liberdade obedecendo. Os Principes até a
decencia os ſujeita, pois não conſente que
eſtejão, ou andem ſem guarda, e aſſim são
docemente prizioneiros dos ſeus, tendo li-
berdade para a dar, mas não para a tomar.
Oh quanto he menor o trabalho de obede-
cer a hum, que o de mandar a muitos de-
baixo dos preceitos de amparar, caſtigar,
favorecer, ſuſtentar, defender, augmentar,
e dar exemplo! Mas ſendo os homens em
tudo inconſtantes, ſó o não são me buſcar
cegamente os Imperios, e procurar aquella
falſa liberdade; pois he certo que os que
mandão vaſſallos, paſsão de livres a eſcravos
de ſua pezadiſſima obrigação, porque ſó os
abominaveis tyrannos pertendem reinar para
terem deſcanço entre os regalos, e põem em
eſquecimento o cuidado de velarem ſobre o
bem de ſeus póvos, ſendo-lhes aſſim deve-
dores da fiel obediencia, que lhe jurão, pe-
lo intereſſe de que os governem, e ampa-
rem;
DE DIÓFANES. LIV. VI. 313
rem; e ſe aquelles ingratos incitão os Deo-
ſes, para que os caſtiguem, e deſpertão as
gentes, para que os aborreção, eu vou á
voſſa preſença, clamando aos Ceos, para
que me deſcancem; e pois mais deſejo ſer-
vir-vos, do que eſtimo o ſer ſervido, atten-
dei-me, ſenhor, e como benigno me ajudai
a entregar o ſceptro, porque he de pezo
tão exceſſivo que me faltão já as forças pa-
ra o poder ſuſtentar; e vos juro ſobre os
Altares de Minerva conſervar a obrigação
da mais pura nobreza em vos ſer fiel, a hon-
ra illuſtre em dizer-vos a verdade, e os cre-
ditos de bom vaſſallo em me não affaſtar dos
voſſos dictames, pois que os Numes vos
aſſiſtem, e ireis felizmente a habitar
com elles.
Com eſtas attendiveis perturbações ſe
moſtrava o grande eſpirito de Anteo, e ſe
enchia de prazer o coração de Arneſto. Iſi-
cles ſe demorou alli por tempo de dous me-
zes, admirando o muito, que florecião os
bons coſtumes pelo amor, e humilde, com
que ſe obedecia ao Rei; a concordia, com
que vivião os vaſſallos; a opulencia, para
que concorria o commercio; e a mais forte
columna de fidelidade em cada ſoldado con-
tente; porém mais que tudo o admirou a in-
teireza, com que ſe adminiſtrava juſtiça, e
a brevidade, com que eſta evitava as deſor-
Xii dens;
314 AVENTURAS
dens; porque ouvia que ſe os pleitos dura-
vão mais de hum anno, ſe caſtigavão rigo-
roſamente os Miniſtros, que o conſentírão,
e aſſim os Advogados, os Solicitadores, e
o litigante, que era intereſſado na demora;
e querendo inſtruir-ſe na boa ordem, com
que ſe defendião, ſoube, que quando a cau-
ſa era tão grave, que no termo determina-
do não podia concluir-ſe, paſſavão para Tri-
bunal ſupremo todas as allegações, e docu-
mentos de huma, e de outra parte, e aſſim
em tempo de dous mezes ſe determinavão as
maiores contendas, ao que com admiração
dizia:
He poſſivel que parece que venho a-
char neſte pequeno diſtricto feita a paz en-
tre a verdade, e a mentira, e que ſendo eſ-
tas inteiramente contrarias, ſe tratem, ſem
que a confusão dos recurſos ponha em dú-
vida qual tem mais forças, e ſem que por
muitos principios poſſa a mentira opulenta
affugentar a verdade, quando he pobre?
Sim, porque todo o amargo ſe adoça onde
hum Principe prudente ſabe amar o ſeu po-
vo, e eſte cuida em merecello. Eu tenho
gyrado grande parte do Mundo, e viſto ad-
miraveis Monarcas, porém nenhum, que a
eſte iguale; porque os que são famoſos por
vencedores, ſe cançárão para adquirir glo-
ria; e os que são pacificos, ſe diſvelão por
deſ-
DE DIÓFANES. LIV. VI. 315
deſcançarem; mas Arneſto ſoube vencer,
ſuſtentar a paz, e moderar a mais damnoſa
guerra, que póde haver, e ſe permitte nas
Repúblicas, pela qual as deſpezas são con-
tínuas, a fadiga exceſſiva, o fogo cruel, a
fome certa, e quando a honra periga, ou a
ambição ſe intereſſa, com deſordens ſe ac-
commettem os contendores, ſendo de toda
a ſorte prejuizos, odios, e deſaires os deſ-
pojos daquella guerra, em que rara vez he
vencido quem a póde ſuſtentar, e ſabe eſtu-
dar-lhe os lances; nem jamais vi que aca-
baſſe, ſe a parte, que queria eternizalla,
tinha mais dinheiro para ſuſtentar o enredo
daquelle jogo, que juſtiça para vencer a
contenda (conforme ſuccede em toda a par-
te), pois nem o mais recto Miniſtro póde
algumas vezes evitar as dilações, negando-
as aqui a vigilante prudencia do Soberano
para ſer o primeiro, que inteiramente me-
reça os altares, que lhe conſagrão os ſeus
vaſſallos, pois são os dilatados pleitos a rui-
na dos bens, desluſtre do brio, e deſmaio
da honra; porque ſe nos caſos pouco im-
portantes he conveniente não moſtrar o di-
reito para evitar as deſpezas, não o per-
mitte o brio, não ſó porque parece frouxi-
dão do animo, ou falta de meios, em que
a eſtimação padece, mas tambem porque ſe
entende, que os que não tem conſtancia pa-
ra
316 AVENTURAS
ra proſeguir, não tiverão razão para negar,
ou pedir, e aſſim pelo muito tempo dege-
nera a carencia de juſtiça em empenho do
pondonor. A honra periga, porque os ho-
mens ſe coſtumão a ſoffrer que publicamen-
te os trabalhos de falſarios, ladrões, mentiro-
sos, &c. e ſe ha alguma vez, em que tudo
iſto ſe diz com termos colorados, nem aſ-
ſim perdem taes palavras o amargo, que
ſempre devem os honrados ſentir nas calu-
mnias, pois todos ſabem qual he a valentia
do conceito, e naquelle prolongado tempo
muitos perdem a ſua eſperança morrendo de
cançados, e outros ganhão as horrendas ca-
vernas do Cocyto.
Aſſim dizia Iſicles com tão viva, quan-
to juſta admiração. Poucos dias antes que ſe
deſpediſſe teve das Mageſtades hum mimo
eſpecioſiſſimo, e o fizerão conductor de ou-
tro, em que Arneſto enviava a Anteo hum
admiravel veſtido de armas, onde com o pri-
mor da arte eſtavão abertos ao buril os ſuc-
ceſſos das ſuas peregrinações, a ſua effigie,
a e de Hemirena, Diófanes, e Clymenea, os
ſacrificios que celebrárão em Thebas, e os
carros de triunfo, que houverão em Dellos,
concluindo tudo no funebre eſpectaculo dos
juſtiçados, para que ſe acabaſſe o eſcanda-
lo, divulgando-ſe o horroroſo effeito dos
seus delictos; e tambem ſe vião as palmas,
que
DE DIÓFANES. LIV. VI. 317
que ſe distribuírão pelos benemeritos, por-
que quando os conduziſſe a morte á mais
dilatada vida, ſe acabaſſem de viver, não
ceſſaſſe a Fama de os louvar. Com eſte veſ-
tido de armas hião tambem de todos os pe-
trechos de guerra, e alguns officiaes capa-
zes para o exercicio delles, e tambem leis
tiradas das melhores, que ſe praticavão em
toda a Grecia, proporcionadas ao paiz, e
correctas pela prudente diſcrição, e expe-
riencia de Arneſto, e para a execução del-
las quatro ſabios, que erão nobres, virtuo-
ſos, e independentes, que tanto he preciſo,
para que tenhão as leis boa execução. Ar-
neſto ſatisfazendo as razões de generoſo,
quiz que não ficaſſem diminutas as demonſ-
trações de amigo, reſpondendo á carta par-
ticular, em que depois dos primeiros cum-
primentos continuava, dizendo:
“Já ſabeis que os meſmos infortunios,
que me affaſtárão de Delos, procurárão que
as caſualidades me reſtituiſſem á amavel cau-
ſa de minhas peregrinações. Logo que de
vós me auſentei, ouvi venenoſas noticias,
que ferindo-me com a ſetta inflammadora,
me reduzírão aos delirios de huma invenci-
vel tribulação; e como aquelles a quem o
Deos vendado deſtina á cruel esfera de fin-
gidos prazeres, tem por lances do entendi-
mento as attrações da vontade, ſuſpirei ze-
lo-
318AVENTURAS
Loſo, e afflicto buſquei a morte; mas tomei
alento as armas, que por deſaggravo de
Diófanes banhei no indigno ſangue dos Co-
rinthios. Encontrei Hemirena ſalvando-me
de hum naufragio; e occultando a formoſu-
ra aos cultos do rendimento, me deo vida,
ſem ſaber que eu lhe havia conſagrado. Ti-
ramos a Clymenea das mãos da morte, mas
ſem que nos conheceſſemos; porque como he
o amor aquelle doce tormento da alma, que
no deſejo conſiſte, não diſpensava nas cau-
telas o disfarce. Encontrámos tambem Dió-
fanes nas vizinhanças de Thebas, e chegá-
mos a ver quanto intereſsão os Soberanos
em que os amem os vaſſallos, e que eſtes
nem com lagrimas contínuas acabão de cho-
rar a falta de hum Principe, que com amor,
juſtiça os governa, pois admirei o immen-
ſo prazer dos Thebanos: vi a inexplicavel
alegria deſte povo, e a razão, com que
na minha auſencia ſe lamentava enfraque-
cido.
“As voſſas letras me enternecem, e me
admirão as voſſas reſoluções, que ſendo fi-
lhas legitimas de hum eſpirito puro, tam-
bem he preciſo attender a que, ſe he gran-
de a gloria de adquirir, não he menor a
virtude de conſervar; e como he preciſo que
eu vos aconſelhe, tendo attenção ao reſpei-
to, que me confeſsão os que vos obedecem,
e
DE DIÓFANES. LIV. VI. 319
e ás doutrinas, que me déſtes, devo pri-
meiro lembrar-vos que a Eſtrellas benignas
quizerão que tiveſſeis emprego, para que vos
ſerviſſeis da ſabedoria, deſpertando os vaſſal-
los, para que a amaſſem; das virtudes, pa-
ra que foſſeis modêlo de um Principe juſ-
to; do entendimento, para que o tempo ad-
mire hum governo perfeito; da magnani-
midade, para que deſſeis exemplos de for-
taleza; e do esforço, para que animaſſeis
os ſoldados mais com acções de generoſo
valor, que com palavras de vaidoſo capri-
cho.
“Os homens admiraveis, que tem havi-
do no Mundo, quaſi todos ſe fizerão com
os trabalhos, com os livros, e nos Reinos
eſtranhos, porque os infortunios diſpõem
para compadecer, e moderar as paixões: os
bons livros fazem que o entendimento abra
os olhos, que o homem ſe veja, e que a-
prenda a merecer; e a auſencia da patria
caſtiga os animos affeminados, enſina com a
experiencia, faz creſcer os homens, para
que conheção, e ſejão conhecidos. Socrates
não conſentia que os ſeus diſcipulos diſſeſ-
ſem qual era a ſua terra; e os bons Inſu-
lanos Agitas não declaravão ſerem nacionaes
daquella Ilha, em quanto não fazião algu-
ma acção admiravel; aſſim que he mais lou-
vavel, que não torneis á patria trabalhan-
do,
320 AVENTURAS
do, para que ella de vós ſe préze, que co-
mo he tão ſeveramente nobre a lei da ver-
dadeira amizade, não permite que vos a-
conſelhe como quero, mas ſó como devo:
reconheço que he maior a grandeza do en-
cargo, que a fauſta pompa de reinar; mas
onde a empreza he difficil, he mais glorio-
ſo o triunfo. A vaidade, a cegueira, e o
engano dos homens têm feito no Mundo
as maiores guerras, não para obedecer, mas
ſim para mandar; e por eſte coſtume ao que
larga o ſceptro bem poſſuido, ſem que as
armas o diſputem, o avalião por demente,
ou covarde; e ſe o deixa, por não cahir
em erros de hum officio, de que depende a
boa ordem de todos os outros, troca pelo
deſcanço de prudente vaſſallo a gloria de
bom Monarca. Não penſeis em deixar o go-
verno, ſim em ſer grato aos Deoſes, para
que vos confortem; liberal com os vaſſal-
los, para que bem vos ſirvão; prudente no
obrar, para que vos imitem; comedido no
fallar, para que bem fallem; e amai o bem
commum, para que vos amem; pois que o
varão juſto não ha de perturbar-ſe, impa-
ciente por não ter tudo no eſtado, que de-
ſeja, mas ſim ſe alguma couſa não o-
brou como devia; e vedes que os noſſos an-
tepaſſados não adquirírão em deſcanço a glo-
ria, que herdamos, porém ſervindo na
guer-
DE DIÓFANES. LIV. VI. 321
guerra os ſeus Principes; e que ſendo mais
nobre o moſtrar o proprio merecimento,
que contar acções alheas, tambem he mais
ſublime ornar o palacio com armas ganha-
das, que a caſa com eſcudos herdados. Iſto
vos digo, para que vos não venção os em-
baraços, que penſais, pois não experimenta
o homem tanto damno, quando a fortuna o
deſampara, como quando o animo lhe fal-
ta. Se quereis que não ſeja o tempo eſtrei-
to, cuidai muito em repartillo, não tiran-
do para vós do que tocar aos vaſſallos; nem
vos perturbe que ſeja divida o noſſo traba-
lho; porque aſſim como a eſte he obrigada
a ſujeição, a fidelidade, e os bens dos pó-
vos, tambem não ſomos devedores mais,
que do que permittem a noſſa poſſibilidade,
e forças.
“Se o Principe não ſe descuida, o ſeu
deſcanço he virtude, e não he culpa; e baſ-
ta que trabalhe por acertar, e vencer as
paixões proprias, para que as gentes conhe-
ção, que quando aſſim deſacerta, os Deo-
ſes o determinão para caſtigar os vaſſal-
los.
“Não julgueis que ſó para os Sobera-
nos não tenhão limite os perigos, pois he
o ſeu deſstricto o Mundo, onde todo o ra-
cional deve temellos, mas he certo que he
limitada a humana capacidade, para que
hum
322 AVENTURAS
hum ſe encarregue de reſponder por muitos;
porém os Numes inſpirão, as virtudes ani-
mão, e os bons ajudão. Eſtes, ſe quereis
conhecellos, obſervai profundamente os ho-
mens como fallão, ſe tem nobre lizura no
que tratão, ſe usão verdade, ſe acompanhão
com os melhores; e não são orgulhoſos,
porque rara vez deixará de ſer bom aquel-
le, em que reſplandeceram eſtas virtudes.
“Nem vos afflijão os enganos, a que
ſomos arriſcados; porque ſe he genio anti-
go dos homens o irem ſempre contraminan-
do para bem lograr os ſeus intentos, tam-
bem a ingenuidade das virtudes ſabe pene-
trar fingimentos, e conhecer a condeſcenden-
cia dos liſonjeiros; e como ſabeis que ha
eſte genero de guerra, mais vezes os haveis
de concluir, que elles vencer-vos; porém
he certo que todos errão, e não ha algum,
que não tenha defeitos, por mais ſabio, e
entendido que ſeja. Aſſim como não ha ſe-
nhor tão poderoſo, que não poſſa ſer ven-
cido, nem ſabio, que não ignore muito,
nem bem quiſto, que não tenha inimigos;
pois que todos podem menos do que deſejão,
tem menos amigos do que entendem, e ſa-
bem menos do que preſumem.
“Tambem he certo que o reſpeito he
hum inimigo domeſtico, de que a Mageſta-
de preciſa, ainda quando he oppoſto aos ſeus
acer-
DE DIÓFANES. LIV. VI. 323
acertos. Nós gyrámos o Mundo, e ſabemos
o que nos enſinou a plebe, com quem con-
verſámos; vivemos entre os bons, e os máos;
obſervámos os que tinhão mais, ou menos
nobreza; aſſiſtimos com os pobres, e cho-
rámos com os perſeguidos; e quando ago-
ra chegámos a reinar, ſabiamos o que igno-
rão os que como nós obrão na face do Mun-
do. Ah que ſe pudeſſem deſpir por algum
tempo a Real grandeza, e a preſentanea
mageſtade, verião os Soberanos provada a
identidade da razão! Nós padecemos fomes,
frios, ſuſtos, deſprezos, injuſtiças, e im-
menſos perigos; iſto conduz muito para ſer-
virmos melhor os noſſos officios, que os que
entendem que he fantezia o pranto dos que
padecem que todos os homens do Mundo
ſó naſcêrão para os ſervirem; que não ha
mais, que o que podem alcançar com a viſ-
ta; e aſſim o haverem trabalhos, deſampa-
ros, pobreza, e injuſtiças, não lhes faz no
animo impreſsão, pois alguma vez o ouví-
rão de tão longe dos que apenas lhes chegárão
amortecidos écos de alguns dos que ſuſpi-
rão afflictos; e tudo bem ponderado, não
tendes tanto que temer nos cuidados, como
eu razão para deſejar-vos no throno.
“Bem ſabeis que os ſabios ſoberbos,
quando erão mais preciſos, maltratavão as
gentes, e desfrutavão mais que o Rei a au-
tho-
324 AVENTURAS
thoridade Real, ſem que já mais foſſem caſ-
tigados os ſeus máos procedimentos; porque
os que rodeão aos Soberanos, o callão por
politica, quando não por intereſſe, ou me-
do; ou tambem, porque ſe ha algum, que
ſabe, ou o Rei ſe deſgoſta, ou os ſervos o
arruinão; e de toda a ſorte melhor ſerve
quem menos perfume; ſe ſe diſvela por a-
certar, tem bondade nobre; e mais teme
os remorſos internos, que os ameaços da
morte.
“Os que são malviſtos do povo, tam-
bem ſabeis que fazem ſer o Rei ſuſpeito
nos erros, que lhe condemnão, e que são
a cauſa de que deſmaie o zelo, e fervor,
com que os vaſſalos ſe empenhão nas em-
prezas, quando tem fé nos que dão o con-
ſelho; e aſſim ſe malogrão os bons arbitrios,
por que são poſtos em prática por mãos do
odio; porém eſtas, e outras muitas circum-
ſtancias são menos ponderaveis, que outros
damnos, que podem reſultar de ſervir-ſe o
Principe (em couſas de alta ponderação)
com homens, que são odioſos ao público,
pois não os occupar não he mais que dei-
xar de aproveitar-ſe de alguns homens ca-
pazes, e de atendellos algumas vezes tem
procedido ſucceſſos lamentaveis.
“Os que eſtudavão mais a propria con-
ve-
DE DIÓFANES. LIV. VI. 325
veniencia, que em ſervirem, como honra-
dos, ſempre vimos que vendião tão caro o
fruto de ſeus eſtudos, que nunca entendião
ſerem pagos, ainda quanto mais recebião:
eſtes em toda a parte roubão ſem ſuſto, e
são como os que no tempo das diſſenções
procurão agradar a ambos os partidos, que
nem a um, nem a outro ſervem.
“Os que deixando ſer bem viſtos ma-
quinavão perturbações, lembro-vos que para
elles erão reprovados os remedios brandos,
e ſuaves; porque como he duvidoſo o ſeu
effeito, em caſos graves, ſempre obrão me-
lhor os que são aſpero, e fortes, pois não
ſe deve encommendar ao tempo o que toca
á violencia. Se aſſim recordardes o que vimos
pelo Mundo, conhecereis os homens, ſer-
vir-vos-hão os melhores, e vivereis com elles
goſtoſo, tendo cuidado em evitar os dam-
nos, antes que ſejais obrigado a caſtigallos,
e obrando como quiséreis que tiveſſem com-
voſco obrado os Soberanos; advertindo ſem-
pre que não honrar a quem o merece, ne-
gar o que com razão ſe pede, e não pre-
mear a quem com diſvelo ſerve, muitos
vimos que o ſoffrião, porém nenhum, que
o deixaſſe entregue ao ſilencio: pelo que he
tambem preciſo ver a quem dais, para que
o tenha merecido; o que dais, por não dar
pouco; e quando dais, por não ſer tarde;
por-
326 AVENTURAS
porque ainda que de toda a ſorte ſe acceita,
poucas vezes ſe agradece.
“Cuidai em que os voſſos exercitos an-
dem bem diſciplinados, e os ſoldados con-
tentes, porque eſtes são as melhores mura-
lhas das Cidades: fazem a grandeza do Rei,
conſervão-lhe o reſpeito, defendem-lhe os
dominios, reſguardão-lhe os póvos, ſegu-
ram-lhe a coroa, caſtigão-lhe inimigos, e
eſtão para dar por elle a vida; e
quando ſe admira o bem formado corpo de
hum exercito poderoſo, não ſó ſe contempla
como reſpira o ſeu Soberano, mas parece
que o reſpeito chega a ver com aſſombro o
grande eſpirito da Mageſtade.
“Tambem deveis penſar na educação
dos filhos dos vaſſalos, pois pelo que ſer-
vem, mais o são da República, e da voſſa
eſperança, que dos ſeus próprios pais.
“Vós não procuraſte reinar, opprimir,
ſujeitar, e preferir a todos, como ordinaria-
mente deſejão os homens, que tomão aquel-
le vaidoſo empenho da ſoberba, com que
deſtroem a ſua felicidade; e ſuppoſto que
para bem obrar não careceis dos meus dicta-
mes, como as paixões coſtumão eſcurecer os
mais claros entendimentos, vos torno a lem-
brar que os Deoſes vos eſcolhêrão, para que
foſſeis amparo dos bons, terror dos máos,
alento das virtudes, e pais dos voſſos vaſſal-
los,
DE DIÓFANES. LIV. VI. 327
los, pelo que vos rogo que os animeis co-
mo Principe virtuoſo, pois eu vos reſpondo
como verdadeiro amigo, vos aconſelho com
expreſsões de legitimo affecto, vos anímo
com leis de boa razão, e juſtiça, com ar-
mas, e homens, que vos deſcancem, e com
memorias de meus trabalhos, para que ve-
jais que ſe as fadigas fazem o deſcanço,
tambem eſte entre nós faz guerra ás virtu-
des, que em vós ſempre augmentem os Deo-
ſes conſoladores.”
Aſſim terminou Arneſto a ſua admi-
ravel reſpoſta, em que ſe oſtentavão glorio-
ſas as doutrinas de Anteo, para quem ſe re-
ſervárão eſtes ſazonados frutos.
Iſicles determinando a ſua partida pa-
ra Nácſia, ſe deſpedio das Mageſtades, e
juntamente os Officiaes de guerra, e os Ju-
riſconſultos, que devião embarcar. Arneſto
com ſuaves expreſsões, e diſcretos dicta-
mes os enriqueceo de admiraveis maximas,
que nos vaſſallos radicárão amor, e nos eſ-
trangeiros veneração.
Embarcando Iſicles, ſe repetírão feſ-
tivas demonſtrações, e muitos áquel-
les Soberanos, até que entre o eſtrondo das
ſalvas, e as ſonoras vozes dos clarins, per-
dêrao de viſta a Delos, levando a noticia
do goſto, e paz, com que ficavão gozando
o verdadeiro affecto dos ſubditos, e os deſ-
Y can-
328 AVENTURAS DE DIÓFANES.
canços, para que havião concorrido as fa-
digas, conhecendo todos, que ſempre he
vencedora a verdade, e que a formoſura tri-
unfa, quando he conſtante a virtude.
FIM.
PROTESTAÇÃO.
DEclaro que neſta Obra uſo das palavras
Deoſes, Numes, Fade, &c. no ſenti-
do, em que as tem uſado muitos Catholi-
cos, ſómente para imitar, e fingir as fabu-
las, e termos dos antigos Gentios, que não
chegárão a conhecet o verdadeiro Deos Tri-
no, e Uno, nem os admiraveis effeitos da
noſſa Santa Lei, poſto que muito ſouberão
exercitas algumas virtudes moraes; e neſta
fórma quero que ſejão entendidos eſtes meus
eſcritos, que com mais profunda, e ren-
dida obediencia aos Decretos Pontificios ſu-
jeito humildemente á correcção e cenſura
da Santa Madre Igreja Catholica, e Apoſ-
tolica Romana, e ſeus Miniſtros.