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b_003
Last Saved Date
31.10.2006
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Final Release
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generation 4
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Edited
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no
Document Title
Nova Floresta
Document Author ID
Bernardes, Manuel
Period by Birthdate
1600-1649
Word Count
52.374
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A. Silva
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M.C. Paixão de Sousa, D. Störbeck, T. Trippel, M. Ortega
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Author Name
Manuel Bernardes
Author Year of Birth
1644
Original Text Title
Nova Floresta
Original Text Date
1704
Genre
Narrative
Immediate Source Type
Transcript of original print
Immediate Source Edition Level
Edited orthography
Immediate Source Editor
J. Pereira de Sampaio
Immediate Source Date
1949
Immediate Source Rights
Livraria Lello & Irmão
Immediate Source Reference
BERNARDES, Manuel. Nova Floresta (preâmbulo de J. Pereira de Sampaio). Volume I. Porto, Livraria Lello & Irmão, 1949
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À MÃE DA DIVINA GRAÇA
Alocução breve consecratória
Soberana e amabilíssima Senhora, que o sois de todo o Universo, e a quem um servo vosso intitulou Livro Novo, aonde Deus por admirável modo escreveu o seu Verbo sem interior obra de mão humana: Liber Novus, in quo inenarrabili modo Deus Verbum citra omnem operam inscriptus est.
(Joan Damasc, "orat 2 de Assumpt B V")
(Joan. Damasc., "orat. 2. de Assumpt. B. V. " )
, recebei, vos peço humildemente, debaixo de vosso patrocínio este novo livro que sai à luz e sem ele ficará em trevas.
Se fosse atrevimento recorrer a vossos pés tantas vezes, o favor que experimentei nas primeiras teria a culpa das outras.
Como é impossível não serdes tão benigna, impossível é também não serdes tão buscada.
Tão atractiva ficastes, desde que até o Divino Verbo atraístes do seio de seu Eterno Pai, que Anjos e homens, justos e pecadores, sábios e idiotas, grandes e pequenos, todos vos buscam, todos vos invocam, todos folgam de chegar-se à vossa sombra, e escudos mil (isto é inumeráveis) pendem de vós, como da misteriosa Torre de David, para nossa protecção e amparo, e até o vosso nome, ou escrito ou pronunciado ou sòmente imaginado, mantém, alenta, restaura, ilumina e alegra.
Glorio-me que assim seja, ó Santíssima, ó Suavíssima, ó toda formosa e engraçada MARIA, e deste gloriar-me me torno a gloriar em vós e em vosso Filho, meu Salvador, JESU Cristo.
E como não sereis toda engraçada em vós, e para nós toda graciosa, se sois Mãe da Divina Graça?
Dominare nostri Tu, et Filius tuus.
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APOTEGMA
ANTE-PRIMEIRO
E fundamento dos mais
De um Anónimo.
Certo poeta, autor de uma comédia de tramóias, introduziu no teatro uma figura do sol mui galharda e resplandecente, com roupas recamadas de jóia de diamantes e diadema amplíssimo de dourados raios, e nos tirantes da carroça em que ia entronizada pegavam doze figuras em forma de ninfas, símbolo das doze horas do dia que o sol descreve quando toca no equinócio.
Das quais figuras, umas eram de maior estatura, outras de mediana, e outras mais pequenas, conforme se ofereceu achá-las.
Perguntado, pois, pela razão desta diferença tão imprópria ao intento presente, visto que as horas todas são iguais, respondeu, remediando com a discrição o que não pudera com a diligência: Senhores, as horas mais pequenas são as da oração e do servir a Deus; as medianas são as dos negócios; e as maiores são as de dormir, comer, folgar e dar-nos a passatempos.
REFLEXÃO, E razão da obra ao benévolo leitor.
Assim passa, na verdade: todos o reconhecemos; raros o emendamos.
Está uma pessoa ouvindo missa, meia hora o cansa e atormenta, e faz romper em murmurações.
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Está na casa do jogo ou no pátio das comédias, toda a noite ou toda a tarde lhe parece breve.
Vai confessar-se, parece-lhe que desbarata o tempo dos seus negócios, se o confessor o não admite logo; já confessado, anda buscando em que passar as horas e as consome, como Epicuro, em regalos sensuais ou, como Momo, em conversações detractivas ou, como Mercúrio, em levar e trazer rumores vãos: Libet fabulari, inquit, donec hora prætereat.
(Diz
São
S.
Bernardo em nome de um destes
):
:)
Gosto de conversar enquanto se passa a hora.
E, admirando-se logo desta resposta estulta, acrescenta: Ó donec hora prætereat, quam tibi ad agendam pænitentiam, ad obtinendam veniam, ad acquirendam gratiam, ad promerendam gloriam miseratio Conditoris indulserat: Ó enquanto passa a hora! a qual te concedeu a misericórdia de teu Criador, para fazeres penitência, alcançares perdão, adquirires graça e mereceres glória.
Para o intento, pois, de que as horas de Oração não fossem tão breves, já ocupamos a pena em outras obras; nesta pretendemos que as de passatempo não sejam tão longas, porque a lição honesta é um dos proveitosos empregos que lhes podemos dar.
Da que eu tive nos anos atrasados havia recolhido vários Apotegmas (isto é ditos breves e sentenciosos de varões ilustres), porque me agradava achar neles uns como cânones, ou regras familiares e domésticas, que, penetrando o ânimo com sua breve agudeza, desatam ligeiramente os nós dos negócios ou lances duvidosos, como ponderou o político filósofo Francisco Bacónio: Neque Apophtegmata ipsa ad delectationem, et ornatum, tantum prosunt; sed ad res regendas etiam, et ad usus civiles; sunt enim veluti secures, aut mucrones verborum, qui rerum et negotiorum nodos acumine quodam secant et penetrant.
Pareceu-me, pois, dá-los a luz, e
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utilidade pública, em volume pequeno.
Porém depois, por conselho de algumas pessoas entendidas, lhes fiz suas reflexões, nas quais achando ao revê-las mais substância que nos mesmosApotegmas, não duvidei acrescentá-las também por conselhoalheio.
Donde veio a mudar-se o acessório emprincipal e pedir muitos volumes de quarto o que a princípio intentava fosse um só de oitavo.
Levei a mira em meter nos ânimos que não gostam de lição puramente espiritual ditames sãos, verdades sólidas, exemplos doutrinais, envolvendo tudo em outras notícias curiosas, para que em companhia do suave entrasse o útil.
Se acertei na têmpera não me toca o julgá-lo.
Afectei que estas sentenças fossem quase todas de autores cristãos, porque me indignava de que só as dos Gentios (recolhidas já por Catão, Plutarco e Manúcio) subissem aos púlpitos e entrassem nas conversações dos discretos.
E, suposto que estas muitas vezes são breves, redondas e sonoras, contudo não encerram tanta luz e substância de verdades e, por conseguinte, não me serviam tanto para fundar as reflexões, e, todavia, algumas deixei entrar, para maior variedade da obra e por não mostrar que de todo as desprezava.
Vão distribuídas por lugares comuns do Abecedário, porque a miscelânea não prejudicasse à boa ordem; sei que não fizeram assim os sobreditos três autores, nem João Botero e o autor do Democritus ridens; porém são obras mais pequenas e sem parergos nem excursos; além de que, Lourenço Beyerlinch e Conrado Lycosthenes também alfabetaram as suas; do Padre Lyreo não sei que forma seguiu, porque o não pude haver à mão.
Foi discuriosidade minha não citar as fontes donde as tirava; porém naquele tempo não meditava o uso delas público, se não sòmente o meu particular, e asseguro ao leitor que não são inventadas nem adulteradas por mim, como fazem alguns poetas modernos, que, não lhes acudindo a
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musa com conceitos para determinado assunto, fingem o assunto para os seus determinados conceitos.
Querendo o leitor buscar algumas notícias para seus particulares usos, não recorra só à tábua dos Títulos, ou lugares comuns, se não principalmente ao Índex geral das matérias: porque as diversas linhas que procedem de qualquer deles levam a doutrina para mui diferentes lugares.
Outro terceiro Índex, dos varões ilustres cujas são as sentenças, se reserva para o fim da obra.
E não é pequeno louvor deste género de doutrina, dada por respostas sentenciosas, que até MARIA Santissima, Senhora nossa, e Cristo, seu precioso Filho e Sabedoria do Eterno Pai, pudessem, se quiséssemos, autorizar o dito catálogo.
Da Senhora (que por antonomásia ela é a Senhora, e isso quer dizer o seu dulcíssimo nome de MARIA) se escreve que, fazendo uma pecadora pública oração por uma serva de Deus, apareceu com seu benditíssimo Filho nos braços, o qual lhe dizia: Olhai, Mãe minha, como a pecadora pede pela Santa! Ao que a Senhora respondeu: Pois, Filho meu, por amor da Santa, fazei também Santa a pecadora.
De Cristo, nosso Salvador, há muitos Apotegmas no Evangelho, de que apontamos aqui um só por exemplo.
Quando os Fariseus maliciosamente lhe perguntaram se era lícito dar tributo a César, disse o Senhor que lhe mostrassem a moeda do censo, e perguntou cuja era aquela imagem e letreiro que tinha, e, dizendo eles que de César, respondeu: Pois dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus.
Tenho dado vista da matéria, forma e fim da obra: dos defeitos dela mais ao certo a dará o leitor.
Dizia um fidalgo deste reino que três cousas cuidava o homem que tinha e, na verdade, não as tinha: a saber, muita
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paciência, muita ciência e muita benevolência nos amigos.
Se, pois, o meu leitor experimentar em mim esta segunda falta, que é a da ciência, e eu nele a terceira, que é da benevolência, recorramos ambos a emendar a primeira, que é a da paciência.
Vale.
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A
TÍTULO I
ABSTINÊNCIA, JEJUM
I
De Roberto, cardeal Belarmino.
Aconselhava a este santo prelado um seu amigo que, atendendo a suas graves ocupações e contínuos achaques, não jejuasse tanto e se abstivesse de sua mesma abstinência.
Divertiu ele a prática, dizendo graciosamente: Jejuando eu quartas, sextas e sábados, é o menos que pode ser para me salvar.
Como assim? (replicou outro).
Olhai (respondeu o cardeal) Cristo disse que, se a nossa virtude não excedesse a dos Fariseus, não nos salvaríamos; o Fariseu jejuava dois dias na semana: logo, para eu me salvar, ao menos hei-de jejuar três.
ILUSTRAÇÃO
I
§.I.
Dos dois jejuns do Fariseu, um (disse o
Beato
B.
Alberto Magno) era para ostentar, outro para poupar: Semel ad ostentationem, semel ad avaritiam.
Porque, como notou
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Santo Agostinho, jejua o enfermo para recuperar a saúde; o enfastiado, para abrir a vontade; o avarento, para amontoar a fazenda; e o hipócrita, para afectar virtude: Æ grotus jejunat ut valeat, fastidiosus ut appetat, avarus ut parcat, hypocrita ut appareat.
Mas os três jejuns de Belarmino todos eram para mais assegurar a salvação, seguindo a sentença do Salvador: Quem é justo, justifique-se mais; e quem santo, mais se santifique.
E, assim como é próprio dos avarentos, por muito que possuam, parecer-lhes tudo necessário para esta vida, assim é próprio dos timoratos, por muitas obras santas que exercitem, todas reputar por necessárias para a vida eterna: de sorte que (segundo disse um discreto) não lhe basta o que basta, só basta o que sobeja.
Do apelido Belarmino, concordando com a inocência e pureza deste santo cardial, podemos dizer, com Santo Ambrósio em outro assunto, que contribuiu também para a celebridade de seus encómios: Ne nomen quidem vacuum laudis est.
Belarmino vale o mesmo que Belo Arminho.
Este animalzinho, a que os franceses chamam hermine, e os latinos vàriamente mus hermelius, ouarmenius, mustella Alpina, eriminius, é certa espécie de doninha grande ou lebre pequena (que um e outro nome lhe dá Gesnero) própria de Moscóvia, Helvécia (que é a região dos suízaros) e dos montes Alpes, de cujas perpétuas neves traslada a cor alvíssima e o pêlo sumamente subtil e mimoso.
Aborrece por isso extremamente o manchar-se, e esta é a causa de perder a liberdade e vida.
Porque, sitiando-lhe os caçadores com lodo as veredas e covil aonde fugitivo vai amparar-se, temendo passar
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com detrimento de sua pureza, pára e ali facilmente é colhido.
Pelo que, é jeroglífico da inocência, com a letra: POTIUS MORI, QUAM FÆDARI: Antes morrer que manchar-me: e da castidade, com estoutra equivalente: CANDOREM PRÆFERO VITÆ: Sem candor vida não quero.
Tal deve ser o varão casto e justo, preferindo os candores da celestial graça aos alentos da mortal vida, e querendo seu corpo e alma antes desunidos que maculados.
Summum crede nefas animam præferre pudori; Et propter vitam vivendi perdere causas.
E tal foi Belarmino, do qual abonadas testemunhas afirmam haver conservado a graça baptismal por toda a vida, que chegou quase a 79 anos, e cuja pureza e inocência de costumes foi tão rara que nem pecado venial admitiu com deliberação plena.
Sendo uma vez em sua presença louvado deste singularíssimo privilégio, que tantas virtudes supõe e tanta graça demanda, o Irmão João Bercmans, da Companhia de Jesus, suspendeu-se um pouco o cardeal, como que examinava a consciência, e saiu dizendo, com a singeleza e verdade que nele foi sempre conhecida e venerada: E, pois, quem há-de ser tão atrevido que cometa pecado venial, advertindo que o comete?
E logo, reparando outro pouco, acrescentou: Pelo menos, eu não me lembro havê-lo feito jamais: não me lembra havê-lo cometido em toda minha vida.
Eis
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aqui o Belo Arminho,que, apesar das ocasiões que o mundo, carne e diabo lhe ofereceram(foi ilustre por sangue, sobrinho do papa Marcelo II e ocupou perigosos quanto altos lugares), não pôde em tão longa carreira ser colhido destes famosos caçadores, que era o mesmo que manchar sua pureza.
Com semelhante nome em semelhante castidade floresceu também
Santa
S.ta
Ermellinde, donzela francesa.
Andavam à sua caça dois lascivos amantes, e, tendo já deliberado furtá-la na igreja aonde de noite orava, corrupto com ouro, para lhes abrir as portas, o mesmo que tinha a seu cargo guardá-las, a voz de um Anjo a avisou oportunamente, clamando: Ermellinde, foge, foge depressa, Ermellinde, e guarda a virgindade que a Deus dedicaste.
Ouviu a santa, obedeceu e salvou-se do perigo: que a castidade tem sua defensa na fugida, e a fugida seus avisos na oração.
Depois de uma vida mortificada, dormiu uma morte preciosa: as Angélicas Ordens lhe assistiram com descantes e lhe deram sepultura da qual, sendo dali a 48 anos conhecida e aberta por indício da mesma celestial música que ali soava, brotou uma copiosa e clara fonte de vários e notáveis milagres.
Tanto agrada a Deus a pureza, tanto se reveste a glória de Cristo destes arminhos.
Como, logo, poderão agradar-lhe os que não fogem do perigo, antes o amam e buscam?
Os que parece haver só nascido para pecar, e que lhes não deu o Criador o corpo mais que para servir com ele à torpeza?
os que em poucos anos de alvidrio contam já (se é que os sabem ou querem contar) muitos pecados mortais?
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II
§. II.
Oito seitas houve no povo judaico, nos tempos mais próximos a Cristo: a saber, Saduceus, Escribas, Fariseus, Hemerobaptistas (assim ditos porque se baptizavam cada dia), Nazareus, Esseus, Herodianos, e Galileus.
Entre todas a principal foi a dos Fariseus, e se deriva este apelido da raiz hebraica Pharas, ou Phares, que se interpreta separar ou distinguir, declarar ou expor, e estes homens estavam como separados do mais povo, professando certo modo de vida mais santa e religiosa, ao menos na aparência, e os Escribas, que era um ramo dos Fariseus mais letrados, expunham e declaravam a Lei Divina e mais Escrituras santas.
Por onde dizer entre os hebreus Fariseu era o mesmo (diz Santo Agostinho)que quer dizer entre nós o egrégio ou distinto.
Levantou-se esta seita de 180 anos antes da vinda de Cristo, em tempo de Jónatas Macabeu, como quer Nicolau Serário e se colhe de Josefo, suposto que
São
S.
Jerónimo a faz muito mais moderna e lhe assina por autores a Samai e Hilel.
Pode ser que estes restaurassem o Instituto já antiquado.
E, na verdade, bem era que tais autores o fundassem ou renovassem, porque Samai quer dizer dissipador, e Hilel profano, e os Fariseus, a título de conservarem a Lei e tradições, a dissiparam, e suas santificações pararam em profanidades.
Guardavam castidade por certo tempo, mais ou menos breve; uns por 10 ou 8, outros por 6 ou 4 anos.
E para este efeito usavam de cama dura em traves ou
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seixos do rio ou espinhos do mato, e de mesa parca e de manjares ordinários e sem regalo; e jejuavam dois dias cada sábado, isto é cada semana, que era às segundas e quintas-feiras, e ainda quando casados não se chegavam a suas mulheres quando pejadas, para mostrar que não buscavam outro fim fora da propagação, e, se usavam de banhos, entravam com alguma roupa interior, para maior honestidade.
Andavam com mantos algum tanto semelhantes aos das mulheres, e chinelas largas, e nas fímbrias ou roda da túnica traziam fincados agudíssimos espinhos, para que ao alargar o passo se picassem, tomando isto por despertador do serviço de Deus.
Ensinavam no templo e nas sinagogas, onde para esse efeito tinham três distintas ordens de assentos: na primeira, cadeiras, com suas preferências pelos ofícios e antiguidades, e por isso o Senhor repreendeu a sua ambição, com que apeteciam as primeiras cadeiras e o título de Mestres: Amant... primas cathedras in synagogis, et salutationes in foro, et vocari ab hominibus Rabbi; na segunda, bancos; na terceira, a ínfima, esteiras, onde se assentavam os mais moços, ouvindo aos Mestres; que por isso
São
S.
Paulo disse de si que fora criado aos pés de Gamaliel: Secus pedes Gamalielis eruditus juxta veritatem paternæ legis.
Eram pontualíssimos em cumprir os votos e pagar os dízimos, até da hortelã, cominhos, endros e arruda, sendo que por outra parte não guardavam em casos graves nem justiça sem misericórdia.
Entre outros vários erros, tinham, supersticiosos,
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para si que todas as cousas aconteciam por força do fado (como afirma Josefo, que também foi desta seita) e que as estrelas eram animadas, e admitiam em parte a metempsicose platônica (como traz
São
S.
Epifânio),isto é a transmigração das almas de uns corpos em outros, crendo que as dos maus ficavam no inferno, mas as dos bons tornavam a este mundo.
Por isso correu fama que Cristo era Elias ou Jeremias ou algum dos profetas antigos redivivo.
Mas os étnicos ampliavam esta quimérica transmigração até para os corpos dos brutos; por isso, disse galantemente Tertuliano: "Teme um homem matar a sua vaca, porque acaso não coma alguma posta de sua avó
".
."
Tinham ganhado para com o povo tanta opinião de letras e virtudes que todos se inclinavam para onde eles faziam pendor.
E com isto perseguiram depois ao Salvador do mundo, levantando voz de que era contrário à lei, enganador das turbas, profeta falso, pactário com Belzebu, amigo de gente ruim, blasfemo contra Deus, ambicioso de reinar e mais digno de morte que Barrabás, homicida sedicioso, sofrendo tudo o mansíssimo Cordeiro de Deus para exemplo e consolação dos seus servos, que o devem seguir pela boa e má fama, como disse o apóstolo, na realidade verdadeiros, na opinião enganadores.
Chegou a tanto a autoridade destes homens que em tempo da rainha Alexandra, mãe de Hircano e Aristóbulo, sumos sacerdotes, administraram o governo de Judeia, ficando ela só com o nome.
Então renovaram
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seus institutos, que estavam antiquados, e fizeram muitas mortes, e por seu meio Joanéo executou aquela cruel matança de oitocentos cidadãos juntos.
Nem duvidavam detrair dos mesmos reis e sumos pontífices e opor-se a eles claramente: Genus hominum (escreve o seu Josefo) astutum et arrogans, et interdum Regibus quoque infestum, ut eos jam apertè impugnare non vereantur.
E traz o caso de quando os judeus juraram fidelidade ao César e a el-rei Herodes, por ele constituído; e só eles, que eram alguns seis mil, não quiseram tomar tal juramento.
Consta do sobredito que toda a santidade destes homens era superficial, aparente e cerimoniática, havendo entre ela e a verdadeira a infinita diferença que vai da arte à natureza, porque a natureza, ao formar um corpo humano, começa do coração e mais entranhas e acaba na pele, e a arte ao esculpir uma imagem trata só do exterior e nunca chega dentro: Ars pictoris, aut sculptoris (disse Ivo Parisino), externa tantùm pingit, et exprimit, de corde nihil curat: sic hypocrisis, blanditur oculis.
Por onde o poeta lírico diz muito bem em nome de qualquer destes:
... Pulchra laverna Da mihi fallere, da justum sanctumque videri, Noctem peccatis, et fraudibus objice nubem.
Aquele Senhor, pois, que é a mesma verdade, e veio ao mundo como Mestre e Luz do mesmo mundo, não era bem dissimulasse com estes homens, e assim os tratou de hipócritas, cegos e guia de outros cegos, serpentes, filhos de víboras, geração má e adúltera (porque se apartavam de Deus, chegando-se ao demónio, que assim
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explica esta palavra
São
S.
S. Jerónimo), sepulcros formosos por fora, cheios de corrupção por dentro (como o mesmo nome sepulchrum insinua: idest semi-pulchrum) e disse deles que purificavam a taça pela parte exterior, e pela interior a deixavam imunda, e que coavam o mosquito, engolindo o camelo, e que, fazendo granjearia da piedade, escorchavam as casas das viúvas, e outras verdades puras, que arderam tanto à sua soberba e estimação própria que vieram a pôr o Senhor em uma cruz, arredando a mão com simulada religião: Nobis non licet interficere quemquam, ao mesmo tempo que a chegavam com manifesto sacrilégio: Crucifige, crucifige eum.
III
§ III
O jejum da quarta e sexta-feira foi estilo que emanou dos sagrados apóstolos, como se colhe de
Santo
S.to
Inácio Mártir, Tertuliano e Orígenes, e traz Barónio;
São
S.
Clemente Alexandrino diz que há enigma ou mistério nestes dias: se inquirimos qual, responde o mesmo
São
S.
Clemente que por ser a quarta dia de Mercúrio e a sexta de Vénus, e por cobiça de fazenda e fome de deleites vêm ao mundo todos os excessos que se redimem com o jejum.
Porém
São
S.
Epifânio e
Santo
S.to
Agostinho dizem que se renova nestes dias a memória da morte do Salvador, que foi à sexta-feira, e do concílio dos Fariseus e Príncipes dos Sacerdotes, que para isso fizeram, que foi à quarta.
Este jejum era perfeito, e não se comia até hora de nona: andando o tempo (norte agudo que esfria os
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fervores do espírito), ficou só a abstinência de carne à sexta-feira e sábado.
E ainda neste era cousa execrável o jejuar, se falamos dos princípios da Igreja Oriental.
Tanto assim que
Santo
S.to
Inácio disse que, se alguém jejuasse aos domingos ou sábados, excepto o da Semana Santa, esse tal era matador de Cristo: Siquis Dominicam diem, uta Sabbathum (uno excepto) jejunarit, hic Christi interfector est: isto é (como explica o
Padre
P.e
Azor) protesta ou parece querer dar a entender, com o penoso e triste da abstinência, que Cristo de tal modo morreu à sexta-feira que não ficou livre de tormentos ao sábado e da mesma morte ao domingo.
E nos cânones dos apóstolos se ordena que, se alguém for achado guardar jejum ao domingo ou sábado, seja deposto, se é clérigo, e, se leigo, excomungado: Siquis Clericus Dominicum diem, aut Sabbathum (uno solo dempto) jejunare deprehendature, deponitur; sin autem laicus, à Communione dejicitur.
O mesmo diz
São
S.
Clemente Romano nas Constituições Apostólicas.
Queriam aqueles cristãos da Igreja Oriental detestar por esta via o erro dos hereges que afirmavam ser mau e ímpio o Deus dos judeus por haver feito as coisas deste mundo visível, e, como os judeus festejam os sábados, estes, pelo contrário, em abominação sua, o jejuavam.
Teve o dito erro princípio em Simão Mago, e passou a Menandro, Saturnino, Basilides, Cerinto e Carpocates, como dizem
São
S.
Irineu e
São
S.
Epifânio.
Pelo contrário, pois, os cristãos, que confessam o verdadeiro Deus por Criador, assim das cousas visíveis como das invisíveis, revirando o costume, proibiram jejuar ao sábado, antes o
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festejavam, como traz Sócrates, excepto ùnicamente o da Semana Santa, em memória da solidão e tristeza dos apóstolos naquele dia.
Porém, como a dita heresia não se espalhou cá na Igreja Ocidental, introduziu-se o jejum do sábado, e escreve
Santo
S.to
Agostinho que a causa se dizia ser por haver o Príncipe dos Apóstolos
São
S.
Pedro entrado em desafio com Simão Mago ao domingo, havendo-se preparado a si e aos mais fiéis com o jejum do sábado.
A mesma aponta Cassiano nas Colações, mas Inocêncio diz que é em memória da clausura e tristeza do colégio apostólico em sábado santo.
E não sòmente em Roma ficou este costume, senão que passou a outras muitas igrejas, como consta dos concílios Eliberitano e Agatense e de muitos Padres.
Os fariseus (como já dissemos) jejuavam segundas e quintas; os maniqueus domingos e segundas, como se vê em
São
S.
Leão Papa: os étnicos também tinham seus jejuns determinados, como consta de Tertuliano,
São
S.
Hierónimo, Arnóbio e Plutarco, e chamavam a isto Coração dos Deuses, isto é, ter cuidado de os cortejar e ser-lhes oficiosos.
Do jejum das quartas e sábados em honra da Virgem Senhora
Nossa
S. N.
, sendo em si louvável, abusaram alguns, vinculando-lhe a promessa infalível de não haver de morrer sem confissão sacramental; disto trazem exemplos Tomás de Cantiprato, Cesário e Pelbarto.
Porém não
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consta de tal promessa: antes em um sínodo Cameracense foi condenado geralmente o anexar semelhante privilégio ao culto de qualquer santo, suposto que ordinário é à Mãe da Divina graça negociar fiel e poderosamente que não morram seus devotos sem a final.
II De
Dom
D.
João de Palafox, bispo de Osma.
Não usando de chocolate este venerável prelado, formaram disto alguns matéria de reparo, por haver no seu bispado (que era então La Puebla de los Angeles) os melhores ingredientes daquela solene bebida.
Respondeu-lhes: Não o faço por mortificar-me, senão porque não haja em minha casa quem mande mais que eu, e tenho observado que o chocolate é alimento dominante que, em se habituando a ele, não se toma quando a pessoa quer, senão quando quer ele.
DOUTRINA
Por isso disse
Santo
S.to
Ambrósio que o deleite não sabe ter modo: Modum nescit ponere voluptas.
E, ainda que se aquiete quando satisfeito, é para nos tornar a inquietar mais faminto: Recedit, atque decrescit (diz Ricardo Vitorino) ut iterum redeat, et crescat.
Estranhou
São
S.
Carlos a um criado haver bebido fora de horas, ainda que em tempo calmoso.
Acudiu ele, desculpando-se, que não era mais que enxaguar a boca.
Amanhã (replicou o Santo) a estas mesmas horas haveis de tornar a enxaguar-vos e beber quanto quiserdes.
Por onde quem deseja estar livre do pecado não deve consentir sobre si o domínio dos apetites: Si mei non fuerint dominat, tunc
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immaculatus ero.
Porque o admitir estes é como dar alojamento a soldados, dos quais se diz que no primeiro dia são hóspedes comedidos, no segundo amigos confiados, no terceiro senhores insolentes.
Tão certo é que o chocolate domina nos que a ele se costumam, e se toma quando ele quer, que em uma terra de Castela, para maior regosijo de umas bodas, mandou o noivo fazer uma fonte de chocolate, que correu todo aquele dia pùblicamente para todo o povo.
Devia haver dentro em casa preparadas grandes caldeiras ao fogo, e muitos ministros ralando o material, e batendo-os com desmedidos molinilhos, e desta mina, por secretos condutos, se ia cevando aquela fonte.
Mais é, que em algumas terras daquela mesma Coroa é ordinário, em acabando de comungar e dar graças, tomar-se nas capelas das igrejas, levando para isto de casa os aparelhos necessários, que nunca serão tão poucos como é de crer que são os que levam para receber o Santíssimo.
Nunquid domos non habetis ad manducandum, et bibendum? an Ecclesiam Dei contemnitis? se pudera aqui dizer com o Apóstolo: Porventura não tendes casa onde comais e bebais, e vindes desprezar a igreja? Porque que outra cousa é senão desprezá-la fazer a nossa cozinha a par dos seus altares? Outros sobem tão de ponto seus elogios que não falta quem diga que, se os entendimentos comessem, havia de ser chocolate.
Muito jejua o entendimento de quem, por enobrecer uma cousa tão vil, envilece outra tão nobre e, por fazer um estômago como de anjo, faz uma alma de cacau.
Sim, come o entendimento, não as cousas terrenas, como queria aquele néscio, que dizia: Alma minha, regala-te, come e bebe; mas a contemplação
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das verdades, e, quando na mesa de Deus comer a primeira de todas, que é ele mesmo, então será farto: Satiabor cùm apparuerit gloria tua.
Esta magnífica promessa de Cristo esperamos pelo mesmo Cristo, que disse: Eu disponho para vós o Reino, como meu Pai o dispôs para mim; para que comais e bebais à minha mesa no meu Reino.
Não é fabulosa esta ambrósia, porque é verdadeiro este Deus.
III Do mesmo
Dom
D.
João de Palafox.
Abominando este prelado o uso do vinho puro, dizia: Que só era bom para consagrar, porque ali totalmente muda de substância, e que o pecado mais digno de perdão era o dos taverneiros que aguavam o vinho, porque com esta transformação atalhavam muitos danos de corpo e alma.
EXPLICAÇÃO E PARERGO
Fala do vinho que se prepara para a missa; ao consagrar-se, já não deve ser puro, mas temperado com água (por preceiro da Igreja em muitos concílios), ainda que modicíssima, como diz o Florentino.
Porém, se a não pudesse o calor do vinho converter em si antes da consagração, ainda assim querem gravíssimos
Autores
A A.
que, sobrevindo a consagração, fica transubstanciada imediatamente
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no sangue de Cristo e que nada está naquele cálice que os fieis não devam adorar.
Ocorre-me, de caminho, que não sòmente o vinho para a missa deve ser puro, senão que talvez se conserva puro o vinho por virtude da missa.
São
S.
Pedro Maurício, chamado o Venerável, abade da memorável família Cluniacense, nas suas Constituições ordena que o monge que tiver a seu cargo tirar vinho para as missas da noite de Natal tire um pouco de cada tonel ou vasilha de todas as que estiverem na adega, porquanto diz que há experiência certa de que a vasilha donde se tirou o vinho para as missas daquela felicíssima noite não se turba nem esfria nem azeda.
O conselho de aguar o vinho é de Platão, que dizia misteriosamente que o Deus Líbero se casasse com as ninfas, ou linfas.
Casado, então se amansa e multiplica, conforme aquele vulgar verso Lymphatum crescit, dulcesti, lædere nescit.
Mas, sendo puro, generoso e em quantidade, os danos que causa no corpo são que ofende o fígado, baço e cabeça, como penetrador máximo.
Os da alma são que fomenta o concupiscível, irrita o irascível e ofusca e perturba o racional; e, assim, por sua causa padecem naufrágio ou pelo menos, grave tormenta as virtudes da Castidade.
Modéstia, Silêncio, Mansidão e Prudência.
Tudo ajuntou Salomão dizendo: Luxuriosa cousa é o vinho, e a embriaguez tudo confunde com tumultos; não será sábio quem se lhe afeiçoa.
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A tanto chega este dano da parte racional que juntamente move a grande riso e a grande lástima.
O outro, depois de bem ceado, saindo uma noite de luar para ouvir a missa do galo, ajoelhou no pátio e, olhando para o céu, batia nos peitos e dizia, com grande fervor e muitas lágrimas: A mim, pecador, duas luas!
Já houve quem ordenou no seu testamento que à hora da morte lhe fizessem emborcações de vinho sobre a boca até expirar.
Quem não vê que também era efeito do mesmo licor da planta de Noé dispor esta verba em testamento, o qual se não havia de abrir senão depois dele morto?
Mas enfim a água apaga o fogo e o vinho a razão (disse
São
S.
Basílio
):
:)
Quemadmodum aqua contraria est igni, sic immodestia vini rationem extinguit.
São
S.
Carlos Borromeu admoestou e reduziu a este miserável e fez que rasgasse tão infame testamento.
Pior sucesso tiveram uns soldados (eram quinhentos, parte ingleses, parte holandeses) que saltaram no galeão
São
S.
Filipe de Espanha, estando sobre a barra de Neoporto, naquela infausta jornada do ano de 1588.
Havia no baixel muito e bom vinho, em que tanto se entregaram que, advertindo que estava crivado ao lume da água pela artilharia inimiga, de repente dando o vaso uma volta em redondo (porque também tinha bebido), os sumiu consigo a pique, ficando em questão quem teve maior parte no seu naufrágio, se Baco se Neptuno.
Em terra foi outro naufrágio de dous suízaros, que se desafiaram com as taças, como lá Dares e Entelo com os cestos, e andaram tão porfiados vin-háurias (assim
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chamou
Santo
S.to
Agostinho aos fortes bebedores) que nenhum quis ceder e ambos ficaram mortos no lugar do conflito, que era a taverna, para terem à mão as armas.
Os gregos chamam bria a certa medida por onde se bebe; por isso dizemos sóbrios os que não chegam a ela, e ébrios os que passam.
Para gente que fazia brio de passar da bria, a taverna era lugar assaz honrado em vida e em morte.
E, já que se sepultaram em vinho, e daí no inferno, punhamos-lhes por epitáfio sobre a campa da sua infâmia aquela letra de Isaías: Væ qui potentes estis ad bibendum vinum, et viri fortes ad miscendam ebrietatem: Ai dos que sois esforçados no copo e valentes na competência da ebriedade! Eis aqui, pois, os danos da alma que causa a intemperança; não podem ser maiores que os que topam em perdê-la eternamente.
IV Do Abade Isidoro.
Sempre que este santo varão comia, chorava.
Perguntando-lhe a causa, respondeu: Vergonha tenho de que, sendo criado para me sustentar da face de Deus no Céu, necessito de comer manjares na terra; e que, havendo de viver com os Anjos, me é forçoso ser semelhante aos brutos.
REFLEXÃO
Bem podia dizer com Job: Antequam comedam, suspiro: Primeiro que entrem os bocados, saem os suspiros.
Ou com David: Potum meum cum fletu miscebam: Do que eu bebia, era tempero o que eu chorava.
O avesso
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disto são os mundanos: a cuja mesa assistem o riso, a chança, a música, o desafogo e o esquecimento dos bens eternos.
Estes têm o seu ventre por deus, como diz o Apóstolo; ou outros por tirano.
Estes lhe dão culto voluntário; os outros tributo violento.
Super flumina Babylonis, illic sedimus et flevimus, cùm recordaremur Sion.
As abundâncias deste mundo são rios de Babilónia, onde uns se mergulham dentro, outros sòmente se assentam à borda, aquelles por regalo, estes por necessidade.
Quem tem os olhos em Sião, pátria sua, junto aos rios de Babilónia faz dos seus olhos rios; quem se não lembra de Sião, como há-de chorar em Babilónia?
E, se tem o sentido vivo para as cebolas do Egipto, como o não terá boto para o maná do deserto?
Comer saboreando-se e gozando-se nos manjares não é de homens, mas de animais imundos, que a toda a pressa e com toda a aplicação grunhem, e fossam, e se atolam no lameiro.
A alma racional, que segue as pegadas destes, bem mostra ignorar a sua formosura de ser criada para sustentar-se de Deus: Si ignoras te, ò pulcherrima inter mulieres, egredere est abi post vestigia gregum.
Do animal chamado alche escreve Solino que tem forma de mulo e o beiço de cima tão grande que para pastar lhe é necessário ir sempre recuando.
Estes que, por fartar-se dos gostos terrenos, cedem os espirituais, certo é que andam para trás e são alches de beiço grande.
Tal foi Esaú preferindo umas lentilhas bem cozidas aos foros da sua primogenitura.
Quando o pródigo trouxe à memória
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o muito e bom pão de casa de seu pai, então começou a aborrecer a miséria das cascas dos animais de que vivia.
Por que razão ia
São
S.
Bernardo para o refeitório com tristeza e pena e ali, não discernindo os sabores, tomava uma cousa por outra?
Por que razão
São
S.
Pedro de Alcântara ordinàriamente comia de três em três dias; e
Santa
S.ta
Coleta jejuava uma Quaresma inteira a pão e água; e
Santa
S.ta
Isabel Taumaturga outra sem provar cousa alguma?
Moravam com o corpo na terra, mas com o espírito no Reino de Deus, que não consiste em comer e beber senão em virtudes e paz e gozo no Espírito Santo: Non est enim Regnum Deo esca, et potus, sed justitia et pax et gaudium in Spiritu Santo.
Só do cheiro que trouxe do céu
São
S.
Sálvio bispo em uma visão admirável, não pôde depois provar bocado em três dias.
Só de empregar
Santo
S.to
Inácio os olhos nesta vastidão e altura dos campos estrelados, não podia depois olhar para as coisas terrenas.
Oiçamos neste ponto a lira do padre Líreo falando em nome de seu santo patriarca: Vos astra testor, agmen in Cælo vigil, Orbisque sempiternus errantis chorus, Divinitatis intimæ scena extima: Dum vos avaro sæpe conspectu fruor Dedisco rerum pretia: nunc gemmæ jacent, Jam pallet aurum, non habet flores humus: Et quæ placebant antè, nunc sordent opes.
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V De
Santo
S.to
Otão, bispo de Bamberga.
Era parcíssimo na mesa e repartia pelos pobres e enfermos tudo o bom que para ela preveniam seus ministros.
Um dia de jejum, lhe puseram diante certo peixe de grande estimação, esquisitamente cozinhado.
O Santo, em vez de mostrar no gesto os primeiros movimentos da vontade de o comer, entristeceu-se.
O mordomo o exortava a que recebesse aquela pequena bênção da mão do Criador, pois necessitavam de alguma interpolação em suas abstinências, contínuo trabalho.
Perguntou o Santo: Custou ele algum dinheiro?
Respondeu-lhe: Sim, senhor; dois escudos.
Não queira Deus (disse o Santo, afastando o prato) que o meu ventre me custe tão caro: andai depressa, levai-o a meu Senhor Jesus Cristo (assim chamava a qualquer pobre), que a mim, estando são e robusto, um pedaço de pão me basta.
REFLEXÃO E DOUTRINA
Os que socorrem a necessidade alheia com o que subtraíram ao gosto próprio são ambidextros, como o famoso Aod, que a Escritura celebra.
Tal era este santo prelado, verificando-se nele aquela sentença de
São
S.
Leão Papa: Impendamus virtuti quod subtrahimus voluptati: fiat refectio pauperis abstinentia jejunantis: Abatamos as despesas da caridade das quantidades do regalo; converta-se em refeição do pobre o jejum do abstinente.
Deste modo enchia de um só lance todas as medidas da justiça, que são haver-se pio com Deus, caritativo com
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o próximo e rigoroso consigo: Imple mensurum justitiæ (disse
São
S.
Lourenço Novariense): quomodo?
Orando, vigilando, erogando, jejunando; quin etiam parcimonia pulsando, negligendo delicias, et nutriendo disciplinam, fugiendo festivas dapes, et frugalitatem ferendo, deponendo pinguedinem, et diligendo pallorem.
Como a temperança é própria da mesa de um bispo está definido pelo apóstolo: Oportet Episcopum sobrium esse.
Em cuja conformidade, disse o concílio Cartaginense IV que a alfaia do Bispo fosse vil e a mesa pobre e que o decoro da sua dignidade lhe saísse da sua fé viva com exemplares procedimentos.
Semelhante instrução lhe dá o Tridentino, referindo-se a este Cartaginense.
E me parece a segue bem certo prelado grande deste reino, cuja mesa me consta ser tão parca que todas as despesas dela se gizam do estipêndio da sua missa, que é ordinário, como o de qualquer de seus capelães, um dos quais corre com o cuidado de assinar-lhe a tenção e arrecadar a esmola.
Mas por isso o dito prelado tem com que se ajude mais a fazer fundações, reedificar mosteiros, dotar órfãs, prover hospitais e atalhar vários perigos que consigo costuma trazer a necessidade.
A razão daquele oportet de
São
S.
Paulo toma o Angélico Doutor do excelentíssimo grau em que os bispos estão colocados, ao qual pertence essencialmente governar com discrição e edificar com exemplo os súbditos.
E primeiramente a gula, como mãe que é da estultícia,
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repugna à sabedoria, que é a que deve morar e colaborar com os que governam, como o Sábio pediu a Deus, e o jejum, como bom companheiro que é da oração, concilia por via desta os dons da ciência, entendimento e conselho.
Pelo que, veio a dizer
São
S.
Clemente Alexandrino que debalde trabalha pela sabedoria quem enterra o seu espírito no seu estômago, e que se torna semelhante ao peixe "oros" (em latim aselus, porque tem a pele semelhante à de um burrinho), do qual escreve Aristóteles que só ele, entre todos os animais, tem o coração no ventre.
Não quis por certo
Santo
S.to
Otão converter-se neste peixe, quando não quis converter em si aqueloutro.
Impede também a glutonaria do prelado a edificação dos súbditos, porque esta há-de padecer do seu bom exemplo, e impossível será fazer sombra direita a vara torta, ou, pelo menos, mui difícil que os cordeirinhos nasçam de diferente cor da que suas mães, ao conceber, viram nas varas que Jacob lhes pôs nas pias.
Por isso disse o "Eclesiastes": Ai de ti, ó terra cujos governadores almoçam cedinho: Væ tibi, terra, cujus principes manè comedunt.
O que gravemente ponderou
São
S.
Bernardo naquela famosa carta a Henrique, arcebispo Senonense: Em que nos diferençamos meu pastor e eu, que sou ovelha sua, se ele também anda encurvado sobre a terra, buscando que pastar e trazendo o espírito em
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jejum, o corpo em regalos?
Oh grande desgraça!
Quando o lobo acometer, quem sairá à defensa do rebanho?
VI
IV
Da Imperatriz
Dona
D.
Leonor.
Havendo alguns anos que esta senhora, filha de El-rei
Dom
D.
Duarte de Portugal, era casada com o Imperador Frederico III sem ter dele filhos, aconselharam-lhe os médicos que usasse de vinho, para lograr a desejada fecundidade.
Ao que ela respondeu com graciosa modéstia: Oh que mal parecerá beber eu, sendo mulher e portuguesa, não bebendo o imperador, sendo homem e alemão?!
QUESTÃO
Das duas diferenças que esta princesa considerou, uma das nações, outra dos sexos, ilustremos só esta segunda, que é mais clara e menos odiosa.
Perguntará alguém por que razão o uso de vinho em mulheres mais se estranha e repreende?
E responde-se que porque devem observar mais atentamente as leis da castidade, modéstia e silêncio, nos segredos de sua casa e na presença dos homens; e contra todas estas virtudes, peleja aquele licor fogoso e atrevido.
Primeiramente, peleja contra a castidade.
Claramente o disse
São
S.
Paulo: Nolite inebriari vino, in quo est luxuria: sed implemini Spiritu Sancto: Não vos demasieis no vinho, em que há luxúria, mas enchei-vos do Espírito Santo.
Onde parece supor o apóstolo duas sortes de vinho, um em que há fervor casto, e este é o Espírito Santo, outro em que há fervor lascivo, e este é o vinho
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material.
E não disse que este fervor lascivo está no que bebe o vinho, senão no mesmo vinho, porque já desde a vide leva consigo este mal, como efeito dentro da virtude da sua causa.
Aqui se mostra com quanto acerto e propriedade o anfiteatro onde em Roma se celebravam antigamente as festas de Baco estava pegado ao templo de Vénus, porque têm imediata vizinhança e correspondência íntima as insolências destes dois vícios.
O vinho queimado serve (diz um autor físico) para amansar as febres.
Porém, sendo, a juizo de
Santo
S.to
Ambrósio, a ira e a luxúria febres: Febris nostra iracundia est, febris nostra luxuria est, o vinho que nos queima serve para acendê-las.
Nas piras, ou fogueiras solenes, dos defuntos, costumavam derramar vinho para mais se atearem.
Se este licor ajuda a se abrasarem os corpos defuntos, quanto mais ajudará a se acenderem os corpos vivos? Nam Venus in vinis, ignis in igne subest.
Esta é também a razão daquela severíssima lei das XII Tábuas que permitia ao marido matar a mulher que bebesse, não menos que se adulterasse: Si vinum biberit, domi ut adulteram poniunto.
E Rómulo a reteve e confirmou, supondo que daquele a este excesso era fácil o trânsito.
Desta Permissão, usaram muitos: em particular, um Inácio Metelo, de quem escrevem Tertuliano e Plínio que matou a sua mulher com um pau pela achar no tal furto.
Idque factum (acrescenta Valério Máximo) non accusatore tantum, sed et reprehensore
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caruit: Que este feito careceu não só de parte que o acusasse, mas também de censor que o repreendesse.
À outra, por nome Fauna, tirou o marido a vida a açoites com varas de murta.
Devia ser que, por mais delgadas e compridas, as teve por mais acomodadas para o suplício, se já não foi por ser esta árvore dedicada ao amor conjugal (donde se intitulou Vénus Mírtea) que era quem neste caso se dava por mais ofendido.
Cneio Domício portou-se mais humanamente, contentando-se com privar do dote a criminosa.
Também indica severa observância desta proíbição o que escreve Blondo, haver visto uma antiga escritura de casamento, em que o esposo pactava com o futuro sogro conceder a sua mulher vinho os oito dias seguintes a cada parto e, além disso, nas doenças por conselho dos médicos e nos dias de festa uma vez sòmente.
E, finalmente, a mulher vinolenta fica solitária de si mesma, porque se lhe vão de casa o juízo e pudor, que eram suas guardas, e, por conseguinte, exposta a atrevimentos alheios, ou casuais ou pensados.
... Mulier multo madefacta Lyæo, Digna est concubitus quoslibet illa pati.
Também a Modéstia não tem concórdia com Baco.
Este, que por outro apelido se chama Dionísio, porque fingem ser filho de Júpiter, e criado em sua meninice pelas ninfas da cova Nisa em um alto monte, teve também o nome de Líbero, ou livre, pela liberdade que traz consigo, assim na língua como nas acções e mais costumes, e o de Baco, pelo clamor descomposto das vozes.
Ao redor da sua carroça, levada por tigres ou panteras, iam uns monstros ridículos, ou demónios, chamados Combalos
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e Acratos, saltando e brincando com disformes gestos.
E a mitologia da fábula (segundo expõe Francisco Bacónio) era significar as perturbações do ânimo e meneios de rosto indecorosos de que a intemperança se acompanha, porque não deixa a atenção necessária de um sobre si mesmo, para que refreie os saltos destes Combalos e Acratos.
Omnis enim affectus vehementior (diz este filósofo) progignit motus in oculis, et ore ipso, et gestus indecoros, et iconditos, subsultorios, et deformes.
Ovídio também ao intento: Nox, et amor, vinumque nihil moderabile suadent: Illa pudore vacat, liber, amorque metu.
A noite, o vinho e o amor Em nada sabem ter modo, Porque carecem, de todo, Ou do medo ou do pudor.
Às vezes esta falta de modo se mistura também no exercício da oração, equivocando-se o fervor do estômago com o do espírito.
Por isso o sacerdote Heli, quando viu a Ana orar com gestos, julgou (ainda que erradamente) estes efeitos por filhos da ebriedade: Usquequò ebria eris? digere paulisper vinum quo mades, não o sendo senão de ânimo atribulado, que desabafava com Deus na oração.
Não menos é Baco grande falador e revelador de segredos: bem assim como o mar em tormenta vomita, fácil, às praias o que, dissimulador, encerrava no fundo.
Por este, disse Ésquilo que no espelho vê um o seu rosto, no vinho vêem os outros o seu coração: Æs formæ speculum est, vinum mentis.
Concorda o adágio antigo: Que três géneros de pessoas dizem a verdade clara: meninos,
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doudos e embriagados, uns por falta de idade, outros por enfermidade, outros por viciosidade.
Se assim não suceder às vezes, serão raras.
Por isso Zeno, havendo estado mui silencioso em um banquete que se deu a certos embaixadores, perguntando-lhe estes que diriam dele ao seu rei, quando voltassem: Dizei (lhes respondeu) que vistes em Atenas um homem que entre as mesas e taças não falava.
E, finalmente, Salomão nos seus Provérbios, entre os mais efeitos da vinolência, enumerou também este da loquacidade: Cui lites, sive rixæ? cui LOCUTIO? Cui vulnera sine causa? Cui rubedo oculorum? Nonne morantibus in vino?
Logo, se nas mulheres se ajuntar a loquacidade do sexo com estoutra do vício, que segredo haverá em casa que não repasse a toda a vizinhança?
Pelo que, sendo próprio louvor das mulheres a limpeza da castidade, a compostura da modéstia e a observância do silêncio, bem se mostra quanto lhes importe conversar pouco com Dionísio livre, que tudo isto desbarata, e que fazia bem a nossa Imperatriz em preferir o honesto ao útil, conforme o ditame de Santo Ambrósio: Non vincat honestatem utilitas, sed honestas utilitatem.
VII Do abade Silvano.
Caminhando um dia de jejum com seu discípulo Zacarias, chegou a um mosteiro, onde os receberam com oficiosa caridade e lhes ministraram um moderado refresco.
Ao voltar, bebeu Zacarias de uma fonte, e Silvano o repreendeu, porque quebrara o jejum.
Desculpou-se, dizendo: Padre, já no mosteiro o quebramos ambos.
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Respondeu o Mestre: Enganas-te, filho, que aquela acção não foi violação do jejum, senão comunicação da caridade.
EXPLICAÇÃO E VEXAME
Necessitam aqui o mestre de alguma explicação, e o discípulo de seu vexame.
Queria Silvano dizer que o beber no caminho fora por vicio do apetite, e o comer no mosteiro por virtude da condescendência com os próximos, em significação de que os amava, conforme à regra do apóstolo: Alegrai-vos com os que se alegram.
Não eram aqueles jejuns de preceito, mas de superrogação e estilo dos monges, e os santos, ao exercitar as acções, não atendem tanto ao material delas quanto ao espiríto que as motiva e rege, e, como estão limpos, tudo para eles é limpo; Omnia munda mundis.
E bem se vê que Silvano e Zacarias atendiam só ao fim da mortificação; pois um supunha, e outro não negava, que o beber água aguava ou destruia o jejum.
Mas, ainda no caso que houvesse preceito, podia, em opinião provável, deferir à urbanidade dos que rogavam, sendo a quantidade pouca.
A resposta do discípulo por três partes gretou e deu a rever a sua imperfeição.
Primeira: porque acudiu logo a cobrir-se com a desculpa, e é falta muito para estranhar em pessoas que tratam da virtude, e estes escudos que metemos contra o golpe da correcção são os que o zelo da reforma há-de queimar: Scuta cumburet igni.
Porque (como dizia o venerável padre Simão Rodrigues, fundador da Companhia
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em Portugal) o súbdito que se desculpa, quando o superior o repreende, está longe da. emenda, porque o princípio desta é o conhecimento próprio, que, se o tivera, não se desculpara.
No Levitico se mandava que o homem leproso tivesse a cabeça descoberta e os vestidos descosidos e a boca tapada com os mesmos vestidos: Habebit vestimenta dissuta, caput nudum, os veste contectum.
Toda a virtude imperfeita tem suas nódoas de leprosa, e, para estas se curarem, devem descobrir-se, tapando juntamente a boca para a desculpa delas.
Orígenes naquele lugar: Oportet eum qui peccatis aliquibus obseptus est, mala sua, et flagitia nullis mallorum assumentis, nullis excusationum velaminibus operire.
Antes o tapar-se com a escusa é descobrir outra pior nódoa.
Por isso diz Salomão juntamente que a boca do ímpio tapa a maldade: Os impiorum operit iniquitatem; e que a maldade tapa a boca do ímpio: Os impiorum operit iniquitas.
Como pode isto ser ao mesmo tempo, senão porque o mesmo tapar-se por uma parte é destapar-se por outra?
A boca do pecador tapa a sua maldade, quando a pretende escusar, e a maldade tapa a boca do pecador, quando pela mesma escusa o acabou de convencer.
Com que, o seu escudo se torna em lança, e a desculpa em nova culpa.
Segunda: Porque dizer: Já no mosteiro quebrámos o jejum era supor que, uma vez cometida uma falta, não importam outras mais do mesmo género.
E, suposto que o jejum, quanto à parte de ser unica comestio, é indivisível, e, uma vez perdido, não se repõe pela subsequente observância, todavia o que convém aos espirituais não é sempre o que é lícito segundo os moralistas.
Já quebrámos; logo, vamos quebrando mais: esta consequência
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não colhe, nem está em Bárbara, por isso mesmo que é bárbara consequência.
Preso por mil, preso por mil e quinhentos: este adágio é diabólico e direitamente oposto ao Espírito Santo, que nos ensina: Filho, pecaste? não acrescentes mais, e do passado pede a Deus perdão.
Terceira: Porque dizer: Já quebramos ambos o jejum era derivar a falta própria da de seu mestre e sócio, e alegá-lo por cúmplice e exemplar.
Assim fez nosso pai Adão, quando, perguntado porque comera, contra o preceito, meteu consigo a Eva e ao mesmo Deus, a Eva, que lhe deu o pomo, e a Deus, que lhe dera a Eva.
De sorte que ao argumento do Senhor: Ex ligno de quo præceperam tibi ne comederes, comedisti quis dar um pronto retorqueor: Mulier, quam dedisti mihi sociam, dedit mihi.
Por todas estas razões estava bem a Zacarias, já que se refrescou da calma com a fonte, não refrescar sua imortificação com a desculpa.
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TÍTULO II
ALEGRIA, TRISTEZA
VIII De Teresinha de JESU.
Esta angélica menina, natural de Sanlucar, que morreu de cinco anos, havendo-lhe já nascido neste matutino crespúculo de sua idade o sol claro do uso da razão, estando enferma, e com perigo de morte, sua mãe Maria Urbina, e por esta causa mui dolorosas suas irmãs, ela só mostrava no semblante serenidade e alegria.
- Como estás assim (lhe disseram elas), quando todas andamos tristes?
Respondeu com donaire: Chorai, vós-outras, que tendes mãe que pode morrer: a minha, que é a Virgem MARIA, nunca há-de morrer, e por isso não choro.
MORALIDADE E ADIÇÃO
A esta soberana e augustíssima Senhora intitulam os Santos Padres mãe da alegria, raiz do contentamento e gozo universal do mundo, e dela está escrito que a sua comunicação não é tristeza nem amargura, mas paz e gosto: Non enim habet amaritudinem conversatio illius, nec tædium convictus illius, sed lætitiam, et gaudium.
O ponto está em que nós passemos à sua filiação, negando a de Eva, como a mesma Senhora nos admoesta: Transite
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ad me omnes, qui concupiscitis me, et a generationibus meis implemini.
Em uma antiga medalha da imperatriz Faustina se vê a figura da alegria, com uma cornucópia na mão direita, cheia de frutos, flores e folhas, com a letra Hilaritas.
Bem podia Teresinha representar esta figura, pois teve na sua mão direita tantos frutos de santas obras, já sazonados entre as flores de seus poucos anos e grandes desejos e as folhas de suas discretas palavras.
Nos convites antigos era estilo ir passando de mão em mão à roda de todos os convidados um florido ramo de murta, símbolo da alegria, a que chamavam Asaron; e era obrigado o que o recebia a cantar alguma cantiga festival: Deinde unusquisque (diz Plutarco) propriam cantilenam accepta myrto, quam ex eo Asaron appellabant, quod cantaret is, cui tradita ea esset, etc.
Como esta menina era banqueteada frequentemente pelo Espírito Santo na mesa da oração e devoção, e tinha já tão florido o ramo da esperança de salvar-se, que o mesmo Espírito Santo lhe dava no testemunho de sua consciência pura, não podia deixar de andar alegre, e ordinàriamente, quando se ocupava em alguma obra de serviço de casa, a acompanhava com motetes espirituais, por se não divertir da presença de Deus, e destes sabia de memória inumeráveis e os cantava com lindo modo.
Um deles era o seguinte:
Yo le vi entre blancas flores, Yo galan e hermoso le vi.
Como ansi? En lo blanco le conoci.
Com semelhantes almas se desagrava Deus da afronta que outros fazem à sua presença, cantando versos profanos e escandalosos, e cheios de espírito de torpeza e lascívia, em que revelam fora sem pejo o que revolvem dentro sem piedade.
Non enim (disse Cassiodoro) majus potest esse mentis testimonium quam qualitas inspecta verborum.
IX Do Seráfico Padre
São
S.
Francisco.
Vendo que um Religioso seu andava triste e cabisbaixo, o repreendeu, dizendo: Se estás triste por teus pecados,
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ora ao Senhor que te restitua a alegria de seu espírito; entretanto, e enquanto te não ouve, guarda entre ti e Deus a tua tristeza; mas entre ti e teus companheiros não mostres senão serenidade
DITAME
Concorda este ditame com o de
São
S.
Martinho Dumiense, arcebispo de Braga: Tristitiam, si potes, ne admiseris; sin minus, ne ostenderis: À tristeza, se podes, não lhe dês entrada no coração; e, se já entrou, não lhe dês saída ao rosto.
O espírito triste raras vezes procede de Deus; ordinàriamente é sombra do tentador ou anojo do amor próprio.
Havemos de servir a Deus como ele manda; e manda que seja com alegria: Servite Domino in lætitia.
Isaac era bem escolhida vítima para o sacrifício, porque este nome significa riso e gosto, e com gosto quer Deus que lhe sacrifiquemos: Hilarem enim datorem diligit Deus.
Que muito, se é Deus vivo, queira dádivas vivas? e a alma do que se dá é a boa vontade com que se dá.
Quem anda triste torna o jugo da lei de Deus, de suave, em áspero, e, de leve, em pesado, porque lhe falta o óleo (símbolo da alegria, no sentir de Beda) que desfaz e mitiga as asperezas deste jugo imaginadas, conforme aquilo do profeta: Cumputrescet jugam a facie olei.
A alegria espiritual dilata o coração e quer coração dilatado para correr no caminho da lei divina: Viam mandatorum tuorum cocurri, cum dilatasti cor meum.
Não
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só o dilata para o caminho, senão que o esforça para as batalhas.
Quid videbis in Sulamite, nisi choros castrorum?
Que vereis na Sulamitis (diz o Esposo da Alma Santa) senão coros de arraiais? coros, porque docemente canta; arraiais, porque animosamente peleja; e para o ânimo com que peleja ferve a música comque se alegra: Si chori sunt (diz um fecundo e delicado engenho) , castra sunt: ipsa enim lætitia fortitudo est.
Por isso o real profetaintroduz os Santos ao mesmo tempo com os louvores de Deus entoados em suas gargantas e com as espadas cortadoras desenbainhadas nas mãos: Exultationes Dei in gutture eorum, et gladii ancipites in manibus eorum, porque o mesmo espírito que lhes afina as vozes para o canto lhes prepara as armas para o conflito.
Por isso também o mesmo David, quando pediu a Deus esta alegria, juntamente pediu esta fortaleza: Redæ mihi lætitiam salutaris tui, et spiritu principali confirma me.
Esta fortaleza e dilatação de espírito é mais necessária aos bizonhos na espiritual milícia, para que não esmoreçam e tornem atrás com as primeiras dificuldades dela.
Pelo que a Serva de Deus Madalena de Ursinis, mestra de noviças, vendo-as rir, lhes dizia: Ride, alegrai-vos, irmãsinhas, que estais fora dos perigos do mundo: Non fecit taliter omni nationi.
Falava como discreta no seu ofício.
Com advertência, porém, de que por alegria que serve para servir a Deus não se entende a dissolução, a imodéstia, a chocarrice e o estultilóquio que as Sagradas Letras e Santos Padres condenam.
De outro modo implicara-se o apóstolo, recomendando-nos juntamente,
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a alegria continua e a modéstia conhecida.
Entende-se uma igual serenidade de ânimo e semblante, retocada com exteriores sinais de afabilidade com os próximos, e procedida do alívio da consciência e da conformidade com a vontade de Deus, pronta para tudo o que é de seu serviço: tudo respectivamente à idade, sexo, emprego e estado da pessoa.
Esta resplandeceu até nos mais afamados monges do deserto, como se lê de Rómulo, fundador da Camáldula, que, depois de cem anos de rigorosa penitência, só com ser visto comunicava alegria e confiança para ser tratado, e do grande Antão abade, que entre milhares de homens era conhecido pela alegria do rosto: que é pròpriamente o que disse
Santo
S.to
Antíoco, monge da lavra de
São
S.
Sabas, referindo-se ao profeta Isaías: que os servos de Deus quem os visse logo os conheceria, porque são semente de Deus abençoada e andam alegres em o Senhor: Omnis videns eos cognoscet, illos quia isti sunt semen benedictum à Deo, e lætabuntur super Dominum.
X De um monge anónimo.
Desamparara sua vocação no ermo certo mancebo, tornando-se ao século.
Outro monge, ancião, querendo-o reduzir, foi em seu alcance e o achou bebendo na taverna com outros fregueses da dita casa e ouviu que, ao tirar da boca a taça já esgotada, dizia, muito contente: Oh bendita seja a paz e alegria da alma!
Então o velho, pondo-se-lhe diante, levantou as mãos e olhos ao céu
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e disse: Tantos anos há que habito no deserto, orando e mortificando-me contìnuamente, e não pude ainda alcançar a paz e alegria da alma, e este de um dia para o outro a achou na taverna.
REFLEXÃO
Certo é (pois Deus assim o diz) que os ímpios não vêem o rosto à paz:Non est pax impiis, dicit Dominus.
E como podia haver paz na impiedade, se a mesma impiedade é guerra contra Deus: Quis restitit ei, et pacem habuit?
Porém o seu pecado os alucina de sorte que o cessar da guerra contra os vícios lhes parece celebrar pazes com a consciência, dizendo (como reparou Jeremias) Paz, Paz, quando não há verdadeira paz.
Mas enfim, como este moço punha o nome às cousas depois de beber, só por erro o não poria errado: Ille liquor docuit voces inflectere, podemos aqui dizer com Tíbulo a outro intento.
Este mesmo poeta, considerando como as guerras são contra a agricultura, disse que a paz era a que criava as vides e madurava as uvas: Pax aluit vites, et succos condidit uvæ
Porém, na opinião deste apóstata, devemos dizer às avessas: Vitis alit pacem, et succus quem condidit uvæ.
Que as vides lhe criaram a paz, e o suco das uvas a alegria.
O glorioso
São
S.
Bernardo, sobre aquele verso dos
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"Cantares": Vineæ florentes dederunt odorem suam, disse que para o varão sábio a sua vinha era sua vida: Viro sapienti sua vita vinea est.
Mas este moço néscio, e outros semelhantes, em vez de fazerem de sua vida a sua vinha, para a cultivar, fazem dos frutos da vinha a sua vida, para a destruir; exortando-se com o ímpio Erasmo: Vivite et bibite.
Hugo Vitorino, definindo a consciência alegre e sossegada, diz ser aquela a quem Deus não imputa os pecados próprios, porque os não fez, nem os alheios, porque os não aprovou: Tranquilla consciencia est. . . , cui Deus nec sua peccata imputat, quia non fecit; nec aliena, quia non approbavit.
Mas a consciencia, que se não imputa a si os pecados, não porque os não fez, senão porque os dissimula ou porque os aprova, claro é que a paz e alegria que afeta e publica é falsíssima.
XI Do Padre
Frei
P.e Fr.
Sebastião de
Santa
S.ta
Maria .
Este verdadeiro religioso, capucho da Província de
São
S.
José, sendo uma vez repreendido pelo prelado com rigor, e sem culpa sua, ficou não sòmente quieto mas alegre.
Perguntado pela causa disto, respondeu: Não quer, Irmão, que esteja alegre um pobrezinho a quem Deus faz digno de padecer alguma cousa por seu amor?
CRISE E SINÓNIMO
Este espírito era verdadeiramente apostólico; pois dos sagrados apóstolos escreveu
São
S.
Lucas: Ibant gaudentes à conspectu concilii, quoniam digni habiti sunt
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pronomine JESU contumeliam pati: Saíram alegres e gozosos da presença dos ministros juntos em conselho, considerando a dignação com que os honrara Cristo em lhes dar que padecer por seu nome.
Procede este rio da alegria de três fontes ocultas no espírito do que é verdadeiro servo de Deus: a saber, inocência, humildade e caridade.
Porque a inocência não acusa por dentro: Secura mens quasi juge convivium; a humildade folga de ser acusada de fora: Ludam, et vilior fiam quam factus sum, et ero humilis in oculis meis; e a caridade estima achar meio proporcionado para mais se unir um com Cristo, sofrendo o próximo: Communicantis Christi passionibus gaudete.
Esta designação de comunicar Cristo a seus servos alguma parte de sua cruz é tanta e tão estimável e tão preciosa que uma vez disse o mesmo Senhor a
B
B.
Baptista Verana estas palavras: "Lembra-te que maior demonstração de meu amor te dei quando te pus em aflição do que quando te apertava entre meus braços dulcíssimos. Porque grande benefício é livrar eu uma alma de pecados; maior dar-lhe obras santas em que me sirva; porém máximo dar-lhe que padecer por mim
".
."
Bastava esta sentença do Senhor para levantar o coração humano à estimação e desejos de participação de sua cruz.
Somos, porém, os filhos de Adão tão pesados e terrenos e tão como hereges neste artigo principalíssimo da vida espiritual que me pareceu útil (além desta definição do Sumo Pontífice Cristo JESUS) ajuntar-lhe um como concílio dos votos de muitos santos e varões apostólicos, uniformes todos na asserção desta verdade.
Poderá ser que unidos obrem mais fortemente este desengano no
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coração de algum afligido e convertam algum mau ladrão, que pena em cruz com repugnância à mesma cruz.
URNA dos votos e pareceres dos santos e varões espirituais sobre a excelência do padecer por amor de Deus.
Voto do príncipe dos apóstolos
São
S.
Pedro: Si exprobramini in nomine Christi, beati eritis; quoniam quod est honoris, gloriæ, et virtutis Dei, et qui est ejus, spiritus, super vos requiescit.
Se vos afrontarem ou desprezarem por amor de Cristo, sereis bem-aventurados, porque o que é de honra e glória e virtude de Deus em vós mora e descansa com o seu espírito.
Do apóstolo e doutor das gentes
São
S.
Paulo: Mihi autem absit gloriari, nisi in Cruce Domini nostri JESU Christi, per quem mihi mundus crucifixus est, et ego mundo.
Guarde-me Deus de gloriar-me, salvo na cruz de nosso Senhor JESU Cristo, por quem o mundo está crucificado para mim e eu para o mundo.
De
Santo
S.to
André apóstolo: ó bona Crux, diu desiderata, solicitè amata, et sine intermissione quæsita, et jam concupiscenti animo præparata, securus et gaudens venio ad te; suscipe me ab hominibus, et redde me Magistro meo, ut per te me recipiat, qui per te me redemit.
Ó boa Cruz, muito tempo há suspirada, solìcitamente amada, e sem intermissão procurada, e já enfim para meu ansioso ânimo preparada, seguro e alegre venho a ti; tira-me do mundo, e entrega-me a meu Mestre, para que por ti me receba quem por ti me remiu.
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De Santiago apóstolo: Omne gaudium existimate, fratres mei, cúm in tentationes varias incideriris, scientes quod probatio fidei vestræ patientiam operatur; patientia autem ojus perfectum habet.
Quando, irmãos meus, se vos oferecerem vários trabalhos e ocasiões de padecer, ponde-os na conta das de alegria e festejo, certificados de que a prova da vossa fidelidade gera paciência e por esta adquirimos a perfeição.
De
Santo
S.to
Inácio mártir, patriarca de Antioquia: Utinam fruar bestiis, quæ mihi sunt præparatæ; quas et oro mihi veloces esse ad interitum, et ad supplicia, et allici ad comedendum me, ne sicut aliorum, et Martyrum, non audeant corpus attingere. Quòd si venire noleurint ego vim faciam, ego me urgebo, ut devorer: Ignoscite mihi, filioli, quid mihi prosit ego scio.
Oxalá chegue eu a gozar das bestas-feras que me estão aparelhadas (era levado a Roma para padecer ali martírio).
A Deus rogo que se apressem em dar-me tormentos e tirar-me a vida e que tenham fome de mim, para me comerem; não suceda como a outros mártires, cujos corpos não ousavam tocar.
Mas, se não quiserem chegar-se, eu me chegarei, eu as instigarei e obrigarei a que me traguem. Perdoai-me, filhinhos; eu sei o que me importa.
De
São
S.
Teodoro mártir, falando com os verdugos: Se algum dos meus membros ficar por atormentar, ficará por consagrar-se: quero ser atormentado para ser todo sagrado.
De
São
S.
Cipriano, bispo e mártir: Non invenio, fratres, inter cæteras cælestis disciplinæ vias quibus ad con sequenda divinitùs præmia, spei, ac fidei nostræ secta dirigitur, quid sit utilius quam ut patientiam tota observatione tueamur.
Entre todos os caminhos da celestial doutrina por onde a religião cristã se encaminha, em fé e
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esperança, a conseguir os divinos prémios, nenhum acho, irmãos meus, mais proveitoso do que aplicarmo-nos com todo o estudo à paciência.
De
São
S.
Gregório papa: Beatus Job, quot voces patientiæ in laudem Dei percussus reddidit, quasi tot in adversarii pectore jacula intorsit; et acriora multò quam sustinuit, inflixit.
Quantas palavras de sofrimento o louvor de Deus pronunciou o santo Job em seus trabalhos, tantas lanças pregou no coração de seu adversário, e, se foram fortes e agudas as que lhe aparou, muito mais o foram as que revirou contra ele.
De
São
S.
Leão papa: Certa, atque secura est expectatio futurw beatitudinis, ubi est participatio DomonicæPassionis.
Quanto entramos à parte dos trabalhos da paixão do Senhor, tanto pomos na certeza e segurança da glória que esperamos.
De
Santo
S.to
Ambrósio, doutor da Igreja.
Quid magnum facis, si quando in secundis rebus laudes Deum; quando in divitiis es, quando nullis vexaris injuriis? Illud est magnificam, si subjectus injuriis, et contumeliis, judicium Dei laudes.
Que muito fazes em louvar a Deus, quando vives em prosperidade, quando em abundância, quando sem vexação nem injúria de alguém? Louvar o juizo de Deus quando nos injuriam em seus juizos os homens isto sim que é digno de estimação.
De
Santo
S.to
Agostinho, sol da Igreja: Appendo id quod patior contra id quod spero. Hoc sentio, illud credo, et tamen plus est quod credo quam quod sentio.
Ponho em balanças o mal que padeço com o bem que espero: o mal me toca no sentido, o bem toco eu com a fé; porém muito mais é o que creio que o que sinto.
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Do doutor máximo
São
S.
Jerónimo: Christianorum propriè virtus est, etiam in his quæ adversa putant, referre gratias Creatori; nam ib beneficiis Dei, quæ nobis accidunt, gratulari, hoc, et Gentilis facit, et Judæus.
É virtude própria dos cristãos dar graças ao Criador, ainda quando padecem as que chamam adversidades, que dá-las só quando nos vai bem, isso faz qualquer gentio ou judeu.
De
São
S.
João Crisóstomo, patriarca de Constantinopla, falando de
São
S.
Paulo preso por amor de Cristo: Siquis mihi, vel universi Cæli, vel hujus catenæ copiam, et optionem largitus esset, catenam hanc ego planè elegissem. Si mihi cum Angelis, et iis qui prope thronum Dei sunt, standum fuisset sursum, aut cum Paulo vincto, carcerem utique præoptassem.
Se alguém pusesse na minha mão a escolha ou de todo o empíreo ou desta só cadeia, antes elegeria a cadeia do que o empíreo.
E, se houvesse de estar em um de dois lugares, ou lá nas alturas com os anjos junto do trono de Deus ou no cárcere com Paulo, por esta companhia renunciara sem dúvida aqueloutra.
E depois, falando do anjo que soltou a
São
S.
Pedro aprisionado por Herodes: Si mihi quispiam dixisset: Elige utrum velis: vis esse angelus Petrum solvens, an Petrus vinctus: Petrus utique esse maluissem.
Se alguém me dissesse: Escolhe qual queres, se ser o anjo que soltou a Pedro, se Pedro antes de solto, quisera ser antes Pedro do que anjo.
Do angélico doutor
São
S.
Tomás: Patientia possessori suo mala convertit in bona.
A quem tem de seu o cabedal da paciência, esta lhe troca os males em bens.
Do seráfico
São
S.
Boaventura, doutor da Igreja: Patientia singularis est retributrix Passionis Christi. Talia enim studet rependere, qualia ab eo accepit, qui dolores nostros portavit, et hæc est singularis lætitia Sanctorum in tribulatione patientium, et gaudentium, quòd sic occasionem habent, et opportunitatem aliquo modo retribuendi Domino pro illa magna charitate; qua pro nobis animam suam posuit, saltem aliquid sustinendo.
A nossa paciência é o singular retorno da paixão de Cristo, pois procura pagar-lhe na mesma moeda, que é padecer por amor de quem por nosso amor tomou em si nossas dores.
E aqui se funda a particular alegria e consolação que os santos acham no padecer, porque assim logram ocasião oportuna de corresponderem no seu tanto àquela imensa caridade do Senhor com que por nós pôs a vida.
De
São
S.
Lourenço Justiniano, patriarca de Veneza: Qui putantur crucem portare, sic portant, ut plus habeant in crucis nomine dignitatis, quàm in passione supplicii.
Os que levam cruz, mais lhes fica de honra e dignidade por levá-la do que de tormento por padecê-la.
De
São
S.
Bernardo, abade: Semper lignum Crucis vitam germinat, balsamum sudat spiritualium charismatum. Non est silvestris arbor; lignum vitæ est apprehendentibus eam; arbor frugifera, arbor salutifera est.
O lenho da cruz sempre está brotando vida e suando o precioso bálsamo dos espirituais dons e graças. Não é árvore silvestre, senão dá vida aos que dela se aproveitam; é arvore de fruto, e fruto de salvação eterna.
De
São
S.
Nilo, abade: Si ignominia affectus fueris, gaude; si injustè, merces tua copiosa erit; si verò justè, et resipueris, jam liberatus et à flagello.
Se padeceres ignomínia, alegra-te, porque, sendo injusta, aumentas o prémio e, sendo justa, abates o castigo.
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De
São
S.
João Climaco: Beatus qui propter Deum quotidie maledictis, et convitiis lacessitus sibi vim fecerit; hic enim Martyribus tripudiantibus, et Angelis parem confidentiam, et gloriam merebitur.
Ditoso o que se faz violento para levar bem as murmurações, afrontas e pragas, ainda que o provoquem cada dia, porque ele ganhará confiança e glória igual à dos mesmos anjos e mártires, que saltam de contentes.
De
Santo
S.to
António de Lisboa, língua bendita do Senhor: A paciência na tribulação é lâmina de ouro em que se mostra esculpido o inefável nome de Deus.
Do patriarca
Santo
S.to
Inácio de Loiola: Se houvera umas balanças que de uma parte tiveram todas as cousas criadas e da outra cadeias, cárceres, afrontas, testemunhos falsos, aquela nada pesaria no meu conceito, nem criatura alguma pode gerar tanto gozo como a cruz a quem a leva.
De
São
S.
Filipe Néri, fundador da congregação do Oratório: Não pode suceder a um cristão cousa mais gloriosa que padecer por Cristo, e a quem deveras ama a Deus não pode acontecer cousa de maior desgosto que não se lhe oferecer ocasião de padecer por Ele, porque a maior tribulação que pode ter um amigo de Deus é carecer de toda a tribulação.
E, quando alguém lhe dizia que não podia sofrer as adversidades, respondia: Antes deveis dizer que não sois dignos de tanto bem, porque não há sinal mais certo nem mais claro do amor de Deus do que a adversidade e trabalho.
Do beato
Frei
Fr.
João da Cruz, primeiro carmelita descalço: Que sabe quem por amor de Cristo não sabe padecer? Quando se trata de trabalhos, quanto maiores e mais graves são tanto melhor é a sorte do que os padece.
De
Santa
S.ta
Isabel, princesa de Hungria: Os desprezos,
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pobreza e mais trabalhos hão-de ser recebidos solenemente com "Te Deum laudamus".
Da seráfica virgem e doutora
Santa
S.ta
Teresa de JESUS, falando com Deus: Senhor, não vos peço outra cousa senão ou morrer ou padecer.
Da extática virgem
Santa
S.ta
Maria Madalena de Pazzi, falando com Deus: Senhor, não morrer, para mais padecer.
De
Santa
S.ta
Ludovina, virgem, em uma ocasião que seus próximos a vexaram: Muito devemos àqueles que nos ajudam a correr no caminho dos Mandamentos de Deus.
Da beata Catarina Adorno, ou de Génova, falando com Deus no meio dos seus maiores trabalhos: Trinta e seis anos há, oh Amor meu, que me alumiastes; desde esse tempo nada desejei senão padecer dentro e fora.
Do venerável Tomás de Kempis: Qui melius scit pati, maiorem tenebit pacem; ipse est victor sui, et dominus mundi, amicus Christi, et hæres Cæli.
Quem melhor sabe padecer logrará maior paz; este é vencedor de si e senhor do mundo, amigo de Cristo e herdeiro do Céu.
Do venerável Ludovico Blosio, abade Letiense: on est ullum signum certius Divinã electionis quàm siquis afflictionem, vel quidquid adversorum à Deo immittitur, non tantum quàm affligi.
Não há mais certo sinal de sermos escolhidos de Deus do que padecer, não só sem repugnância mas com rendimento e paciência qualquer aflição ou adversidade que ele nos envia.
Porque ainda é tão proveitoso para o homem como o estar em cruz.
Do venerável mestre Eckardo, varão contemplativo, que, aparecendo a seu amigo o
beato
b.
Henrique Suso, e perguntado por ele qual era o atalho mais breve para a Glória, respondeu: A conformidade e tranquilidade de ânimo nos trabalhos, e benevolência para com os inimigos.
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Do espiritual varão e doutor místico João Gerson, cancelário parisiense: Si anima Christi, et omnes Sancti Paradysi simul orarent pro persona aliqua, non acquirerent ei tantum utilitatis, et meriti: sicut ipsasibi acquireret per unicam in adversitate patientiam.
Se a alma de Cristo Senhor nosso e todos os santos do Céu orassem juntamente por alguma pessoa, não lhe ganhariam tanta utilidade e merecimento como ela para si mesma ganharia por uma só paciência na adversidade.
Do
padre mestre
p. m.
João de Ávila, chamado apóstolo da Andaluzia: Mais vale uma "graças a Deus" na adversidade de que cem na bonança.
Do místico varão o
padre
p.
Baltasar Álvares, da Companhia de JESUS: Ser perseguido sem culpa, bocado sem osso.
Se houvessem de lançar seus votos quantos santos têm o Céu e a terra, e ainda quaisquer fiéis que alcançam alguma luz da virtude, sairiam a froixo uniformes; porque esta é a verdade irrefragável: que até para o Senhor da Glória foi glória a sua cruz.
Por onde qualquer alma posta em cruz não deve senão tapar a boca a murmurações e queixas, e abri-la para louvar a Cristo, pela inestimável graça que lhe concede em a fazer semelhante a si e a seus santos.
XII De
São
S.
Deicola abade.
Deste servo de Deus se escreve que andava sempre alegre e regozijado e, perguntando-lhe a causa desta perene disposição de ânimo, respondeu: Christum à me
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tollere nemo potest.
Que foi dizer: Seja o que for, suceda o que suceder, ninguém me pode tirar a Cristo.
ILUSTRAÇÃO E DOUTRINA
Cristo, Senhor nosso, é a verdadeira alegria de todos os corações que o amam, como lhe chamou David, pedindo a sua vinda ao mundo: Redde mihi lætitiam salutaris tui (S.to Hierónimo JESU tui).
Logo, como carecerá de alegria quem não carecer de Cristo?
Assim como um dos péssimos frutos do pecado é a tristeza desordenada, assim um dos frutos da graça do Espírito Santo é o gozo e alegria.
E ambos estes efeitos se mostram às vezes no rosto da pessoa, um como sombra da terra, outro como resplendor do Céu.
Seja exemplo do primeiro o fratricida Caim, a quem Deus arguiu, perguntando-lhe por que andava cabisbaixo e triste: Cur concidit facies tua?
E do segundo sejam exemplos um
Santo
S.to
Engendo, abade, de quem escreve o seu historiador que habebat, nimirum habitatore illustrante, magnam, et in vultu, lætitiam: tinha até no aspecto notável alegria, em virtude do soberano hóspede que em sua alma habitava, que era o Espirito Santo, e um
Santo
S.to
Adelardo, também abade, de quem diz
São
S.
Pascásio Ratberto que totus ubique secum, totus cum Deus erat.
Inde erat, quòd profectò semper hilaris, semperque mitis ac lwtus inveniebatur.
Andava recolhido todo em si e todo em Deus; e daqui procedia que o achavam sempre alegre, manso e aprazível.
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Mais: Cristo é a graça de Deus, e no-la comunica, e a graça de Deus, entre todas as possessões, é a que se não perde senão por nossa própria vontade.
Gratia (diz
Santo
S.to
Hilário) neminem, nisi sibi obnitentem, repellit; neminem, nisi negligentem; rejicit.
E Trithémio: Gratia non salvat, nisi volentem; non deserit, nis spernentem.
Por isso o "Eclesiástico" chama a esta possessão absolutamente boa: Bonam possidebo possessionem.
Verdadeiramente é boa, não só pela grandeza do bem que se possui senão também pela segurança (quanto é da parte de Deus) com que se possui.
A saúde e formosura, a honra e fama, as riquezas e delícias, as dignidades e ciências, os filhos, amigos e parentes,
etc
etc.
, não há homem que os não possa perder, ainda que não queira; e raros são os que, se os perdem, é porque querem, antes são bens da qualidade da enguia: quanto mais apertados na mão, mais fugitivos dela.
E a vida, que entre todas estas peças é a que mais nos prende a vontade, esta é a que mais fàcilmente se desprende da nossa posse: Et fugit velut umbra.
Nisto estava o chiste daquele gracioso epitáfio que tanto celebrava Guivara em uma epístola; era um discreto português, e dizia o letreiro da sua sepultura: Aqui jaz
Ene
N.
muito contra sua vontade.
Pelo contrário, Cristo, habitando em nós por sua graça, ninguém o pode perder senão porque o quer perder.
Não há no Céu nem na terra nem debaixo da terra chave que faça no cofre deste imenso tesouro, senão a própria liberdade do possuidor.
Que muito, logo, que as outras possessões andem acompanhadas de cuidados, temores e tristeza?
Os primeiros dois irmãos, Caim, que se interpreta possessão, e Abel, que se interpreta pranto ou tristeza, nos ensinam como no coração mundano e
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ambicioso estão a par como irmãs as tristezas com as possessões, e assim estavam no daquele mancebo do Evangelho que abiit tristis; erat enim habens multas possessiones.
Mas a possessão de Cristo anda junta com a alegria e consolação: Quid enim (disse
São
S.
Próspero, bispo Regiense) potest eo esse felicius, cui efficitur suus conditor census, et hereditas ejus dignatur esse Divinitas?
Devem-se notar aqui três avisos:
Primeiro
1.o
Que, sendo Cristo possessão do varão justo e santo, também o varão justo e santo é possessão de Cristo: Eritis mihi in peculium de cinctis gentibus.
Pars autem Domini populus ejus.
Hæreditas Domini, filii.
E, assim como nas peças de estima se costuma pôr o nome ou armas de seu dono, assim o justo no seu modo de viver e obrar há-de descobrir que é de Cristo: Hic scribet manusua: Domino.
Os LXX: Hic scribet in manu sua: Deo ego sum.
Neste sentido disse o apóstolo: Vivo eu, mas já não eu, porque Cristo é o que vive em mim.
Segundo
2.o
Que nesta riquíssima possessão de Cristo, ainda que de ninguém nos temamos, devemos temer-nos muito de nós mesmos.
Ninguém é mais traidor ao homem do que o mesmo homem, porque na sua concupiscência tem o leite com que adormece e morre, como outro Sisara, e na sua própria liberdade a espada com que se atravessa, como outro Saúl, ou patíbulo em que se pendura, como outro Aman.
O coração humano é um leito capaz dos desposórios com Cristo e daí a nada dos adultérios com Satanás.
E assim, para guardarmos fidelidade à Graça, é necessário recomendá-lo às assistências da mesma
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Graça.
Porque como notou o papa Inocêncio III, sobre aquele verso do salmo L Spiritum Sanctum tuum ne auferas à me, mais devemos acautelar que nós nos não tiremos do Espírito Santo do que o Espírito Santo se tire de nós.
São
S.
Paulo disse animosamente, que estava certo que nem a morte nem a vida, nem os anjos nem os principados, nem as virtudes nem as cousas presentes nem as futuras, nem as criaturas do alto nem as do profundo o podiam separar do amor de Deus, que está em Cristo JESUS; mas note-se bem que não meteu nesta lista a si mesmo, antes em outra ocasião disse que temia que se fizesse réprobo, e por isso sopeava seu corpo com os rigores da mortificação e penitencia: Castigo corpus meum, et in servitutem redigo; ne fortè, cùm aliis prædicaverim, ipse reprobus efficiar.
Terceiro
3.o
Que o gosto e alegria dos ímpios e mundanos não podem ser verdadeiros, e não são mais que uma aparência ou figura dela.
Licurgo, com ser tão sério e severo legislador, mandou levantar em Esparta uma estátua de mármore ao Riso.
O riso ou alegria do pecador não é animado com vida do espírito, é só riso em estátua, frio como mármore; riso, não tanto seu como do mundo, que por ele se ri dele mesmo.
Porque, como disse
Santo
S.to
Agostinho, este mundo ri-se de todos os que se não riem dele: Iste mundus aut ridet nos, aut irridetur à nobis.
Salomão, de quem o mundo se riu quando ele gostava muito do mundo, abertos depois os olhos à luz do desengano, chamou ao riso erro e ao gosto mentira: Risum reputavi errorem, et gaudio dixi: Quid frustra deciperis?
O caldaico, em lugar de erro, verte derisionem,
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escárnio.
Os LXX circulationem, peças e tramóias (como as que fazem os volatins e títeres).
Nysseno mentis emotionem, volta do juizo.
Olimpiodoro amentiam, doudice.
E todos vêm a dizer o mesmo, porque a dita alegria e gosto com que os ímpios andam no mundo é doudice, pois se alegram e consolam com o seu mal: Qui rident de rebus vanis, de malo suo rident, disse
Santo
S.to
Agostinho, e Seneca: Hilari insaniâ insaniunt, ac per risum furunt.
É volta do juizo, pois se lhes mudou da verdade para a vaidade, dos bens eternos para os caducos e da graça de Deus para a sua ofensa; é peça e tramóia que lhes fazem os demónios, como intentaram fazer a Cristo quando lhe mostraram toda a glória do mundo, para o induzir a pecado; e é escárnio que deles faz o mundo, porque, como disse Guilherme parisiense, todos os deleites e consolações que vêm a parar no corpo não são verdadeiras, nem disso merecem o nome, pois não são mais que umas ilusões dos sentidos e manchas da alma: Gaudia, quæ in corpore sunt, et per corpus, nec possibile est esse gaudia, nec gaudiorum nomine digna; sed illusiones potiùs et inquinamenta animarum.
Destes ilusos que se alegram com o seu mal disse sàbiamente Salviano: Sardonicis quodammodoherbis omnem Romanum populum putes esse saturatum, moritur, et ridet.
Não direis senão que todo o povo romano se tem farto de erva sardónia, pois, ao mesmo tempo que está morrendo, está rindo.
Alude a certa planta venenosa da ilha de Sardenha, cuja oculta virtude estende os cantos da boca de sorte que o miserável que a bebeu vai morrendo e parece que se ri.
Tal é o ímpio que disse a palavra de murmuração grave contra a honra de seu próximo,
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e ele mesmo aplaude o seu dito: Moritur, et ridet.
Tem as suas dívidas por pagar, os seus votos por cumprir, os legados do testamento de seus pais por satisfazer, e está mui consolado com o seu dinheiro: Moritur, et ridet.
Caiu na ocasião contra a castidade, e vai jactar-se disso com outros moços; está na casa de jogo jurando, blasfemando, destruindo a sua fazenda ou a fazenda que não é sua; e no pátio das comédias bebendo a sua espiritual ruina pelos olhos e ouvidos, e chama a isto desenfado: Moritur, et ridet.
Com que, temos aqui renovado o triste equívoco de Petilo cônsul: que, andando em guerra na Ligúria, quis ganhar a eminência de um monte chamado Leto, alegre, e exortando os seus à empresa disse: Ego hodie Letum utique capiam: "Hoje sem dúvida hei-de ganhar a Leto".
Na avançada caiu morto de uma seta inimiga, e os soldados diziam, por irrisão, que lhe saíra certo o prognóstico: Ego hodie Lethum utiquecapiam: "Hoje sem dúvida hei de ganhar a morte".
Assim em qualquer pecador que se consola com as injúrias de Deus e não sente os danos da sua pobre alma, a sua alegria não é senão a sua morte.
Com razão dizia
São
S.
Tomás que não sabia como podia rir-se e alegrar-se uma pessoa com consciência de pecado mortal.
Porém este é o pestífero efeito do mesmo pecado: que, bebido muitas vezes, como erva sardónia, induz alegria falsa com morte verdadeira: Moritur, et ridet.
XIII De um ancião do deserto.
Estando em artigo da morte um padre antigo do famoso deserto de Scithis, os outros monges, rodeando-lhe
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a pobre cama ou esteira em que jazia, choravam amargamente.
Neste ponto abriu os olhos e sorriu-se; dali a pouco tempo tornou a rir, e depois de outro breve intervalo terceira vez deu a mesma mostra de alegria.
Causou isto nos circunstantes não pequeno reparo, por ser austera a pessoa e formidável a hora.
Perguntaram a causa, e respondeu-lhes: A primeira vez me ri, porque vós outros temeis a morte; a segunda, porque, temendo-a, não estais aparelhados; a terceira, porque já lá vai o trabalho e vou para o descanso.
Tornou então a cerrar os olhos e desatou-se seu espírito.
CONCORDÂNCIA E OPOSIÇÃO
Os santos gastam a vida chorando; que muito a rematem rindo?
Do ofício da sua vida as vésperas são tristes, mas alegres as matinas: Ad vesperam demorabitur fletus, et ad matutinum lætitia.
São como os lavradores, que ao semear não cantam, mas cantam ao enfeixar as paveias e levantar as medas: Euntes ibant, et flebant mittentes semina sua; venientes autem venient cum exultatione portantes manipulos suos.
Assim está prometido pelo Espírito Santo: Ridebit in die novissimo, e assim se cumpriu em muitos.
Santa
S.ta
Maria Ocgniacense, no dia do seu trânsito, se riu por espaço considerável.
Santa
S.ta
Matilde, havendo chorado três vezes quando os demónios a impugnavam, riu-se outras três quando os santos a defendiam.
Bertgero, sacerdote de excelentes virtudes, e familiar da casa da duquesa
Santa
S.ta
Ida, ficando depois da sua morte na mesma
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igreja onde ela e seu marido estavam sepultados, teve revelação do dia e hora de seu trânsito; celebrou missa e assim revestido e com o rosto mui alegre expirou no altar e foi sepultado junto daquela santa.
Não é tanto (havendo precedido boa vida) rirem-se os moribundos como rirem-se os mortos.
Demos também disto alguns exemplos.
A mãe de
São
S.
Simeão Stilita, no fim de vinte e sete anos de ausência de seu filho, soube onde estava e o prodigioso modo de vida que fazia, posto nem no Céu nem na Terra, sobre o capitel de uma altíssima coluna.
Quis vê-lo, para consolação de suas justíssimas saudades.
Não lhe sendo permitido, arrimou escada ao muro que cercava aquela estância, mas logo caiu abaixo.
Enviou-lhe o filho a dizer: Perdoa-me agora, oh mãe dulcíssima, que no outro século, se formos dignos, nos veremos à vontade.
Com esta comedida repulsa, renovou ela mais sentidas lágrimas.
Então veio segundo recado, que se assentasse um pouco a descansar e logo o veria.
Assim o fez e alli de repente entregou seu espírito a Deus.
Mandou o santo que introduzissem o corpo ao pé da coluna, a qual em presença dele se abalou e no rosto mostrou sorrir-se com sinais de alegria viva, e ali mesmo foi sepultado honorìficamente.
Dizem que o corpo morto em presença do matador se move interiormente e torna a verter sangue.
Simeão tinha sido em certo modo ocasião daquela morte; não quis um amor grande poder menos em seus efeitos do que pode um grande ódio, nem a Graça em seus prodígios ficar inferior aos da natureza.
Outro caso ao nosso intento refere
São
S.
Gregório Turonense.
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Em Arverno (cidade da Aquitânia, em França) houve dois virtuosos casados que, por mútuo consentimento, se abstinham do comércio conjugal, suposto que, temendo mais o perigo de se revelar que o de se quebrar o seu bom propósito, dormiam no mesmo aposento.
Depois ele se tonsurou e ela entrou religiosa em um mosteiro onde, falecendo, veio o marido assistir-lhe ao enterro.
E, demasiadamente alegre com o espírito de devoção, disse a Deus, em presença de muitos: Senhor, muitas graças vos sejam dadas, porque assim vo-la entrego como me a entregastes, sem nos havermos tocado.
Neste ponto a defunta, que estava no seu esquife, sorriu-se brandamente e disse: Cala, cala, homem de Deus, que não é necessário descobrir o nossosegredo.
Brevemente faleceu ele também.
E, sendo sepultado na mesma igreja, porém em covas diferentes, pela manhã as acharam juntas e comunicadas uma com a outra e assim perseveram; e os daquela terra lhes chamam "Os dois amantes".
Quis Deus, autor do matrimónio e conselheiro da virgindade, que os corpos que se separaram em vida, para melhor o servirem, se ajuntassem em morte, para mais o glorificarem, e que, se tiveram dois leitos, podendo ter um só, tivessem uma só cova, podendo ter duas.
Não obstante a sobredita proposição da alegria e confiança com que os santos morrem, muitos varões abalizados na virtude e veteranos na milícia de Cristo quis este Senhor que naquele transe padecessem grave horror e turbação penosa.
Assim se lê dos grandes Hilarião e Arsénio, abades, e do
vigário
v.
João Taulero, doutor iluminado da sagrada família dos Prègadores, e de
Frei
Fr.
Martinho Poras, donato da mesma Ordem na Província de
São
S.
João Baptista nas Índias de Castela, varão de vida canonizável, assim por virtudes como por graças gratis datas.
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O
vigário
v.
Camilo de Lelis, fundador da Religião dos Clérigos Regulares ministros dos enfermos, tinha tão grande pavor à morte que, para se animar, mandou pintar um quadro de Cristo crucificado, derramando cópia de sangue, e os anjos aparando com cálices e oferecendo ao Eterno Padre, e a Virgem Santíssima de joelhos, rogando instantemente pelos pecadores.
E na sua doença sempre estava olhando para este quadro.
E ordenou que, meio quarto de hora depois de entenderem os que lhe assistiam que já passara desta vida, ainda lhe continuassem com os recordos da alma que se costumam fazer aos agonizantes, em voz alta.
Deste santo e seguro temor se deixam penetrar os justos, porque sabem que na sua mesma justificação se acharão culpas, se o Senhor a examinar sem misericórdia: Hoc ipsum (disse
São
S.
Gregório Magno) quod justè videmur vivere, culpa est, si vitam nostram, cùm judicat hanc, apud se Divina Misericordia non excusat.
E Deus o permite naquela tremenda hora, para que mais se fundem nesta misericórdia do que na própria inocência, conforme aquilo do Salmista; Melior est misericordia tua super vitas (scilicet innocentes), ou para maior purgação e merecimento deles, ou para exemplo e aviso dos circunstantes menos timoratos, ou por outras razões a nós ocultas, porém manifestas ao Ponderador dos espíritos.
XIV De Solon, filósofo ateniense.
Querendo este consolar a um amigo seu, oprimido de veemente tristeza, o levou a uma torre eminente,
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donde se descortinava toda a cidade, e lhe disse: Considerai, amigo, quantos prantos, lutos, aflições, desgraças e trabalhos estiveram já e actualmente estão debaixo destes telhados e estarão sucessivamente pelos tempos vindouros sem haver dia vago, em que a morte ou infortúnio não andem visitando já esta, já aquela casa.
Pelo que, não sendo só vós quem padece, acomodai-vos à condição dos outros mortais.
ILUSTRAÇÃO
Isto é o que Lucrécio gravemente exprime dizendo: Nec nox ulla diem, neque noctem aurora sequuta est, Qua non audierit mistos vagitibus ægris Ploratus mortis comites, et funeris atri.
E Ovidio, reconhecendo por incertos no bem não só os dias mas as horas: Ludit in humanis Divina potentia rebus: Et certam proesens vix habet hora fidem.
Donde se tira o mesmo motivo de consolação que tirava este filósofo:
Nec
... Nec
enim fortuna quærenda Sola tua est. Similes aliorum respice casus: Mitiùs ista feres ...
A sociedade nos trabalhos aligeira o peso deles, como a singularidade os agrava. Ao grande Alexandre, já vencedor de Dario, caminhando para Persépolis, sairam ao encontro quase oitocentos homens, os mais deles velhos, aos quais os antepassados reis da Pérsia tinham torpemente
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mutilado os narizes e lábios.
Alexandre, compadecido da sua afronta e miséria, lhes ofereceu honesto conduto para suas pátrias.
Porém eles deliberaram ficar antes juntos na terra onde viviam, porque deste modo se não podiam rir uns dos outros.
Todos os filhos de Adão padecemos nossas mutilações e fealdades, uns na honra, outros na saúde, outros na fazenda, outros na ciência, outros na limpeza de sangue, outros em outras coisas; acomodemo-nos a viver juntos, porque ninguém tem que se rir de seu próximo.
Os que padecem juntos encostam-se uns nos outros, como os bois ao levar o jugo.
Moerentium societas (disse Crisóstomo) gravem tristitiæ vehementiam auferre consuevit; sicut enim in onere, siquis ponderis partem susceperit, ferentis sarcinam levabit; sic, et in oneribus aliis.
Desta consideração se valeu (como ele confessa) o mesmo santo, quando foi exterminado de Constantinopla por ódio da imperatriz Eudoxia, que se ofendera de suas justas invectivas e correcções: Nada me inquietei com isso (diz o santo), porque fiz comigo este discurso: Se me mandar partir com uma serra, parta embora, que também foi serrado um Isaías.
Se me lançar nas ondas, lembrar-me-ei de Jonas; se em uma fornalha ardendo, tenho por sócios três mancebos, que foram condenados à mesma pena; se às bestas feras, também Daniel o expuzeram às garras dos leões famintos.
Se me apedrejar, o mesmo sucedeu a Estêvão protomártir.
E, se me mandar que me cortem a cabeça, também a cortaram a
São
S.
João Baptista.
Porém, se se contenta só com privar-me da fazenda, nu saí das entranhas de minha mãe, e nu tornarei às da terra, como o santo Job disse.
Até aqui o santo, buscando para alívio de cada tormento a semelhança de cada exemplo.
Quem quiser saber quantos são ao todo os filhos de
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Adão conte primeiro quantos são os aflitos e atribulados; porque nenhum que participasse da sua natureza ficou isento de herdar suas misérias, e assim tantos consoladores achará nestas quantos irmãos tem naquela.
Artaxerxes, rei, sentiu com tal extremo a morte de um seu amigo que pretendeu ressuscitá-lo, e ouvindo os retumbantes ecos da fama da grande ciência de Demócrito, o chamou a si desde Jónia.
"Dificultosa coisa pedes, ó rei (disse o filósofo, afectando sisudeza e dissimulando a impossibilidade); porém, se fizeres o que eu te disser, confio poderei obrar o que me mandas
".
."
Prometeu o rei tudo, assinando em branco e parecendo-lhe que já via o seu desejado amigo saltar da sepultura.
Eia (disse Demócrito); escrevam-se no túmulo do defunto os nomes de trinta homens que chegassem aos vinte anos de sua idade sem padecer queixa alguma nem no corpo nem na alma, e logo ressuscitará.
Mandou o rei fazer logo a diligência, porém até o fim do mundo poderia continuar-se sem efeito, porque de semelhantes privilegiados não há um só, quanto mais trinta.
E, se ainda antes de nascermos já todos somos miseráveis, qual será o que no encerramento das suas contas não lhe passe a despesa do que padece pela receita do que vive?
No mundo todo não há mais que três classes de homens: uns inocentes; outros pecadores, mas já arrependidos; e outros pecadores, mas ainda obstinados.
E, para que todos soubessem que haviam de ter cruz, três cruzes se arvoraram no monte Calvário: uma para Cristo, e esta toca aos inocentes; outra para Dimas, e toca aos arrependidos; outra para Gestas, e toca aos obstinados.
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XV De
São
S.
Filemon, mártir.
Este santo, cujo ofício era o de farsante, chocarreiro e tangedor de frautas, convertido depois maravilhosamente à fé de Cristo, por princípio de seus tormentos, foi esbofeteado.
O povo de Antinoe, a quem era sumamente grato por suas artes, se lastimava muito e lhe mostrava sinais de amor compassivo.
Mas ele, com inteireza de ânimo respondeu: Não choreis, Antinoitas, pelo que padeço, porque, assim como assim, não haveis de alegrar-vos pelo que desejais, que é deixar eu de ser cristão.
Bem lembrados estareis que, quando no teatro levava bofetadas dos outros chocarreiros, folgava que vos rísseis, mas os anjos se entristeciam: razão é que agora com estoutras bofetadas os anjos se alegrem, e não se me dá que vós choreis.
OBSERVAÇÃO E HISTÓRIA
Dizem que o raio, se dá na víbora, sem lhe tirar a vida, lhe tira a peçonha.
Tal é o raio da luz da Graça e do amor divino em um pecador, quando o converte: deixa-lhe a natureza, purifica-o da maldade e de tal sorte se atempera a ele que pelo seu modo o leva e eleva a outros mais excelsos e nobres.
Assim em
São
S.
Guilherme, duque de Aquitânia, as grandes forças e braveza de ânimo que tinha para insultos lhas deixou para extraordinárias penitências.
Em
Santo
S.to
Agostinho a agudeza nos argumentos, lha conservou contra os hereges.
Aos apóstolos sagrados trocou-lhes a pesca de peixes pela de homens, no mar do século: Faciam vos fieri piscatores hominum.
68
A
São
S.
Mateus mudou-lhe o livro das contas pelo do Evangelho.
A
São
S.
Paulo não lhe buliu na emulação do ardente zelo, mas deu-lhe novo objecto, transferindo-a, das tradições paternas para o Evangelho do Reino, e da conservação da Sinagoga para a propagação da Igreja.
E à Madalena, deixando-lhe as finezas de amante primorosa, deu casto e digno emprego às suas lágrimas e cabelos, aos seus ósculos e aromas.
Assim também neste glorioso mártir
São
S.
Filemon conservou ainda um não sei que de gracejador, para maior confusão do paganismo.
Constará esta verdade da seguinte história, que me pareceu comuunicar ao leitor, pelo que tem de rara e cheia de prodígios em abono da glória do Crucificado e dos poderes da sua Graça.
E, porque, sendo a verdade a alma das histórias, ninguém desta duvide, advirto que é tomada de autores de primeira nota neste género, quais são Metafrastes, Lipomano e Súrio; e ainda nas Actas dos Santos, cujos eruditíssimos e fidelíssimos escritores conferiram quatro diferentes traslados latinos e outro grego da Biblioteca de El-Rei Cristianíssimo.
ARGUMENTO DA HISTÓRIA PROPOSTO EM ENIGMA.
Da farsa nasceu a verdade, do fingimento o desengano e de uma fraqueza muitas valentias.
Quem vendeu a mentira por ouro recebeu a graça de graça e comprou a vida com a morte.
Quando entrou em si, o buscavam fora dele; e era já mui outro o que se entendia ser o mesmo.
Nasceu depois de mancebo e falou depois de morto: furado e roto, estava mais são e inteiro; e, quando arrastado, perseverava em pé mais direito.
Deixado o vestido próprio, provou o farsante outros quatro diferentes: um de nuvem, outro místico de ferro, outro
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de água e outro de sangue.
E suas frautas abrasadas soaram mais longe.
Outro, gerado deste depois que o matara, sendo cego, cegou mais, para o não ser.
Pouca terra sobre seus olhos o alumia; muita sobre seus membros o exalta.
Quatro foram trazê-lo, para dele serem trazidos porque foi protector dos protectores.
A fazenda de Deus lhe ensacou um seu inimigo e lha remeteu a bom recado.
Delfins foram os portadores por incontantes estradas de sal líquido e, se nem os mortos foram mudos, os peixes como seriam?
Dormindo os Palinuros, foi mais certa a derrota e bonançosa a viagem, porque ali os vivos tinham a imagem de mortos e os mortos a eficácia de vivos.
Dormem juntos em boa paz os que se fizeram guerra, mostrando sua memória ao mundo como as burlas foram véras, a perseguição benefício, frècheiro a seta, luz a cegueira, as nuvens coche, os ventos piloto, o bronze brando, a areia fértil e preciosa, o tirano mártir, os futuros presentes e todos elementos milícia disciplinada em serviço dos que servem ao Autor deles.
NARRAÇÃO, OU ÉDIPO DO ENIGMA
I
§ I
Pelos anos da vinda do Filho de Deus ao mundo 287, imperando Diocleciano, ferocíssimo adversário do nome cristão, Ariano, seu amigo e privado, constituído presidente da Tebaida, por lhe dar gosto, perseguiu em Antinópolis, com todas suas forças, a cristandade.
E,
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espalhando-se vários por várias partes, como gado a quem açoita o furor da tempestade, só 37 clérigos mostraram maior constância, os quais por essa causa foram encarcerados.
Entre estes, um diácono, por nome Apolónio, vendo os crueis e esquisitos tormentos que se preparavam, temeu-se da sua fragilidade e, para evadir o perigo de negar a Cristo, não se achando com bastante ânimo de o confessar a tanto custo, inventou o seguinte arbítrio: Havia na mesma cidade um farsante por nome Filemon, insigne chocarreiro e tangedor de frautas e por estas prendas mui aceito a todo aquele povo.
A este mandou chamar Apolónio e, corrompendo-o com ouro, conchavou com ele que, disfarçado, fosse em seu nome tributar aos ídolos a adoração que o tirano pedia.
E, com efeito, Filemon, deixando ali as suas frautas, tomou um vestido ou capa de Apolónio e compareceu em presença de Ariano.
- Quem és ? (perguntou o presidente).
Os ministros de justiça que lhe assistiam disseram: - Pelo trajo, parece cristão.
- Pois, se é cristão (tornou ele), dizei-lhe que sacrifique.
Neste ponto (oh maravilhas do dedo de Deus, muito maiores que aquelas que em outro tempo obrou no mesmo Egipto!), Filemon, mudando de intenção e fazendo já deveras o que vinha a representar só na aparência, respondeu, animoso: Cristão sou e, porque o sou, não quero sacrificar.
- Sacrifica (instou o tirano) e forra-te aos tormentos com que viste há pouco acabar miseràvelmente a Asclas e Leonides.
Respondeu o santo:
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"Aparelhado estou para passar por onde eles passaram, a troco de chegar onde eles têm chegado.
E vergonha havias tu de ter de me alegrares com o santo Asclas, lembrando-te do que passaste com ele, quando não podias passar o rio.
A todos nos lembra muito bem que o santo mártir apostou contigo que tu à força de tormentos, o não farias adorar os deuses falsos, e ele à força de orações te havia de fazer confessar a Cristo por Deus verdadeiro.
E, com efeito, ele saiu com a sua, e tu não; porque, vindo tu passando o rio, ele, coberto de chagas e com os ossos e entranhas a aparecer, tirando forças de fraqueza, se levantou a orar e pediu ao Senhor que não pudesses chegar a terra sem primeiro confessares seu santo nome.
Os ventos estavam espertos, as velas estendidas, os remeiros prontos, mas a barca se tornou imóvel, e o mesmo sucedeu a quantas mudaste, até que enviaste a pedir-lhe partido, e ele te mandou que por escrito confessasses a Cristo por um só Deus verdadeiro, Criador de todas as coisas.
Assim o escreveste e assinaste, e logo a barca navegou; mas tudo atribuiste depois aos poderes de arte mágica e consumaste a sua coroa de martírio
".
."
A estas razões o tirano, fazendo-se desentendido, tornou à sua teima, dizendo: " - Sacrifica e salva a tua alma
".
."
- Isso faço (respondeu o santo), porque não há melhor "salvar a alma que dá-la por Cristo
".
."
Então o presidente disse em segredo para alguns dos seus oficiais: Chamai aqui logo a Filemon, porque ele, com suas graças e trejeitos e música dulcíssima, sem dúvida há-de amansar a este emperrado.
Buscado Filemon onde não estava, como havia de aparecer?
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"Senhor (disseram os oficiais) não o pudemos achar
".
."
Tinha ele um irmão chamado Teon, ou Teonas; a este perguntou o presidente: Que é feito de teu irmão?
E ele, como sabia do disfarce, respondeu logo: É esse que aí está em tua presença.
Foi logo descoberto e conhecido; e o presidente, entendendo que o fizera por via de entremês, para dar que rir a todos, desfechou a rir e disse:
"Já sabemos que és nascido para nos alegrares e espojares com riso; mas digo-te que antes te dera uma de três filhas que tenho do que fazer aqui desprezível minha dignidade e ofício com semelhantes chanças.
E, porque acaso os cristãos (que tudo fazem mistério) não presumam que procedias deveras, mando-te que sacrifiques diante deles
".
."
Respondeu o santo: - "De mim faze o que quiseres; sacrificar, digo que não quero, porque já a graça de Cristo pegou em mim, e nem posso nem quero soltar-me dela
- Conjuro-te (tornou Ariano), pelo estado e glória dos romanos, que deixes zombarias ou que nos digas se afirmas ser cristão com ânimo verdadeiro
".
."
Respondeu o santo:
- "Que tenho eu com o estado e gloria dos romanos?
Juro, pela glória e estado dos cristãos, que falo devéras e que sou cristão, e que não há outra coisa e que nada temo, porque quanto mais perder pelo amor de Cristo mais ganho
".
."
Qual tesouro de oculta pólvora que, chegando-lhe o cordel aceso, concebe e pára de repente, com gritos do colérico elemento, globos de impetuosas labaredas, que ameaçam e executam juntamente estragos, ruínas e mortandade, tal a ira no malicioso peito do tirano, tanto que deu crédito a este último desengano, prorrompeu em acções precipitadas e ardentes desejos de efeitos de vingança.
Só duvida e pergunta ao povo qual será melhor: se cortar de um repentino golpe aquela vida
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pérfida se dar-lhe morte lenta, para prolongar a pena.
Mas o povo, assustado, levanta o clamor, dizendo: Não prives a cidade toda das suas delícias e alegria.
Outros choravam, ministrando-lhes o falso amor que lhe tinham, lágrimas, compassivas da fatal desgraça que nele supunham.
E Ariano, voltando para o mártir:
"Teu coração (lhe disse) compete com os bronzes e os vence, pois não amas este comum amor nem estimas que te estimem.
Sacrifica, te rogo; não aguis nem derrames fel sobre as festas que brevemente esperamos
".
."
Respondeu o santo: - "Essas festas que dizes não concordam com as do Céu; antes quero faltar àquelas para ser mais digno de me achar nestas".
Aqui ministrou o espírito maligno ao ímpio presidente uma lança mais aguda que vibrasse contra a constância do generoso mártir.
Saiu, pois, dizendo: "Adverte bem, ó Filemon, que tu, não sacrificando, perdes as felicidades deste mundo e mais as do outro: as deste, porque te hei-de matar a tormentos; as do outro, porque não és ainda baptizado; e vós-outros afirmais que não há entrar no Céu sem baptismo
".
."
Não sabia ainda Filemon que bastava o baptismo de sangue e o de fogo, que são o martírio e a contrição, com o desejo do baptismo de água.
E, assim, ferido altamente seu coração com esta palavra, começou o pulso de seu esforço e alegria a padecer intercadências.
Voltando, pois, para os cristãos, que entendia estarem ali, ocultamente confusos com a mais turba, disse, ansiado: Chamem-me algum fiel que me baptize, porque estou em tribulação e necessito das armas daquele sacramento.
Esperava resposta, mas calaram todos, porque ninguém ousava a fazer rostro ao furor do tirano e queria Deus obrigar-se a mostrar por modo mais glorioso como ampara fielmente aos que nele confiam.
Entretanto Ariano, fazendo coragem própria da covardia alheia, insultava, dizendo: -Tu bem vês que ninguém
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se atreve a fazer oposição nem a este magnífico tribunal nem àquela manifesta verdade; portanto, rende-te, sacrifica.
Mas o santo, vendo-se cercado por dentro de dúvidas, por fora de ameaças, fugiu para o seu mesmo coração perplexo e ali, levantando um invisível oratório, falou com Deus à puridade, dizendo: Senhor meu Cristo Jesus, não consintas no coração do teu servo esta tristeza; dirige e governa meus caminhos, de sorte que possa pelo meio desta turba sair a receber a graça do baptismo.
Obedeceu Deus à voz do homem, porque a oração participa, do mesmo Senhor, foros de omnipotente.
Veio uma nuvem invisível e, encerrando em si a Filemon, o levou onde um clérigo estava acaso à margem de um rio; pediu e recebeu o baptismo, e dentro da mesma nuvem tornou a ser reposto no mesmo tribunal, sem alguém haver sentido a sua ausência, porque a graça do Espírito-Santo não reconhece necessidade de tardanças nem há difícil coisa alguma para o Senhor que de nada fez tudo só com sua vontade.
Armado já o cavaleiro de Cristo com as armas brancas da nova e reluzente graça do baptismo, revirou sobre Ariano os insultos e impropérios que dele até ali padecia.
- "Eis-aqui (dizia), ó Ariano, eis-aqui, ó turba de pouco ânimo, como sem mercê vossa sou cristão baptizado, porque veio meu Deus, que a ninguém teme, e me concedeu o que tanto desejava; já agora, ó presidente, sabe que nada da perfeita religião cristã me falta.
Portanto, determina-te no que hás-de fazer, que a detença está só da tua parte".
- Duas coisas (respondeu o tirano) me retardam: "uma, a comiseração e mágoa de ver que endoideceste; outra, a pena que este povo há-de ter na próxima solenidade, quando te não vir dançar no teatro e achar a grande diferença de outros imperitos
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tocando as tuas frautas".
Isto dizia aquele ímpio, sugerido da fraudulência diabólica, para lhe meter saudades dos passados gostos e recordação vangloriosa da estima que entre todos lograva.
Porém o santo, advertindo por onde o inimigo lhe metia esta ponta, acudiu ali pronto com o reparo.
E, doendo-se dos públicos escândalos que com o torpe ofício de comediante tinha causado, chorou e orou, dizendo: "Senhor Jesus Cristo, não permitas que pensamento algum de infidelidade corrompa o meu coração e, pois ouvistes meus rogos para me purificar com água, agora os ouve também para destruir com fogo aqueles infames instrumentos do pecado".
Pôs o Senhor a esta petição o despacho de "como pede".
Veio outra nuvem, não de água mas de fogo, ligeira carreta onde vinha cavalgando e já assestado um corisco, que, disparado, tornou em cinza as frautas, vendo-o Apolónio, em cujo poder estavam, e outra muita gente e Teonas, irmão do santo.
O qual correu logo a dar ao presidente parte do sucedido, denunciando-lhe juntamente como aquele diácono dementara a seu irmão e que o dar-lhe o seu vestido fôra supersticiosa cerimónia com que o dedicara a Cristo.
II
§ II
Mandou logo o presidente que Apolónio se apresentasse em juízo; e, havendo este obedecido, não por força mas por vontade, diz-lhe, com gesto irado e sanhudo: - "Maldito mais que todos os nascidos, dá-me aqui razão por que enfeitiçaste o esposo, a glória e as delícias desta nobre cidade?
E com que funestos versos infernais
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encantaste a tua capa, para o apestar com ela e tornar apóstata de nossa divina religião?
Se te moveu (como ouvi dizer) o horror dos castigos de minha justa indignação e respeitosa severidade, não achaste para substituir aos sacrifícios pessoa menos conhecida e necessária que a de Filemon?
E, se o aperto do tempo não deu lugar a diligências mais tardias e eleição menos errada, não podias ocultamente abrir-te comigo, sem carregares delito sobre delito, ficando agora mais encravado na tua condenação e mais indigno de minha clemência?
Porém é tal a de nossos sacratíssimos príncipes que ainda se abre o escape e te oferece um livramento, que é sacrificares, porque deste modo tu, e Filemon com teu exemplo, ambos ficareis remediados; e eu e este povo nos daremos por ressarcidos.
Resta que não desdenhes tão salutífero e oportuno conselho, nem da escada, que te lanço para subires, fazer mais alto o teu precipício, porque, pelos deuses imortais, te juro (ouve e atende bem), pelos deuses da romana potência te torno a jurar, à sua custa experimentarás quanto tenho a mão pesada contra soberbos e rebeldes".
Ouvindo Apolónio esta parlanda, respondeu, com ânimo inteiro e pacato: " - Confesso, na verdade, que pequei: porém não contra ti, senão contra meu Deus e Senhor JESUS Cristo, fiando pouco de sua graça, temendo muito de minha fraqueza.
Já o Senhor envergonhou e repreendeu a um cristão com um gentio, a um eclesiástico com um leigo, a um diácono com um farsante, para que enfim conheça como ele é o que esforça, o que peleja e o que vence em seus servos e que na sua mão omnipotente o barro já não é barro, mas diamante, e as folhinhas secas podem expugnar torres de bronze.
Portanto, arrependido da minha culpa, confio do perdão dela e que mo pode facilitar a mesma ocasião que dei de nascer-lhe mais um mártir, glorioso título de que, se eu fugia solitário, agora o venho buscar
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acompanhado, e, ansioso, anelo já aos mesmos tormentos que declinava, tímido, para compensar de algum modo com a confissão presente a passada deslealdade".
Com esta desenganada resposta, referveu a ira de Ariano.
Manda a três robustos soldados que esbofeteem o rosto de Filemon, cuja perda mais lhe doía, e de cuja redução mais confiava.
Chorava o povo como se ele fora o ferido, deste néscio pranto fazia o astuto juiz torcedor para tratear e atrair o coração de Filemon.
E aqui passou o que acima referimos no Apotegma.
E, vendo a sua perseverança e alegria no padecer, mandou que ambos fossem furados pelos calcanhares com trados e, metidas por ali as cordas, arrastados pela cidade.
Executada esta pena pontualmente, foram outra vez apresentados no tribunal, e o juiz, com escârneo e mofa, disse a Filemon:
"Que vai, amigo?
Onde está o teu Deus, que te acudiu em tão urgente necessidade?
Porque não socorre a seus adoradores nos princípios do tormento?
Dai-me ouvidos, e sacrificai, antes que passemos adiante, quando ninguém vos possa livrar das minhas mãos
".
."
Filemon neste passo, mostrando-se mais manso, respondeu: "Se queres que te ouça, ouve-me tu primeiro".
Com esta razão se alegraram muito, assim Ariano como os do povo que a ouviram, parecendo a todos que já dava esperanças de se reduzir.
E o presidente lhe disse que declarasse o que queria e seria logo servido.
O que quero (continuou Filemon) é que faças vir aqui uma caldeira grande ou qualquer outro vaso de ferro, bem capaz, com sua tapadoura.
Dito e feito, logo o vaso foi trazido.
Quero mais, (prosseguiu o mártir) que mandes meter dentro deste vaso uma criança de peito.
Assim se fez também, e todos os circunstantes estavam suspensos aonde iria parar esta prevenção ou tramóia.
Que pedes mais?
(disse Ariano); e respondeu Filemon: Venham os frécheiros do exército, com as aljavas bem providas, eatirem todos contra o caldeirão de ferro, até lhes faltarem setas.
Mandou o presidente
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que viessem e fizessem seu oficio.
Depois disse Filemon que tirassem fora aquela criatura e vissem bem se estava viva e se tinha alguma ferida ou nódoa.
E, como, feito o dito exame, lhe respondessem que estava viva, sã e ilesa, voltando Filemon para Ariano, lhe disse, em tom mui descansado: "Tu, juiz, me perguntaste ùltimamente onde estava o meu Deus que me não acudira na minha grave necessidade; agora te respondo e satisfaço: Eu sou aquela criatura de peito, pois há pouco que nasci pelas regenerantes águas do sagrado baptismo (ainda que tu o não viste) e a protecção divina, que cerca e defende a seus fieis servos, é mais que uma torre de ferro e muros de diamante; logo, que mal me podiam fazer as setas da tua língua nem quantos tormentos inventar tua diabólica malícia e crueldade?"
"Digo, pois, que não quero sacrificar nem tenho medo à tua potência nem me aparto da fé de meu Senhor JESUS Cristo".
Aqui Ariano, rangendo os dentes, chamejando pelos olhos e espumando, de bravo: Eia (clama aos verdugos), pendurai logo esse traidor em uma árvore, e todos outra vez sobre ele disparem um chuveiro de setas, desde os pés até à cabeça.
Assim se fez, recolhendo os soldados para esse efeito as setas do vaso onde estavam pregadas.
Despem e penduram o mártir em um momento; fervem os tiros, zinem as setas, cortando os ares.
Mas que sucedeu?
Oh maravilhas da protecção divina!
umas, errado o alvo, empregam-se no tronco da árvore; outras, em chegando junto do corpo, perdem a força e caem em terra, como desmaiadas; outras ficam no ar suspensas, servindo só como de apontar àqueles bárbaros idólatras o que deviam admirar naquele maravilhoso objecto:
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a Filemon digo; o qual entretanto orava, dizendo: Vinde, meu JESUS, amante da verdade, vinde em meu auxílio, protector dos desamparados, vinde, e mostrai ao ímpio Ariano como todos os que em vós põem sua esperança não serão confundidos.
Faltando enfim as setas, sem que alguma se lograsse, foram os soldados dizer ao presidente o que passava.
O qual, como atónito, disse: Ainda vive?
Sim, senhor (respondem eles), vive, e está falando coisas altíssimas - Não o posso crer (tornou o tirano), se o não vir com meus olhos.
Sái à pressa do palácio, corre ao dito lugar, olha para cima, cai-lhe a prumo uma das setas e vaza-lhe o olho direito.
Então, exagitado com a dor e correndo-lhe o sangue pelo rosto, soltou a maldita língua em muitas blasfêmias.
E depois, mandando dependurar o mártir, lhe disse: "Onde aprendeste tão potente arte mágica, se nunca trataste com cristãos?
O que importa agora é que me restituas o olho que perdi por tua causa, que bem sei que o sabes fazer; e eu te soltarei".
Respondeu o santo: "- Se eu rogar a meu Deus e te restituir o olho, é certo que atribuirás às forças da arte mágica: porém, contudo, para que não digas que o meu Deus não pode curar-te, ou que os seus servos dão mal por mal, digo-te que, depois que me matares e enterrares, vás ao meu sepulcro e, da terra dele feita lodo com água, ponhas sobre o olho e receberás luz não só no corpo mas também na alma, que é a de que mais necessitas".
Deste dito não fez por então caso Ariano; mas, querendo cortar dilações, sentenciou afinal a Filemon e Apolónio que fossem degolados e enterrados onde estavam os corpos de
São
S.
Asclas e
São
S.
Leonides.
E assim se fez.
III
§ III
Tomemos agora nova respiração para atender e admirar outra série de não menores prodígios da bondade e
80
omnipotência divina.
Ariano, no seguinte dia, dando-lhe a sua vexação o entendimento que sua crueldade lhe negara, começou (mediante a divina graça) a ponderar mais sèriamente nas maravilhas e virtudes dos santos mártires que tinha visto e experimentado.
E, como estava preordenado para a vida eterna por este meio, foi ao túmulo dos santos e tomou terra dele, fazendo lodo com água, como
São
S.
Filemon lhe tinha dito, e pôs sobre a parte lesa, dizendo: Em nome de JESUS Cristo, por quem estes seus servos consumaram o martírio, unjo os meus olhos, para ver e para crer que não há outro Deus verdadeiro senão o mesmo JESUS.
Disse, e ungiu, e logo lhe foi restituído o olho são e claro como antes o tinha.
E, como as obras de Deus são perfeitas, do mesmo modo os olhos da sua alma ficaram tão esclarecidos com o lume da fé como quando uma pessoa, saindo de uma escuríssima masmorra, dá de repente com a claridade de um formoso dia.
Quem poderá explicar o gozo e júbilo, o pasmo e admiração, o louvor e agradecimento, e outros vários e intensos afectos, em que esta venturosa alma começou a inundar sùbitamente?
Na mesma hora sai do túmulo correndo e clamando pela cidade: Eu sou também cristão; daqui por diante não sirvo senão a Cristo.
Entra no seu palácio, abre os cofres e guarda-roupas, tira sedas e panos e aromas preciosos; envia a chamar a dois bispos, declara com eles o seu ânimo rendido ao suave jugo da Lei Divina, roga-lhes tomem a seu cuidado edificar, ornar e dar o devido culto ao sepulcro daqueles santos que ele, quando cego com os enganos da infidelidade, martirizara, e manda abrir de par em par os cárceres e soltar todos os cristãos que ali tinha prisioneiros.
Soleníssimo e sumamente regozijado foi este dia para toda aquela atribulada Igreja, que não cessava
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de dar graças ao Autor de todo o bem, poderoso para fazer em um instante das pedras filhos de Abraão, dos espinhos flores e da pior sizânia o mais escolhido trigo.
Divulgando-se a fama desta insigne conversão do prefeito da grande Tebaida, chegou aos ouvidos do imperador Diocleciano.
O qual, turbado com esta nova, despachou logo quatro protectores (deles o principal se chamava Teotico), com ordem que, chegados a Egipto, devassassem do caso e, sendo necessário, lhe trouxessem preso o Ariano.
Entram aqueles ministros em Antinópolis, consta-lhes claramente da verdade, prendem ao presidente, seguindo a ordem que traziam.
Este, peitando-os, alcançou deles licença para visitar os santos mártires, antes que se partisse para Diocleciano.
E, posto diante deles, orou, dizendo: Gloriosos santos consortes da luz eterna que mana do rosto de Deus, orai por mim a nosso Senhor JESUS Cristo, para que me conforte e faça digno de confessar constantemente seu santo nome.
Neste ponto saiu do mesmo sepulcro a voz de
São
S.
Filemon, que lhe respondeu claramente: Tem ânimo, Ariano, e nada temas, porque o mesmo Cristo em quem crês vai em tua companhia para te fortalecer e mostrar por ti sua virtude diante do Imperador e, consumado o martírio, coroar-te diante do trono de seu Eterno Pai.
Roga por esses quatro homens que vieram em tua busca, que Deus os faça também participantes do conhecimento da verdade.
Este maravilhoso oráculo
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e resposta ouviram os protectores, com grande admiração sua.
Ariano, não cabendo em si de alegria e certo da sua fé, partiu com aqueles quatro ministros, para se embarcarem em Alexandria, e a oito de seus criados de maior confiança que levava consigo disse, com espírito profético: "Esperai aqui, amigos, pelo meu corpo, porque a oito de março me mandará o imperador Diocleciano precipitar no mar, metido em um saco de areia, e dali a três dias, que é a onze do mesmo, sairá nesta ribeira às costas de um golfinho, perto do meio dia; portanto, guardai isto na memória e, saindo no dito dia e hora, recolhereis meu corpo e o levareis no mesmo saco, a enterrar junto de meu amigo Filemon".
Recomendado assim este negócio, e havendo eles prometido fidelidade, partiu Ariano com aqueles ministros e finalmente chegou a apresentar-se ao imperador.
O qual lhe falou benignamente, dizendo, por via de saudação cortês: Caríssimo irmão Ariano, em quem confiava nessas partes do Egipto.
E Ariano o resaudou, dizendo: Caríssimo Senhor Imperador, que estais feito guia do caminho por onde hei-de ir para a vida.
O imperador mandou que se lavassem ambos no banho, e aos sacerdotes de Apolo que armassem um altar diante da porta do mesmo banho, com um ídolo daquela falsa Deidade; para que, ao saírem, adorassem e sacrificassem ambos.
Assim se fez logo; e, ao sair Ariano, disse-lhe o imperador: Sacrifica ao grande Deus Apolo, antes que entremos a cear.
Respondeu ele: Não posso pôr em esquecimento e desprezo as maravilhas de Deus, que vi no Egipto, obradas pelos mártires de Cristo;
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esse ídolo é um cepo lavrado à mão; não deixo por ele o meu Salvador Jesus.
Imaginava o tirano que, à vista de sua imperial autoridade, junta com os termos de lhaneza, e à memória da amizade passada, Ariano se renderia fàcilmente, como derribado com um sopro.
Porém, vendo sua determinação e entendendo bem que esta sua primeira resposta era já a última, deu ordem aos soldados que na mesma hora, acesos fachos e fogaréus (porque era já entrada a noite), saissem ao campo e fizessem uma cova bem capaz e profunda.
Assim se executou, havendo trabalhado muito nisto até amanhecer.
E neste tempo saiu o imperador ao campo, com grande comitiva de oficiais de justiça e guerra; reconheceu a altura da cova, que era mais de vinte côvados; mandou sair ao presidente da Tebaida, lançar-lhe grilhões e algemas e cadeias de bronze, e pendurar ao pescoço uma grande pedra, e que nesta forma fosse derribado no fundo da cova, e esta se entulhasse de terra e pedras, de sorte que ficasse raza como antes.
E, feito tudo como mandara, disse aos soldados que calcassem em cima, dançando e cantando esta letra: Vejamos se vem JESUS a livrar o seu devoto.
Tomada esta vingança, muito à satisfação de seu gosto, montou a cavalo e se recolheu a palácio, parecendo-lhe que tinha concluído gloriosamente a causa de Ariano.
Porém, como Deus verdadeiro não é surdo nem cego, como era o seu Apolo, e sabe tapar as bocas blasfemas que o irritam, sucedeu que, ao entrar o imperador na sua recâmara, para tomar algum descanso, olhando para o leito, viu na grade dele pendurados aqueles mesmos grilhões, algemas e cadeias e pedra a que mandara amarrar a Ariano, e que este estava deitado na sua mesma cama, não só vivo mas alegre e confiado.
Turbou-se o imperador, e o primeiro pensamento que lhe ocorreu nesta vista foi que algum de seus familiares palatinos tomaria aquele atrevimento ou lhe faria alguma
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traição.
Porém o mártir: Não te turbes (lhe disse, pondo nele os olhos), que ninguém se levantou contra ti; eu sou Ariano, a quem há pouco deixaste debaixo de montes de terra, pedra e areia, e carregado de ferros; mas, porque disseste: "Vejamos se vem JESUS livrá-lo", com efeito veio, e pôs o seu devoto nesta cama, a descansar um pouco do trabalho: para que vejas se é Imperador que prevalece sobre os imperadores e se pode livrar os que nele põem sua confiança.
Estava o miserável Diocleciano aturdido, vendo e ouvindo estas maravilhas.
Mas, não abrindo o coração ao desengano, entrou em maior indignação e disse: Nunca vi tão potente arte mágica.
E logo para os seus criados: Olá, aparelhai em continente um saco e cosei nele fortemente a este mágico, entulhando-o com areia, e precipitai-o no mar.
Aqui os
quatro
quadros
protectores, que se achavam presentes e tinham visto a maravilha, e pelas orações de Ariano andavam abalados, meteram a sua razão, dizendo:
"Em que pecou, senhor, este homem de Deus, para o mandardes assim lançar no mar
"?
?"
- " Por nenhuma outra causa (respondeu o imperador) senão porque é mago".
Replicaram eles: "Não é mago: servo de Deus, isso sim, e de um Deus que pode dar vida aos que por ele se sujeitam à morte, de um Deus, que em um momento o pode tirar debaixo de vinte côvados de entulho e deitar na vossa cama, vivo e descansado como estais vendo, e já lá no Egipto ouvimos nós outro servo seu já defunto falar de dentro da sepultura, respondendo ao mesmo Ariano palavras santas e de edificação e proféticas do que agora vemos ir sucedendo.
Não crer o que os mesmos olhos estão testemunhando
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vai da profunda malícia com que um se faz indigno de conhecer a Deus.
E, portanto, nós, a quem sua misericórdia alumiou sem merecimentos nossos, estamos aparelhados para entregar nossos corpos em seu obséquio, certos de que os há-de ressuscitar para a vida eterna".
A estas razões respondeu Diocleciano: "Já de tempos atrás podíeis ter entendido que me ereis aceitos, pois nunca pedistes coisa que vos não concedesse; agora farei o mesmo: desejais a morte, tê-la-eis, pois o desejais".
Teótico, que era o mais autorizado, disse: "Deus reprima, ó Imperador, a malícia com que não recusais deferir ao nosso desejo.
Mas ainda tenho mais outro que vos declarar
".
."
- Qual é? (disse o tirano);
"proponde e conseguireis
".
."
- Quero (disse Teótico) que "a metade de meus bens tomeis para vós, adjudicando-a ao vosso fisco, e a metade se mande repartir entre pobres
".
."
A isto saíram os outros três protectores, dizendo-lhe: "- Senhor Teótico, cuidemos nós da nossa morte, que desejamos alcançar por honra de Cristo, que este Senhor cuidará dos seus pobres, como temos experimentado
".
."
Suspenso o imperador com esta proposta, disse-lhe Ariano: "Para que nos detendes? que estão esperando as ondas do mar por nossa gloriosa partida
".
."
Então ele mandou que se preparassem outros quatro sacos também com areia, e que metessem neles os quatro protectores e lançassem logo no mar todos cinco.
E assim se fez.
E, logo que foram lançados, eis vem cortando as salgadas espumas com os colos erguidos cinco golfinhos, que, sometendo dextramente os lombos cada um a seu saco, os tomaram como à garupa e partiram ligeiros pelo rumo de Alexandria.
Estavam ali no dia e hora prefixa, aguardando, pontuais e solícitos, os criados de Ariano, que, esperando um só golfinho com um saco, e vindo vir cinco com cinco, duvidaram e diziam entre si: Se será esta a profecia de nosso amo Ariano, e qual será destes
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cinco corpos?
Neste tempo o golfinho maior se adiantou e, enxorando no areal da praia, depôs a sagrada carga das relíquias e, abrindo a boca, saiu dela uma voz humana, que dizia: Não duvideis; este é o corpo de Ariano; os outros quatro são dos protectores, que com ele foram deste porto e com ele no mesmo dia foram coroados de martírio; levai-os todos ao sepulcro de Asclas e Filemon.
Obedecendo, pois, aqueles servos a tão clara e maravilhosa demonstração da vontade divina, recolheram com reverência aqueles corpos, e em forma decente os puseram em uma barca, à qual, mandando o que a governava soltar as velas, apenas começou a navegar quando sobre todos os que nela iam, assim de gente do mar como passageiros, veio um profundo e quieto sono, de que em três dias com suas noites nenhum acordou, senão quando ao quarto dia soou uma voz, que dizia: Levantai-vos, que este é o lugar da sepultura destes mártires.
Então, abrindo os olhos, se acharam impensadamente surtos nas ribeiras de Antinópolis.
Os que saltaram em terra divulgaram logo o prodígio, a cuja fama, alvoroçados todos os fieis, e até os mesmos gentios, concorreram parte com palmas e ramos, parte com círios e perfumes, e, depostos os sagrados penhores sobre altares, se formou uma numerosa procissão até o sepulcro dos outros quatro mártires, Asclas, Leonides, Apolónio, e Filemon, em cuja companhia foram colocados, obrando Deus, para maior honra de seus servos e celebridade daquele dia (que foi a 14 de Março), muitos milagres, assim na repentina saúde de vários enfermos como na cura de muitos energúmenos, do que tudo redundaram grandes cúmulos de glória para Deus e de consolação e aumento para aquela cristandade.
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E os que esta história lerem com ânimo pio verão nela, como em um claríssimo espelho, ressaltar os raios das seguintes verdades:
Primeiro
1.o
Que, quanto em Deus mais confiamos, mais nos ampara.
Segundo
2.o
Que não devemos desconfiar da conversão dos grandes pecadores.
Terceiro
3.o
Que para o coração duro não bastam milagres, se o dedo de Deus o não toca com especial graça.
Quarto
4.o
Que a quem serve a Deus devéras todas as criaturas servem.
Quinto
5.o
Que o sangue dos mártires é semente que multiplica outros.
Sexto
6.o
Que o remédio dos aflitos está no recurso à oração.
Sétimo
7.o
Que a virtude, para crescer, necessita de contrários.
Oitavo
8.o
Que quem quer agradar a Cristo deve imitá-lo na condição de dar bem por mal.
Nono
9.o
Que a disposição e razões dos juízos divinos ninguém as compreende.
88
Título III
ALMA XVI De
São
S.
Carlos Borromeo.
Admoestou este santo prelado a certo bispo cardeal que se não ausentasse da sua diocese sem precisa causa.
O qual se desculpou com que o distrito dela era mui limitado e encerrava poucas almas, cujo cuidado podia sem detrimento encomendar-se a um vigário ou substituto.
Se a diocese de
Vossa
V.
Ilustríssima (replicou o santo) não tivesse mais que uma só alma, esta única era digna da presença e desvelo de qualquer grande Pastor.
CONFIRMAÇÃO E DOUTRINA
Este sentir não é singular de
São
S.
Carlos, mas comum dos Santos Padres.
Baste por agora ouvir ao grande Crisóstomo: Unius animæ perditio tantam habet jacturum, ut nulla ratione possit æstimari. Etenim si unius animæ salus tanti est, ut ob hanc Filius Dei fieret homo, tantaque pateretur: perditio, cogita quantam conciliabat pænam?
E em outro lugar: Recusaturus non erat, vel ob unum tantam exibere dispensationem: adeò singulum
89
quemque hominem pari charitatis modo diligit, qui diligit orbem universum.
O maior pastor que pode haver de almas é o Filho de Deus, tomando a nossa carne por samarra e dando-nos a sua por pastos e pegando da cruz em lugar de cajado.
Muito melhor, pois, é ouvir o que ele disse de si mesmo neste ponto por várias vezes.
A
São
S.
Carpo, bispo de Creta, estando nìmiamente zeloso do castigo de certo pecador, disse que fazia tanta estimação de qualquer alma que estava pronto para morrer por ela de novo e padecer semelhantes penas às do inferno.
A
Santa
S.ta
Gertrudes disse: Tanta é a doçura do amor de meu coração para contigo que, se não pudesses conseguir a salvação, menos que tornando eu a ser crucificado e a padecer tudo o que padeci por todos, sem dúvida alguma tornaria ao mundo para este efeito.
E, porque ninguém possa suspeitar que este excessivo amor é só para almas pias e ornadas de excelentes virtudes, qual a desta santa virgem, outra vez disse o Senhor a
Santa
S.ta
Brígida estas palavras: Se fôra possível morrer eu tantas vezes quantas almas há no inferno, com vontade prontíssima e caridade perfeitíssima entregaria meu corpo por cada uma aos mesmos tormentos que o entreguei por todas.
Bendito seja tão nobre coração, bendito tão bom Senhor, por todas as criaturas, por todos os séculos.
Amen.
Pois, se o Filho de Deus por uma só alma viria do Céu à terra e padeceria morte de cruz, que muito que por uma alma o seu pastor se não ausentasse de uma terra para outra?
E como não será uma só alma digno desvelo da pessoa toda de um pastor, se é peça tão preciosa que a repartem entre si e nela trabalham três Divinas Pessoas: o Pai criando-a, o Filho remindo-a, o Espírito-Santo santificando-a (como gravemente disse
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Ruperto abade: Humana scilicet creatura illud potissimum opus est, quod eadem B.
Trinitas magna sibi dignatione divisit, ut Pater conderet, Filius redimeret, Spiritus Sactus igniret).
Ou como será limitada a diocese que tem poucas almas? se qualquer alma é maior que toda a terra e que infinitos Empíreos, se os houvera?
Como disse
São
S.
Bernardino: Si quasi infinite Empyrei cæli, et illius nobilitatis crearentur à Deo, adhuc anima illius excelsior, ac nobilior remaneret.
Da residência dos bispos nas suas igrejas ou dioceses, muito bem sabem eles ser de direito divino e o que o concílio Tridentino decretou nesta matéria, incluindo não só os metropolitanos, primazes e patriarcas, senão ainda os cardeais, sendo então sumo pontífice Pio IV, tio do mesmo
São
S.
Carlos, e o decreto Consistorial de Gregório XIII, que declarou a mesma obrigação dos bispos cardeais, e como Urbano VIII confirmou e acrescentou esta declaração.
Porém, como o mesmo concílio aponta quatro títulos ou razões, que podem justificar a ausência do prelado, a saber: caridade cristã, urgente necessidade, devida obediência e evidente utilidade da Igreja ou República, quem não tiver verdadeiro amor a Cristo, e nele ao seu rebanho (e é certo que o não terá, não sendo homem de espírito e virtude), qualquer afecto lhe parecerá caridade cristã, qualquer dependência necessidade urgente, qualquer obséquio obediência devida e qualquer negócio utilidade pública e evidente.
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Em confirmação do que, referirei o que passou a Carlos o Bom, conde de Flandres, com João, abade de
São
S.
Bertino, visto que nos prelados regulares corre a mesma razão respectivamente que nos outros, seculares.
Viera este do seu mosteiro à corte do conde em dia da Epifânia.
E disse-lhe o conde: - Quem canta hoje, padre, a missa conventual na vossa igreja?
Respondeu o abade: - Senhor, somos ali cem monges; não faltará quem a cante dignamente em meu lugar.
- Devíeis (tornou o conde) não faltar ali em dia tão solene, cantando com os que cantam e presidindo à mesa e recreando e alegrando em Deus a vossos súbditos, que para isso vos deram rendas nossos pais.
Desculpou-se o abade dizendo: - A necessidade me obrigou, porque certo soldado poderoso nos oprime e faz vexações, de que vinha dar parte.
Não se satisfez ainda o conde e replicou: - Bastava declarar-vos por carta ou por internúncio, que o meu oficio é defender-vos e o vosso orar e sacrificar por mim.
E logo, mandando vir à sua presença aquele soldado, lhe disse resolutamente: - Olá, se torno a ouvir de vós queixa alguma, juro, pela fé que devo a Balduino meu predecessor, que vos hei-de cozer vivo em uma caldeira, como ele cozeu a outro, que roubou uma viúva pobre.
Eis-aqui como este prelado julgava aquela causa de sua breve ausência por justificada com o título de necessidade urgente e, na verdade, o não era no juízo de um príncipe pio e prudente e que via as coisas de perto com boa intenção.
Como aprovará, logo, Cristo.
Pastor Sumo, as causas frívolas que outros prelados seculares pretendem a suas largas ausências?
É certo que são raras as pessoas que regulam o desejo pelo juízo, e comum é apetecer e depois acarretar para ali a razão, e quem elege primeiro que examine só por erro acertará.
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Os danos que da ausência do pastor se seguem ao rebanho podem-se chorar, mas não se podem contar.
Porque nos eclesiásticos entra a relaxação, nos leigos a irreverência, nos ricos a insolência, nos pobres o maior desamparo, nos negócios as dilações, nas dispensações a facilidade, nas matérias de justiça as intercessões, e muitos mistérios pessoais do mesmo prelado cessam totalmente.
Contentar-se com mercenários e esperar que o seu cuidado basta para suprir estas faltas, é engano manifesto.
De outro modo aquietaram-se os concílios e não apertaram tanto estas ausências, reduzindo-as a espaço de três meses.
Como há-de zelar o criado a honra da esposa que seu próprio esposo não zela?
Como não dormirão os pegureiros, vendo que o pastor dorme a sono solto?
Giezi levou o báculo de Eliseu, e por ordem sua o pôs sobre o defunto para ressuscitar, mas o defunto ficou como antes, até vir o mesmo Eliseu em pessoa.
Porque há obras que para elas não bastam os poderes do báculo em mão alheia sem a presença do mesmo pastor.
A este ponto faz o apólogo que se conta das cotovias que tinham seus ninhos entre as searas.
Dissera o dono do campo a seus criados que tratassem de meter a foice, se vissem estar os pães já sazonados.
E, ouvindo este recado uma delas, foi pelos ares avisar as outras, que mudassem de sítio, porque vinham logo os segadores.
Porém outra mais velha as aquietou do susto, dizendo: Deixemo-nos estar, que de mandar ele os criados e fazer-se a obra vai ainda muito tempo.
Dali a alguns dias, ouviram que o amo se agastava com os criados, porque não tinham feito o que lhes encomendara, e que mandava selar a égua, para ele mesmo ir ver o que convinha.
- Agora sim (disse então aquela cotovia astuta),
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agora sim, irmãs, levantemos o voo e mudemos a casa, que vem quem lhe dói a fazenda.
A moralidade desta fábula (que os gregos chamam "epimythion") está mui à flor da terra; mas explicá-la-ei mais, não com palavras mas com casos.
A igreja de Milão, entregue em mãos de vigários e governadores, chegou a fazer-se tão mata brava que, quando depois entrou nela
São
S.
Carlos, muitas pessoas não sabiam o Padre Nosso nem o Credo, e os Clérigos traziam pùblicamente armas, com trajos seculares, e alguns confessores cuidavam não estar sujeitos ao sacramento da confissão, uma vez que eles o administravam ao povo.
Residindo em Avinhão o Papa Gregório XI, admoestou a certo bispo que se recolhesse à sua Igreja; o qual lhe respondeu livremente: Dê-nos Vossa Santidade exemplo, recolhendo-se à sua.
Movido desta resposta (e muito mais dos conselhos de Santa Catarina de Sena, que lhe conheceu e aprovou o pensamento com que andava de mudar-se), passou a Cadeira para Roma, a qual achou tão miseràvelmente demudada que tudo necessitava de reforma, e até os mesmos templos de reedificar-se.
Eis aqui a diferença que vai de mercenários a pastores, e de substitutos a proprietários.
Eis aqui como a fazenda, que nas mãos do dono se aproveita, nas dos servos se perde.
XVII De
São
S.
Francisco Xavier.
Morrendo um menino índio, que este glorioso e novo apóstolo do Oriente tinha baptizado, disse com grande alegria de seu espírito: Esta só alma que se salve me basta para prémio dos trabalhos da navegação da Índia.
94
REFLEXÃO E DOUTRINA
Como não bastaria a salvação de uma alma para satisfação dos trabalhos de Xavier navegando ao Oriente, se bastaria para motivo do Filho de Deus vindo ao mundo?
Consolem-se os missionários apostólicos, que, se por esta causa atravessam o Cabo da Boa Esperança, Cristo pela mesma consentiu ser atravessado com espinhos, cravos e lança, e, se padecem tormentas e naufrágios, a tempestade da Paixão do Senhor foi tal que até dentro de sua Alma benditíssima penetraram as águas: Intraverunt aquæ usque ad animam meam, e se viu submergida no alto pêgo de tribulações e desamparos: Veni in altitudinem maris, et tempestas demersit me.
Não importa que o lucro seja de uma só alma.
Estime-se a espécie, não se conte o número.
Sendo alma, é margarita preciosa, pela qual, ainda que única, o mercador prudente vende todas as coisas.
O valor de uma alma, insinuou discretamente quem lhe pôs por emblema uma moeda debaixo dos instrumentos com que se cunha e por letra: Imprimor, et valeo: O cunho me dá o valor.
O cunho da alma racional é imagem e semelhança de Deus, que ele lhe imprimiu na sua criação: Faciamus hominem ad imaginem et similitudinem nostram.
Que semelhança pode ter todo o resto das criaturas materiais com quem tem em si a de seu mesmo Criador?
Porém não sòmente se conhece o valor desta moeda pelo cunho, senão também pelo peso.
A balança fiel foi a cruz, e o que nela pôs Deus para preço das almas, e de qualquer delas em particular, foi ele mesmo: In Cruce suspenditur
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(disse Venâncio) ut pro captivitate nostra pretium sui corporis mercator in statera pensaret.
Infira daqui o pregador apostólico que nunca deixe de estender as redes da palavra Evangélica, ainda que as almas sejam poucas.
É hipótese falsa: que são poucas, sendo almas.
São
S.
Francisco de Sales, no caminho de Alinges a Tonon, achando-se em um templo, bem capaz, só com sete rústicos, começou a duvidar se seria conveniente diferir a pregação para ocasião de mais ouvintes.
Resolveu seu caritativo zelo dar o pasto da divina palavra àquelas ovelhas, que, ainda que poucas, não custara pouco a sua redenção.
Um dos sete era certo hereje, insigne na sua seita, pouco antes reduzido pelo mesmo santo; porém ainda titubeava.
Este, acabado o sermão, disse: Eu estava esperando, quando veio Sales, se pregaria ou se o deixaria para outra ocasião melhor; e juro que se não pregasse, me tornava a meus antigos erros e desamparava a fé católica.
Mas, ainda no caso que ninguém se converta, nem o trabalho do operário fica inútil nem a palavra de Deus infecunda, porque o procurar a salvação dos próximos sempre assegura e promove a salvação própria.
Generosus miles (disse Crisóstomo) cùm alios tutari conatur se ipsum defendit.
Assim como a palavra de Deus incriada sempre produz o Espírito Santo, assim a palavra de Deus evangélica sempre deve produzir nos ouvintes efeitos da graça do mesmo Espírito-Santo.
Mas ou eles estejam capazes de o receber ou não, o lucro espiritual do pregador nunca perece.
Já houve um que se converteu com o seu próprio sermão.
Era um monge que, vencido da tentação, tinha
96
determinado deixar o mosteiro no seguinte dia.
Pediram-lhe os outros que pregasse, e ele, por encobrir mais a sua determinação, pregou, exortando-os à vida espiritual, e, mediante a graça divina, ficou reduzido de si mesmo, e perseverou.
O glorioso
São
S.
Vicente Ferrer pregou muitas vezes a auditórios de oitenta mil almas, servindo-lhe de templo a campanha e de púlpito o combro de alguma ladeira ou os terrões de algum valado.
Se nenhuma se reduzisse, sempre recolheria o imenso fruto, porque a paz de Cristo, que não recebem os ouvintes, torna para casa dos que lha evangelizaram, como disse o mesmo Cristo: Et siquidem fuerit domus illa digna, veniet pax vestra super eam: si autem non fuerit digna, pax vestra revertetur ad vos.
XVIII Do Beato Frei Gil, ou Egídio, minorita.
Este insigne varão contemplativo, que floresceu nos tempos do Seráfico Padre
São
S.
Francisco, dizia que três coisas asseguravam muito uma alma:
Primeiro
1.o
sofrer com paciência as tentações;
Segundo
2.o
humilhar-se de coração, depois de haverfeito obras boas;
Terceiro
3.o
ter amor não ao que se vê, senão ao que se não vê.
PARAFRASE
Quanto à primeira, tem por abonador a
São
S.
Paulo, o qual diz que a tribulação gera paciência, e a paciência boa prova, e a boa prova esperança, e a esperança não confunde, antes alegra e aquieta a consciência.
E em
97
outra parte diz que Deus é fiel, dando-nos sofrimento na tentação, para que nos seja rendosa.
O conhecimento desta verdade era a causa de que muitos santos não se entristeciam com as tentações, antes se alegravam.
Em Vitas Patrum se conta que um santo monge ancião, vendo a um seu discípulo gravemente tentado contra a castidade (que é matéria bem arriscada, sendo o inimigo tão doméstico), lhe disse, compassivo: Queres, filho, que rogue a Deus se sirva de afastar de ti esta impugnação molesta?
- Vejo, padre (respondeu o discípulo), que este trabalho me mete em casa mais oração, mais jejum e vigílias, mais humildade para com os próximos, mais recato nas minhas acções, e assim tenho por melhor que peçais a Deus me assista com sua virtude para que peleje legìtimamente.
Tornou então o velho: - Agora conheço, filho, que tens luz das coisas espirituais e que sabes usar fielmente da tentação, ordenando-a para o fim do teu aproveitamento, que é o mesmo porque Deus a permite.
Também
Santo
S.to
Efrem, conta
São
S.
João Clímaco que, achando-se em altíssima paz e tranquilidade de ânimo, a que ele chama impassibilidade e céu terrestre, pediu a Deus lhe restituisse as suas antigas contendas e guerras interiores, para não perder a matéria de merecimento e de lavrar mais custosa e rica a sua coroa.
Ao abade Pastor disse outro monge: Eu fiz oração e cessaram as tentações.
Respondeu o santo: - Vai retratar-te e pede que as tentações tornem, para que te não faças frouxo e negligente.
Obedeceu aquele monge, e o Senhor lhe disse: - Bom conselho te deu teu mestre; eu te restituirei as tentações.
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Quanto à segunda, concorda com a doutrina de nosso Salvador, o qual diz que aprendamos dele a ser mansos e humildes de coração, e acharemos descanso para nossas almas, isto é: alívio, defensa e segurança.
Os que fazem taipas de pilão vão lançando terras às cestadas entre duas tábuas ou pranchas, afastada uma da outra quanto querem seja a grossura da taipa, e, tanto que têm lançado uma cama de terra, a calcam muito bem com pilões, ou massos, de sorte que se torne em uma massa mui unida e condensada.
Logo, subindo as tábuas mais para cima, tornam a encher de terra e tornam a calcar com os pilões.
E deste modo, pouco e pouco, se levanta o muro ou parede, que depois rebocam e guarnecem contra as injúrias do tempo.
Deste modo devemos nós edificar virtudes, para terem alguma firmeza: cesto de terra, que é qualquer obra do serviço de Deus, e logo em cima dar-lhe com o pilão da humildade e abatê-la.
Assim nos ensinou Cristo nosso Mestre, dizendo: Te autem facienti elleemosynam, nesciat sinistra tua quid faciat dextera tua.
Quando deres esmola (eis-aqui o cesto de terra, que vai fazendo o edifício alto), não saiba a tua mão esquerda o que fez a direita (eis aqui o pilão que o vai fazendo seguro).
E em outra ocasião: Cumfeceritis omnia quæ præcepta sunt vobis, dicite: Servi inutiles sumus: Quando cumprirdes todos os Mandamentos (eis aqui mais terra dentro das tábuas da Lei de Deus), dizei: Somos servos inúteis (eis aqui outra vez o pilão em cima calcando).
Do mesmo temos exemplos em
São
S.
Paulo.
Uma vez disse confiadamente: Eu tudo posso: Omnia possum.
E logo imediatamente acrescenta: Em virtude de Deus,
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que me conforta: In eo qui me confortat.
Quando diz: Tudo posso, vemos esta parede mui levantada pelo exercício de obras santas, em todo o género de virtudes.
E, quando acrescenta: Em virtude do Senhor, que me conforta, vemo-la mui maciça pelos golpes da humildade e conhecimento próprio.
Outra vez, falando com os Coríntios: Nihil minus sui ab iis, qui sunt supra modum Apostoli: Não dou vantagem a qualquer dos que foram maiores apóstolos.
Há tal altura de virtudes e tal sinceridade em as publicar?
Ora, vejamos como logo desce tão profundo e se aniquila: Tametsi nihil sum: E todavia nada sou.
De sorte que as nossas virtudes é necessário, conhecendo-as, desconhecê-las (como disse
São
S.
Gregório), porque de tal modo as devemos ter por boas que as tenhamos juntamente por mínimas: por boas, para as guardarmos; por mínimas, para nos não incharmos: Oportet bona opera scienda nescire: quia, et recta hæc æstimare oportet, et minima; recta, ut custodiamus; minima, ne inflemur.
Este modo de proceder assegura muito a uma alma.
Em um livro antiquíssimo de versos latinos, que era tradição ser composto antes de todos os escritos latinos que se divulgam, estava este verso:
Hyberno pulvere, verno luto,
Grandia farra, Camilles, metes.
Como se em português dissessemos: "Pó no inverno, lodo no verão, muito pão".
Assim também, quando virmos que uma alma nas tentações anda enxuta e serena, e nas boas obras lacrimosa e compungida, é sinal que tem subido a mui alto grau de perfeição.
Quanto à terceira e última (que era: Ter amor não ao que se vê, senão ao que se não vê), coincide com a sentença do Apóstolo Santiago: Que quem quer ser amigo
100
das coisas deste século visível se constitui inimigo de Deus.
E que paz ou quietação poderá lograr a alma que tem a Deus por inimigo, e por amigo a este mundo?
Olhai com quem e sem quem!
(puderamos aqui dizer com o Virgílio português).
O santo rei e patriarca David uma vez pediu a Deus que lhe desviasse ou fechasse os olhos e outra que lhos abrisse e aplicasse.
Ambas as petições eram boas, e entre si coerentes.
Queria os olhos fechados, para as vaidades deste mundo: Averte oculos meos ne videant vanitatem, e abertos para os mistérios e maravilhas e promessas da Lei de Deus: Revela oculos meos, et considerabo mirabilia de lege tua.
Porque estas coisas invisíveis amava e as outras visíveis aborrecia, e vão os olhos para onde tem ido o amor.
O que se vê são riquezas, delícias, honras, postos, aplausos, servos, herdades, edifícios,
etc
etc.
, e aqui havemos de dizer: Averte oculos meos.
O que se não vê são virtudes, graças, dons do Espírito-Santo, mistérios da vida, paixão e morte de Cristo, anjos, santos, bemaventurança eterna,
etc
etc.
, e aqui havemos de dizer: Revela oculos meos.
Lembra-me haver lido de um enfermo que, olhando para baixo, nada via, mas, levantando os olhos ao céu, lograva o uso deste sentido.
Tais devemos ser por saúde do espírito qual era este por enfermidade do corpo: isto é, águias para contemplar os bens do céu, cegos para desprezar os da terra.
Mostrar-nos as grandezas deste mundo visível é próprio de Satanás, como fez com Cristo no deserto: Ostendit ei omnia regna mundi, et gloriam eorum.
Mostrar-nos as grandezas do outro século invisível é próprio de Deus, como fez em outro deserto com
101
Moisés: Ego ostendam omne bonum tibi.
Os mundanos apetecem o que se vê, porque vivem pelo sentido; os espirituais amam o que se não vê, porque vivem pela fé, como repetidamente diz o apóstolo: Justus ex fide vivit.
Uns vão-se com as visões de Satanás, porque oculos suos statuerunt declinare in terram; só sabem olhar para baixo; outros com as de Deus, porque seu modo de olhar é para cima: Ad te levavi oculosmeos, qui habitas in Cælis.
Oh quantos não lograrão a vista beatífica de Deus no céu, porque lograram desordenadamente as visões de Satanás na terra!
Com a felicidade transitória corre grande risco o alcance da eterna.
Padecer aqui com Cristo é bom presságio de reinar depois com Cristo.
Sàbiamente o disse um poeta sisudo, falando com Deus:
Quem Tu deixas de assento
Na terra estar, sem pena conhecida,
Acha seu mantimento.
No Egipto desta vida,
Porque o não tem na terra prometida.
E pouco mais abaixo:
Perseguido contigo,
Não me aparte de ti na adversidade:
Mas, como grão de trigo,
Batido da vaidade,
Caia a teus pés com o peso da humildade.
102
XIX De
São
S.
Nilo, abade.
O imperador Otão II, desejoso de conhecer de vista a
São
S.
Nilo, abade, de cuja fama célebre estava naquele tempo cheia a cristandade, o veio finalmente a descobrir em um retiro junto a Nápoles.
E, havendo gastado com ele boa parte do dia, lhe disse, à despedida: Padre, estimarei me deis ocasião de fazer algum bem a vós ou a vossos discípulos: vêde que coisa será mais do vosso agrado ou conveniência, que a farei prontamente.
Respondeu o santo: Que de nada necessitava.
Porém, instando mais o imperador, lhe pôs a mão no peito, dizendo: Nenhuma outra coisa vos peço, Senhor, que cuideis, quanto em vós é, de salvar a alma, que aqui tendes encerrada e de que haveis de dar a Deus estreita conta, como eu da minha.
ANOTAÇÕES
Nestas palavras do santo se podem notar três pontos:
Primeiro
1.o
Que em lugar de pedir coisa útil para si, pediu a coisa mais útil para o mesmo imperador, mostrando nisto que a caridade reputa o bem alheio por próprio: Charitas non est ambitiosa, non quærit quæ sua sunt.
Segundo
2.o
Visto que no excelso cume das primeiras dignidades a salvação se acha exposta a maiores perigos, encomendou-lhe um cuidado grande da salvação, dizendo: Que cuidasse quanto pudesse de salvar a sua alma: que é o mesmo que o primeiro vigário de Cristo recomendou a todos os fieis da sua Igreja: Fratres magis satagite, ut per bona opera vestram vocationem, et electionem faciatis.
Terceiro
3.o
E, já que o
103
imperador admirava a austeridade de sua vida naquele retiro, procurasse imitá-la no seu tanto, pois a ambos esperava a mesma conta diante do Juiz supremo e o mesmo proveito ou dano de sair ou não sair bem dela.
Exemplos de monarcas que respeitaram os varões de conhecida virtude, favorecendo-os e tratando-os familiarmente, há muitos, assim nas divinas letras como nas histórias eclesiásticas.
Assim honrou el-rei Achab ao grande Elias, el-rei Joram ao profeta Eliseu, Jeroboão a Abias, Ezequias a Isaías, Nabucodonosor a Jeremias, Dário e Baltasar a Daniel; aqueles também reis soberanos, e estes também profetas do Senhor.
Assim honraram também Alexandre Magno a Jado pontífice e Antioco a Ónias.
E, dos cristãos, os imperadores Constantino a
Santo
S.to
Antão, Valente a
São
S.
Basílio, Arcádio a
São
S.
Crisóstomo, Constantino a
Santo
S. to
Atanásio.
O
padre frei
p. fr.
Egídio, franciscano (de quem há pouco fizemos menção), foi tão aceito a
São
S.
Luís, rei de França, que o foi visitar e o abraçou e lhe deu ósculo.
São
S.
Francisco de Paula foi mui favorecido e estimado de Luís XI, também rei de França.
El-rei de Portugal
Dom
D.
Sebastião pùblicamente na igreja de
São
S.
Roque meteu dentro da sua cortina a Simão Gomes, chamado "o sapateiro santo".
El-rei
Dom
D.
Afonso III de Portugal vinha a visitar ao Santo
Frei
S. Fr.
Gil, dominicano, e estava só com ele na cela muitas horas, e para cobrar saúde trocou o seu bordão com o do santo.
O
vigário frei
v. fr.
Francisco del Nino JESUS, religioso leigo carmelita descalço, que antes foi um rústico tão cerrado que quase não teve uso de razão senão chegado aos vinte anos, tratava familiarmente com todos os senhores da corte de Espanha, e as mesmas pessoas reais gostavam muito de sua amizade.
O
vigário padre frei
v. p. fr.
Domingos de JESUS MARIA, da mesma
104
Sagrada Reforma do Carmelo, chegando a Viena a tempo que os Césares estavam ausentes, logo que o souberam, lhe escreveram, dando-lhe a boa vinda.
No seguinte dia, adiantando-se, a imperatriz o veio buscar ao seu convento antes de ir ao palácio.
Pouco depois chegou o imperador Fernando II, com el-rei de Hungria, que depois foi imperador, que o saudaram com notáveis demonstrações de amor e humildade, e, ao corresponder-lhes o servo de Deus, lhe deram, à vista do povo, cada um seu apertado abraço.
Depois, enfermando o santo, o levaram ao palácio e, sendo-lhe necessário comungar, o mesmo imperador lhe serviu de joelhos o vaso da ablução e, depois que expirou e se compôs o corpo, o visitou frequentemente, beijando-lhe mãos e pés, e tomou por relíquias as suas alparcas, beijando-as devotìssimamente.
Para que se veja quanta verdade é o que o Real Profeta disse: que os amigos de Deus são grandemente honrados, e sua dominação e autoridade é mui ampla: Nimis honorificati sunt amici tui Deus; nimis vonfortatus est principatus eorum.
O cuidado da salvação eterna, que
São
S.
Nilo intimou ao imperador, visto tocar naquele Unum necessarium que a todos toca igualmente, quero recomendá-lo mais a todos, referindo um caso, que passou pelo mesmo santo, e tanto será mais útil aos leitores quanto cada um souber dar-lhe ponderação mais profunda.
Foi o seguinte: Achando-se este santo varão (que foi grande no século, e depois maior no seguimento do Evangelho) retirado dos tumultos do povoado em uma igreja de
São
S.
João Baptista, cuja vida imitava, vieram a visitá-lo Teofilato, metropolitano de Calábria, e Leão Doméstico, conde governador da mesma cidade, ambos varões doutíssimos, e outros muitos senhores e sacerdotes e gente do povo.
105
Os quais, pelo caminho, conferiam entre si quem seria o que falasse e que ponto misterioso das Sagradas Escrituras lhe perguntariam; não tanto por honesto desejo de saber como por fazerem curiosa experiência dos talentos do santo.
O qual, vendo-os de longe, disse entre si: Para que vêm estes agora obrigar-me a práticas sem fruto?
Livrai-me, meu Senhor JESUS Cristo, de pecados alheios e concedei-nos graça para que só entendamos e falemos o que convém e nada obremos fora do que vos agrada.
(Bom ditame este para quando um entra em conversação com muitos, da qual, se não se preparar com a oração, rara vez sairá sem algum pecado).
Dizendo isto, abriu um livro, que tinha nas mãos, e acaso deu em um lugar onde se tratava de certa revelação feita a
São
S.
Simeão no monte admirável.
Chegaram os hóspedes, saudaram-se de parte a parte benignamente, tomaram assentos, conforme a estância permitia, e
São
S.
Nilo deu a Doméstico o livro, apontando-lhe onde estava registrado.
Começou ele a ler atentamente e, chegando ao lugar, onde se dizia que, de dez mil almas, apenas nestes tempos chegava uma às mãos dos anjos santos, começaram todos,
. . . . Ceu flamina prima
Cum deprensa fremunt sylvis, et cæca volutant Murmura . . .
, a inquietar-se e levantar murmurinho, dizendo: Fora com tal proposição; isto não pode ser verdade; quem tal afirma é herege; segue-se, logo, que nós em vão somos baptizados, em vão adoramos a cruz e recebemos a sagrada comunhão e temos nome de cristãos.
Mas o santo, advertindo que Teofilato e Doméstico, que eram as pessoas de maior autoridade, calavam, tomou a mão e disse, com igual modéstia
106
que liberdade: "E, se eu vos mostrar como o grande Basílio e Crisóstomo e Santo Efrem e Teodoro Studita e ainda o mesmo apóstolo e o santo Evangelho sentem e dizem o mesmo, a que pena vos sujeitais vós-outros, que sem consideração abris a boca, encontrando o Espírito-Santo e avaliando por heréticas as palavras dos Santos Padres, dignas de todo o respeito?
Se alegais o nome que tendes de cristãos, digo-vos que nada vos deve Deus por isso, porque que ídolos ou heresias deixastes vós, por seguir a Cristo?
Ou qual de vós se atreverá a dizer que professa outra lei que logo o não apedrejem pùblicamente?
Em conclusão, entendei que, se não fordes dotados de virtude e grande virtude, ninguém vos livrará das penas do inferno".
Ouvindo isto, todos temeram e diziam, suspirando: Ai de nós, pecadores miseráveis!
Neste caso são muito para notar os seguintes pontos:
Primeiro
1.o
Que por si só o dito de
São
S.
Nilo é assaz abonado, porque foi varão de excelente doutrina e piedade, junta com experiência dos caminhos do espírito, e de cujas virtudes o resplendor encheu naqueles tempos os impérios do Oriente e Ocidente e, além disso, foi dotado do espírito profético e dom de conhecer os secretos do coração, como nesta mesma ocasião mostrou.
Porque, perguntando-lhe um dos circunstantes se se salvara Salomão, o santo, conhecendo que era adúltero, lhe respondeu: Tomara eu saber se te salvarás tu ou não, porque de Salomão pouco te importa a ti nem a mim saber se se salvou, pois a nós, e não a ele, disse Cristo: Quem olhar para a mulher alheia, desejando-a, já adulterou.
Na qual resposta se mostrou o santo também letrado e visto nas Escrituras e Santos Padres. Porque, dizendo que a nós e não a Salomão dissera Cristo: "quem olhar
107
para a mulher alheia, já adulterou com ela", tocou em uma questão mui debatida entre os sagrados intérpretes e a resolveu mais conforme ao sentir dos Santos Padres.
A questão é: Se o Senhor neste ponto e outros que se seguem do Sermão do Monte emendou a lei, ou sòmente as deuteroses ou tradições dos Escribas e Fariseus?
Porque a Lei também proibia o desejo interno da mulher do próximo, como dizem os santos e teólogos.
Logo, também Salomão estava obrigado a este preceito.
Porém, responde doutamente Maldonado (mal citado por A Lápide pela parte contrária) que Cristo neste lugar aperfeiçoou a Lei e que, ainda que esta proibia também os actos contrários internos, não era tão precisa e expressamente como depois declarou o Evangelho.
Porque a Lei dizia: Não desejarás a mulher de teu próximo; mas não dizia que olhar para ela com olhos lascivos já era adultério: Lex quippe (são palavras deste grave expositor) tantum dicebat: Non concupisces uxorem proximi tui; sed non dicebat, eum, qui impudicis oculis aspiceret, adulterii teneri.
E eis-aqui como
São
S.
Nilo mostrou na dita resposta não só virtude mas ciência.
O segundo ponto é que a dita sentença de
São
S.
Nilo envolve a de outros Santos Padres, todos famosos na Igreja Grega, dos quais o último, que é
São
S.
Teodoro Studita (chamado assim porque foi abade de um mosteiro fundado por Stúdio), foi insigne confessor de Cristo (alguns dizem mártir) e firmíssima coluna da Igreja contra
108
Leão Armeno e Miguel Balbo, imperadores iconomacos.
Não me dou por obrigado a buscar as suas autoridades, e mais quando as suas obras não se imprimiram nem traduziram todas e só das cartas de
São
S.
Teodoro há cinco livros na Biblioteca Vaticana e na que foi de Ascânio, cardeal Colona; e desde o cárcere, que padeceu pela Fé, escreveu mais de duzentas, todas cheias de espírito e vigor apostólico.
Em qualquer delas podia estar esta sentença que
São
S.
Nilo alega, do qual devemos supôr que não mentiu em matéria tão grave, e pùblicamente.
E, quanto ao Evangelho e a
São
S.
Paulo, abaixo citaremos alguns lugares que, na verdade, são terríveis, mas não falam tão especìficamente.
Porém, quanto ao insigne Padre
São
P. S.
João Crisóstomo, grande luzeiro do universo (como lhe chamou Teodoreto) e biblioteca impoluta das divinas Escrituras (como o intitulou
São
S.
Proclo), não deixarei de pôr aquela sentença terribilíssima, que disse em um sermão, ao povo de Antióquia, e pouco mais ou menos coincide com a dita revelação de
São
S.
Simeão: Quot esse putatis (disse o santo doutor) in civitate nostra, qui salvi fiant?
Infestum quidem est quod dicturus sum, dicam tamen.
Non possunt in tot millibus centum inveniri, qui salventur; quin et de iis dubito: Quantos vos parece haverá nesta nossa cidade que se salvem?
Bem sei que é coisa mui odiosa a que vou dizer; mas, não obstante, hei-de dizê-la .
Entre tantos milhares de pessoas, não pode haver um cento que se salve, e até destes duvido.
Até aqui
São
S.
João Crisóstomo.
Onde é de notar que Antióquia, por outro nome Teopolis, foi cidade Real, fundada por el-rei Antioco, cabeça
109
de toda a Síria, e tão populosa que se contava pela terceira cidade de todo o império romano.
Roma era a primeira, e nesta, pelo recenseamento que se fez por mandado do imperador Cláudio, antecessor de Nero, foram achados seis milhões e novecentos e quarenta e quatro mil cidadãos romanos.
Alexandria era a segunda, e desta diz Budeo que tinha cinco milhões e setecentos mil homens.
Logo, Antióquia, assento de Cadeira Patriarcal, com quatorze arcebispados e 53 bispados sufragâneos debaixo da sua jurisdição, não devia ser notàvelmente inferior a elas.
E todos seus moradores naquele tempo eram cristãos (como notou César Recupito); antes ali foi que começaram os fieis a chamar-se com este nome de cristãos, como se diz nos Actos do
Apóstolos
Apóstolos)
; e ali assentou a sua primeira cadeira
São
S.
Pedro e se conservou sua doutrina incorrupta por muitos tempos.
Orcemos, pois, verosìmilmente que teria esta cidade um milhão de almas .
Destas afirma o santo, com termos que denotam impossibilidade do contrário, que, quando muito, se salvariam cem, e reprega mais a sua asseveração, acrescentando que até destes duvida: quin et de his dubito.
Com que por esta conta, ainda que tão vacilante, considerava que de cada vez mil almas fieis apenas se salvaria uma.
Certamente esta palavra do santo mais parece rugido de leão do que palavra humana.
Quem não temera?
Leo rugiet, quis non timebit?
Porque, para dizermos (como disse o
Padre
P.
Granado) que falou hiperbòlicamente, obsta que é demasiado encarecimento para um santo, dado do Céu por Doutor da Igreja e Pregador, não como os do nosso tempo, e que não podia ignorar que a conversão e terror útil dos pecadores não se obra
110
com mentiras, senão com a verdade clara, da qual faz seu veículo a graça de Deus, excitando e alumiando os corações dos ouvintes.
E bem se vê que não falou de repente, senão fazendo pé atrás e reparando no que ia a dizer e, todavia, determinando-se a dizê-lo: Infestum quidem et quod dicturus sum, dicam tamen, etc.
Logo, quanto é por esta parte, não alegava mal
São
S.
Nilo, como dizíamos.
O terceiro e último ponto que neste caso se deve advertir é que a matéria da murmuração e reparos dos hóspedes de
São
S.
Nilo não era na suposição de que na conta das dez mil almas entrassem também as dos infieis.
Isto se mostra claramente das razões contrárias, que alegavam para negar o crédito àquela revelação, que era o terem fé de Cristo, sacramentos, etc.
Além de que, se os termos da questão ou duvida fossem outros (isto é, compreendendo também os infiéis), nenhum fundamento tinham, nem ainda para se admirarem, quanto mais para levantarem ruído e censurarem de herética a tal proposição.
Nas Crónicas de
São
S.
Francisco se refere, e o traz também
Santo
S.to
Antonino, de uma mulher que, estando ouvindo o sermão, morreu de repente, e logo, milagrosamente ressuscitada, disse diante de todo o auditório, como naquele mesmo ponto que ela expirara haviam passado deste mundo e sido apresentadas no tribunal de Cristo outras sessenta mil almas, das quais só três foram ao purgatório e as mais ao inferno.
Também é vulgar o que um santo ermitão disse, falando com o cardeal João Lotário, que depois foi papa Inocêncio III: que vira cair almas no inferno tantas em número como quando o céu, cerrado por toda a parte, está chovendo copos de
111
neve mui bastos.
Que tinha, logo, de suspeitosa e hiperbólica aquela revelação, em dizer que de dez mil almas uma se salvava, se falasse de todo o género humano?
Estando, pois,
São
S.
Nilo nesta opinião, por isso recomendava tão apertadamente àquele imperador que fizesse quanto pudesse por salvar a sua alma.
Nós o que intentamos nesta anotação não é querer intimar e persuadir aos fieis o mesmo sentimento ou modo de opinar.
Porque sei que os teólogos, chegando a tratar este ponto, de se é maior, entre os fieis adultos, o número dos réprobos que o dos escolhidos (feita primeiro a ressalva de que só o juízo de Deus o conhece, conforme o diz a Igreja, em uma colecta: Deus, cui soli cognitus est numerus electorum, etc. ), comummente resolvem que é maior o dos réprobos; e deles não falta quem diga que a maior parte são homens, suposto que Vasques ainda nestes termos não quer levantar juízo de probabilidade e se fica em pura dúvida, e se fundam em que assim parece colher-se das Escrituras e Santos Padres.
Porém não apertam tão severamente este ponto como
São
S.
João Crisóstomo e
São
S.
Nilo e os mais que este alega, e sem dúvida o apertariam, se assim constasse do Evangelho e de
São
S.
Paulo.
O que intento só persuadir é que este felicíssimo número dos escolhidos, só a Deus conhecido e certo, assim o formal como o material, isto é assim os quantos como os quais, é muito menor do que comummente se
112
entende ou apreende, e que muitos que lhes parece levam feitas as diligências bastantes para entrar nele se acharão excluídos, a tempo que a desgraça é irreparável, e foi justo que as medidas lhes saíssem curtas, porque as quiseram tomar tão justas.
Deste formidável perigo nos tem avisado quem deveras nos deseja salvar a todos e morreu por isso, Cristo
Senhor Nosso
S. N.
, dizendo: Contendite intrare per angustam portam: quia multi, dico vobis, quærent intrare, et non poterunt: Trabalhai porfiando por entrar pela porta estreita, porque muitos vos afirmo que procurarão entrar e não poderão.
Este é o cuidado único que a todos deve fazer solícitos, diligentes e humildes, porque (como disse
São
S.
Basílio Magno) nenhuma coisa há mais importante que a salvação da alma, por amor da qual o Filho de Deus se sujeitou à morte: Nihil est enim, quod animæ salute magis sit necessarium, propter quam Christus mortuus est.
XX Do padre João Cardim, da Companhia de Jesus.
Este servo de Deus, sendo de treze anos, enfermou gravemente.
E, mandando chamar ao Padre António de Vasconcelos, da mesma Companhia, Reitor do Colégio do Porto, onde ele estudava as primeiras letras, lhe disse, com maior siso do que sua tenra idade prometia: Estou para morrer; quero-vos encomendar um riquíssimo tesouro, que tenho escondido; haveis de me dar palavra de cuidar dele como coisa própria.
Sim, prometo (disse o bom padre); mas que tesouro é esse?
Sabei (respondeu o menino) que é a minha alma; eu vo-la encomendo; tratai dela, que é mui preciosa, pois custou o sangue de Cristo.
113
PARENESE
No corpo, que em fim é terra, está escondido este tesouro, que é a alma.
E, se a alma, só pela razão de ser criada à imagem e semelhança de Deus, é toda ouro, como disse uma língua bendita e incorrupta: Anima dicitur tota aurea in quantum ad imaginem, et similitudinem Dei facta est, quão preciosa será por ser remida, não com prata e ouro, mas com o sangue do imaculado cordeiro de Deus?
Por cem cordeiros comprou Jacob parte de um campo: Emitque partem agri, in qua fixerat tabernacula ... centum agnis, e por um só cordeiro comprou Deus qualquer alma.
Bem se infere ser grandíssima a diferença deste campo aos mais campos, pois é infinita a deste cordeiro aos mais cordeiros.
O campo que Jacob comprou era onde tinha assentado o seu tabernáculo: In qua fixerat tabernacula.
O campo que comprou Deus, que é a alma, foi para fazer dela seu templo: Vos estis Templum Dei. Com que a alma racional juntamente é tesouro e, mais, campo: tesouro escondido no campo do seu corpo, e campo onde Deus deposita os tesouros de sua graça e do Sangue de seu Filho.
Porém, oh lástima!
Os mais dos homens (não digo já pagãos nem hereges, mas cristãos e católicos) não sabem estimar nem, por conseguinte, guardar o tesouro preciosíssimo da sua alma.
Muitos fazem mais caso do campo que do tesouro, de sorte que para eles é menos o ouro do que a terra, porque é mais o corpo do que a alma.
Pede o corpo regalos que escusa, esta petição tem pronto despacho.
Pede a alma oração, palavra de Deus e sacramentos de que precisamente necessita, esta petição tem certa a repulsa.
Se nos dói o peito, búsca-se logo médico perito; se mais dentro do peito nos dói a consciência,
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ou não se busca o confessor ou, se se busca, é tarde e o que menos bem faça o seu ofício.
Para nos levar ao pátio das comédias ou ao corro dos touros, o toque de um dedo basta, a palavrinha de um amigo; para nos levar à casa de oração, sete pregadores bradando não o conseguem.
Não há coisa mais vil nem mais cara que o pecado mortal: mais vil, pois é desonrar a criatura a Deus; mais cara, pois tem pena de morte eterna.
Por outra parte, não há cousa mais nobre e preciosa nem mais barata que a graça de Deus; mais nobre e preciosa, pois nos faz filhos de Deus; mais barata, pois se nos dá pelos merecimentos de Cristo e se nos oferece e roga com ela.
E, contudo, queremos o pecado e enjeitamos a Graça; o caro e vil nos satisfaz, o barato e precioso nos descontenta.
Este tesouro da nossa alma e o da divina graça que nela está depositado, a ser de ouro e prata ou pedras que chamamos preciosas (que, em fim, vêm a ser o mesmo que de terra e cinza e ninharias), sem dúvida o defenderíamos à custa de muito suor e sangue, de muito trabalho e desvelo, guerreando por isso com nossos próprios pais e filhos, se intentassem defraudar-nos; mas em ser de coisa celestial, eterna e divina foi desgraçado e perdeu para connosco o devido amor e justo conceito, porque não sòmente não curamos de o guardar dos ladrões, se não que lhe rogamos com ele a troco dessas coisas vilíssimas ou ainda só da falsa esperança delas, que, como tal, nos mente, deixando em nós frustrada uma vaidade com outra vaidade.
Assim vamos dormindo a trancos o sono desta mortal vida, transvertido o juízo e depravada a vontade com a fascinação ou encanto das criaturas visíveis, como disse o Sábio.
Chegamos enfim à hora da morte e de entrouxar para a eternidade: aqui parece que todos havíamos
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de abrir os olhos, com o horror de tal precipício, que quem nele caiu, sempre está caindo sem jamais achar o fundo da sua miséria.
E ainda então muitos não atinam com buscar o remédio único da penitência e sacramentos, entregando-se à direcção de um bom sacerdote, porque é justo juízo de Deus (como disse
Santo
S. to
Agostinho, Ut moriens obliviscatur sui, qui vivens oblitus est Dei) que se esqueça de si na morte quem se esqueceu de Deus na vida.
Deus nos livre de permitir que o desprezemos, porque é o mesmo que desprezar-nos, e está escrito: Que a quem ele despreza, ninguém poderá convertê-lo.
Aponto alguns casos horrendos, opostos ex diametro a este do menino João Cardim, tão solícito de sua salvação, e topam nas duas mais largas estradas do inferno, que são concupiscentia carnis, concupiscentia oculorum: deleite sensual e cobiça de fazenda, contra o sexto e sétimo mandamentos.
Sendo um padre dos mais zelosos e antigos desta nossa Congregação chamado para ouvir de confissão um sacerdote enfermo, que ainda não tinha dito missa nova, lhe foi dado por companheiro um Irmão, de muita virtude, que depois chegou aos primeiros lugares, de letras e governo.
Entraram em um aposentinho escuro, desalinhado e mal cheiroso, onde à cabeceira do doente acharam uma mulher com quem andava amigado actualmente.
Requerido uma e muitas vezes que se confessasse, respondeu sempre que não tinha matéria desde a última absolvição.
Acudiu a amiga, lembrando-lhe e nomeando-lhe os seus pecados recem-cometidos, de que ela era cúmplice; mas ele perseverou, negativo e impenitente.
Recorreram os padres, por meio de larga e fervente oração, àquele Senhor que, só, pode amolecer corações empedernidos; voltaram depois à estacada a repetir o assalto, valendo-se frequentemente dos poderosos e soberanos
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nomes de JESUS e MARIA e de aspersões de água benta, para remover a sombra do demónio que escurecia aquela alma.
Todas as diligências foram inúteis; obstinou-se e fazia tais visagens e gestos que exteriormente se estava conhecendo que o espírito maligno habitava naquela alma.
Ùltimamente se tornaram para casa, assaz lastimados do mau sucesso; ao outro dia, perguntando o mesmo padre àquela mulher como estava o enfermo, respondeu que lhe chamara outros religiosos, e também os não admitira, e assim morrera sem sacramentos.
Uma tarde, estando a nossa comunidade no oratório ao primeiro exercício da oração mental (costuma haver outro à noite para as pessoas ocupadas em seus ofícios), soou uma voz desconhecida, pedindo confessor para um moribundo.
Foi em continente um padre, que agora é Prepósito da nossa casa do Porto, assaz experimentado em semelhantes repentes.
Achou que os criados per si se moveram (ou, para dizer o certo, os moveu Deus) a chamar-lhe confessor, porque sabiam do perigo e necessidade, e o enfermo disse que não pedira confissão, porque o seu achaque era quase nada e se sentira melhorado.
Instou, todavia, o padre em que se confessasse e ele em que por ora não necessitava, sendo que tinha duas amigas à cabeceira, substituindo uma à outra, de que já, por antiga, não curava.
Durando as persuasões do padre, chegou preparada uma mezinha, e lhe pediram se retirasse.
Ao lançar-lha, a chamaram muito à pressa: - Padre, acuda, acuda, que morre.
Assim foi, e, de um aposento para outro, já o confessor não chegou a tempo.
Mais horrendas são as circunstâncias do seguinte caso, a que se achou presente o nosso
vigário padre
v. p.
Bartolomeu do Quental, primeira pedra escolhida por Deus para o edifício das congregações do Oratório neste reino, de que tanta glória a Deus e proveito às almas têm resultado, como é notório.
Assistiu este servo de Deus a certo moribundo avarento, que tinha sentido excessivamente
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haver dotado com larga mão a uma sua filha.
Neste pesar e mágoa estava contìnuamente cavando, em vez de o ter de seus pecados, dos quais nunca pôde reduzi-lo a confessar-se.
Disse então para o
vigário padre
v. p.
Francisco Gomes (sujeito de conhecidas virtudes, que, como piamente cremos, logra já o prémio delas) que entrasse a provar a mão com aquele enfermo, porque a graça de Deus não estava atada a este ou àquele ministro.
Entrou mas também debalde.
Mostrou-lhe um devoto crucifixo, exortando-o à contrição de seus pecados e confiança do perdão deles.
O miserável meteu a mão e o apertou de si com desprezo, dizendo: Tire lá, padre.
Finalmente, assim arrancou, repetindo muitas vezes esta única palavra: Já não tem remédio.
Eis-aqui três testemunhas, todas conformemente depondo (por relação verídica dos mesmos que o viram) que quem se esquece de Deus em vida até de si se esquece na morte, e que ninguém pode reduzir pecador a quem Deus despreza, porque dele foi desprezado .
Outro caso mais lastimoso se conta na história dos varões ilustres de Cister, em que a entrega do tesouro nas mãos do ladrão, isto é, da alma nas do demónio, não foi tácita e virtual, como nos referidos, senão expressa e formal, como agora veremos.
Vivia certo mercador em contínuas ânsias de aumentar a fazenda (próxima disposição para cair no laço do demónio, como tem avisado o apóstolo: Nam qui volunt divites fieri, incidunt in tentationem, et in laqueum diaboli).
Por este fim, não havia injustiça nem trapaça que não devorasse; era um público roubador das fazendas alheias que tratava, e aos latidos de sua consciência acusadora se fazia insensível, remetendo-se ao comum engano, de que depois restituiria.
Chamava Deus às portas de seu coração com
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rijas aldrabadas; porém ele, voluntàriamente surdo, desatendia aos avisos de Sua Majestade.
Enviou-lhe o Senhor um mensageiro, ou correio da morte próxima, que foi uma doença de perigo evidente; porém o demónio, apertando os aproches, toda a facilidade falsa que lhe tinha posto de converter-se no dia de sua morte lha virou em dificuldade de desenredar sua consciência, restituindo o alheio, e em desconfiança da misericórdia divina.
Que farei?
(dizia, flutuando na tormenta ou tormento de sua inquieta consciência).
Se não restituo, vou-me a pique ao inferno; se restituo, ficam meus filhos e mulher pobres e desamparados.
Entretanto, o sol da inteligência se ia retirando ao ocaso, e as sombras da tentação caíam maiores desde os altos montes destas imaginadas dificuldades.
Resolveu-se a favor dos filhos e mulher, contra a sua alma: chamar confessor, isso sim, por não infamar o nome; chamar os acredores, isso não, por não empobrecer a família.
Oh trevas palpáveis do espiritual Egipto, onde uma confissão sacrílega se escolhe como lícita e uma restituição justa se abomina como pecado!
Oh balanças falsíssimas, onde o bem temporal dos filhos pesa mais que a salvação eterna da própria alma!
Resoluto neste imenso desatino, mandou chamar um tabelião, para ordenar seu testamento, e ali, diante da mulher e filhos e do mesmo confessor, lhe disse: Escreva Vossa Mercê: Deixo meu corpo à terra.
Aqui parou um pouco, lutando com mortais e desesperadas ânsias, como que o espírito queria parir pela boca algum horrendo monstro de seu enorme conceito.
Assim era; continuou, pois, dizendo: Escreva Vossa Mercê: deixo minha alma aos demónios, pois de direito já é sua.
Estremeceram-se os circunstantes; uns diziam: É delírio; outros: É força de melancolia.
Nem melancolia nem delírio (disse o enfermo), senão o que sinto e entendo, na verdade.
E, para acabar meu testamento, escreva Vossa Mercê: Mando aos demónios a minha alma; mando aos demónios a alma de minha mulher;
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item, mando aos demónios as almas de meus filhos; mando-lhes também a alma de meu confessor.
A minha, pelos tratos injustos e enganos com que tenho vivido; a de minha mulher, porque me ajudava neles, para comer e galear; mando-lhes as almas de meus filhos, porque, por fazê-los ricos e andarem bem tratados, não deixei ladruíces; e mando-lhes a alma do meu confessor, porque me absolvia, vendo-me sem disposição de restituir.
Concluir este o testamento (a que puderamos chamar, com o "Eclesiástico", testamento do inferno) e concluir a vida, tudo foi o mesmo.
Quem duvida que valeu esta última vontade, confirmada com a morte do testador, na parte de que ele podia dispôr e que os infernais herdeiros entraram logo de posse inamissível eternamente?
Lá vai nos dentes dos lobos a alma remida com o sangue do Cordeiro; lá vai perdida por amor de dinheiro a criatura por cujo resgate se empenhou e vendeu uma das três Divinas Pessoas.
Mais estimou a fazenda do mundo do que a si, própria fazenda de Deus, e a Deus, todo seu bem e riquezas.
Pegou-se aos bens falsos, que não havia de levar consigo ao inferno; demitiu o verdadeiro bem, que comsigo podia levar ao Céu.
E antes quis ir nos dentes do leão para a morte eterna do que nos ombros do Pastor para a eterna vida.
Escarmento, pecadores; façamos da condenação alheia salvação nossa, e muito de antemão tenhamos ordenado outro testamento, em que deixemos a cada um o que é seu: ao mundo a vaidade, ao demónio a impenitência; aos corvos o cras cras de dilação de nossos bons propósitos, e a Deus o corpo e a alma, agora para o servirem debaixo do jugo de sua lei, depois para o gozarem no tempolo de sua glória.
120
XXI Da venerável madre Joana Francisca Fremiota.
Certo fidalgo, por haver uma irmã sua entrado na Ordem da Visitação, tratou a esta grande serva de Deus (que foi a fundadora) com palavras descomedidas, ásperas e picantes.
Não lhe respondeu mais que com a modéstia e silêncio mas, vendo que deste modo se irritara mais, fez com a dita irmã lhe deixasse boa parte da fazenda que lhe tocava e lhe désse uma meada de pérolas, que ela queria para o mosteiro.
E disse-lhe: Filha minha, dai as pérolas do mundo ao mundo, por dardes a JESUS Cristo, mediante a caridade, a alma de vosso irmão, que é pérola sua.
Cirrcunscrição
Aquela decantada margarita, ou pérola, que a rainha do Egipto Cleópatra bebeu, delida em vinagre, para ostentação do seu convite e vitória da aposta que fizera com o seu Marco António, era estimada em duzentos e cinquenta mil cruzados.
Outra, engastada na imperial coroa de Rodolfo II, dizem lhe custara trinta mil.
Por outra de excessiva refulgência e grandeza, fez el-rei da Pérsia grandes mercês aos filhos do pescador que morreu na empresa de lha buscar e trazer, e não pôde depois o grande Justiniano remi-la por cem libras de ouro que oferecia.
Porém qualquer alma racional, por avaliação do mesmo Senhor, que a criou na concha
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do corpo humano, e com dispêndio da própria vida a pescou do mar deste mundo, para a engastar na coroa de sua glória, vale incomparàvelmente mais que o mesmo mundo: Quid enim prodest homini, si mundum universum lucretur, animæ verò suæ detrimentum patiatur?
Os dotes de uma boa pérola tomam-se do seu candor, tamanho, redondez, lisura e peso.
Dos omnis (disse Plínio) in candore, magnitudine, orbe, lævore, pondere.
E os dotes naturais da alma racional se conhecem por ser uma substancial, espiritual e incorruptível forma do corpo humano, criada de nada por Deus, à sua imagem e semelhança, no mesmo ponto que a infunde no corpo, para depois o ver e gozar eternamente.
Vamos explicando, parte por parte, as desta circunscrição, o que se verá melhor separando os erros contrários, como quem lava e alimpa a pérola das imundícias que a mancharam, que por isso Salomão, para saber com maior fundamento a prudência e doutrina, diz que aprendeu também os erros e estultícia.
Dizemos, pois, primeiramente que a alma é Fórma, unida ao corpo fisicamente e constituindo com ele o composto humano: contra Averrois (como logo diremos) e contra Platão, em quanto considerava a alma sòmente como um cocheiro guiando o coche, ou como um piloto governando a nau, e por isso dizia que o homem pròpriamente não é mais que a sua alma.
Para este erro parece que também puxou Orígenes, porque teve para si que entre as almas e as outras substâncias intelectuais pouca diferença houve antes do pecado, porém, depois, em
122
pena dele, foram as almas degradadas a morar no cárcere de seus corpos.
Também negaram ser forma do corpo os que condenou o concílio Lateranense em tempo do papa Leão X, e o Vienense em tempo de Clemente V, que se congregou, no ano de 1311, contra os begardos, beguinas, fraticelos e dulcinistas.
E Lutero um dos artigos em que se enviou contra o pontífice romano foi haver definido que a alma racional é forma substancial do corpo humano.
Dizemos que esta forma é uma só em cada corpo humano, conforme aquilo do símbolo de
Santo
S. to
Atanásio: Sicut anima rationalis, et caro unus est homo, ita Deus et homo unus est Christus.
E nisto se parece também a alma com a pérola, a qual (como escreve Plínio) por isso lhe chamaram os romanos Unio, porque nunca se acham pegadas, senão cada uma de per si.
Neste ponto houve dois modos de errar opostos: um dos que punham muitas almas em um só corpo, outro dos que põem em muitos corpos uma só alma.
Por carta de mais perderam os maniqueus, que afirmavam que cada homem tinha duas almas, uma sensitiva, que pelejava contra o espírito, outra racional, que pelejava contra a carne, e esta diziam ser feita por mau princípio.
Filopono e Okamo puseram três realmente distintas, a saber vegetativa, sensitiva e racional.
As mesmas pôs Apolinário, bispo de Laodiceia, porém em Cristo
Senhor Nosso
S. N.
admitia só as primeiras duas, dizendo
123
que a racional fora prevenida e substituída pelo Verbo Divino.
Os erros deste heresiarca foram condenados pelo concílio Alexandrino, em que presidiu
Santo
S. to
Atanásio, ano 362, e depois pelos sínodos ecuménicos Constantinopolitanos segundo e oitavo, e a mesma razão natural destrói este erro da multiplicação das almas, como se pode ver no filósofo, e no Doutor Angélico.
Finalmente, Paulo Veneto, não se contentando com distinguir as duas almas, sensitiva e racional, põe de mais tantas vegetativas quantas são as partes do corpo, o qual por este modo vem a ser um armário ou armazém de almas.
Por carta de menos perderam os filósofos pitagóricos e platónicos, que criam que qualquer alma, depois de separada de um corpo, tornava, a seu tempo, por ordem dos deuses, a morar em outro ou em vários sucessivamente.
O mesmo delírio teve Simão Mago, como dizem
Santo
S. to
Irineu e Tertuliano; e mesmo os hereges albigenses, como diz
Santo
S. to
Antonino.
E ainda mais absurdamente sentiu Averrois, dizendo que uma só alma grande assistia de fora a todos os corpos, regendo-os e movendo-os, bem como (podemos explicá-lo assim) um engenheiro bole com os títeres.
E mais modernamente Aquilino e António Mirandulano punham uma só alma para todos os corpos, se bem não negavam ser verdadeira
124
forma deles, e limitavam a sua sentença quanto ao que se colhia da filosofia natural, senão obstara o que a Igreja entende neste ponto, que são tantas almas distintas quantos corpos.
Dizemos que esta forma é substancial, e não acidente, contra aqueles filósofos que Aristóteles diz que entendiam ser a alma não mais que uma harmonia, número ou proporção dos contrários no corpo, e contra Galeno enquanto diz que é temperamento das qualidades, ainda que em outra parte se mostrou duvidoso, e contra o infame Lutero, que este (como acima dissemos) é um dos artigos que impugna no pontífice romano.
Dizemos mais que esta forma é espiritual, contra vários e absurdos modos de opinar que neste ponto tiveram os filósofos étnicos e também alguns cristãos.
Porque Demócrito e Leucipo disseram que era fogo, que constava de certos átomos redondos, os quais com o movimento da respiração fàcilmente se atraíam e expeliam.
Alguns pitagóreos disseram que eram átomos do ar, semelhantes aos que vemos na réstea do sol; Empédocles, que era um composto dos quatro elementos; Diógenes, que era ar puro; Heráclito, vapor; Hípon, água seminal; Crícias, sangue.
Os saduceus também negavam ser a alma espiritual, porque nenhum espírito admitiam, nem confessavam a ressurreição.
Tertuliano disse que era corpórea pròpriamente, e o mesmo seguiu Apolinário.
Mas o contrário definiu o concílio Lateranense sub Inocêntio III, onde se diz: Deus ab inito utramque de nihilo
125
condidit creaturam corporalem, et spiritualem, Angelicam scilicet, et mundanum; deinde humanam, quasi communem ex spiritu, et corpore constitutam.
Dizemos também que esta forma é incorruptível e imortal, e que, nem ao desatar-se do corpo nem depois em tempo algum, perece; contra a seita dos saduceus (como há pouco dizíamos) e contra certos hereges que se levantaram em Arábia, pelos anos de 245, que diziam morrer a alma juntamente com o corpo, não menos que como morre o gado.
O mesmo desatino teve antigamente Epícuro, como diz
Santo
S.to
Agostinho e
São
S.
Gregório Nisseno, e mais de próximo um Hermano Risuvic, holandês de nação.
O ímpio Lutero, na sua asserção dos artigos condenados pelo papa Leão X, havendo dito que não cabe no poder pontifício estatuir artigos de fé, acrescenta por ludíbrio estas palavras: Permitto tamen quòd Papa condat articulos suæ fidei, et suis fidelibus; quales sunt, panem, et vinum transubstantiari in Sacramento, Essentiam Dei nec generare nec generari, animam esse formam substantialem corporis humani, se esse Imperatorem mundi et Regem Cæli et Deum terrenum, animam esse immortalem, et omnia illa infinita portenta.
A contrária verdade, além de ser de fé, (como consta de muitos lugares da Sagrada Escritura e do concílio Lateranense e consenso universal dos Santos Padres), a tiveram até os filósofos étnicos, Pitágoras, Sócrates, Platão, como testificam Plutarco e Cícero; de Aristóteles não é tão claro o que sentiu, uns o condenam, outros (parece que com
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maior fundamento) o defendem.
Bem pode ser que ainda muitos, dos que ensinavam que a alma perecia, de si para si entendessem o contrário, como se viu em Simão Mago.
Contarei o caso, por ser notável, conforme se refere no livro das Recognições de
São
S.
Clemente Romano, discípulo que foi de
São
S.
Pedro.
Disputando este gloriosíssimo Príncipe dos Apóstolos com Simão Mago, que negava a imortalidade da alma racional, acendeu-se em zelo e arrancou do peito um alto suspiro e começou a demonstrar as ruínas e calamidades que alagariam o mundo, se tal absurdo se cresse.
E logo disse para o Mago, com os olhos cheios de fogo: Queres que te mostre com uma única palavra como a nossa alma é imortal?
e, duvidando ele como poderia prová-lo com uma só palavra, disse
São
S.
Pedro: Hei-de prová-lo, e de sorte que para ti fique mais claro que para outra qualquer pessoa do auditório.
Eis, pois, responde-me: Que prova faz mais fé, a da vista ou do ouvido?
Respondeu o Mago: A da vista.
Instou
São
S.
Pedro: Pois como queres saber de mim, ouvindo-o, o que sabes por ti mesmo, vendo?
Tornou o Mago: Não entendo o que queres dizer.
Concluiu
São
S.
Pedro: Se não sabes, vai para casa, entra naquele teu cubículo secreto, verás uma imagem coberta com uma púrpura, onde tens aligada por más artes a alma de um menino morto violentamente, a qual vês e com ela falas.
E então dize-me para que perguntas se a alma é imortal, quando tu a tens presente?
pois o que não é não se sente nem fala.
Ficou o Mago aturdido, imaginando que Pedro adivinhara, e começou a confessá-lo por profeta, em que habitava o verdadeiro
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Deus, e a rogar-lhe que vencesse com a bondade a sua malícia, e que ele faria penitência e o ajudaria a pregar a verdade.
São
S.
Pedro, voltando-se para o auditório, disse: Vêde-lo oferecer penitência?
Daqui a pouco o vereis tornar à infidelidade (E assim foi).
Ele cuida que o que agora acabei de dizer foi por virtude de lume profético; mas eu não posso mentir nem enganar, para que ele se salve ou não salve.
O que disse não foi por revelação, se não por relação verdadeira de alguns seus antigos sócios (eram estes Nicetas e Aquila), que se tornaram à luz da verdade.
E, assim, torno a declarar que o que disse não foi revelação do Céu, senão coisa sabida por notícias humanas.
Até aqui a história; e, por ela provada ad oculum a imortalidade da alma, tornando a continuar sua descrição: Dizemos que é criada por Deus de nada, contra alguns filósofos antigos que criam ser a alma parte substancial de Deus, tirada da mesma natureza divina: Divinæ particulum auræ, como o disse o lírico.
E esta parece ser a mitologia da fábula de Prometeu, que, subindo ao céu, acendeu no sol uma varinha, com que veio a meter fogo em uma estátua, que, por benefício dele, ficou animada.
Este erro tiveram também os hereges honvusiastas, como traz Genebrardo, gnósticos e maniqueus, como testemunha
Santo
S.to
Agostinho, e os priscilianistas, como se diz no concílio Bracarense primeiro.
Contra ele disputa o mesmo Santo Agostinho e se convence claramente de Deus não ser mudável nem divisível, senão simplicíssimo e incomutável.
Por outra parte, desvariaram o Seleuco e Hérmias, que diziam que os anjos criaram as almas de fogo e espírito, não havendo mais que um criador de todas as coisas visíveis e invisíveis, como confessamos
128
no símbolo do concílio Niceno.
Por outra, Tertuliano e Apolinário, que entenderam ser as almas dos filhos propagadas per traducem pelas dos pais, e por esta ponte salvaram a passagem do pecado or desde Adão a todos seus filhos, porque como pode ser (diziam eles) que a alma vem só de Deus e o corpo vem do homem, se o pecado veio pelo homem, e não está no corpo mas na alma?
Porém este argumento (que tanto cuidado deu a
Santo
S.to
Agostinho) já hoje tem solução clara.
Passou a nós o pecado or por via da união da alma com o corpo, porque no mesmo ponto que se infunde no corpo gerado da massa corrupta de Adão é verdade dizer que tem mais um filho; por conseguinte, toca-lhe o raio da condenação divina, destinado a todos seus filhos, e fica a alma destituída da graça e justiça or, que aliaz lhe seria dada, se Adão não pecasse.
Dizemos criada por Deus no mesmo ponto a infunde no corpo, contra Orígenes, que erradamente entendia Deus a princípio criara todas as almas juntas e depois, por sua ordem, as ia mandando aos corpos, como peregrinas e desterradas.
Isto condenou
São
S.
Leão Papa em uma epístola, onde, contra Prisciliano, que teve o mesmo erro, diz que a fé católica ensina que as almas não existiram antes de ser inspiradas nos seus corpos.
Dizemos criada à imagem e semelhança de Deus, por que, ainda que muitos fundaram esta relação de imagem no corpo, uns porque entendiam erradamente que Deus era também corpóreo, outros porque diziam que Deus,
129
ao formar a Adão, tinha vestida figura corpórea e debaixo desta aparência disse: Façamos o homem à nossa imagem e semelhança, e outros porque referem esta razão de imagem à ideia da Incarnação do Verbo, que Deus tinha predestinada, contudo é certo que principalmente se funda na substância da alma e se aperfeiçoa pelas suas potências e actos espirituais.
Porque por parte da alma participa o homem o grau da natureza intelectual, em que convém com Deus, e do ser a alma substância intelectual lhe vem o ser indivisível e imortal e capaz de livre arbítrio, dominação e presidência, e o estar toda em todo o corpo e toda em qualquer parte dele, o que tudo são perfeições divinas participadas, segundo as quais cresce esta imagem na razão de tal, e por isso os Santos Padres ora a denominam de uma ora de outra.
Por outra parte, termina-se esta relação a Deus enquanto um e também enquanto trino.
Enquanto um, porque enquanto um é Deus inteligente, imortal, indivisível, livre e dominante.
Enquanto trino, porque também a substância da alma é uma e as potências espirituais três, entendimento, memória e vontade, ou porque, assim como a beatíssima Trindade se edifica pelas processões do entendimento e vontade, assim, respectivamente, pela participação delas se aperfeiçoa na alma a imagem da beatíssima Trindade, enquanto entendendo produz também o seu Verbo criado e querendo produz o seu amor.
Este paralelo agrada mais a
São
S.
Tomás e o explica largamente
Santo
St.o
Agostinho.
130
E do sobredito se inferem estas três verdades:
Primeira
1.a
Que também os anjos são criados à imagem de Deus.
Esta é de
São
S.
Dionísio,
São
S.
Gregório e
São
S.
Tomás, contra Teodoreto.
Segunda
2.a
Que também a mulher igualmente como o homem tem a dita imagem e estampa.
Esta é de
São
S.
Basílio,
Santo
St.o
Agostinho,
São
S.
Gregório Nisseno, contra o mesmo Teodoreto e alguns modos de falar de
São
S.
João Crisóstomo.
Terceira
3.a
Que pelo pecado mortal não se perde esta imagem, ainda que se deslustra ou afeia; não se perde, porque, como dissemos, funda-se na natureza, mas deslustra-se, porque perde a renovação e realce singular que lhe dava a graça, que era outra participação da divina natureza, e porque as potências e actos da alma (em que consistia também a dita razão de imagem), empregando-se no pecado, buscam o não ser, pois o ser do pecado é nada e, por conseguinte, alongam-se de Deus, que é o mesmo ser.
Esta verdade é contra Orígenes, que parece entendeu que, perdendo a graça, perdíamos a imagem de Deus, e contra um Matias ilírico, que disse que, pelo pecado, ficava o homem transformado em viva e substancial imagem do diabo, e contra os novos herejes, que por este beco escuro querem sair com o seu erro tão amado de que o homem não ficou com liberdade para se abster do mal e usar das coisas honestas.
Dizemos, finalmente, criada para ver e gozar de Deus eternamente, contra as vãs opiniões dos filósofos, que vàriamente constituiam o fim último do homem, das quais Lactâncio traz dez e Marco Varrão diz que se pode multiplicar em duzentas e oitenta e oito.
Mas as
131
principais são três: A
primeira
1.a
Constituiu o nosso sumo bem e último fim nos deleites do corpo.
Esta foi de Epícuro, como se colhe de Cícero, e é dos maometanos, que, suposto crêem a imortalidade da alma, o paraíso que lhes promete o seu falso profeta consiste em jardins amenos, fontes cristalinas, mesas abundantes, tapeçarias riquíssimas e outras coisas menos para nomear, como traz o
padre
p.
Lessio, citando as azoaras do seu Alcorão.
A
segunda
2.a
Constitui o nosso sumo bem em viver conforme à razão e natureza humanas.
Esta foi dos estoicos, como largamente explica Justo Lípsio.
A
terceira
3.a
Põe a nossa bem-aventurança na melhor operação da melhor potência acerca do melhor objecto, que é na contemplação de Deus e das coisas divinas, quanto é capaz o homem, porém também inclui as funções das outras virtudes e, em terceiro lugar, os bens do corpo como saúde, forças, formosura, etc.
Esta foi de Aristóteles, o qual, faltando-lhe o lume da fé, se guiou pelo da razão o melhor que pôde.
A lástima é que a maior parte dos fieis, sabendo muito bem que o seu bem sumo e último fim é ver, amar e gozar a Deus eternamente, e que o alcance do que este Senhor promete depende da observância do que manda, assim vivem como se não duvidaram de ser isto mentira, que é o que, grave e sentenciosamente, disse Pico Mirandulano: Magna insania Evangelio non credere, cujus veritatem sanguis Martyrum clamat, Apostolicæ resonant voces, prodigia probant, ratio confirmat, Elementa loquuntur, dæmones confitentur; sed longe maior insania, si de veritate Evangelii non dubites, vivere quasi de ejus falsitate non dubitares.
132
E chega a tanto o deslumbramento de alguns cató1icos (piores, na verdade, nesta parte do que Epícuro e Mafoma) que renunciam a Bem-aventurança eterna e bens incompreensíveis do Reino de Deus pela miserável, incerta e brevíssima lambujem dos imundos gostos da Terra.
Pesa-me de ter desta desconsolada verdade provas mais reais do que eu quisera.
Conheci um mancebo, gentil-homem, rico e letrado, a quem ouvi dizer, muito em seu siso: Nada se me dera que Deus me deixasse ficar neste mundo para sempre, logrando os bens que agora logro.
Não sei se este Epícuro teve fim desgraçado; só me consta que sua vida foi curta, e cortada na flor de suas maiores esperanças.
Mais horrendo é o caso que me contou um padre desta congregação, e nela lente de prima de Teologia, por relação do
padre
p.
Álvaro Garcia, da Companhia de JESUS, pessoa de notórias letras e virtudes.
E foi que, junto do rio Douro, em uma quinta deliciosa e casa de prazer vivia uma mulher nobre em estado infame e escandaloso com certo amigo seu.
Esta um dia, mui satisfeita na complacência do regalo e descanso com que passava, se atreveu a proferir esta proposição, indigna de um peito que o Espírito Santo consagrou por seu templo pela graça do Baptismo: Ah, Senhor (falando com Deus), se vós me deixardes ficar aqui por toda a eternidade, eu não quero maior bem-aventurança.
Caso estupendo!
No mesmo ponto, abatendo-se a terra, se absorveu e sumiu toda a quinta, levando sepultada entre as ruínas esta miserável criatura que tão-pouca estimação fazia de seu Criador.
E ali se edificou depois um mosteiro de religiosos.
Não se individuam mais circunstâncias por justos respeitos.
Digamos nós, pelo contrário, ao Senhor, falando com Davide: Quid mihi est in cælo? Et à te quid volui super terram? Defecit caro, et cor meum: Deus cordis
133
mei, et pars mea Deus in æternum.
Que tenho eu no Céu ou na Terra que desejar fora de vós?
No desejo e ânsia de vos ver desfalecem as minhas forças e o meu coração, oh Deus da minha alma, meu bem e minha sorte, que me toca para eterno.
Unam petii à Domino, hanc requiram, ut inhabitem in domo Domini omnibus diebus vitæ meæ; ut videam voluptatem Domini, et visitem templum ejus: Uma só coisa pedi a Deus e esta só pretenderei: que habite eu na casa do Senhor por todos os dias da eternidade, para que veja o seu deleite, e visite o seu templo.
Eis aqui uma rude descrição da pérola de Deus, que é a alma.
E, se das outras materiais, por serem, como se crê, concebidas do relâmpago, disse Plínio que maior parentesco tinham com o Céu do que com o mar, Margaritis cæli societas magis, quam maris, com maior razão se pode dizer desta que maior parentesco tem com Deus do que com o mundo, pois Deus é o seu princípio, criando-a, Deus o seu fim, glorificando-a, e, para conseguir este fim, o mesmo Deus quis ser também o seu meio, buscando-a e renovando-a, depois de perdida e manchada: Et qui pretiosam perdidit margaritam (disse
São
S.
Pedro Crisólogo do Verbo encarnado, nascendo nas palhas de um presépio) loca squalida non dedignatur intrare et eam inter stercora ipsa perquirere non abhorret.
134
TÍTULO IV AMIZADE XXII Do grande Padre Santo Agostinho
Aconselhava este santo doutor que ninguém aceitasse o ser árbitro em causa ou contenda de amigos seus; mas de inimigos ou estranhos, sim.
Perguntado pela razão de diferença, disse: Porque, sendo força sentenciar a favor de um deles contra o outro, se são amigos, perco um amigo e, se são inimigos ou estranhos, reduzo ou concilio um estranho ou inimigo.
DISCURSO
No adquirir ou perder amigos nos devemos portar com o mesmo ou maior sentido que no adquirir ou perder fazenda, porque, na verdade, o são, e mais considerável do que vulgarmente se considera.
Por isso, o outro discreto, fazendo conta aos bens que possuia, dizia: Tenho tanto em raizes, tanto em móveis, tanto em escravos e tanto em amigos; achando (e com razão) que esta última adição merecia igual ou melhor lugar que as outras.
Nela ùnicamente livrou o seu remédio aquele feitor que o Evangelho chama villicum iniquitatis porque, vendo que, alcançado em contas com seu amo, ficaria por portas, granjeou primeiro amigos que o recolhessem nas suas, obrigando-os com abater nos escritos das suas dívidas fazenda do mesmo ano, o qual lhe louvou a prudência, ainda que do século.
E, em conclusão, se os bons amigos não valeram tanto, não dissera o Espírito
135
Santo que o achar algum é o mesmo que achar um tesouro, e tal que de ouro e prata não têm comparação com ele: Amicus fidelis protectio fortis: qui autem invenit illum, invenit thesaurum . . . Non est ponderatio digna auri, et argenti contra bonitatem fidei illius.
A dificuldade está em achar tais amigos, porque até nisto se parecem com o tesouro, que são mui raros e andam escondidos.
Mas, se alguém deseja alguns ditames para escolher, adquirir e conservar esta boa fazenda dos bons amigos, pode arrimar-se aos seguinte:
Primeiramente assente que a verdadeira amizade não pode consistir entre pessoas que a não têm com Deus.
Santo
S.to
Agostinho: Ille veraciter amat amicum, qui Deum amat in amico, aut quia est in illo, aut ut sit in illo.
Aquele deveras ama a seu amigo que ama a Deus nesse amigo, ou porque está na sua graça, ou, ao menos, para que o esteja.
E o romano orador, ainda que só com luz natural: Hoc in primis censeo, nisi inter bonos amicitiam esse non posse; neste princípio assento: que a amizade não pode ser vínculo senão entre bons.
Por isso, o profeta Jehu estranhou e repreendeu a el-rei Josafat de ser amigo de el-rei Achab, que o não era de Deus: Impio præbes auxilium, et his, qui oderunt Dominum, amicitia jungeris.
Os que concordam entre si por via da ofensa de Deus em vão esperam fidelidade recíproca, se nenhum a tem com ele.
Estes foram o argumento e sentença de Teodórico, rei ariano, contra certo diácono católico, que se passou à sua pérfida seita, por lhe ganhar mais a vontade e mostrar correspondência aos favores que dele recebia.
Mas sucedeu-lhe muito pelo contrário, porque o rei o mandou
136
matar, dizendo: Si Deo fidem non servasti, quon am pacto conscientiam sanam homini servaturas es?
Se não guardaste fé a Deus, como terás peito leal ao rei?
Segundo
2.o
Semelhante a este é o ditame de não professar amizade com quem já quebrou com o meu amigo.
É de
São
S.
João Crisóstomo: Inimici sui amicum nemo in amicitias sumit.
E se funda naquele axioma do filósofo: Quæ sunt eadem in uno tertio, sunt eadem inter se, que também vale pelo avesso em as coisas morais: Quæ non sunt eadem in uno tertio, non sunt eadem inter se; como se disséramos: que, sendo do conceito da amizade o fazer união, mal pode um coração unir-se com outros dois que entre si estão desunidos.
O exemplo temos em Sansão, que errou em querer unir-se com Dalila, uma vez que esta se não desunia dos filisteus seus inimigos, e em Herodes Antipas, que, por não apartar-se de sua cunhada, veio a apartar de si o sagrado Baptista, a quem ela aborrecia.
Terceiro
3.o
Ninguém escolha amigo notávelmente mais honrado ou rico do que ele.
É conselho do Espírito Santo pelo Eclesiástico: Pondus super se tollet qui honestiori se communicat; et ditiori te ne socius fueris.
E logo, dando a razão, acrescenta: Quando enim se colliserint, confringentur: Porque, havendo qualquer encontro (que é força havê-lo na instabilidade das ondas deste século), o mais fraco é que padecerá todo o dano.
Daqui parece foi tomado o doutrinal apólogo das duas panelas, uma de barro, outra de cobre, levadas pelo rio abaixo com a força da cheia.
Rogou a de cobre à de barro que se chegasse para ela, para que juntas resistissem melhor ao ímpeto das águas.
Não me convém (respondeu ela) a vossa amizade e vizinhança, porque, ou suceda topar eu convosco ou vós comigo, sempre vós ficareis inteira e eu quebrada.
137
Alcíato, que formou daqui um dos seus celebrados Emblemas: Nam seu te nobis, seu nos tibi conferat unda
Ipsa ego te fragilis sospite, sola terar
Quarto
4.o
Também se requer semelhança em outras coisas dos que querem ser amigos,
verbi gratia
v.g.
na idade, exercício, génio, etc.
Porque, como disse
São
S.
Hierónimo, a amizade ou supõe ou induz igualdade nos sujeitos, e quanto um deles for mais eminente tanto o outro fica mais dominado, e já será adulação ou dependência o que devia ser afecto sincero:
Amicitia parem aut facit, aut accipit.
Ubi inæqualitas, aut alterius eminentia, alterius subjectio, ibi non tam amicitia quam adulatio est.
De pontos díssonos não se compõe harmonia.
Barro e ferro, nos dedos da estátua de Nabuco estavam juntos, mas nunca estiveram unidos.
Esau e Jacob o sangue os fez irmãos inteiros, mas o génio nunca os pôde fazer amigos, senão de a metade; parece se apostaram a ser gémeos só para poderem no ventre de Rebeca renhir ainda antes de nascer, e pelo mesmo caso que Esaú era amigo de caça Jacob o era da casa: Factus est Esau vie gnarus venandi: Jacob autem vir simplex habitabat in tabernaculis.
Da firmeza na amizade o fundamento é a semelhança de costumes (disse
São
S.
Leão Papa): Inter homines ea firma amicitia est, quam morum similitudo sociavit.
Convidara um carvoeiro
e
a
um lavandeiro a viverem juntos em certas casas, para lhe sair mais barato o aluguer.
Escusou-se o lavandeiro, dizendo: Eu a lavar, e vós a manchar, não poderemos fazer boa companhia.
138
Quinto
5.o
No tempo da aflição e trabalho do amigo é lei indispensável assistir-lhe com o alivio, conselho, préstimo e ainda com a pessoa, tomando sobre si a parte que puder do peso que oprime a seu amigo.
Santo
S.to
Agostinho: Nihil sic probat amicum, quemadmodum oneris amici portatio.
E ninguém pode ser tão pobre e desvalido que lhe falte a comiseração, na qual as penas do amigo descrescem e se mitigam.
Por esta prova real passaram quantos pares de amigos celebram as histórias sagradas e profanas: Davidé e Jonatas,
São
S.
Basílio e
São
S.
Gregório Nazianzeno, Pilades e Orestes, Patroclo e Aquiles, Scipião e Lelio, Pelopidas e Epaminondas, que louva Plutarco, Teseo e Pirito, que descreve Sabelio, Mário e Caspro, que celebra Sílio, Niso e Euríalo, que canta Virgílio, Damão e Pítias, Pompónio e Lectório, que refere Valério Máximo: aos quais merecem anumerar-se os dois irmãos Ximenes portugueses, lutando sobre qual deles havia de salvar a vida do outro, não consentindo se lançasse às ondas, quando ambos não cabiam no bote, e as duas irmãs cativas pelo turco, quando devastava a Itália em tempos do imperador Miguel Paleólogo, as quais, despedindo-se uma da outra, porque era força seguir cada qual o seu patrão a terras diferentes, de repente morreram ambas abraçadas.
Sexto
6.o
Amizade precedida de comer e beber e passear juntos não merece o nome de tal, nem pode ter firmeza.
Assim o convence a razão e assim o demonstra a experiência.
Mas, de mais a mais, ouçamos os votos da autoridade, sagrada e profana.
Primeiramente, o Eclesiástico:
139
Est autem amicus socius mensæ, et non permanebit in die necessitatis.
O amigo sócio da mesa não o acharás contigo no dia da necessidade.
São
S.
Gregório Nazianzeno, ajuntando este sinal dos amigos falsos com o outro que dizíamos dos verdadeiros:
Fidis amicis nil puta proestantius,
Quos casus asper parturit, non pocula.
como se dissera em vulgar:
De amigos bons estimação se faça
Por prova de perigos, não da taça.
Amigo ao tempo de jantar e cear é dos que Cornélio Alapide chama Amici ollares: que olha para a olha, e dos que se compreendem no ditado: Fervet olla, vivit amicitia: Ferve a amizade, se a panela ferve.
Tal era o que descreveu Marcial, dizendo:
Hunc quem vina tibi, quem mensa paravit amicum
Esse putas fidoe pectus amicitoe?
Vinum amat, et cyathos, et sumina, et ostrea, non te;
Sublato vino nullus amicus erit.
Pode-se construir nestas duas redondilhas:
Este, que as mesas tem feito,
E os falernos, teu amigo,
Cuidas guardará contigo
Verdadeiro e fiel peito?
De ser amigo dá mostras,
Mas resta saber de quem:
Daquilo que sabe bem,
Vinho, salsichões e ostras.
140
Sétimo
7.o
O amigo que se há-de escolher e aceitar não há-de ser de natural suspeitoso, iracundo, mudável, chocalheiro e verboso.
Quase tudo compreendeu
Santo
S.to
Agostinho (se é que ele é o autor do livro de Amicitia) nesta sentença: Tibi eligendus est in amicum, quem non iracundiæ furor inquietet, non instabilitas dividat, non conterat suspicio, non verbositas a debita gravitate dissolva.
Especialmente das suspeitas diz
São
S.
Bernardo que turbam a sinceridade do amor, assim como as fezes revolvidas o licor puro: Non est sincerus amor, ubi dubietatis scrupulus suspicionis fæcem retinet.
Da iracúndia diz
São
S.
Gregório Magno que deita a perder o convicto dos homens sociáveis porque, quanto um declina da razão para o furor, tanto se afasta de viver com outros como homem, e é força viva só consigo como besta fera: Per iram gratia vitæ socialis amittitur: quia qui se ex humana ratione non temperat, necesse est ut bestialiter solus vivat.
Do homem de génio inconstante diz
São
S.
Bernardo que não concorda consigo: Sibi non concordat, a se dissonat, a se resilit, voluntates alternat, etc.
E mal concordará com alguém quem consigo mesmo não concorda.
O ser calado é um dos primeiros requisitos que um amigo deseja achar em outro amigo (assim como a primeira coisa que examinamos em um vaso, para despejar nele outro, é se está são ou rachado), de sorte que menos se tema um da revelação ao amigo do que da própria consciência (como discretamente disse Seneca: Quantum bonum est ubi sunt præparata pectora, in quæ tuto secretum omne descendat; quorum conscientiam minus, quam tuam timeas).
Cassiodoro,
141
reconhecendo a dificuldade de achar todos os sobreditos requisitos juntos para se eleger amigo, modifica o exame deles, dizendo que bastará ser homem que trabalhe generosamente por vencer em si os contrários vícios.
Oitavo
8.o
Em consequência do sobredito ditame, damos estoutro: que é descobrir ao amigo os nossos segredos e intenções.
Porque é o mesmo que introduzi-lo ao aposento ou recâmara mais interior da nossa alma, do que se mostra a confiança que dele fazemos, para que se dê por obrigado a pagá-la em fidelidade.
Por onde, amizade que reserva segredos não chegou ainda a ser íntima e verdadeira.
Daqui inferia bem Dalila que Sansão a não amava deveras, pois lhe encobria o mistério de suas prodigiosas forças: Quomodo dicis quòd amas me, cùm animus tuus non sit mecum?
Per tres vices mentitus es mihi, et noluisti dicere in quo sit maxima fortitudo tua.
O mesmo Deus, sendo tão profundo e recôndito em seus conselhos, guarda este estilo com seus amigos na terra revelando-lhes muitas coisas que determina obrar e as razões e fins de sua altíssima Providência.
Seja exemplo Abraão, a quem revelou o castigo de Pentapolis, dizendo: Nunquid celare potero Abraham quæ gesturus sum?
Como quem diz: Acabo de hospedar-me em sua casa e de conhecer à sua mesa e vem acompanhar-me fora, e não lhe hei-de dar também alguns sinais de correspondência amigável?
Mais claro é o argumento de Cristo
Senhor Nosso
S. N.
com seus sagrados apóstolos, aos quais disse uma vez: Já vos não chamarei servos, porque o servo não sabe o segredo de seu senhor; chamo-vos amigos, porque tudo o que ouvi a meu Eterno Pai vos fiz manifesto.
Nono
9. o
Daqui se infere que não é bom para amigo o que
142
me revela os segredos de outros com quem primeiro teve amizade.
Porque o mesmo usará comigo, quando se passar a outro.
Este ditame é de Salomão nos Provérbios: Et qui revelat mysteria . . . ne commisccearis.
No qual lugar diz
São
S.
Jerónimo: Siquis voluerit tuis misceri amicitiis, et hunc videris prioris amici pandentem secretæ, hunc veluti perfidum cave.
Décimo
10.o
Também não sabe das leis da amizade o que, ouvindo murmurar ou detrair do amigo, não acode a defender a sua fama, antes se cala, que vale o mesmo, nestes termos, que consentir com o murmurador.
Para que há-de guardar no peito um homem a outro, se este nem as costas lhe guarda?
Da detracção disse
Santo
S.to
Agostinho que era veneno de amizade.
Este, que ouve murmurar de mim e não me defende, ajuda a preparar e derramar este veneno.
A bom Jhonatas, que diante de seu próprio pai, sendo rei, e estando irado, e com uma lança muito à mão, não duvidou dizer-lhe livremente, a favor de seu amigo Davide: Quare morietur?
quid fecit?
Porque causa há-de morrer?
Que mal fez?
O bom amigo é simbolizado no escudo do famoso Mirtilo, capitão grego, que na campanha o cobriu das lanças, e nas ondas, boiando como tábua, o salvou do naufrágio.
Décimo primeiro
11.o
Mas, se a fama do amigo padece com razão ou eu acho nele defeitos repreensíveis, corre-me obrigação de o avisar em secreto, bem assim como, se visse nos seus vestidos alguma descompostura ou imundície, devia manifestar-lho, para que não aparecesse em público ridìculamente.
Dissimular erros no amigo não é amor, é lisonja; não é prudência, é traição ou, quando menos, pusilanimidade.
Porém esta correcção não pede pressa
143
e, muito menos, sanha ou cólera.
Hei-de aguardar vez em que o ânimo do amigo esteja sereno, largo e susceptível, e então lhe porei diante dos olhos o que nos dos outros não parece bem: isso sem exageração nem prólogos que movem expectação no ouvinte, com risco de antecipar a sua turbação à minha doutrina; com confiança e brevidade, como pílula que há-de ser dourada e pequenina que quase primeiro se sente engolida do que amargosa.
Veja o que ensina Cassiodoro neste ponto.
Décimo segundo
12.o
Quanto sem ofensa de Deus for possível, devem os amigos ter recíproca condescendência dos seus quereres, deixando-se vencer um do outro, para ficar a amizade de ambos invencível.
As cabras, se se encontram na ponte de algum madeiro comprido e estreito onde nenhuma delas pode sem perigo voltar para trás, ensinadas por instinto natural, uma se abaixa e a outra passa por cima, e deste modo nem pelejam nem perdem o seu caminho.
Santo
Sto
Agostinho: Ubi vera amicitia est, ibi idem velle, et idem nolle, tanto dulcius, quantò sincerius.
Isto é que celebrou Sílio nos amigos Mário e Caspro, dizendo:
......Sacro juvenes Proeneste creati
Miscebant studia, et juncta tellure ferebant:
Velle, ac nolle ambobus idem, sociataque toto
Mens eovo, ac. parvis dives concorda rebus
Occubuère simul, votisque ex omnibus unum
Id fortuna dedit, junctam inter proelia mortem.
Décimo terceiro
13.o
Finalmente (porque a matéria é vasta e não a pretendemos exaurir), por amigos havemos de ter a poucos, mas por inimigo a nenhum.
A razão da primeira parte é porque o coração, sendo limitado e repartindo-se por muitos amigos, não pode alcançar e fazer pontualmente os ofícios da verdadeira amizade.
De sorte que sendo os amigos bons tão raros, se não forem raros, parece
144
impossível serem bons, e a mesma multidão de diamantes induz em quem os vê suspeita de que alguns serão falsos.
A razão da segunda parte é porque a nenhum próximo podemos excluir dos comuns respeitos da caridade cristã nem conservar com ele rancor ou aversão.
E além de isto não ser lícito quanto à consciência, também não é conveniente quanto à boa política, porque, por desprezível que seja qualquer pessoa, pode ser mui útil ou mui nociva a qualquer outra de alto estado e dignidade.
A el-rei
Dom
D.
Afonso de Aragão, cercando a Nápoles, um homenzinho particular lhe ensinou um cano subterrâneo, por onde, entrando de noite 400 soldados, vieram a sair onde mataram as guardas e abriram uma porta da cidade ao exército.
Aman era príncipe e valido de el-rei Assuero; Mardocheu era um pobre judeu, desterrado da sua pátria; e, por querer Aman conservar rancor com Mardocheu, perdeu a casa, o estado e a vida.
Entre os animais quem mais brioso que o cavalo, quem mais forte que o leão e o elefante?
e quem mais desprezível que o rato e o mosquito?
e, contudo, os mosquitos já fizeram fugir a cavalaria de um exército, e o rato pôde dar vida ao leão, roendo-lhe as redes onde caiu, e pôde dar a morte ao elefante, roendo-lhe os intestinos, onde entrou pela tromba.
Em comunidades religiosas o cultivar particulares amizades tem graves
inconvenientes
invonvenientes
.
Deste ponto falaremos no Apoftegma seguinte.
145
XXIII Do padre frei João de Luca, da Ordem Seráfica
Perguntado este santo religioso por que razão se furtava tanto à companhia e conversação dos outros, respondeu: Em seu maior proveito redunda, porque, apartado das criaturas, me uno mais com Deus e, assim, terão mais fruto minhas orações e causarão menos escândalo meus defeitos; pelo contrário, se tratar com amigos, me afastarei de Deus, com dano meu e deles.
DOUTRINA
Esta doutrina é de grande importância para pessoas que vivem em comunidades e aspiram deveras à união com Deus.
E, assim, tudo que acima temos dito e costumam dizer os autores em louvor das utilidades da virtude da amizade não se entende dos espíritos chamados para a de Deus por especial vocação, porque estes, sem ofender as leis de uma geral caridade para com todos seus próximos, devem resguardar o coração, desempenhado, abstraído, silencioso e solitário, para o comércio divino.
Dou em prova desta verdade duas testemunhas abonadas, cujos ditos serão de não pequena consolação para almas perseguidas e caluniadas por esta causa.
A primeira é a Santa Madre Teresa de JESUS (que soube unir em si o fruto de 60 com o de 30, isto é, a prerrogativa de doutora com a de virgem), a qual, reprovando o contemporizar os servos de Deus com os que não tratam senão de vida comum, diz assim: Grande mal é que as que têm tanta obrigação de não falarem senão de Deus,
146
como são as religiosas, lhes pareça bem a dissimulação neste caso, se não fosse alguma rara vez, para maior bem.
Este é vosso trato e linguagem; quem vos quiser tratar, aprenda-o; quando não, guardai-vos vós outras de aprender o seu, que será inferno.
Se vos tiverem por grosseiras, pouco vai nisso; se por hipócritas, menos, etc.
A outra é a venerável madre Maria de la Antigua, bem conhecida em Espanha por suas virtudes e utilíssimos escritos: a qual, sendo estranhada e murmurada pelas outras religiosas do seu mosteiro porque se retirava algum tanto da sua comunicação, perguntou a seu Divino Esposo, confiada na muita familiaridade que com ele tinha, como devia neste caso portar-se, dizendo-lhe: Pai meu e meu amor, qual é a vossa vontade neste caso, para que a faça este miserável bichinho? que só vosso gosto desejo, e esse é o meu.
E o Senhor, inclinado pelo peso de sua bondade a esta humilde e sincera proposta, respondeu, dando-lhe a seguinte doutrina:
"Filha, o semblante exterior é guarda e defensa dos tesouros da alma; a que conversa comigo, em tudo há-de mostrar que é minha e, se o mundo a vê para si, alegre e espalhada, bem sabe que pouco é necessário para conquistá-la, porque está como fruta sem folhas, que qualquer temporal a derriba e seca.
E este semblante, que o mundo chama triste, melancólico e intratável, chamam os do Céu muralha e fortaleza da virtude, sem a qual almas nela mui avantajadas não medram, e se algumas vezes por esta causa vêm a perder a fruta da caridade e amor meu, que neste desterro não se pode conservar se não é com estas folhas, que são importantíssimas.
E assim quero que o digas às demais almas que se prezam de minhas, que lhes convém apartar-se de todas as conversações e agrados do
147
mundo.
Se não querem que o mundo se ria delas, não se riam nem alegrem com ele, que, quando o demónio vê cerrados todos os caminhos por onde pode entrar a saqueá-las, com este só se contenta.
Porque as almas que desejam agradar aos homens e não lhes dar pena com seus semblantes, mui perto estão de desagradar-me a mim, pois não houve nem jàmais haverá alma que a mim e ao mundo haja contentado, porque dois inimigos não podem contentar emparelhados, antes é próprio nome dos meus chamar-lhes o mundo hipócritas e insensatos, e com estes ditados se haviam os meus de alegrar e conhecer que os conhece o mundo por meus.
Assim, que não é dar pena ao mundo fazer isso senão dar-me a mim contento e a toda a Corte do Céu, que tem postos os olhos nas obras e palavras dos meus.
E, se os próximos recebem pena, eles a buscam, e não estás obrigada a tirar-lha, com dano teu; que, se hoje dizem isto, àmanhã se edificarão nisso mesmo, e mais dano lhes fará aos próximos (ainda que dizem outra coisa) o ver que há, todavia, ressábios da má vida passada que a pena de ver os meus estranhar-se de todas as coisas desta vida, e isto será de muito proveito para o próximo; e, se não se quiserem aproveitar, seu será o dano, e não teu
."
".
Até aqui a doutrina do Senhor a esta sua serva.
Em outro lugar traz outra semelhante, sobre o apartar-se de religiosas imperfeitas.
E, entre vários documentos, lhe diz: Eu mandei aos meus no Evangelho que sacudissem os pés da terra onde não fossem recebidos.
E nisto se entende que sacudam de si o pó das conversações dos que não querem emendar-se pelo seu exemplo nem tomar os seus conselhos.
Porque tratar com os tais já que a eles se não pega o ouro das virtudes, não pode deixar de pegar aos
148
meus o pó dos seus vícios.
E pouco mais abaixo: Para excusar estes danos faço eu divisão entre pai e mãe.
E os que com máscara de caridade, por não fazer esta divisão, vão contra o meu Evangelho contradizem-me a mim e me perseguem em meus filhos pequeninos.
Pareceu-me necessário trasladar estas doutrinas, para convencer a alguns que padecem alucinação nesta matéria.
Porém, ainda abstraindo de pessoas chamadas a Deus por especial vocação para lograrem os soberanos favores da familiaridade e união com sua Divina Majestade, em quaisquer outros sujeitos que vivem em comunidades o travar amizades particulares é coisa mui perniciosa, não só ao bem comum mas também aos das mesmas pessoas que se correspondem; e, como tal, o reprovam e abominam os santos mestres espirituais.
Por amizade particular entendemos toda aquela cuja causa e fundamento não é Deus, da qual disse
São
S.
Basílio "que não era caridade, mas carnalidade, nem união e concórdia, mas divisão e motim e prova da ruindade dos que assim se comunicam": Charitatem quidem (diz o santo) habere inter se mutuam debent fratres: non ista tamen, ut duo, tres ve seorsim à cæteris sodalitatem ineant; quandoquidem hoc non charitas, sed carnalitas, sed seditio, et divisio foret, et eorum qui sic eoeunt improbitatis judicium.
A raiz destas amizades, bem cavada e descoberta, vem a ser alguma destas três: Ou prendas de gentileza e discrição, que fazem o sujeito aprazível; e desta nascem os frutos da sensualidade.
Ou dependência da pessoa para a promoção aos ofícios e lugares honoríficos ou rendosos ou descansados da Religião; e desta os frutos são cubiça, soberba e poltroneria.
Ou semelhança de génios, desgostados com o rigor da observância regular e
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governo do prelado zeloso, que se ajuntam para se consolar mùtuamente ou ver se podem maquinar alguma mudança ou novidade; e os frutos são dissensão e cisma e escândalo e às vezes apostasia e outros vícios que andam na comitiva destes.
Um dos ditames ou máximas principais que há-de levar assentado consigo quem entra a viver em comunidades é fugir destas amizades particulares, como de pestilência, e, para sair com o seu intento felizmente, procure atalhar os princípios delas, não tecendo prolixas e frequentes práticas com determinada pessoa, não aceitando dádivas dela e obséquios, não aplaudindo os seus ditos e histórias, nem lisonjeando as suas prendas, não ocupando sempre a mesma pessoa nas coisas de que necessita, com que fique devedor de semelhante retorno, não fazendo do seu peito depósito dos seus segredos de importância, não desejando mais favores nem privilégios, isenções e lugares do que
Nosso
N.
Senhor for servido inspirar aos superiores, não confundindo no trato quotidiano e doméstico a afabilidade com a facilidade.
Se estes princípios se não atalham, acha-se depois o coração empenhado, e, se começou a obrar mal, irá perdendo a luz interna necessária para discernir o que lhe convém do que lhe está mal, e se fará duro para as inspirações de Deus e conselhos dos amigos bem intencionados, até que se despenhe em algum dos sobreditos precipícios.
Quanto desagradem a Deus estas amizades, e qual é o fim em que vêm a parar, mostra-se de muitos casos lastimosos.
Contento-me agora com referir um, que pertence à primeira daquelas três espécies que dizíamos e se refere na vida da
venerável
v.
virgem Ana de
Santo
Sto.
Agostinho, carmelita descalça.
Passou assim: Em um mosteiro
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daquela sagrada Reforma, de que esta serva de Deus era prelada, havia duas freiras que professavam entre si particular amizade.
E, como a que se não funda em Deus nunca lhe faltam faltas e imperfeições, eram assaz consideráveis as que por esta causa cometiam, em detrimento e com murmuração da comunidade, que em notar singularidades é Argus de cem olhos, ainda que se não sabia o que entre as duas passava.
Porque estas faltas no público eram leves, mas no secreto se equivocavam com as graves, já entrando uma na cela da outra de noite, sagrado que naquela Ordem se respeita com decoro, já ajuntando-se a falar em horas de silêncio, com pouca atenção à Regra, que o proíbe.
Nestas conversações ia envolvido o murmurar das outras, o fomentar a repugnância e antipatia com elas, o manifestar entre si lhanesas de nímia facilidade, etc.
Não me atrevo a julgar (diz o autor que escreveu a vida da dita serva de Deus) que haveria maiores excessos na matéria, ainda que a demonstração que fez o Céu supõe muito.
Mas em almas dedicadas a Deus, no estado que traz consigo necessàriamente anexa a obrigação de aspirar à perfeição, até o pouco é muito, nos olhos do mesmo Senhor.
Isto passava no convento.
E aquela santa prelada, com o costumado zelo, estava uma noite orando pelos que estavam em pecado mortal, e eis que ouve que Sua Divina Majestade, pela boca de um crucifixo de bronze que tinha consigo, lhe disse estas palavras: Atende ao que tens em tua casa.
Com este aviso lhe foi juntamente infundida notícia dos excessos que entre estas duas súbditas suas passavam.
Já se deixa entender quanto obrariam em seu coração para solicitar o remédio o império de tão divina voz e fogo do
seu
zeu
zelo, animado com o sopro que formaram os lábios de um Deus, morto na sua imagem e vivo no seu sentimento.
A venerável madre se irou mais contra si mesma do
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que contra as culpadas, parecendo-lhe que mais o estava ela no seu descuido que elas na sua desordem.
Determinou atalhar o dano, valendo-se do ensino do mesmo tempo, por não precipitar a resolução e porque o Senhor que lhe delatou a culpa lhe não inspirara o remédio.
Sucedeu encontrar em um trânsito do dormitório a uma das culpadas, a qual mostrou dissimulado carinho no afável do semblante.
Disto tomou ela ocasião para chegar-se, a pedir-lhe emprestado um Santo Cristo que costumava trazer no peito, significando ter necessidade deste socorro.
A serva de Deus o desprendeu logo do peito e, beijando-lhe os pés, lho entregou, sem dar-se por entendida de mais e ficando algum tanto consolada da sua pena e cuidado, por considerar que quem buscava a medicina não seria fácil recair na enfermidade.
Porém são grandes as forças de um mau costume, junto à ocasião dele.
Puseram-se nelas as duas amigas (ou, para dizer o certo, inimigas, que se matavam as almas) e, assim, o propósito e prevenção do remédio foi nova circunstância do delito.
Assim o deu a entender Cristo, pois, estando elas juntas, uma na cela da outra, a desoras, como costumavam, irritado o Senhor, em sua imagem se saiu da cela, desprendendo-se do peito em que aquela religiosa o tinha atado, se foi à da Venerável Madre.
Estava esta em oração, como costumava, e, vendo vir pelo ar o seu Cristo de bronze, ficou espantada.
Perguntou-lhe, amorosa, depois de o haver recebido em seus braços: Como, meu Senhor vós viestes?
E a divina imagem, dando um suspiro sentidíssimo, respondeu: Porque me estão ali ofendendo.
Que efeitos causou esta queixa de um Deus amante, crucificado no coração de uma esposa sua, tão zelosa de sua honra, mal se pode explicar; de algum modo o explicou ela mesma, derramando muitas lágrimas e tomando uma rigorosa disciplina de sangue, e toda aquela noite esteve em oração, batalhando com Deus, como outro Moisés pelo perdão do seu povo.
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Luziu-lhe o trabalho, porque logo de manhã aquela religiosa de cujo seio o Santo Crucifixo fugira, atemorizada com tão prodigiosa demonstração, veio humilde render-se aos pés da sua prelada e lhe contou, quase mais com lágrimas que palavras, o sucesso, que ela já sabia, propondo emenda com resolução mais determinada.
A serva de Deus a consolou, e lhe deu as doutrinas naquele tempo e caso convenientes, de que logrou conhecido fruto, cessando aquela particular amizade e nociva correspondência.
Todas as Esposas de Cristo, que, pelo invencível testemunho de suas próprias consciências, se acham compreendidas em outra semelhante, aprendam nesta o escarmento.
Não é necessário para se converterem a Deus de todo o coração que visìvelmente o Senhor as desampare e fuja e se queixe; basta que a fé as certifique de que, todas as vezes que uma alma que estava em graça e amizade sua consentiu em pecado mortal, realmente se dá este desamparo do Senhor, esta ausência e esta aversão suma, de sorte que mais fàcilmente se confundirão os celestes orbes com os infernais abismos, mais fàcilmente o fogo perderá o calor e a neve a frialdade, e cada naureza a sua propriedade, do que possa concordar o espírito de Deus com a mortal culpa.
XXIV De
São
S.
Barlaão, anacoreta.
Entre várias doutrinas com que este santo instruiu ao príncipe Josafat, para fundar em seu coração um claro desengano da vaidade do mundo, lhe propôs a seguinte parábola: Houve certo homem que tinha três amigos;
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de um deles fazia pouco caso, aos outros dois tinha em grande estimação, tratando-os ìntimamente e alegrando-se com eles e tomando por sua causa não pouco trabalho e cuidado.
Sucedeu padecer um grave infortúnio por via da justiça pública, no qual estes dois amigos pouco lhe valeram, porque um deles só lhe emprestou uns vestidos, e outro o acompanhou por breve espaço do caminho, quando ia chamado ao tribunal do juiz.
Mas o primeiro (que era o desprezado) entrou com ele no mesmo tribunal e ali o patrocinou constantemente, procurando o seu livramento.
Sabeis, senhor, (disse então o santo, decifrando a moralidade desta prosopopeia) que significa isto?
O mesmo passa com o homem que é amigo das riquezas; porém estas só lhe servem de o vestir: é amigo dos filhos, mulher, parentes e servos; porém estes o acompanham, quando muito, até a morte.
Das obras boas não faz caso, sendo que estas ùnicamente entrarão com ele à presença do supremo juiz, onde podem valer-lhe para que o não condene a morte eterna.
ILUSTRAÇÃO
Provemos mais por extenso estas três verdades, a saber: que nem as riquezas e honras, nem a mulher e filhos e parentes e amigos e criados nos podem fazer companhia na formidável jornada deste mundo para o outro, senão ùnicamente as boas ou más obras que tivermos feito.
I
§ I
Primeiro amigo, falso mas estimado.
Quanto às riquezas e honras, bem o tem repetido o Espírito Santo pelas línguas dos profetas e varões sábios.
O santo Job, quando, na primeira avançada de seu inimigo, perdeu toda a fazenda, saiu pronunciando a
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sentença deste desengano: Nudus egressus sum de utero matris meæ, et nudus revertat illuc.
Nu saí do ventre de minha mãe e nu tornarei lá.
Onde claramente supõe que a terra é nossa mãe, de cujo tenebroso ventre, que é a sepultura, se forma o nosso segundo parto para a eternidade.
E, assim como nada dos bens da fortuna trouxemos, ao vir de Deus para este mundo, assim nada levaremos, ao voltar deste mundo para Deus.
Isto mesmo disse o Eclesiástico: Sicut egressus est nudus de utero matris suæ, sic revertetur, ut nihil auferat secum de labore suo.
Isto mesmo o Real Profeta: Não temas, quando vires que alguém enriquece muito e que a glória da sua casa toma grandes aumentos, porque, em fechando os olhos, nada do que possui levará consigo, nem essa glória irá em sua companhia.
Isto mesmo aquela temerosa voz do Céu, que repreendeu o avarento do Evangelho, dando as suas contas por erradas e clamando: Nescio, esta noite será o último prazo da tua vida; e tudo o que ajuntaste e preveniste, de quem será?
Daqui formou discretamente este dilema
São
S.
Pedro Crisólogo, dizendo: O homo, si hic permansurus es, quæ tua sunt hic repone: si illuc iturus es, hic quæ tua sunt cur derelinquis?
Qui relinquenda servat, alienorum custos est, non suorum: Homem, se é que hás-de ficar de morada neste mundo, nele guarda e repõe o que é teu e, se hás-de fazer jornada para a outra vida, como deixas o que é teu, ao partir desta?
Quem guarda o que por força há-de deixar, o alheio guarda e não o seu.
Mui a propósito do mesmo desengano foi a acção e sentença de Constantino imperador, que, fazendo na
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terra com a lança que tinha na mão um risco ou figura de uma sepultura ordinária, disse para certo homem sumamente avarento e cubiçoso: Ainda que amontôes em casa todas as riquezas do mundo, não virás a possuir mais que estes poucos palmos de terra que sinalei, se é que os chegares a possuir.
Semelhante foi o de um sultão do Egipto, mui rico e poderoso, que na sua pompa funeral ordenou fosse diante arvorada uma lança com a sua mortalha e um pregoeiro clamando: O grão Sultão não tira para si de todos os seus tesouros mais que este lençol.
Mas, se olharmos mais de perto para a verdade, nem esse lençol tirou nem o podia tirar: senão que lho deram, e lho podiam negar e só serviu de cobrir o corpo que cá ficava, enquanto um ou outro se não corrompiam.
Que pode levar a alma deste mundo, se nem o corpo leva?
Não sendo as coisas do mundo mais que umas como vestiduras do corpo, como disse
São
S.
Gregório: Quid enim sunt terrena omnia, nisi quædam corporis indumenta?
Por isso còmicamente Ausónio introduz a alma de Diógenes cínico, rindo-se lá no inferno, na de Cresso (aquele ricaço que podia contar milhões como outros contam cruzados) e dizendo-lhe: Quanto agora tão só estais vós como eu, e muito mais pobre ainda, porque eu trouxe o que era meu e vós tudo o que era vosso lá deixastes.
À vista disto, aparece mais ridícula a vaidade e ignorância de muitos gentios, que sepultavam na mesma cova com os mortos as suas riquezas e móveis, estando na falsa crença de que ainda na outra vida prestavam para o seu uso e logro, como se pela boca daquela cova
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houvesse alguma oculta recovagem ou remessa deste para o outro século.
Dos alvabos escreveu Strabão que toda a vida passavam mui parcos e poupados, para ter na outra com que regalar-se em abundância, enterrando consigo o que amealharam.
Aristofanes faz menção da moeda de quatro reis que costumavam meter na boca do defunto, para ter a alma com que pagar o frete da barca de Acheronte.
Por onde Juvenal chamou miserável a um que nem para este frete tinha: Non habet infelix quem porrigat ore trientem.
Para apagar esta superstição que ficara depois entre os cristãos (e ainda hoje dizem haver dela vestígios em algumas terras deste reino) se introduziu o estilo de dar a sagrada comunhão aos mortos; como que a fórmula eucarística era a verdadeira moeda do porte para o outro mundo, o que depois abrogaram severamente muitos concílios.
Várias nações bárbaras da América Setentrional costumam meter na cova juntamente com o cadáver as panelas, ferramentas e peles de que o vivo usou, para que tenha na outra vida o préstimo destas coisas.
Pela mesma razão os cares enterram os soldados com todas as suas armas, como refere Tucidides.
Outros povos em Grécia, ao queimar o defunto lançavam também na fogueira os seus bois, cavalos e cães, como dizem Homero e Virgílio.
Os tártaros metem também na cova um cavalo selado e um jumento com o seu poldro, para
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que o defunto tenha em que ande, conforme o seu gosto.
Das riquezas que os chinos põem com os corpos Reais, vejam-se as relações do nosso Fernão Mendes Pinto, que não merecem tão-pouco crédito como alguns lhes dão.
O
padre
p.
Alvaro Semedo, nosso português, que naquelas partes andou em missão 22 anos, conta de uma rainha da China, que morreu por aquele tempo, em cujo esquife ou caixão el-rei seu filho lançou, por sua mão, mais de setenta mil cruzados em pérolas e pedras preciosas; e a um lado e outro do corpo distribuiu cinquenta pães de ouro e cinquenta de prata, que não são as folhinhas tenuíssimas que nós chamamos pães, senão pastas maciças.
Contra a cega vaidade e bárbara ignorância de todos estes povos se opõe o claro desengano do Oráculo Divino, quando diz: Quando morrer o homem, nada do que tem levará consigo; nem irá com ele, fazendo-lhe companhia, a glória que neste mundo teve: Cum interierit, non sumet omnia: neque descendet cum eo gloria ejus.
Mas não sòmente as riquezas e honras nos não fazem companhia para o outro mundo, senão que ainda neste nos desamparam muitas vezes de repente, como se viu no mesmo Job, o qual por isso comparou os seus dias a navios que levam fruta: Pertransierunt quasi naves poma portantes.
Que a vida humana se compare à carreira de uma nau, está bem, porque é veloz, é incerta, é arriscada pelos vários perigos que há no mar do século.
Porém, porque se compara mais ao navio que leva fruta do que a outro qualquer que leva outros géneros?
Porque o navio que leva fruta muitas vezes antes de chegar ao
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porto já não leva mais que podridão.
Vai o navio fugindo pelas ondas, porque navega, e dentro dele vai também a fruta fugindo, porque se corrompe.
Assim são os bens temporais, fruta enfim da nossa terra.
Por isso mesmo que são temporais, não só nos havemos de ausentar deles, em chegando a morte, senão que eles às vezes se ausentam de nós primeiro.
Antes que o rico não escape das mãos da morte, se escapam eles da mão do rico; antes que o homem se corrompa na cova, se corrompem eles em sua casa.
São servos fugitivos, como disse Crisóstomo: Fugitivus Plutus, e atraiçoados, como
Santo
S.to
Agostinho chamou ao ouro: Servum proditorem, e como atraiçoados e fugitivos, não esperam que, por nossa morte, lhe demos manumissão ou alforria.
Por isso, os mundanos se dão pressa a lográ-los, antes que lhes fujam das mãos: Non prætereat nos flos temporis: coronemus nos rosis, antequam marcescant: Depressa (dizem eles no livro da Sabedoria); não se nos passe a flor do tempo; coroemo-nos de rosas, antes que murchem.
E o outro poeta disse: Vive velut rapto, fugitivaque gaudia carpe.
Porém esta diligência muitas vezes não basta, e ordinàriamente a mesma pressa em gozar destes bens os corrompe e afugenta.
Já para buscar e reduzir os servos fugitivos havia entre os romanos um particular ofício, e a pessoa que tinha esse cargo se chamava Fugitivário.
Porém os gostos e bens do mundo, uma vez fugidos, não
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aparecem mais; não há Fugitivário que os alcance e prenda, como disse o mesmo poeta: Gaudia non remeant, sed fugitiva volant.
Bem comparada está, logo, a vida humana ao navio que leva fruta: navio, porque o homem vai passando pelo mar deste século, e navio que leva fruta, porque os bens do século vão também passando à corrupção pelo homem: Diu enim (disse
São
S.
Gregório) cum rebus nostris durare non possumus; quia nos aut illas deserimus, aut illæ nos viventes quasi deserunt pereundo.
Exemplo notável da incerteza das honras e riquezas mundanas.
Entre inumeráveis casos que evidentemente provam como as honras e riquezas são servos fugitivos e traidores e fruta mui sujeita à corrupção, dou o seguinte, desprezando o que tem de vulgar, por atender ao que tem de doutrina:
Nos tempos do imperador Justino I, que desde a aguilhada de vaqueiro subiu a empunhar o ceptro do Oriente vivia nas partes da Tebaida um homem por nome Eulógio, cabouqueiro de ofício, quanto aos bens terrenos enteado da fortuna, porém quanto aos da graça celestial filho mimoso de Deus, porque era timorato, devoto, casto, temperado; em suas entranhas tinha feito assento a ternura compassiva, até para com os brutos; em seu aspecto a modéstia aprazível, até para com os inimigos; em sua língua o contínuo louvor de Deus, ainda nas adversidades;
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em suas mãos a liberalidade para com os pobres e peregrinos, aos quais hospedava humanìssimamente e lhes lavava e beijava os pés; e, suposto que o seu ofício era tão limitado e estéril como trabalhoso e cansado, todavia dos cabedais de uma virtude tirava as despesas para a outra: a esmola de cada dia lhe saía do jejum de quase todo o ano, e tal jejum que primeiro se punha o Sol no ocaso do que ele à mesa, se é que havia outra mesa para comer mais do que as próprias mãos para trabalhar e repartir.
Sucedeu ser um dia seu hóspede certo anacoreta santo por nome Daniel.
O qual, como versado na prática das virtudes, conheceu as de Eulógio, admirando-se dos fundos daquele inestimável diamante.
E, voltando para o seu ermo, rogou a Deus
Nosso Senhor
N. S.
instantemente (jejuando três semanas para dar maior força à sua oração) se servisse de dar bens temporais àquele homem, para alívio de sua grande miséria e contínuo trabalho, e também para socorro dos pobres e peregrinos, que nele achavam tão fiel despenseiro.
Tanto instou nesta piedosa, ainda que indiscreta demanda, que chegou a ouvir uma voz do Céu, a qual lhe disse: Se Eulógio perder a pobreza, perderá as outras virtudes.
Aqui Daniel, fechando-se sobre si mesmo com bondade cega, disse que ele ficava por seu fiador, alma por alma e corpo por corpo, porque não se persuadia que os benefícios de Deus lhe seriam causa de perversão, senão antes de aumentos de humildade e caridade.
Porém é verdade mui certa o que disse o nosso Séneca português:
Andei daquém para além,
Terras vi e vi lugares.
Tudo seus avessos tem.
O que não experimentares,
Não cuides que o sabes bem.
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Eis que um dia o cabouqueiro, fazendo seu ofício, deu em um tesouro antigo; olhou, tocou, certificou-se; atrás dos olhos foi-se-lhe o coração (contra o que diz o Real profeta: Divitiæ si affluant, nolite cor apponere).
Não se dava mãos a guardar e, para guardar muito, guardava pouco e pouco.
Andava dali por diante melancólico, vigilante e pensativo.
Que farei?
Para onde mudarei casa?
Quem me ajudará fielmente?
Já lhe esquecia a oração, já o não achavam afável os pobres e compassivo os miseráveis.
Enfim, deu consigo em Constantinopla, porque pedia golfo grande o galeão que na sua fantasia armava para as viagens de sua nova fortuna.
Tinha juizo e bastante disposição, aprendeu os modos da corte (vocabulário novo da Bebel antiga); nos princípios não se deu muito a conhecer; seguiu a campanha, mãe repentina de ambas as fortunas.
Como tinha muito, não dava pouco e, como dava, todos os soldados eram seus; por aqui chegou a capitão da guarda do imperador.
Já está em suma arrogância e total esquecimento de seus vilíssimos princípios; já faz mal a cavalos, joga, banqueteia, rompe telas e púrpuras.
E a oração, a esmola e a penitência?
Não há que falar nessas coisas; ficaram todas da outra banda do Letes do seu descuido e mudança.
Era, pois, tempo de puxar o acredor pelo fiador, Deus por Daniel.
Não sabia este do que tinha passado.
Quando uma vez, orando, teve um maravilhoso excesso de espírito, e em visão imaginária foi citado a juizo.
Estava o Juiz que o chamara gravemente irado e mostrava-lhe um homem metido entre rosas, todo consumido da actividade do deleite, e dizia-lhe, arguindo: Este é o cuidado que tens da alma de teu irmão?
E logo, voltando o majestoso semblante para os anjos, lhes mandou: Feri, não perdoeis ao fiador.
Daniel, meio morto de pavor
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e assombro, pudera dizer de si o que o outro Daniel profeta, em outra visão espantosa: Non remansit in me fortitudo, sed et especies mea immutata est in me, et emarcui, nec habui quidquam virium.
Reconheceu o erro da sua fiança e confiança, pediu perdão com muitas lágrimas e ofereceu-se a reduzir a Eulógio; mas também esta lhe saiu falsa, como logo veremos.
Neste tempo tornou em si, considerou o aviso do Céu e sem detença saiu a buscar aquela ovelha desgarrada.
Chegado àquela nova Roma, achou a Eulógio tão assistido e cortejado de visitas e pretendentes que um mês inteiro, de dia a dia, solicitou a entrada para falar-lhe.
Entrou enfim; pediu ser ouvido à puridade.
Conheces-me?
(lhe disse, com animoso zelo da honra de Deus e da salvação daquela alma), conheces-me, Eulógio, algum tempo pobre cabouqueiro, agora grande cavalheiro?
Eu sou Daniel, aquele eremita a quem, tal ano e dia, hospedaste em tua casa e lavaste os pés com caridade evangélica.
Oh! que trágica mudança te tem desfigurado!
Então estudavas nas virtudes, agora na vaidade; então eras amigo de Cristo, agora do mundo, da carne e do demónio; então caminhavas pela estreita vereda do Céu, agora corres pela estrada larga da perdição.
Que fazes?
Onde vais, precipitando-te cada dia mais profundamente?
Que te aproveitará possuíres todo o mundo, se perderes a alma?
Adverte que não só perdes a tua mas também a minha, porque orei por ti e fiquei por teu fiador diante de Deus e me ofereci a reduzir-te.
Oh!
Não sejas ingrato a Deus e aos homens, ao Céu e à Terra.
Acorda desse pesadíssimo letargo, torna em ti, abre os olhos à luz da fé; não troques um reino eterno por bens que só de bens têm o nome suposto e a falsa aparência.
Com semelhantes sentenças exortava o santo anacoreta a Eulógio.
Mas este que faria, vendo-se repentinamente acometido de tão claros desenganos?
Dizem que
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os javalis, metendo-se pelo lodo, condensam sobre si uma côdea dele tão dura que os venábulos e lanças dos monteiros os não penetram fàcilmente.
Lodo espesso chamou o profeta Habacuc aos bens terrenos, e assim os que se metem muito no manejo e logro deles criam tal dureza de espírito que não calam dentro as mais fortes e vivas exortações e ameaças dos prègadores.
Levantou-se Eulógio irado e sanhudo, expeliu ao santo varão contumeliosamente, queixou-se a seus camaristas de o porem à fala com um doido e estes, por desagravo seu, o cobriram de pancadas; o qual, ensinado à sua custa do lugar onde havia de pôr os alicerces de sua confiança, recorreu a Deus, por via da oração, acompanhando-a com lágrimas, misturadas talvez com o sangue de suas feridas; pediu-lhe que tornasse a Eulógio a sua antiga pobreza e necessidade.
Agora sim, que pede com discrição.
Sucedeu logo ter Eulógio desgostos com o imperador Justiniano, e haver bandos e facções, e ser-lhe necessário, por escapar com vida, deixar tudo de repente, e por conservá-la tornar ao seu marrão e camartelo, para ganhar com suor e fadiga o taxado sustento quotidiano.
Então a vexação lhe deu o entendimento de que o privara a prosperidade, e começou a fazer penitência, pois da corte, onde deixara espalhado o seu tesouro, trazia junta bastante matéria dela.
Encontrou-se depois com Daniel, o qual lhe disse, movendo a cabeça: Que é isto amigo?
Já se acabou a comédia de que eras rei?
E ele, envergonhado, lhe pediu rogasse a Deus que mitigasse de algum modo os rigores de sua pobreza.
Isso não (respondeu Daniel), as riquezas vos enganaram a vós, mas vós já me não haveis de enganar outra vez; se a pobreza vos é molesta, sabei que vos é necessária; aprendei a viver sem bens de que não sabeis usar senão para maldades.
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Este é o exemplo em que se mostra claramente como os bens temporais são escravo fugitivo e atraiçoado, e fruta que, apodrecendo, nos deixa em vida enganados, antes que desenganados a deixemos na morte.
II
§ II
Segundo amigo, também falso mas estimado.
Também não nos podem fazer companhia na jornada para a outra vida a mulher, filhos, amigos, parentes e criados, porque ou nós os havemos deixar a eles ou eles a nós primeiro.
O beato Alcuino, estando em disputa com Papino, filho do imperador Carlos Magno, perguntado que coisa era morte, a definiu, dizendo que era o ladrão do homem: Mors est latro hominis.
Os ladrões ora levam o dinheiro ora a jóia, ora o vestido, etc.
O que a morte leva é o homem.
Estava aqui entre nós Pedro,
verbi gratia
v. g.
, nosso irmão ou amigo; de repente não o vemos e, por mais que o busquem, não aparecerá.
Que é feito deste homem?
Levou-o o ladrão, furtou-o a morte.
E própriamente dizemos que o furtou, porque a morte não era senhora do homem, pois a princípio o fez Deus imortal.
E é ladrão este a que se não podem fechar as portas: Si sciret pater familias, qua hora fur veniret, vigilaret utique, et non sineret perfodi domum suam.
Et vos estote parati: quia qua hora non putatis, filius hominis veniet.
Nas quais palavras se comparou o Senhor a si mesmo a ladrão, porque vem com a morte (que também é ladrão) e ainda na sua companhia.
Este ladrão, pois, do homem, de tal sorte furta a cada um de entre os seus filhos, amigos e conhecidos que a todos estes furta também dele: furta o que leva dos que deixa, e furta os que
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deixa do que leva, e assim vai levando e deixando, até não haver que deixar nem levar.
Mas o diabo (por quem entrou no mundo este famoso ladrão da morte) inventou traça, como sua, para que levasse as mulheres juntas com os maridos e os amigos com seus amigos e os vassalos com os reis, metendo em cabeça a uns que se matassem, quando sucede morrerem os outros, porque nisto fariam acção de nobreza generosa e significação de fiel amor, para os ir servindo e acompanhando mais além do que dão licença as raias ou limites da natureza.
Entre os venedos, povos da Germânia, era antigamente costume e obrigação que a mulher se enterrasse por suas mãos no sepulcro de seu marido, como refere Wenefredo.
O mesmo diz Solino das mulheres dos trácios e Procópio das dos hérulos e Eusébio das dos índios.
Entre amigos havia também esta bárbara e insana cortesia nos povos da Gália antiga, que uns se lançavam vivos nas fogueiras, por acompanhar aos outros já defuntos, como escreve Pompónio Mela.
E na Etiópia (como traz Diodoro Sículo), morrendo o rei, todos seus familiares e privados corriam a arremessar-se no fogo, por ser cada qual o primeiro que saísse na outra vida a servi-lo.
O mesmo execrável e diabólico abuso acharam os missionários do Japão introduzido naqueles reinos.
E é louvada com razão uma rainha de Arima que, havendo-se convertido à fé de Cristo, juntamente com seu marido, ela com o nome de Justa e ele com o de João, sendo este depois degolado pelo imperador em ódio da
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mesma fé, ela lhe assistiu, intrépida e constante, até à morte e recebeu em suas próprias mãos a cabeça destroncada e logo a ajuntou com o corpo, compondo-o honestamente: e tomou (que era o nosso propósito) juramento por escrito aos vassalos de não usarem com ele o rito gentílico que observavam de se matarem os mais obrigados ao rei, porque têm os japões isto por lei de nobreza e obrigação do agradecimento.
E tal ocasião houve em que mais de trezentos vassalos palacianos se cortaram com alfanges pelos ventres, para acompanharem na morte a seu senhor.
Mais prodigioso é o caso, que traz Magino I, da morte de certo imperador da Tartária, na qual o seguiram pelo mesmo caminho mais de dez mil vassalos.
E, se isto parece incrível, mais ainda é o que refere Marcos Paulo, veneto, da morte de outro imperador da mesma Tartaria, em que se mataram trinta mil.
Oh! cegueira lastimosa!
Oh! brutalidade enormíssima!
Se isto mandara a lei de Deus, quem se atrevera a guardá-la?
E guarda-se, sendo persuasão do demónio, e, pelo contrário, se quebrantam os divinos preceitos, sendo justos e racionáveis, honestos e suaves.
Caso horrendo de uma mulher que se sacrificou por fogo, para acompanhar a alma. seu marido.
Ajunto às sobreditas notícias outra mais específica e que, por esta razão, se representa aos ânimos mais horrorosa.
Consta da relação dos padres Alberto Droville e João Grubero, missionários da Companhia de JESUS, que foram testemunhas de vista, quando, voltando da China para a Europa, passaram pela Cidade de Agra, corte do Grão Mogor, onde se detiveram algum tempo no ano
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de 1661.
Foi o caso que, enviuvando ali certa mulher nobre e rica, chamou logo os brâmenes (que são os seus sacerdotes ou religiosos) e lhes declarou o firme propósito que consigo tinha assentado de se consociar a seu defunto marido, por meio do sacrifício de fogo que havia fazer de si mesma espontâneamente.
Louvaram eles e exaltaram até às estrelas esta mais que humana generosidade de ânimo e fidelidade de amor conjugal, e começou logo a tratar de prevenir tudo o que àquela acção pública e soleníssima era conveniente.
No dia constituído se vestiu a viúva o mais rica e curiosamente que pôde: telas, ouro, prata, pérolas, pedras preciosas; sendo tanto, ainda lhe parecia pouco para tão rija festa.
Assim armada, montou em um soberbo cavalo branco, com jaezes, testeira e mais arreios cobertos de jóias, e de todo o mais corpo do novo e triunfal bucéfalo ia pendente, e artifìciosamente enlaçado, tudo o precioso que havia em seu palácio.
Ela ia com semblante alegre (ao menos no que representava), levava em uma mão uma grande campainha que ia tangendo, em outra um pomo.
Lançava os braços a uma e outra parte, como costumam as nossas pélas, já levantando-os, já abaixando-os já circungirando um com outro, e fazendo outros gestos e significações do extraordinário contentamento em que seu amante coração jubilava, na consideração de estar próxima a feliz hora em que se havia de ver na suspirada companhia de seu consorte.
Ao redor, atrás e adiante iam numerosas turbas de brâmenes e sacerdotes e feiticeiras, vozeando e fazendo vários esgares e momos e ridículos torcimentos de todo o corpo, e repetindo incansàvelmente: Ram, Ram, saltaé; Ram, Ram, saltaé: isto é Deus Ram, salvai-nos.
Discorrendo este feral e satânico triunfo pelas principais ruas da cidade, veio, finalmente, a parar onde estava, de preciosas e odoríferas madeiras: aguila, canela, calambuco e outras semelhantes, preparada uma alta pira em seu
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ápice colocado um como trono.
Aqui subiu e se assentou aquela miserável mulher, sem cessar um ponto de fazer os seus gestos.
E logo os sacrifículos someteram fogo à lenha com feixes de vimes, untados primeiro com certa espécie de resina preciosa.
E, levantando o clamor todos à uma, espertado mais com vários e sonoros instrumentos, morreu afogada em nuvens de fumo e abrasada em ondas de chamas aquela desgraçada vítima da vaidade, superstição e hipocrisia, que, imaginando ia sair direita aos descansos do paraíso, se achou de improviso submergida nos abismos do inferno, para não surgir deles eternamente.
Eis aqui nos sobreditos exemplos a funesta e lamentável companhia que aos mortos podem fazer os vivos, metendo-se, por engano do demónio e cegueira própria, também no número dos mortos.
III
§ III
Terceiro amigo, desprezado mas verdadeiro.
Tiramos, pois, em limpo que só o terceiro amigo (que nós ordinàriamente desprezamos) nos pode fazer boa companhia e dar verdadeira consolação.
E qual é este?
As boas obras que nesta vida tivermos feito, porque as más, ainda que também irão connosco, irão como beleguins prendendo, como acusadores vituperando e como algozes atormentando.
Este é um oráculo expresso daquela celestial voz que ouviu
São
S.
João e dizia: Bem-aventurados os mortos que morrem em o Senhor, já daqui por diante diz o Espírito que descansem de seus trabalhos, porque suas obras os seguem: Opera enim illorum sequuntur illos.
De sorte que as riquezas, as honras, os
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postos e dignidades, os parentes, amigos e servos parece que seguiam seu senhor, porém ficaram atrás; a oração, os jejuns, as esmolas, o exercício da humildade, paciência e mais virtudes, parece que ficavam atrás, porém não é assim, senão que o vão seguindo até o Céu, e com ele ficam eternamente: Opera enim illorum sequuntur illos.
Gravemente Eucherio, bispo de Leão de França, e discípulo de
Santo
S.to
Agostinho, naquela sua famosa epístola parenética a Valeriano, seu parente:Nihil, ut puto, imo ut certo scio (vai falando dos grandes do mundo) ex illis opibus, honoribus, regnis secum abstulerunt; nisi (si qua in his fuit) fidei pietatisque substantiam: sola hæc illos cæterarum rerum egenos, sola prosequitur; hæc abeuntes inseparabilis, et quasi fida comitatur.
Porque, como ensina o Doutor Angélico, assim como as nossas obras pecaminosas passam quanto ao acto, porém ficam quanto ao reacto, assim as que forem feitas em graça e caridade de Deus, quanto ao acto também passam, porém quanto ao merecimento permanecem na aceitação de Deus, que as há-de remunerar.
Por isso,
São
S.
Bernardo chamou a estas obras sementes da glória eterna, porque, assim como da semente procede o fruto e no fruto se conserva a semente, assim das boas obras nasce a glória e na glória estão vivas e eternizadas essas boas obras: Non transeunt opera nostra, ut videntur; sed temporalia quæque veluti æternitatis semina jaciuntur.
As águas do rio Anieno (Plínio lhe chama Anio e os incolas hoje Teverone) levaram a potência romana dentro a Roma rompendo montes, complanando vales e erigindo arcos, por aquedutos de catorze léguas.
Escrevem isto os historiadores por coisa notável.
Quanto mais
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notável é que as nossas boas obras, exercitadas cá na terra, as leve a graça de Deus de sorte que venham a saír no Empíreo e, passando em poucos momentos como torrente, venham depois, para recriação de quem as fez, arrebentar na eternidade como fonte perene?
Quem tal imaginara (preciso o ensino da fé católica)?
Passava o pobre; escondi na sua mão a esmola; vi a imagem de um crucifixo, pus nela devotamente os olhos; era levado o sagrado viático a um enfermo, fui-o acompanhando até se recolher; passava a fêmea pouco honesta nos trajos e nos passos, desviei dela os olhos, para evitar o perigo.
Andou depois o Sol de levante a poente dobando os dias, e de um trópico a outro os anos; vivi sessenta ou setenta, cerrou-se, enfim, o meu círculo, voltando para o meu fim, que é Deus, como de Deus saíra, que foi o meu princípio; lá acho na sua casa esperando-me eternizadas aquela esmola, aquela devoção, aquela mortificação da vista e amor à castidade.
Bendito seja Deus; foi a sua graça, que dignificou estas obras, podia levantar aquedutos tão altos que igualassem a terra com o Céu e o tempo com a eternidade.
Por isso, Cristo nos exorta a pedir e aproveitar esta graça, dizendo que dela se nos formará depois uma fonte que salte até à vida eterna: Aqua quam ego dabo, fiet in eo fons aquæ salientis in vitam æternam.
Desta verdade, sendo tão certa, mostrava estar esquecido o ímpio Anastácio imperador, quando dolosamente convidava ao santo bispo Oeniando se passasse às partes da heresia que ele patrocinava.
Porém o santo lha lembrou, pegando-lhe da clâmide e dizendo-lhe desenganadamente: Passa tu antes para os ortodoxos, porque te asseguro que esta opa real não ha-de ir contigo
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depois da morte e só te fará companhia a piedade e hábito de virtudes.
Importa, pois (e ùnicamente importa: Porrò unum est necessarium), fazermos nesta vida provimento para acharmos na outra sustento; quanto mais tivermos aqui ajuntado, tanto mais acharemos lá guardado.
Quem pouco semeia pouco sega: Qui parce seminat, parce et metet.
Particularmente, se o sol da nossa vida já declina para o ocaso e a passada foi consumida em vícios, é necessário recompensar aquela tardança com esta pressa e fazer os dias cheios do justo (Dies pleni invenientur in eis), já que fizemos os anos vasios do pecador.
Ilustre exemplo a este propósito o que se refere na "Biblioteca dos Padres antigos".
História memorável e antiga, da qual, entre outras verdades católicas, se prova, contra os sectários, a necessidade das boas obras para a salvação eterna.
Na cidade de Cartago em África, nos tempos de Nicetas, patrício, houve um soldado pretoriano, alcaide de certo magistrado maior, o qual estragara muito com pecados sua primeira idade e depois, por ocasião de uma geral pestilência, compungido e temeroso com a mortandade de tantos tão repentinamente, se retirou, com sua mulher, a uma quintinha nos arrabaldes.
Porém nem
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aqui o deixou o demónio prosseguir quietamente seus exercícios de devoção e penitência, antes o fez cair em adultério com a mulher de um rústico seu vizinho.
Não muito depois adoeceu e morreu de males, porque os da pena se proporcionam com os da culpa: Per quæ peccat quis, per hæc et torquetur.
Havia, em distância de uma milha, um mosteiro, cujos religiosos, rogados pela mulher do soldado, o acompanharam e enterraram na sua igreja à hora de Terça.
Mas, estando depois rezando Noa, ouviram uma lastimosa voz, que parecia sair daquela mesma sepultura e dizia: Misericórdia, tende de mim misericórdia.
Certificados mais que daquela parte procedia aquele gemido, acodem logo a revolver a campa; acham vivo o soldado.
Uns o elevam da cova, outros lhe desatam as estrigas, outros lhe perguntam o que lhe sucedera, e todos, admirados, estavam pendentes da boca do redivivo, esperando novas do outro mundo.
Mas ele, podendo mal formar algumas palavras, entre muitos gemidos, rogou que o levassem à presença de Talássio, varão santo que florescia então naquelas partes.
Levado ali, com efeito, informaram a Talássio do que se tinha passado, o qual por três dias continuou em dar-lhe as consolações e doutrinas em tal caso oportunas, e no quarto o veio a reduzir a que contasse o que lhe sucedera.
Cuja relação, acompanhada com pranto e interrompida com suspiros, foi a seguinte: Irmãos caríssimos: - Quando eu estava em passamento e já quase arrancando, vi diante de mim uns feros negros agigantados, cuja vista me era mais odiosa e ínsofrível que qualquer outro tormento, e a alma, conturbada
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e medrosa, se encolhia todo o possível dentro de si mesma.
Daí a pouco vi dois mancebos formosíssimos, e logo a minha alma saltou fora do corpo e se lhes pôs nas mãos e comecei a voar em sua companhia por essas regiões aéreas.
Onde encontrámos várias tropas como de malsins e cobradores, que cercavam os caminhos e detinham os passageiros.
E havia também muitas como alfândegas ou mesas, cada uma com seu almoxarife, com livro de razão e pediam conta, uns deste vício, outros daquele, cada qual do que lhe tocava, e sem pagarem não os deixavam passar adiante.
Ninguém pode explicar a severidade, aperto e miudeza com que faziam o seu ofício.
Cada vez que eu empatava em algumas destas aduanas, via que os meus dois companheiros, metendo a mão em umas bolsas em que levavam todas as minhas obras boas que tinha feito, tiravam com que pagar aos cobradores, que pesavam tal por tal, palavra proveitosa por palavra ociosa, verdade por mentira, aplicação na reza por distracção e, enfim, virtude por vício, com exacção e miudeza suma; e feito isto, passávamos livres adiante.
Até que chegamos à alfândega da luxúria, que estava mui acima, e já as minhas bolsas iam vazias.
Ali me agarraram os malsins e me representaram vivìssimamente na memória quanto neste vício tinha delinquido, que era muito e mui feio, porque da idade de doze anos comecei a depravar-me.
Oh! anos de minha perdição e miséria!
Estava eu desconsoladíssimo e desanimado por ver tanta fealdade, de que não podia negar ser o autor.
A isto acudiram meus companheiros, dizendo que tudo o que pertencia a este ponto estava perdoado de graça, quando deixara a cidade e me retirara a melhor vida.
Porém da contrária parte replicaram que, ainda depois da retirada, cometera adultério duplicado, de casado com casada.
Neste passo os meus companheiros, não achando nas bolsas virtude que pôr contra tão grave
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pecado, deixaram-me ali, como penhor ou represália, e se ausentaram.
E logo aqueles etíopes, arrebatando-me furiosamente, me açoitaram e derribaram em terra, para a qual, abrindo-se, fui levado por umas cavernas medonhas, por umas encruzilhadas subterrâneas escuríssimas e apertadíssimas, até chegarmos ao reino da morte eterna, onde com os miseráveis condenados moram a tristeza imortal, a dor inconsolável, o pranto, o rugir dos leões esfaimados e, finalmente, a total ausência de Deus, irado e irreconciliável.
Dizer o que ali se passa, sem que jámais possa passar, por toda a eternidade, não cabe na língua humana; e por isso, eu antes queria calar-me.
Choram os réprobos lágrimas que queimam e ninguém se condói.
Ouve-se o bater de dentes e não há esperança de remédio.
Puxam do íntimo do espírito uns gemidos mui tristes e prolongados e não aparece o rosto da misericórdia, porque tudo ali é Confusa multidão de ais e clamores, De atormentados e atormentadores.
Aqui fui arremessado como infame galeote, condenado, segundo o que me parecia, ao mesmo remo da miséria última e interminável; aqui a estive carpindo até que, à hora que depois conheci ser de Noa, vi outra vez os dois anjos, a quem comecei a rogar com quanta instância pude que me tirassem daquele calabouço, para fazer penitência com que aplacasse a Deus e satisfizesse por meus pecados.
"Debalde rogas (me responderam os anjos), porque nenhum dos que aqui estão sairá senão no dia da ressurreição universal
".
."
Porém, perseverando eu,
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todavia, em pedir tempo de penitência e prometendo de a fazer cumpridamente, disse um dos anjos para o outro: Ficas por fiador deste, que fará penitência, se tornar ao mundo?
Fico (respondeu ele), e vi que lhe deu a mão, a qual o outro aceitou.
E logo ambos me tiraram fora e trouxeram a terra e me meteram dentro da sepultura junto ao meu cadáver, dizendo:
"Entra donde há pouco te apartaste por divórcio
".
."
E a minha alma via a sua natureza própria à semelhança de um cristal transparente ou de um diamante bem lavrado, e a do seu corpo, onde havia de entrar, por modo de um montezinho de lodo escuro e asqueroso sumamente, e se lhe fez mui duro e molesto o preceito de entrar ali e tornar a ser moradora de tão triste, imunda e estreita casa.
O que vendo os anjos, lhe disseram: "No corpo pecaste, no corpo é preciso que faças penitência".
A minha alma lhes requeria que a deixassem ficar fora; porém eles responderam:
"Desengana-te que ou hás-de entrar aqui ou tornar para onde te trouxermos
".
."
Entrou então, quase violentada.
E comecei a clamar desde a sepultura Misericórdia, que foi a voz que ouvistes.
Acabando o soldado de referir a história, o venerando e piedoso Talássio lhe rogava que comesse para sustentar a vida que Deus, por especial providência, quisera conceder-lhe; porém não o pôde reduzir a isso, dizendo que lhe era dada toda para penitência.
Dali por diante andava de igreja em igreja, peito e rosto por terra, e de quando em quando, levantando a voz, lançava este horrendo pregão: Ai dos pecadores que não fazem penitência!
Oh! que tormentos os esperam!
Ai dos pecadores
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que mancharam seus corpos com deleites torpes!
Oh! que inferno os espera!
Deste modo perseverou quarenta dias contínuos, com notável fruto dos que o ouviam e sabiam do sucedido, que não deviam ser tão duros de coração como aqueles de quem o patriarca Abraão disse ao rico avarento, quando lhe demandava um pregador saído do outro mundo para convertê-los: Lá tem a Moisés e aos profetas, e, se a estes não dão crédito, também o não darão aos mortos ressuscitados.
Purificado, enfim, aquele espírito com esta saudável quaresma de penitência, havendo três dias antes dito quando se havia de partir, no último deles se desatou do corpo felizmente.
Deste maravilhoso caso consta notòriamente a verdade de que só as obras de cada um o acompanham ao passar deste mundo e a importância suma de que as obras boas prevaleçam às pecaminosas.
Não porque os pecadores se não salvem só com um acto de verdadeira contrição, que façam no último instante de sua vida, ainda que esta fosse toda consumida em ofensas de Deus, nem porque muitos se não salvem com menos exercício de virtudes que de vícios, uma vez que a morte os colhesse em estado de graça, senão porque o dom da perseverança final e o auxílio eficaz para fazer esse tal acto de contrição Deus, que o não deve de justiça (pois é mera graça sua), porventura que o não dará, ou não costuma dar, senão atendendo às balanças de nossas obras, contrapesando a das boas com a das pecaminosas.
Por onde importa muito empregar bem o tempo em carregar daquelas e descarregar destas, porque, acabando-se o dia e entrando a noite, já nem uma nem outra diligência se pode fazer, como nos avisa nosso Salvador: Venit nox, quando nemo potest operari.
Quanto mais que bem sabe cada um os pecados que cometeu, ao menos
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em confuso e sem ofender a verdade daquele texto: Delicta quis intelligit?
Quem entende os delitos?
Porém, se lhe estão já perdoados ou se é digno do amor ou do ódio de Deus, isso totalmente ignora, e, por conseguinte, sempre lhe importa andar solícito em fazer cada dia mais e mais certa a sua eleição e salvação por obras santas, como nos admoesta o príncipe dos apóstolos.
E, ainda no caso que de certo soubesse estar em amizade de Deus, sempre deve procurar adiantar-se nela, pois nesta vida não tem limite certo (como erradamente afirmaram os begardos, ou beguinos, condenados no concílio Vienense, que congregou o papa Clemente V), e, conforme forem agora em uma alma as riquezas da caridade, serão depois os graus e aumentos de sua glória.
Não desprezemos, pois, este terceiro amigo (que é o exercício de boas obras), pois ele só é o fiel e verdadeiro.
XXV De
São
S.
Basílio Magno.
Sabendo este santo doutor que certo amigo seu andava mui atribulado com uma coisa de importância, que pendia em juízo, acudiu à defensa sem ser chamado, metendo-se por isso em grave risco.
E, estranhando-lhe alguns a acção, respondeu: Não aprendi a amar de outro modo.
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CONFIRMAÇÃO
Cassiodoro: Necessitas amicum probat, et intimæ charitatis ardorem splendor exhibitæ subventionis elucidat.
Quando um amigo entra em aperto, entra o outro em exame e, se a caridade ardia dentro quanto aos afectos, então resplandece fora quanto às obras.
Seneca: Pro amico omnia timui, pro me nihil.
Por parte de meus amigos, temi o dano mais leve; pela minha, nem o mais grave.
Quando nos contratos se determina dia certo, não é necessária para induzir obrigação em um dos paciscentes nova citação ou requerimento do outro.
Dies interpellat pro homine; o mesmo dia chama e cita, em lugar do homem.
Assim deve ser entre os que professam amizade; já na espécie desta virtude vai embebido que se hão-de socorrer mùtuamente nas necessidades; e o mesmo dia da tribulação chama pelo amigo: Dies interpellat, etc.
Aquele homem do Evangelho, que, indo de Jerusalém para Jericó, caiu em mãos de salteadores, que o roubaram e feriram, não lemos que pedisse remédio ao samaritano que passava; este mesmo, porque considerou em si a obrigação da caridade, e no próximo a necessidade dela, espontâneamente tratou da sua cura, que pediam tantas bocas quantas eram as das suas feridas.
Quem dirá que o brado que sai da mesma tribulação e necessidade não é mais alto, mais claro e verdadeiro que o de qualquer voz humana?
Esperar rogos neste caso é desmentir e supor fingida ou a tribulação alheia ou a amizade própria.
Que damos aos amigos mais do que aos estranhos, se só rogados acudirem?
As irmãs de Lázaro não pediram a Cristo que viesse curá-lo; fizeram-lhe saber que estava enfermo.
Em ser o Senhor amigo de Lázaro e poder nesta tribulação valer-lhe, já isso estava pedido, e seria agravo da boa vontade do Senhor supor que se espertava com
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rogos.
Vá o recado com a notícia da enfermidade, porque não nos consta que dela lhe conste; o mais que toca ao poder valer-lhe, pois é tão milagroso, e ao querer valer-lhe, pois é tão seu amigo, muito há que o não ignoramos.
XXVI De Diógenes, filósofo.
Perguntado Diógenes que tratamento dava el-rei Dionísio a seus amigos, respondeu: Usa deles como de vasos: enquanto cheios, despejá-los; quando já vazios, despedi-los.
REFLEXÃO E SINÓNIMOS
Conforme a isto, o estado de Dionísio era de rei, mas a condição era de vulgo, porque Vulgus amicitias utilitate probat: para com o vulgo a amizade avalia-se pela utilidade.
Mandava Deus antigamente que ninguém entrasse na sua presença com as mãos vazias e sem ofertar coisa alguma: Non apparebit in conspectu meo vacuus.
O que Deus pedia aos homens para exercitarem a virtude da religião, pedem os homens uns aos outros para alimentarem o vício da cubiça e, assim, quem não sacrifica não entra; quem não traz não aparece: Non apparebis in conspectu meo vacuus.
Enquanto Job esteve debaixo da mão de Deus, nu
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e pobre e enfermo, raspando com um pedaço de telha a podridão de suas chagas, até sua própria mulher e parentes se afastaram, nem apareceram lá mais que três dos amigos, a persegui-lo mais com suas disputas importunas e calúnias falsas.
Porém, tanto que o Senhor lhe restituiu os bens em dobro: Addidit Dominus omnia quæ cumque fuerunt Job duplicia, olhai para eles, que ei-los lá vêm todos, sem faltar um: irmãos e irmãs, parentes e conhecidos: Venerunt autem, ad eum omnes fratres sui, et universæ sorores suæ, et cuncti qui noverant eum prius, et comederunt cum eo panem indomo ejus.
Repare-se como ata bem aquele Addidit Dominus com aquele Venerunt autem.
Empobreceu Job?
Vão-se os amigos.
Melhorou de fortuna?
Cá vêm outra vez amigos.
Mais vergonha tivera eu desta vinda do que daquela ausência, porque o fugir do miserável é só falta de caridade, mas voltar a buscá-lo quando venturoso é sobra de cubiça, que confirma, declara e carrega no sinete, exprimindo a razão total por que então me ausentei e agora torno.
E, senão, vejamos a que tornaram estes homens: a comer com ele, porque já tem pão que lhes dar: Et comederunt panem in domo ejus: Quando alguém tem pão em sua casa, tem também em sua casa amigos.
Esta casta de amigos, não meus senão do meu, têm várias semelhanças que declaram mais a sua falsidade.
Uns disseram que se pareciam com os golfinhos, que acompanham festivamente aos meninos que andam nadando, enquanto há bastante água onde eles possam nadar também, mas, logo que esta falta, se retiram ao alto, porque não querem dar em seco.
Outros os comparam ao corvo, que tornou para a arca e companhia de Noé, só enquanto não achou cadáveres que comer, porque o dilúvio estava ainda sobre a terra.
Outros os
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comparam ao azougue, que se pega muito ao ouro, onde quer que lhe dá o faro dele, mas, se o metem no fogo, em um momento voa.
Há hoje muitos amigos azougados, que no tempo do fogo da tribulação logo fogem.
Outros os assemelham às formigas, que nunca andam pelos celeiros vazios: Horrea formica tendunt ad inania nunquam; Nullus ad amissas ibit amicus opes.
Daqui se infere claramente que não há que fiar de amigos antes de serem provados.
O como se provam, disse discretamente Namertes, o qual, louvado de que tinha muitos amigos, respondeu: Sabeis vós como se conta e por onde se conhece quantos e quais são?
Pela fortuna adversa.
Scilicet ut fulvum (disse Ovídio) spectatur in ignibus aurum, Tempore sic duro est inspicienda fides.
Dum juvat, et vultu ridet fortuna sereno, Inde illibatas cuncta sequuntur opes.
At simul intonuit, fugiunt, nec noscitur ulli Agminibus comitum qui modo cinctus erat.
Usam como os samaritanos com os judeus, que, quando a estes ia bem, diziam ser seus parentes; quando mal, o negavam.
Em tempos de Davide e Salomão, reis poderosos, tinha Israel muitos confederados e tributários; tanto que descaiu e Jerusalém se arruinou, logo Jeremias a lamentou, dizendo que, de todos seus amigos, não havia um só que a consolasse.
Na ceia, até Judas esteve com Cristo; no horto, até Pedro dormiu e depois o negou.
Aquele aleijado da porta do Templo Especioso tinha os olhos fitos nos apóstolos, porque esperava que
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lhe dessem alguma coisa: At ille intendebat in eos, sperans se aliquid accepturum ab eis.
Se um homem não tem que esperar de outro, nem os olhos põe nele; e isto é outro aleijão, de que quase todos padecemos, sem dele nos envergonharmos.
Bem estava (ainda que à sua custa) neste conhecimento certa mulher que dera à sua filha em dote quanto possuia, e depois assim ela como o genro a desprezavam e lhes aborrecia em casa, como carga inútil.
Vendo isto a velha: Já sei (disse consigo) como emendar o meu erro.
Dali por diante fingia que se furtava aos olhos dos domésticos, para se retirar a certo aposento interior, onde tinha uma arca com muitas fechaduras, cujas chaves recatava; ali de noite, a horas escusas, com dissimulação afectada, abria, vasava, contava e tornava a guardar, em lugar de patacas, pedacinhos de louça quebrada, espreitando, entretanto, se fôra sentida a mesma que o desejava ser.
Também entre conversação deixava às vezes cair algumas palavras prenhes, que indicavam testamento feito ou quantidade de sufrágios e esmolas, ou louvor dos que pouparam para a sua velhice ou outras semelhantes.
Do que tudo vieram a filha e o genro a entender que a velha tinha dinheiro escondido, e logo deliberaram dar-lhe bom trato e falar-lhe com agrado e sujeição.
Quando chegou o seu dia e passou desta vida, foram mui sôfregos registrar o que havia na arca, suave tormento de suas esperanças; mas o que acharam entre os telhos foi só um papel, com estas palavras: Filhos meus, se os tiverdes, não vos esqueçais de vós, no dar-lhes estado; este desengano, que tenho, vos deixo, em lugar do dinheiro, que não tenho.
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XXVII De Dionísio, rei de Sicília.
Damão, condenado à morte, impetrou ir primeiro a sua casa dispor algumas coisas, ficando em refens no cárcere seu grande amigo Pítias, que a isso se ofereceu, debaixo da mesma pena, e, com efeito, Damão tornou, fielmente, ao tempo prometido.
Vendo tão rara e verdadeira amizade, el-rei Dionísio o mais velho disse-lhes: Eu perdoo o crime, a troco de que me admitais também por vosso amigo.
REFLEXÃO
Todos três obraram generosamente: Pítias, sujeitando-se ao perigo da morte pelos cómodos de Damão; Damão, entregando a vida própria por livrá-lo desse perigo; Dionísio, perdoando o crime a troco da amizade de ambos.
Se Pítias se não oferecera ao cárcere, não lograra Damão o heróico lance de tornar a ele; e, porque tornou ao cárcere, para perder a vida como criminoso, saiu dele, para melhor a lograr como amigo do rei.
Diferentes e admiráveis títulos de contrato houve na correspondência destas três partes: Pítias fez as vezes de penhor; Damão as de paga; Dionísio as de doação e compra: de doação, porque não arrecadou a dívida da justiça legal; de compra, porque por essa via adquiriu a possessão de tão preciosos amigos.
Em Pítias resplandece a confiança que fez de Damão; em Damão a lealdade com que desempenhou a confiança de Pítias; em Dionísio a discrição com que premiou a fé de um para com o outro e solicitou para si a de ambos.
Mais preso estava Damão fora do cárcere pela sua palavra do que nele pelo seu delito, e Pítias mais seguro nas cadeias
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sobre a fidelidade de Damão do que fora delas sobre a liberdade própria.
Se Damão não tornasse, perdia Pítias a vida, mas não a honra e fama; antes tanto mais a aumentaria quanto vai do empenhar ao pagar e do afecto exposto ao efeito posto, e, se perdia também a um amigo, pouco importava já que o perdesse, pois ele, salvando a vida própria à custa da alheia, não era fiel, e, estimando menos a honra do que a vida, não era seu igual, e, não sendo fiel nem seu igual, não era para amigo.
Porém Damão, tornando, mostrou ser fiel e igual a Pítias; salvou a honra própria e a vida de ambos: a do amigo, repondo a sua; a sua, lucrando com este lance segundo amigo.
Se um rei da terra, gentio e pecador, se agradou tanto de um lance de caridade que por ele perdoou delitos, o rei dos Céus, piíssimo e santíssimo, como não perdoará nossos pecados, movido da que tivemos com nossos próximos?
Universa delicta operit charitas.
XXVIII De Fernando II, imperador.
Viera à sua corte certo príncipe de Itália pretender a investidura de um rico feudo.
Travaram entre si amizade tão estreita que todos davam por certo o bom êxito da pretensão.
Visto, porém, o merecimento da causa, negou-lhe o imperador a mercê.
Disseram-lhe alguns cortesãos: Como há
Vossa
V.
Majestade Cesárea tratar daqui por diante a este príncipe?
Respondeu: Do mesmo modo que até aqui, porque nem eu, pela amizade, podia desviar-me da justiça, nem ele pode interpretar que a justiça é falta de amizade.
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CRISE
Sentença é do Eclesiástico: que não é louvável pejar-se um de não observar alguns respeitos, porque nem tudo o bom agrada a todos: Non est enim bonum omnem reverentiam observare, et non omnia omnibus beneplacent in fide.
E logo, apontando vários casos em que é honesto o pejo, conta entre eles o fazer uma injustiça a favor do amigo ou sócio que dela lhe consta: Erubesce a socio et amico de injustitia.
Por onde tão longe estava este imperador de se achar alcançado, por não deferir à petição daquele amigo, que antes teria justa razão de envergonhar-se em sua presença, se lhe deferira.
Com todos os homens manda o apóstolo que conservemos paz e amizade, mas, prevendo logo que não poderia isto ser quando o próximo pede coisa injusta, acrescentou: Se for possível, e quanto é da vossa parte: Si fieri potest, quod ex vobis est, cum omnibus hominibus pacem habentes.
Porque, assim como é certo o adágio de que, quando um não quer, dois não baralham, assim o não é menos estoutra sentença que, quando um não quer, dois não concordam.
Públio Rutílio, cidadão romano, negou a um seu amigo certa coisa, injusta, que este lhe pedia.
Disse este, dando-se por agravado: Para que quero eu, logo, a vossa amizade, se não fazeis o que vos peço?
Respondeu Rutílio: E eu para que quero a vossa, se me pedis coisa injusta?
Nulla excusatio peccati (disse Cícero), si amici causa peccaveris; nam cum conciliatrix amicitiæ virtutis opinio fuerit, difficile est amicitias permanere, si a virtude deflexeris: Não é desculpa do pecado o fazer-se por respeito do amigo, porque, se quem vinculou
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os ânimos foi a opinião mútua da virtude, quebrando esta, como ficarão unidos?
O mesmo em outra parte: Hæc in amicitia lex sanciatur, ut neque rogemus res turpes, neque faciamus rogati: Esta lei da amizade se estabeleça e observe: Petição do que não é honesto, nem a façamos nem a despachemos.
Duas pedras de cevar, juntas, conservam e aumentam a sua virtude.
Mas é de notar que não devem ajuntar-se, virado o polo de uma para o da outra, porque então se enfraquecem e falsificam, senão virados os polos de ambas para o Céu.
Se um amigo atende só a condescender com a condição do outro, não crescem na virtude, antes se pegam os defeitos; porém, se ambos se unem no respeito e observância da lei de Deus e caminho do Céu, então se ajudam e reforçam grandemente.
XXIX De Luís XII, rei de França.
Havendo este príncipe alcançado em Itália aquela célebre vitória de Ravena, e sabendo que na batalha morrera Gastão Fuxeo, seu sobrinho, duque de Nemours, grande soldado, e general do seu exército, absteve-se das demonstrações de gosto, que convinham a vencedor, e disse, com afecto de sentimento: Destas vitórias desejo eu a meus inimigos; se deste modo vencemos outra vez, somos vencidos.
CENSURA
Sucedeu esta batalha dia de Páscoa da Ressurreição onze de Abril de mil e quinhentos e doze, com tão
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empenhado furor de ambos os campos e tão lastimosa inundação de sangue católico que, se se unissem as forças contra o império maometano, puderam expugnar boa parte dele.
Morreram dos espanhóis (que defendiam as partes do papa Júlio II) doze mil soldados velhos, bem provados em África; e dos franceses, sete mil, em que entrou a flor do esforço e nobreza do reino.
Donde se mostra que o dito de Luis XII não devia referir-se só ao sentimento pela morte de seu amigo Fuxeo, senão também à de tantos e tão ilustres cabos; com que, o tempo mais próprio era de lutos que de galas, e de exéquias que de triunfos.
De Filipe, rei de Macedónia, se escreve que, havendo vencido em Cheronéa a Arquidamo, filho de el-rei de Lacedemónia Agesilau, lhe escreveu uma carta mais soberba e picante do que permitem as boas leis da modéstia que devem observar os vencedores, vencendo a sua mesma vitória e reprimindo os primeiros ímpetos ferozes que costumam acompanhá-la, conforme aquilo de Séneca: Victor feroces impetus primos habet.
Ao que respondeu Arquidamo que, se ele vencedor medisse a sua sombra, havia de achá-la tamanha como era de antes.
Porém no nosso caso, se el-rei de França medisse a sua depois desta vitória, muito menor a acharia, porque desde então não assombrou mais a Itália e ao pontífice romano, o qual lhe abrogou o glorioso título de Cristianíssimo, que depois se lhe restituiu, o qual no ano de 740 tinha Gregório III concedido a Carlos Martelo, e o passou a el-rei de Inglaterra, mais benemérito da Igreja naquele tempo.
Se bem já muito antes o mesmo
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título de Cristianíssimo tinha dado o papa Leão II a Everigo, rei de Espanha, e Alexandre III a el-rei de Sicília, e os concílios bracarense e Toletano a Recaredo, também rei de Espanha, e
Santo
St.o
Ambrósio ao imperador Graciano.
O dito sentencioso de Luís XII em parte foi o mesmo que o de Pirro, famoso rei dos epírotas, em parte semelhante ao de Amurates, imperador dos turcos.
Porque o primeiro, havendo duas vezes vencido aos romanos com grande estrago dos seus, disse: Se vencemos mais outra vez, somos de todo vencidos.
E o segundo, alcançando junto ao mar pôntico vitória contra Ladislau, rei de Hungria, e João Huniades, pelo preço caríssimo de quarenta e duas mil vidas dos seus capitães e soldados, foi, mui triste e queixoso, dizer ao seu Mafoma: Que daquelas vitórias pedisse ele muitas para seus inimigos.
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TITULO V AMOR DIVINO XXX Do Seráfico Padre
São
S.
Francisco.
Perguntado uma vez como podia tolerar os rigores do Inverno com tão rota e pobre túnica, respondeu: Se a chama da celeste pátria nos forrara por dentro, fàcilmente suportaríamos maiores frios.
REFLEXÃO E APÓSTROFE
Chama da celeste pátria é o amor de Deus, como, pelo contrário, o amor sensual é chama do infernal abismo.
E o coração de quem ama a Deus é o lar onde o Espírito Santo acende esta chama: Cor amantis (disse
São
S.
Boaventura) caminus est Dei inflammantis.
Não só é lar senão também os carvões que este divino fogo investe, com sua doce violência e reveste de sua pura semelhança: Carbones succensi sunt ab eo, disse o Salmista: Hoc est (explica
Santo
St.o
Isidoro Pelusiota) Sancti viri à Deo.
Quoniam enim Deus noster ignis consumens est; idcirco qui per animi puritatem Deum contemplantur, carbones non ab re appellantur.
Porém note-se que não disse o santo que esta chama do amor divino o forrava por dentro, senão que os que ele forrasse não sentiriam frio.
Porque
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assim falava mais humilde, e aquela chama, como tão pura, não lança fumos e, como é tão interior, cobre-se com cinzas.
Que do sagrado fogo do amor divino, quando está mui apoderado da alma, redunde também no corpo calor material, há frequentes exemplos nas vidas dos santos.
A virgem e doutora
Santa
St.a
Catarina de Sena, pela contínua e próxima vizinhança de Deus que lograva no trato familiar com Sua Divina Majestade, andava tão abrasada que nem no coração do inverno consentia senão vestidos mui poucos e singelos.
Teresinha de JESUS, (de quem acima fizemos menção), pegando nas mãos de um menino, em uma manhã de inverno, disse-lhe, mui amorosa e compassiva: Tendes frio minha vida?
pois vinde cá para diante do Santíssimo Sacramento, que ali aqueço eu.
Meu glorioso padre
São
S.
Filipe Neri, ainda depois de velho, trazia o peito desabrochado e tomava ar à janela em manhãs rigorosas, e mais já o seu coração tinha aberto, em duas costelas quebradas, aquele admiravel respiradouro por onde desafogava.
São
S.
João, cónego regular e prior no mosteiro de Bridlingtónia, em Inglaterra, celebrava com tanto fervor do espírito que se viam subir da sua cabeça fumaças, como de água quente.
Santo
St.o
Inácio de Loiola, ao sair da oração, trazia ex consortio sermonis Domini o rosto despedindo chamas vivas.
O
beato
b.
Stanislau Koska, noviço da Companhia de JESUS (e já veterano no seu amor) aplicava ao peito panos molhados em água fria, para o refrigerar dos ardores que da viva fornalha de seu amante coração emanavam.
Aquele portento de contemplação e penitência,
São
S.
Pedro de Alcântara, muitas vezes, metendo-se em tanques frios, fazia com o calor do corpo ferver a água.
Daquela por
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muitos títulos ilustre domínica napolitana Maria Villani já deixamos em outro lugar, escrito que, para mitigar o excessivo calor de suas entranhas, causado dos incêndios do divino amor em que seu espírito seráfico felizmente se abrasava, bebia talvez doze canadas de água, e esta, ao cair dentro, chiava, como se a lançassem sobre algum forte brasido; e, quando depois de morta foi necessário tirar-lhe as entranhas para embalsamar-se o corpo, o cirurgião que atendia a esta diligência, ao pegar-lhe incautamente do coração, fugiu logo com a mão, porque se escaldava.
Sejam, pois, ou não sejam fabulosas as piraustas de Scalígero, com Aristóteles e Plínio, aves que dizem viver no fogo e expirar em saindo dele, aqui as temos mais certas e por modo mais admirável e sublime.
Mas, oh que viva e picante repreensão temos nestes exemplos todos os que no amor de Deus estamos mais frios que o norte enregelado!
Deste norte procedem todos os males da nossa alma: Ab Aquilone pandetur omne malum.
E deste frio, tão reconcentrado em nosso coração, evidente sinal são as ânsias e fadigas com que buscamos as coisas terrenas, para nos arrouparmos com elas: Quid enim (disse
São
S.
Gregório) sunt terrena omnia, nisi quædam corporis indumenta?
E o pior é que, quanto mais nos arroupamos, mais frio sentimos, e queira Deus, ainda assim, que o sintamos.
Grande coisa é ser pobre de espírito, para ser de espírito fervoroso; nem há mais útil diligência para aquecer do que despir: Quantos, (diz o nosso
vigário padre
v. p.
Bartolomeu do Quental em um ponto das suas "Meditações") que serviam a Deus com fervor em quanto se conservavam em pobreza de espírito, depois, crescendo
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as riquezas e multiplicando os vestidos, esfriaram no serviço de Deus porque os vestidos que aquentaram o corpo esfriaram o espírito!
E um poeta, não dos do tempo, que fazem mais cabedal de folhas que de frutos, disse:
Son los piés de Amor Divino
Religion y Castidad;
Mas quien no lleva contino
Desfalça la voluntad
No viene por huen camino.
Amar a Deus não é outra coisa que seguir a Cristo com a nossa cruz até o Calvário, e, se nem a cruz material pôde levar o imperador Heráclio antes de se despir e descalçar, como poderemos nós levar a espiritual, indo tão vestidos e calçados?
Figura de Cristo foi o capitão Jefté e a este diz a Escritura que se acolheram e agregaram os pobres e vazios de bens terrenos: Congregatique sunt ad eum viri inopes.
Outra letra: Collecti sunt ad Jephte homines vacui.
Se Josef não largara a capa nas mãos da infiel egípcia, não sei se aguardaria fé a seu senhor Putifar.
Pela capa nos pega o mundo; pelos vestidos, riquezas e comodidades, nos atrai; a alma que não quiser ser adúltera, em ofensa de seu legítimo esposo: o amor divino, largue essa capa e fuja: Ut evadas Ægyptiam dominam (disse
São
S.
Jerónimo), sæculi pallium derelinquis.
Finalmente, o Espirito Santo é simbolizado na letra hebraica Mem, que se interpreta Ignis ex ultimis.
Fogo procedido dos últimos, isto é, como expõe Pascasio Ratberto, fogo que, consumidas já as últimas fezes do pecado e concupiscência, então se ateia mais copioso, então resplandece mais claro, então rompe fora mais activo.
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Assim sucedia áqueles santos cujos exemplos alegamos.
Porém, naqueles pecadores em que este fogo nem ainda começou a desbastar as primeiras e mais grossas materialidades, como pode mostrar fora aquela luz e eficácia que procede das últimas já vencidas: Inis ex ultimis?
XXXI De
Santa
St.a
Maria Madalena de Pazis.
Dando uma noviça conta de consciência a esta sua espiritual mestra, disse-lhe como na oração se havia detido em ponderar o amor com que nosso Senhor JESUS Cristo instituira o Santíssimo Sacramento, e que não havia podido passar com a consideração adiante.
Respondeu a santa: Quando se pára no amor, não se pode andar mais avante; mas não se deve parar no amor.
EXPLICAÇÃO E DOUTRINA.
Quis dizer que todas nossas meditações e exercícios espirituais se ordenam ao nobilíssimo fim de amarmos a Deus, como linhas que desde a periferia se dirigem ao centro; porém, como este Senhor é infinito bem e este centro é imensamente profundo, sempre devemos insistir em amá-lo e unir com ele o nosso espírito mais e mais.
Atendendo à primeira parte desta doutrina, disse
Santo
St.o
Agostinho que o amor de Deus era aquela pérola por cujo alcance e logro deu o mercador prudente todas suas coisas, porque ela só lhe bastava: Hæc est charitas, quam si solam habueris, sufficit tibi.
Atendendo à segunda, disse
São
S.
Bernardo que o modo de amar a Deus era amá-lo
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sem modo, isto é, sem limitação nem medida: Modus diligendi Deum est diligere sine modo.
A seus discípulos disse Cristo que ficassem no seu amor: Manete in dilectione mea; e aos seus disse
São
S.
Paulo que andassem neste amor: Ambulate in dilectione.
Porventura, são estas lições encontradas?
Não, por certo, senão mui conformes.
Porque no amor de Deus de tal modo havemos de andar para chegarmos que nele fiquemos depois de haver chegado, antes este mesmo ficar no amor é ir andando, assim como este mesmo ir andando é ficar no amor.
Os ímpios faltam até à principal destas obrigações, não andando; isto é, não buscando o amor de Deus; os tíbios faltam à outra, não ficando, isto é, não perseverando em buscá-lo mais.
Pois, para que não incorramos na impiedade de uns nem na tibieza de outros, andemos para o amor e no amor fiquemos, ainda andando: Ambulate in dilectione; Manete in dilectione mea.
Deste modo seremos santos, como manda o Senhor no Levítico: Sancti estote, e cada dia mais santos, como pede no Apocalipse: Sanctus santificetur adhuc; porque, se ser uma alma santa não é outra coisa do que amar a Deus, ser mais santa que há-de ser, senão amá-lo mais e mais?
Este, pois, amar a Deus sempre mais e mais é o modo de o amar sem modo, verificando que a natureza do amor é como a do fogo, o qual não toma na sua língua a palavra basta: Ignis verò nunquam dicit sufficit; é parar no amor, sem no amor parar; parar, porque ficamos Manete, in dilectiome; não parar, porque vamos andando, Ambulate in dilectione.
Desta doutrina certa se mostra o erro estultíssimo
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e clara ilusão dos que, orando, se deixam ficar ociosos, confundindo nèsciamente a simplicidade da fé com o pasmo da ociosidade, e parecendo-lhes que quanto mais parados se acham na cova do quietismo tanto mais vão caminhando pelas regiões do amor.
Tanto é isto orar como é subir o descer, porque orar não é outra coisa que subir o espírito a Deus: Oratio est ascentio mentis in Deum, e o espírito destes ilusos, em vez de subir a Deus, desce para si mesmo.
E, estando, assim, consigo mesmo, tem a pior companhia que pode ser, porque, se na solidão verdadeira fala Deus com a alma (Ducam eam in solitudinem et ibi loquar ad cor ejus) na falsa fala a alma consigo e juntamente com o demónio, que é a serpente que morde em silêncio: Si mordeat serpens in silentio.
Não lhe pareça (assim o protesta da parte da verdade) que está só e quieto quem deste modo está quieto e só.
Está como Jerusalém quando a
lamentou
lamentou .
Jeremias, assentada e solitária, porém cheia de povo: Quomodo sedet sola Civitas plena populo?
Assentada, porque uma das manhas destes ilusos é assentar-se logo na oração sem precisa necessidade solitária, porque nada cuidam, de Deus, útil para a sua reforma e salvação e, contudo, cheia de povo, porque é impossível que as potências internas cessem por indústria humana de produzir os seus actos vitais, que na fantasia ainda são mais loucos e inquietos.
Assim interpretou no sentido místico este lugar o Doutor Seráfico: Anima plena est populo innumerabilium phantasmatum, et sola est dum nihil cogitat Dei.
Oh! alma enganada, oh! lamentável Jerusalém!
Não te vires para
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ti mesma, vira-te para teu Deus e Senhor: Hierusalem, Hierusalem, convertere ad Dominum Deum tuum.
Não foi assim a oração de Santa Maria Madalena de Pazis.
Suposto que por espaço de cinco anos contínuos lhe subtraiu Deus a devoção sensível e todo o arrimo das consolações espirituais, sempre a cintila do seu espírito se conservou viva e ardente, porque a mão de Deus ocultamente a defendia e fomentava.
Um dos progenitores da nobilíssima família dos Pazis, tomando a cruz no ano de 1098 e indo com o famoso Gofredo de Bulhões à restauração da Terra Santa, foi o primeiro que animoso subiu às muralhas de Jerusalém, pela qual façanha aquele capitão general lhe deu a coroa mural (que era de ouro), que ele juntamente com o fogo sagrado trouxe depois consigo e depositou, para memória, no templo de
São
S.
Brás, onde até o presente se conserva.
E é estilo desta mesma família todos os sábados de aleluia tirarem, com solene rito, desta pedra chamada fogo sagrado e com que se acendem as alâmpadas e mais luzes da Igreja, e o levam, com grande acompanhamento de todos os parentes da casa, à igreja metropolitana.
O sagrado fogo do amor divino, procedido da pedra Cristo, de tal sorte acendeu a alâmpada desta prudente virgem que nunca mais se extinguiu, por muito que a combateram os rijos ventos das contradições e trabalhos exteriores e interiores, e assim com ela acesa e de cada vez mais clara e resplandecente subiu às muralhas e portas da Jerusalém triunfante, para cantar ali as aleluias da páscoa eterna.