Grandes são as proporções, grandes as semelhanças, concordâncias, ou simpatias, que têm a tinta, e a cor, a pena, e o pincel, ut calamus pennicillo, sic pennicillus calami aemullus: Possevino,
Est autem plurimum cognationis inter Poeticen, et picturam:
Manúcio nos Adágios.
E tanto se parecem entre si que escassamente se vê sua diversidade, e por isso Prudêncio contra Símaco disse:
Simbolizam entre si como irmãs gêmeas, e parecem-se tanto, que quando se escreve se pinta, e quando se pinta, se escreve.
Em língua grega o mesmo é escrever que pintar, ou esculpir, e é verbo comum ao pintor e ao poeta: como nota Herrera sobre Garcilasso: eo quod imago sit qua si alterum scripturae genus.
Muda-se reciprocamente a propriedade das palavras Poesia, e Pintura: da poesia se diz que pinta, eius, entende Homero, picturam, non poesim uidemus, quae regio!quae ora!qui locus Graeciae!quae species formae!quae pugna!quae acies!quod remigium!qui motus hominum, qui ferarum, non ita expictus est, ut quae ipse non uiderit, nos ut uideremus, effecerit!:
Cícero falando de Homero,
Ao mesmo Homero chamou Longino pintor de imagens, e Petrarca pintor de antigüidades:
Em suas pinturas acharam os reis, e achará todo
A Remígio Belleo chamou Ronsardo pintor da natureza, e Marino ao Ariosto pintor de amores, e São Gregório Nisseno (se é lícito usar de exemplos divinos) aos Cânticos pintura de várias cores.
À poesia chamaram Simônides, Plutarco e outros, tomando-o de Platão, como tem Patrício, Década Historial,
Gabriel Pereira canto 3,
À poesia chamaram também muitos, que vem quase a ser o dito, pintura das orelhas, e à pintura poesia dos olhos.
E com uma e com outra se aprende, como nota Plínio,
E assim como o pincel imita a natureza, ações e semelhanças de homem ou de qualquer animal, ou parte da terra, ou do mar, assim a pena retrata tudo.
Emílio Porto discursando sobre Aristófanes:Hic uirorum, hic mulierum mores, et ingenium suis coloribus insignitum, ut pennicello nobis depingit.
Da poesia é próprio uma muda facúndia, da pintura um eloqüente silêncio: este cala naquela, e aquela razoa neste, e como nota Viperano,
A pintura, como tem Leão Batista, deleita a doutos e a ignorantes, o mesmo obra em ambos a poesia, porque os doutos se recreiam com a boa invenção e sua alegoria, e os ignorantes com as cadências do verso.
Poetar e pintar é natural ao homem na puerícia, como nota Lope de Vega no Laurel de Apolo:
Dos cosas son al hombre naturales
E que haja esta inclinação à poesia o mostra a quantidade de poetas, e que haja a mesma na pintura se vê em Leão Batista, quando diz contra os ignorantes, e non troverai nessuno che facilmente non desiderasse grandemente di aver fatto profitto nella Pittura.
E é tanto assim que infinitas vezes se unem a poesia e a pintura em um mesmo sujeito, e, como aponta curiosamente Paulo Lomaço, raramente se acha habilidade acomodada para esta que juntamente se não incline àquela.
Pacúvio foi poeta e pintor, Bernardo Tasso teve o mesmo dom.
Ronsardo diz muitas vezes de si, e nota-o também Richeleto em sua vida; Denison e João Secundus foram na poesia e na pintura únicos, como canta Ronsardo,
Ferunt et Euripidem ipsum pictorem fuisse, eiusque tabellas exhibent Megaris:
Tomás Magister sobre Eurípides.
O nosso Jerônimo Corte Real, como mostram suas pinturas, o prólogo do seu Lepanto, e mais livros, foi poeta e pintor.
Francisco Pacheco, como canta Lope de Vega na Hyerusalem
Dom João de Xauregui e Dom Francisco Gomes foram poetas e pintores.
Jerônimo de Mora, como tem Cervantes na Viagem do Parnaso, foi:
E Lope de Vega no Laurel de Apolo, na viagem que os poetas fizeram ao Parnaso, para nele se haver de julgar qual fosse digno da láurea, foram de mão comum pintores, como pretendentes.
No faltaron con ellos los pintores
E quando esta inclinação não fora natural, podia ser artificiosa, porque as mesmas regras e os mesmos preceitos têm a pintura que a poesia: quae poeticae, eadem picturae conueniunt monita, et leges: Possevino,
Muito pode a natureza e o engenho no pintor e no poeta, e assim vemos realçar a uns pintores (vê Torquato Tasso, tomo 1, Prose,
Mostra-se com evidência nos pintores isto a nós, como bem especulou Paulo Lomaço,
Concordam em muitas coisas a pintura e a poesia; concordam em terem a príncipes por professores: Marco Antônio imperador, Alexandre e muitos de que faz menção Leão Batista Alberti,
Em se darem de graça: Zêuxis, como se conheceu por insigne na arte, dava suas pinturas, afirmando não haver preço igual a elas; Píndaro estima que a Musa nos primeiros séculos se dava sem prêmio, e Plutarco testifica que a ignorância fez a Mercúrio tratante; e de mais disto, deve a poesia, e a pintura, dar-se de graça, porque não há coisa por quem se dêem a troco.
Por maior que fosse
Em viverem os homens só de sua mostra: foi a pintura de Helena da mão de Zêuxis coisa admirável, e considerando-a cuidadosamente Nicóstrato pintor, com os olhos fitos nela, quase admirando-se da virtude de tanta arte, lhe perguntaram a causa e respondeu, como tem Eliano,
E acrescenta logo Eliano: ego uero idem de oratione dixerim, nisi quis eruditas habeat aures; sicut opifices, oculos artis peritos: o que bem se pode aplicar à poesia.
Esta imagem de Helena foi tal que ganhou a Zêuxis muitos cruzados, porque a não deixava ver sem prêmio; e daqui tomaram motivo os gregos daquele século para chamar Helenam illam scortum, como tem Eliano,
Relata-a também Poliziano, Mycellanea
Ex quo uulgo etiam tunc Helena meretrix uocitata, quoniam quaestuaria.
Muitos rapsodos houve em Grécia, entre os quais foram famosos Metrodoro, Estesímbroto e Gláucon, que ganharam sua vida por repetir os versos de Homero, e por isso se chamaram em comum Homéridas, e Homeritas, e há quem diga que foram descendentes de Homero, e como tais andavam recitando os poemas de seu parente: vê Patrício,
Em aplacarem a ira dos príncipes: dando saque Alexandre a Tebas, e vendendo seus moradores,
Tendo de cerco Demétrio a Rodes tomou em um arrabalde um painel de Protógenes, em que pintava Jalisso, isto é, imagem de Baco, o que visto pelos cercados mandaram um embaixador lhe pedisse em seu nome houvesse por bem de não usar do rigor da guerra com tal retábulo, ao que Demétrio respondeu que antes desfaria os retratos de seu pai, do que aquela imagem: se potius paternas imagines, quam illa picturam esse corrupturum:Plutarco in Apophthemata.
Estas e outras semelhantes são as concórdias e consonâncias que entre si têm a pintura e a poesia.
Em outras coisas diferem, ainda que tão pouco, que cada qual quer para si a excelência, e com razão, porque quem agrava a pintura ofende a poesia e contradiz a verdade de ambas, as quais levam a mesma derrota, que é descrever e pintar personagens e suas ações, como nota Filóstrato no princípio Iconum: Quicumque picturam minime amplectitur, non modo ueritatem, uerum etiam, et eam, quae ad poetas pertinet, iniuria afficit sapientiam, eadem enim est utriusque ad Heroum tam species, quam gesta intentio.
E além disto mal se pode diferenciar a mesma coisa, como aponta Lope de Vega, canto 13 da Hermosura de Angelica:
Contudo, posto que sub judice lis est, poremos em lembrança a virtude com que cada qual deles se quer levantar a maiores, e se houver quem dê sentença, não deixará de ter louvor na reputação dos curiosos.
A pintura é poesia universal, e a poesia
A pintura se entende com o sentido da vista, e a poesia com o do ouvido, e assim como se percebe melhor o que se vê que o que se ouve, assim fica a pintura com vantagem.
A pintura é livro de néscios, e a poesia livro de sábios, e assim aquela é entendida até do ignorante, e esta não se dá a entender mais que ao estudioso.
Uvalfrido Strabo diz: a pintura são letras para quem as não sabe, e é isto tanto assim que se lê de um homem que por pinturas soube as histórias dos antigos.
A pintura com suas cores e feições visíveis doutrina ao entendimento com presteza, e sua vista imprime profundamente nalma as coisas com sua viveza.
Lope de Vega, canto 13 da Hermosura de Angelica:
Ver abrasar-se uma casa, morrer um homem, cair um raio, desfazer-se uma tempestade move mais vendo-se, que ouvindo-se.
Não se vêem tão bem os perfis e cores de uma poesia concertada, como os de uma pintura bem acabada: veja-se Roa,
Fala Quintiliano da pintura,
A narração é curta nas excelências, visto não se poder alcançar com a escritura particularizar miudezas, que é coisa muito mais fácil a quem usa de cores e sombras: sendo assim que o historiador oferece as coisas por maior, da mesma maneira que o pintor em virtude da arte descobre as mesmas tanto pelo miúdo que em nada falta: Sousa,
Nestas e em outras mais coisas parece a pintura ficar superior à poesia, e nas seguintes parece o contrário.
Tudo o que o pincel mostra com a viveza das cores mostra a pena com a flor dos conceitos; a pintura descreve as feições do corpo, e a poesia pinta as feições do corpo e os afetos da alma, ou, como disse Luciano, retrata a formosura do corpo e a virtude do ânimo.
A poesia é mais suave ao douto que a pintura, e é mais nobre, porque a pintura é mais a propósito para gente miúda, e a poesia é própria de gente grada.
A pintura faz-se para o sentido, e a poesia para o espírito.
Dar nome a cada coisa ajustado à sua natureza é mais dificultoso que pintá-la.
Podem ser ignorantes os pintores, e pintar bem sabendo a arte, mas não poderá o néscio dar nomes, que representem o natural das coisas.
A poesia faz naturalmente uma coisa parecer sempre a mesma: a pintura sempre tem na mesma coisa diversidade.
Timantes na figura de Ifigênia não pôde expressar a muita tristeza de Agamêmnon; e os poetas, que escreveram tragédias na mesma matéria fundadas, pintaram tudo ao natural, sem encobrirem pessoa alguma; por virtude da narração, obraram o que não podia a sutileza e valentia das cores.
Todos os oficiais entre os latinos tomaram para si o nome de fabris, só o pintor o enjeitou, como aponta Leão Batista.
Em Grécia, sendo a voz 'Poeta' pertencente a todos os que exercitavam ofício, foi como por privilégio atribuída especialmente ao imitador de ações humanas.
Piccolomineu no Prólogo: vê Scaligero,
A mesma é a matéria da pintura e a da poesia, ambas têm a imitação das ações humanas no mesmo grau; do mesmo modo representam ambas os costumes: ambas são painéis da vida humana.
Nas coisas que fazem o pintor e o poeta sempre se deve guardar verissimilhança, que é norte de ambos, e ambos têm o mesmo fim que é aproveitar com deleite os ânimos.
Para a pintura e a poesia deleitarem é necessário que as coisas imitadas verissimilmente se conheçam por tais, sob pena de não deleitarem, porque assim como a
Havendo verissimilhança nas coisas imitadas, ainda que sejam horrendas, sempre deleitam, como é ver um animal feio, ou um monstro, ou uma nova sorte de tormento, feita de mão de artífice excelente, como tem Aristóteles na Poética.
Todos nos alegramos das imitações porque vemos com deleite as imagens, e especialmente se são feitas com diligência, das coisas que nos molestam e dão pena, como as formas das feras e dos corpos mortos.
E como tem Plutarco De Audiendis Poetis, assim como não ouvimos sem moléstia o grunhir do porco, o chiar do carro, o estrondo do vento e o rugido do mar, assim sendo com boa imitação nos deleitamos etc.
Veja-se a Maçônio,
E não obsta também ser a imitação das coisas imitadas odiosa ou aborrecida, como é ver um inimigo ou uma morte desastrada, porque estas coisas não se derivam da imitação, mas das juntas por acidente a ela.
Vejamos se é verdade que na República se vedam a poesia, e a pintura em que há desonestidade.
Aristóteles,
Ad officium igitur magistratuum pertinet curare, ut nihil nec fictum, nec pictum sit, quod turpes actiones imitetu.
Especulemos cada coisa per si.
Platão desterra de sua república os poetas que empregam sua musa em ações torpes e lascivas: Iure maximo diuinus Plato iubet turpes, et obscoenos poetas e republica sua longius exulare: Viperano,
Malatesta,
Ioram rei castigou ao poeta Epicarmo por dizer não sei que liberdade lasciva em presença da rainha; e ainda que as tais poesias tenham em si a maior suavidade do mundo, são indignas de se admitirem, como tem o mesmo Platão,
Suavíssimo é o Adônis do Marino, suavidade grandíssima e boa imitação têm as estâncias do Gofredo do Tasso, em que as ninfas se banham, doce é o Vindimador do Tansilo e contudo se proíbem.
Em bom governo se fundaram tais proibições porque de licencioso falar nasce a licença do fazer, e é verdadeiro o dito de um poeta que São Paulo aprovou: Corrumpunt bonos mores colloquia praua; e por isto também é documento dos Padres, e em particular de são Basílio, De legendis libris gentilium, que se queimem semelhantes livros, por serem bastantes a imprimir nos ânimos torpezas, e a despertar paixões desordenadas; e se a gentilidade se empregou tanto em escrever matérias pouco honestas, não há para que fazer caso delas, porque quanto mais longe deles estivermos, tanto mais aparelhados estaremos para a glória: Neque enim audeo dicere, quales essent debeant, quoniam ut caeca gentilitas aestu rerum humanarum, et carnis sese abripi sinebat, eo ferabatur, quo reliqui omnes praecipites ruebant.
Itaque amantium, siue potius amentium libidini seruientes pleraque canebant, quae fleuisse fuerat satius: Possevino,
Dobremos aqui a folha e vejamos se se veda também a pintura pouco casta.
Que as desonestas pinturas representem ao vivo com voz muda, e convidem, e insensivelmente constranjam à lascívia, o mostra o mancebo de Terêncio (de quem Santo Agostinho,
Ego uero illud feci, ac lubens
Quae manus obscoenas depinxit prima tabellas
De contrários aspectos nas estrelas vêm contrárias influências à terra; e assim não é possível que quem se agrada muito de ver pinturas feias, deixe de sentir na alma inclinação ao vício que representam, e por isso devem os pintores guardar religião, conformando-se com a Sé Apostólica: fugindo de imitações da gentilidade e principalmente das descrições dos banhos de Diana, Vênus e outras deusas, de ninfas, caçadoras, pois, nunc spectamus in picturis Nimpharum, quibus brachia detecta femora quoque apparent: Scaligero,
Veja-se [...] o que no século de ouro foi fogo das almas dos que
Devem também fugir de pintarem deidades, e as que há se devem somente ter para ornato das câmaras dos príncipes, e não há tão grande crueldade que se hoje se achasse o Jalisso de Protógenes, ou outra semelhante pintura, a condenasse ao fogo: o mesmo sucede às poesias dos gentios, que não guardando nossa religião são de estima (como não sejam lascivas) e nelas se louva o engenho e o artifício.
É esta proibição mandada pelos concílios, e como nota Zonaras
Picturas ergo, quae oculos perstringunt, siue in tabulis, siue alio quonis modo fiant, et mentem corrumpunt et ad turpium uoluptatum mouent incendia: nullo modo deinceps exprimi iubemus.
Si quis autem hoc facere eggressus fuerit, deponatur.
Zonaras, Picturas habitu inuerecundo in parietibus, ac tabulis, aliqui affirmabant, quarum aspectus ad uoluptates, facta obscaena, flagitiosas que libidinis excitaret; eas ergo quocumque loco Canon adhiberi uetat
E não é escusa valiosa, como tem Júlio Mazarino, discurso 9, sobre
Bem certos estamos logo vedarem-se as pinturas e as poesias lascivas, por os males e danos que causam igualmente, pois com ambas nos pretende arruinar nosso capital inimigo, como aponta Possevino,
E bem certos estamos logo ser seu deleite nocivo e prejudicioso e indigno de ânimo católico e contrário ao fim que levam por alvo sempre a pintura e a poesia: deleite com utilidade.
À poesia e à pintura devem ser afeiçoados os príncipes, porque de mais
O mesmo efeito faz a poesia, e por isso Alexandre tinha por familiar a lição de Homero.
Lia Alexandre a Homero de maneira, Que sempre se lhe sabe à cabeceira, e como tem Galúcio oratio 2, tinha a Ilíada por uma perfeita instituição de príncipes, e essa é a causa, cur Alexander Iliadem Homeri tam saepe legeret, ut eam, et sub puluino una cum pugione retineret semper, et ipsius uiaticum militiae nominaret:
Também Alexandre continuava a oficina de Apeles, non artificio solum, sed comitate etiam hominis delectatum: Plínio
Veja-se a Poliziano sobre este lugar, Liber Miscellanea
Assim as pinturas dos trabalhos de Hércules como as poesias que os cantam são exemplo moral de fortaleza.
Saiu-se Hércules ao campo e fugiu do rebuliço da cidade e pôs-se a contemplar dois caminhos na vida: o da virtude trabalhoso e estreito, e em que o homem se nega a si mesmo deleites e passatempos; e o do vício, que é suave, largo e descansado para o corpo, e determinou eleger o caminho que guiava à virtude e à imortalidade da fama; e assim coberto com a pele do leão Nemeu, que matou com suas mãos, peregrinou pelo mundo e alimpou-o de monstros e de maus homens, inimigos da paz.
Ensinou as virtudes e obras de cavaleiro; e assim de suas poesias e de suas pinturas se tira mais proveito que ver combates de feras, como largamente
Para a poesia e pintura alcançarem o fim deleitoso e útil convêm ser de proveito à República.
Tornemos a folha que dobramos.
O mal que obrou o mancebo terenciano foi originado de poesia lasciva, como a nosso intento mostra Famiano Estrada,
quad!
Detestatusne ille est crimen?
(nam etc.) Iouis exemplo, et quasi hortatu Poetae certe ductu scelus honeste persuasit sibi.
Não se use logo de poesia não casta, pois tem o efeito da pintura lasciva, por contrárias à honestidade e adversárias do bem público, e como tais se hão de apartar da vista, por que não caiam no peito, como soem cair nele as lágrimas dos olhos.
É particularidade da imitação poética, como tem Platão, infundir dissimuladamente no ânimo o mal ou o bem que narra, e assim sendo sua narração desonesta, subrepticiamente introduzirá a mesma; e assim é aviso fugir por não manchar a pureza do ânimo com os mimos e regalos lascivos da poesia pouco casta; e fazendo-o pelo contrário pecaremos de malícia, e viveremos como Ulisses com Calipso, ou como Rinaldo com Armida; e a poesia será totalmente nociva à República e não dará satisfação ao fim que se propõe.
A música não sendo casta provoca os ânimos a movimentos desordenados, pois é estimuladora dos sentidos, despertadora do deleite e nociva à mocidade, e como tal se deve fugir; ela é a Circe de Homero e a Alcina do Ariosto que com atraimentos encanta o homem, e principalmente quando se ajunta com poesia pouco limpa, as quais duas companheiras, a modo das duas incestuosas filhas de Loth, embebedando-o com o doce vinho do deleite e da luxúria, o induzem a prevaricar.
Verei de força Marino, Dicerie 2,
Para a pintura e a poesia serem proveitosas e deleitosas lhe convém, antes, é de necessidade, fazerem idéia do mais excelente e levarem por alvo o Universal.
In uniuersum Poeta in suo quasque genere insigniores personas imitari debet: quippe cuius summa uirtus est ipsas rerum formas fingendo exprimere: quemadmodum Pictor studet pro re pulchriorem imaginem depingere: Viperano,
Homero pôs diante de seus olhos a forma da fortaleza descrevendo a Aquiles, e a da prudência pintando a Ulisses: Viperano ut supra.
E por isso também é lícito ao poeta dizer coisas impossíveis, contanto que sejam melhores que as possíveis: como é impossível por natureza que uma dama tenha em si recompilado todas as excelências da formosura, como fez Zêuxis na de Helena; e também convém ao pintor fingir as figuras mais extremadas do que foram, com condição que sejam avantajadas: Castelvetro, na Poética de Aristóteles,
O mesmo notou o Juízo da Canace sobre a tragédia dizendo que para a acertar a bem compor se havia de usar o costume dos pintores, que não pintam as coisas feias, mas as mais notáveis, ou eles as finjam, ou as tomem de outrem:
Se a pintura leva por alvo o singular (como também pode suceder à poesia) é quiçá na que chamam Retratos: vê Piccolmineu sobre a Poética de Aristóteles, partícula 54,
Para fazer eleição da idéia mais excelente e da forma mais notável, convém ao poeta e ao pintor mover primeiro em si os afetos, porque assim moverão os ânimos, e desta moção procede o furor que enleva e arrebata, não só ao pintor e poeta, mas aos ouvintes e ventes.
Dever o poeta revestir-se na pessoa que há de imitar ensina Horácio tomando-o de Aristóteles na Poética:
E mais abaixo:
Dever o pintor fazer o mesmo para bem expressar os tormentos e dores nos mártires, ensina Possevino ut supra: Martyria in martyribus, fletum in flentibus, dolorem in patientibus, gloriam, et laetitiam in resurgentibus.
O mesmo ensina Leão Alberti quando tomando-o de Horácio diz: adquire e concilia atenção a história do pintor cujas figuras mostram os movimentos do ânimo, porque naturalmente elas nos arrebatam e enlevam após si com a boa semelhança:"" Che noi piangiamo con chi piange, ridiamo con chi ride, e ci condogliamo con chi si rammarica: Leão Alberti.
De as tais pinturas e tais poesias moverem os ânimos é infalível.
São Gregório Nisseno, oratio De Vnitate Filii
Muitos do povo romano estando em público teatro, e lendo Virgílio o episódio de Marcelo, que tem no sexto, choraram de mágoa.
Movido em si o poeta, ou seja furor, et insania quaedam, como de opinião alheia cita Fracastor,,, ou furor, aut afflatio numinis, como lhe chama Platão, ou uis dicendi, et scribendi diuinitus in feruefacta, como interpreta Budeo, ou seja malenconia, como têm os médicos, costuma passar com o movimento de seus afetos a terceira pessoa.
Assim como a pedra de cevar atrai a si não só uma agulha, mas infunde também nela faculdade de atrair a outras: assim a poesia posta em cena é tal que
É a enfiadura das agulhas que pendem umas das outras: Montaigne,
Famiano Estrada,
Comparam-se os poetas com os anéis tirados da pedra de cevar.
Famiano ut supra.
A boa poesia, como tem Aristóteles, é de homem engenhoso, ou furioso.
Verdade é que não é causa tão necessária a um poeta o enfurecer e sair de si mesmo, quanto o ser de pronto e soberano engenho.
Porque assim como pode um bom pintor com ânimo quieto e sossegado representar bravos guerreiros e feras batalhas em virtude do engenho e do uso afinado da arte; assim pode um famoso poeta, ajudado da perspicácia e agudeza de entendimento, representar e descrever os perturbados afetos e furiosos efeitos alheios.
Mas nem por isso deixa ser importante o furor, porque os homens que fitam e levantam altamente o pensamento na perfeita representação das coisas, é força às vezes passar os limites da moderada imaginação, com a violentar a ela e aos órgãos do entendimento, porque eles com veemência forçosa e violentada talvez se pervertem e corrompem, de modo que se segue o furor.
Donde, assim como para fazer maior ferida com a seta, e para ela chegar mais longe, convém estirar o arco mais do ordinário, do que procede algumas vezes quebrar-se e despedaçar-se: assim no poetar altamente convém levantar tanto a imaginativa, ou entendimento, que acontece romper-se e fazer-se pedaços (se é lícito dizê-lo assim) o arco da imaginação, de que depois se segue o furor.
E daqui vem que as artes que têm necessidade de semelhante força e constrangimento de imaginação e aplicação
A poesia, e a pintura que sai da mão, e do entendimento de semelhantes artífices têm virtude de enlevar e atrair os ânimos, como a pedra de cevar ao ferro: atribuem muitos esta excelência (vê Montaigne
Tendo estas duas ciências as semelhantes tais dependências efetuarão seu fim, que utilidade e deleite.
Toda a pintura e todo o poema, ou seja grande, ou medíocre; ou grave, ou humilde; ou triste, ou alegre consta de três partes.
Às suas chama a pintura rascunho, composição e cor; e a poesia, invenção, disposição e locução: umas e outras são da essência da pintura e da poesia.
Rascunho é a circunscrição que se faz com as linhas ao derredor da obra, a quem os italianos chamam contorno, e alguns modernos desenho.
Invenção, conforme Ronsardo, é o bem natural da imaginação, que concebe as idéias e formas de todas as coisas que se podem imaginar, assim celestes como terrestres, animadas ou inanimadas, para depois as presentar, descrever e imitar.
Ou é, como dizem outros, a traça e fundamento de toda a obra em grosso, na qual se fica incluindo toda sua essência.
A composição da pintura é aquele modo e aquela regra, mediante a qual todas as partes se compõem no lavor juntamente.
A disposição da poesia é uma elegante colocação e perfeita ordem das coisas inventadas; não permite que o que pertence a um lugar se ponha em outro, mas governando-se artificiosamente, ordena com felicidade todas as coisas em seu ponto.
Assim como o rascunho da pintura, e a invenção da poesia consiste em uma gentil natureza de espírito, assim a composição e disposição de uma e outra dependem da mesma
Cor é o recebimento de lumes, os quais com evidência mostram à vista quanto se lhe oferece.
Locução é a propriedade e resplandor das palavras bem escolhidas e ornadas de algumas graves e breves sentenças e luzidas com pensamentos e conceitos nobres.
A estas três partes, que constituem a essência da pintura e da poesia, nomeiam vários autores com diferente modo, porque uns querem que a poesia e a pintura constem sem mais de viveza e da galantaria, mas, bem considerado, na viveza incluem a invenção ou rascunho, e na galantaria a disposição e locução, a composição e a cor.
Vê-se bem isto, porque da galantaria nascem na poesia os brincos e regalos, brotam as graças e louçainhas que deleitam; da viveza se originam as invenções que admiram; e de uma e outra juntamente se faz a admirável
Igualmente fazem o mesmo efeito de perspicuidade e viveza na poesia as palavras próprias e transferidas, quando judiciosamente se repartem.
Marino,
Outros autores têm para si que consiste a poesia, e a pintura em três coisas, mas diversas na aparência às já referidas: na invenção da matéria, na invenção da forma e no ornamento.
Chamam invenção à da coisa; forma ao modo de representar, e ornamento aos versos com suas figuras: Scaligero, Poetica
Outros são de parecer que as três coisas em que se fundam são alma, potências e acidentes, e atribuem à alma a invenção; às potências os conceitos; e aos acidentes as palavras; e dão o primeiro lugar ao conto animado, o segundo aos pensamentos agudos, e o terceiro às formosas vozes.
E ultimamente outros (entre os quais entra Viperano, tratando em particular do decoro) assentam entre si constar o mesmo de três coisas, a saber: costumes, conceitos e palavras.
Todas estas opiniões pudéramos
Ao todo das três partes que seguimos chama a pintura história, e a poesia fábula.
A obra do pintor é a história, as partes da história são os corpos, as partes do corpo são os membros, as partes dos membros são as superfícies, porque destas se fazem os membros, dos membros os corpos, dos corpos a história, que é a obra do pintor.
A obra do poeta é a fábula, suas partes são costumes, conceitos e palavras; sua divisão em prólogo, episódio e êxodo, que são como membros de corpo, cuja alma é a mesma fábula.
O pintor faz a sua história de muitas figuras, dispostas em vários atos quase agentes e moventes.
O poeta faz sua fábula com todas as pessoas negociosas e interessadas.
Cada membro na figura deve fazer seu ofício, tanto na poesia como na pintura; assim como nem todas as figuras do pintor são verdadeiras, assim também nem todas as do poeta.
A história do pintor e a fábula do poeta, a invenção deste e o rascunho daquele devem
Assim como na fábrica da pintura é de maior consideração o rascunho, assim na poesia o é a fábula, e por isso o pintor deve, antes de tomar na mão o pincel, traçar consigo, e logo no pano, ou tábua, seu primário intento, e consecutivamente dispor as cores com suas sombras.
E do mesmo modo tem o poeta obrigação de primeiro desenhar com seu entendimento a fábula e consecutivamente dispô-la e logo vesti-la e orná-la com locução: Tota igitur materia inuenienda, deinde disponenda, ne cogitationibus nouis interuenientibus constitutio fabulae perturbetur: Postremo uerborum ornatu uestienda" est." Viperano,
Ao rascunho do pintor compara Aristóteles a fábula do poeta, e aos costumes as cores; e justamente, porque se alguém pintasse um painel em várias partes com formosíssimas cores, confusamente postas, não deleitaria tanto como se só debuxasse simplesmente, com linhas e riscos, imagens e figuras em branco: Quemadmodum enim pictor (fala Galúcio,
Comparat, inquam, cum pictorum coloribus mores. iubetque Poetam illos pulchre concinneque disponere.
Viu também esta semelhança Horácio quando disse: ut pictura poesis erit, de quem a tomou Antônio Ferreira nos Poemas Lusitanos, carta 8,
O mesmo erro se comete na constituição da fábula que no rascunho da pintura: e o mesmo é não ter bons costumes o poema que não ter a pintura bem as cores; e assim como é mais fácil miscrar bem as cores do que formar figura perfeita, assim também mais facilmente se achará quem saiba formar em uma pessoa bons costumes do que formar boa fábula.
O rascunhar a história o pintor, e o inventar a fábula o poeta é igualmente a ambos concedido poderem traçar com seu engenho, conformando-se sempre com a natureza, e criar as coisas de novo.
Célebres foram na pintura de nova invenção em Itália Rafael, Corejo e Ticiano, e na poesia Ariosto, Tasso e Marino: Etiam quae nunquam fuerint, attentent, ac illa carmine, haec coloribus exprimere audeat: Possevino ut supra.
Pintores e poetas têm
Quibus licet
Esta licença é terminada na verissimilhança.
Não se há de fingir quanto a imaginação pede.
Assim como o alvo do orador é persuadir, assim o do poeta e do pintor em sua história e em sua fábula é de imitar, inventar e representar as coisas que são, que podem ser, ou que os antigos tiveram por verdadeiras, fugindo-se sempre de invenções fantásticas e malencônicas, que carecem de correspondência e semelham aos sonhos dos frenéticos, que cada um (como lá dizem) vai para seu cabo.
Com ordem e modo se permite poetar e pintar, aborrecendo monstruosidades, odiando impossíveis, como ajuntar aves a serpes, tigres a cordeiros, como nota Horácio.
Entende-se a liberdade que correspondam sempre os membros a um corpo, que com as perfeições da natureza fique bem composto, guardando em tudo uma justa simetria.
A história da pintura e a fábula da poesia, como tem Laércio,
Ambas compreendem ações humanas e divinas.
A poesia de Homero contém ações
A história do pintor e a fábula do poeta, ou é fingida, ou verdadeira.
Se é fingida deleita com a verissimilidade, e se verdadeira com o sucesso real; em uma e outra se tem por melhor a fundada em verdade, porque mais deleita a imitação de coisa conhecida que a desconhecida.
Ou seja a história fingida, ou verdadeira, para merecer louvor e admiração deve com os atrativos da variedade enlevar e entreter os olhos de todos.
Tem variedade a história que em próprios lugares tem mistamente velhos, mancebos, meninos, matronas, animais, moças, domésticos, pássaros, cavalos, gados, edifícios, províncias, tudo correspondente à coisa que ali se representa.
Aborrece a história a solidão, e assim pede número não breve de figuras, nem menos infinitos, e assim terá de nove a dez: Leon Alberti.
A fábula com a variedade, não falo por ora de sucessos, das pessoas, se faz atrativa, e assim é louvado sobremaneira Homero, que com introdução de deidades, homens e mulheres enleva os entendimentos: at hic cum pauca praefatus sit, statim inducit uirum, aut mulierem
E da Odisséia refere Máximo Tírio ter multiplices species dolentium, gestientium, lugentium, redentium, pugnantium, irascentium, comessantium, nauigantium; note-se porém que sejam sempre muito menos as pessoas deificadas que as humanas, porque as deificadas entram acessoriamente, e as humanas essencialmente; e por constar de grande número de deidades o Adônis de Marino é censurado, e a mesma censura padecem Os Lusíadas de Camões, em que as pessoas humanas da própria ação são mui poucas e fazem o poema solitário.
Isso é quanto ao poema narrativo; o representativo deve guardar o mesmo, contanto que não passe de doze pessoas.
Esta história, e esta fábula não deve ser nem muito antiga, nem muito moderna.
A história e a fábula muito antiga não convêm a nossos tempos, porque os costumes são hoje totalmente aborrecidos, e assim não é lícito ao nosso poeta escrever nossas batalhas com o modo que usa Homero, nem o nosso pintor agradará pintando na conformidade que tiveram gregos e romanos; também se advirta que se o pintor quiser retratar a Catão, ou a Cincinato, imite o uso de vestir de sua idade, e não faça como Giraldo no seu poema, que descreve a Hércules sem maça e sem pele de leão, e com sobreveste e plumagem.
Deve o poeta escolher entre os nossos e os antiquíssimos tempos os que são de nossa memória, apartados em distância conveniente, a modo de pintor, que nem põe as pinturas onde os olhos lhe toquem, nem
Deve o pintor tomar também para emprego de seu pincel matéria semelhante à do poeta, porque com ela fica, a um e a outro, lugar para aumentar o quadro e o poema.
A fábula do poeta e a história do pintor tem suas digressões, que são as coisas que se desviam do primeiro intento, sempre nascentes e dependentes dele.
Chama-lhe o poeta episódio, e o pintor parergo: episodium, quae a constitutione rei est; sed ad rei constitutionem pertinens declinatio: Viperano,
Parergon dicitur quod alicui rei, praeter praepositum additur: Calepino.
Ao parergo chama Gregório Fernandes na tradução do parto da Virgem em Sannazaro episódio.
Toma um poeta por assunto uma guerra, ou a tomada de uma cidade, as coisas com que orna e ilustra sua fábula são episódios; retrata um pintor uma cidade ou um exército, tudo o que em contorno lhe pinta, como montes, lagos, arvoredos, são parergos.
À verdade ou ao primário intento acrescentam os poetas e os pintores muitas coisas para ornamento.
Multa alia adiicentes ad ornatum: sicuti et pictores faciunt: qui ubi quod primo intendunt, aut hominem, aut equum, aut aliud, tum lacus, et montes, et uiridaria circumpingunt, et addunt ad ornamentum:Fracastor, no Diálogo Naugério, falando do modo com que se enobrecem as fábulas.
Acrescentam-se também semelhantes coisas na fábula e na história do pintor e do poeta para maior aumento, porque com os parergos e com os episódios
Non secus ac tabulae pictorum fluminibus, siluis, auibus, atque id genus aliis ornamentis illuminantur:
Viperano,
A fábula, como tem Horácio tomando de Aristóteles, sit quod uis simplex dumtaxat, et unum.
Soit toujours simple, et un: Ronsardo ao leitor, tom.
Elégies.
E a história, et pictores in unica tabella unicum Hypoliti, uel Lacoontis casum depingunt: Viperano,
Unidade na pintura e unidade no poema em ação e em pessoa: história e fábula têm por fim unum unius.
Parece porém não passar assim na pintura, porque quando representa Hércules matando a Hidra, ou Aquiles a Heitor, parece que não representa uma só coisa, porque cada qual mostra duas ações diferentes, a saber, de ofensa e de defesa.
Mas responde-se que a unidade da imitação é determinada da unidade da ação que se representa; e que se um pintor imita a Hércules matando a Hidra, ou Aquiles a Heitor,
E deste modo se deve também dizer que seja uma só ação de Aquiles (qual é a da Ilíada de Homero), se ele sem companhia alguma pelejasse com dez, ou com cem homens, não obstante pedir a representação de tal ação, além da pessoa de Aquiles, mais dez, ou cem pessoas, porque as tais se pintam para maior expressão: Mazonio,
Opugnam alguns também a unidade da ação da pintura dizendo que ela não pode pintar as coisas sucessivas, como são o movimento e o tempo, mas só as permanentes, como são as substâncias sensíveis e as qualidades visíveis, e que são nela tantas as coisas quantas são as substâncias que têm, e que se acaso tem a pintura a tal unidade de ação, sucede somente quando só é imagem de uma só pessoa, como de um papa, de um imperador
Satisfaz-se que posto que a pintura não descreva os movimentos e as ações alheias mas só as coisas permanecentes, pode contudo pintá-las de tal modo, e com tal aparência de gestos,
Ainda que estas coisas se não movam, pois estão paradas, dão contudo aparência de naufrágio, e de combate.
E assim convém dizer que a pintura no pertencente à ação imita uma só coisa.
Com quase semelhantes argumentos se pudera arguir contra a fábula, dizendo que tinha vários sucessos de tempo passado, presente e futuro: muitas sortes de pessoas, descrições de muitos lugares
Donde se a tal batalha se ajuntasse um naufrágio, ou à coroação um assalto de uma cidade, por estas duas coisas não terem entre si conformidade, não se poderia dizer
Piccolomini na partícula 51,
A fábula cujos episódios não são partes ajudantes e partes impidientes da ação primária chama Aristóteles fábula episódica,
A história em que os parergos não forem verossímeis e necessários e cheios de dependência se pode chamar história parérgica, e tal poesia, e tal pintura é defeituosa.
A terceira e última parte da pintura e da poesia é a cor e a locução.
O mesmo é cor na pintura que locução na poesia, e assim como na pintura não basta rascunho sem cor, assim na poesia não basta fábula sem locução.
As figuras bem formadas, se não são coloridas, não imitam bem a carne.
Não convém a todos a formação das palavras, se o demais da oração não autoriza a voz inventada de novo.
Conforme a Aristóteles, o ofício da cor na pintura é o do costume na poesia; o mesmo tem na sua República Platão, e Plutarco nos Opúsculos, e Horácio na Poética, Vicente Madio sobre a de Aristóteles, e não vai longe daqui João Batista Pinha sobre Horácio, quando diz: Poetam potissimum reddunt fabula, et mores, pictorem imago, et colores.
Bênio formou nova opinião, e compara as cores da pintura às ciências;
Mas não seguimos por ora estas 3 opiniões, mas a de Robortello, que tem para si em parte corresponder a cor ao costume e à locução; e a Castelvetro, que assenta corresponder ao costume, ao conceito e à locução; ou, para melhor, a Patrício, que diz que assim como o pintor exprime com cores coisas e figuras várias, assim o poeta, com sua locução, palavras, verbos e nomes, que ele tem em vez de cores, expressa quanto lhe vem ao entendimento, e faz chegar tudo às orelhas, como o pintor aos olhos: Década Disputada,
Convém muitas vezes mostrar arte e indústria, assim na poesia como na pintura, nas coisas miúdas, e ainda que o entreter-se nelas molesta e parece tirar a majestade à fábula, como se vê em Homero contudo o abater-se e humilhar-se alguma vez gentilmente pode deleitar, maiormente que
Assim como na pintura as cores representam melhor sua forma à vista de sombras, assim na poesia o estilo grande mais facilmente se reconhece a par do pequeno, ou meão, e assim convém usar na fábula ora de um e ora de outro, para que assim se conheça a excelência de cada um.
A pintura recebe todas as cores; a poesia todos os estilos.
A poesia retrata vis e humildes pessoas, a pintura as descreve; a pintura retrata ervas e flores, e delas se veste talvez a poesia.
Cresce uma e outra, e admitem ações grandiosas e excelentes, não aborrecendo as meãs e ordinárias, passam do vale ao jardim, deste ao mar, do mar a seu centro, e deste passeiam a região do ar, não deixando peixe, nem ave, e transpõem-se no mais levantado do céu.
Não há coisa corpórea que Deus criasse que se não possa representar com cores, como se fosse verdadeira.
Pintam o nascer da aurora, o sair do sol, o relampaguear da lua, o brilhar das estrelas.
Representam a escuridão da noite, o furor dos ventos, o horror dos bosques, a frescura dos jardins, a clareza das águas.
Mostram os raios cintilantes dos olhos azuis, e negros, a louridão dos cabelos, o resplandor das armas, as tempestades do mar, os incêndios das cidades.
Contrafazem as cores das carnes, distingue o treluzir dos panos ou sedas, varia as penas das aves, dá alma quase vivente aos peixes, expressa os suares, retrata as escumas, descreve as nuvens, dá forma visível aos sentidos, e aos espíritos faz viver e morrer como lhe parece.
Marino, Dicerie 1,
E se da pintura, disse Lope de Vega, canto 5, da formosura de Angélica:
Impossível é pintar com perfeição sem várias cores, e por as primeiras pinturas só constarem de negro foram perdendo nome, tanto que se começou a achar o verde, o vermelho e o amarelo
De duas sortes de poemas faz menção Horácio: o primeiro tem somente sombras e longes, sua locução sem nobreza, suas palavras sem eleição; o segundo consta de imaginação e cuidado, de locução polida e ilustre.
Ao primeiro compara a pintura que consiste na mão do primeiro rascunho, em algumas linhas toscas e riscas grosseiras:
Esta, olhando-se de longe, pode ser louvada.
Ao segundo compara a pintura com suas cores expressada, com extraordinários lumes, ilustre de longes e pertos guarnecida e proporcionada a seu contorno: esta pode ver-se e louvar-se de perto com toda a especulação.
Bem se colhe logo que para a bondade da pintura se requer variedade de cores, e para a formosura da poesia se pede diferença de locução, porque aquela dá vida à pintura, e esta à poesia; e por esta causa fez particular discurso Aristóteles da locução e todos os em que ensinam poesia querem que o que a houver de professar seja rico de palavras, e Fracastor, no Diálogo Naugério, fundado em Aristóteles, quer Vocum differentias, et naturas considerare, quae propiae, et impropiae, quae nouae quae antiquae, nostrates, perigrinae, usitatae, dissuetae, primae, deriuatae, simplices, compositae, transumptae, lenes, asperae, sonorae, demissae, musicae, immusicae, et id genus alia: ad haec autem et uocum texturas eiusdem est perpendere et mutare etc.
At in Poeta qui sese ab initio ita comparare debet, ut aures omnibus insidiis capiat: lecta uerba esse debent, sonantia, et grauia, multisque conformationibus temperata: uerborumque continuatio elegans, ampla, fluens, ornata figuris etc.:
Viperano,
E com razão, pois as palavras são explicação do ânimo e do sentido se deve ter grande cuidado nelas, e usar das acomodadas aos costumes e aos conceitos.
O que tudo observa o bom pintor, conhecendo primeiro a virtude das cores, como tem Paulo Lomaço, e fazendo-se senhor de seus segredos.
Conforme a doutrina do maior filósofo, as cores não são mais de sete,
Os Naturais fazem menção da cor ática, da sírica, da lídia, da mélica, e da pôntica: Plínio,
Os platônicos afirmaram serem só três as cores principais do mundo, dedicadas aos três planetas e lumes do céu: a Vênus, ao Sol, e a Júpiter, que são os que pontualmente compõem o arco da velha, a quem a gentilidade chamou íris.
Veja-se a Piazza,
Distinguem a prática dos pintores as cores em minerais, em meias minerais e em vegetáveis, e quanto o quer que sejam os pintores: vê Herrera, sobre Garcilaso 1,
Sete quer Hermógenes que sejam as espécies ou formas ou idéias de dizer, a saber, clara, grande, formosa, ligeira, afetuosa, grave e verdadeira; outros as reduzem a quatro: breve, longa, meã e florida; e Cícero a três: grande, pequena e meã, que é o mais seguro.
É necessário tantas cores por a diversidade das figuras, importa haver uso de tantos estilos, por a variedade das matérias: Ac sane res alia grãdis, et magnifica; alia humilis, tenuisque: alia mediocris est.
Unde alia forma dictionis est grauis, alia gracilis, alia temperata: Viperano, De Optimo Oratore,
fl. 15.
Nam et aliud sibi genus delectatio, aliud comiserationes, et lachrymae deposcunt, figuras alias, tropos alios.
Dictionemque totam aliam, non minus quam elocutionem, uultusque, ac oculorum dispositionem: Carlo Scribano, De Institutio Politico Christiana, L. 2, cap.24
Se na pintura não houvesse variar cores, bastaria uma; mas como as coisas são diversas, e a imitação da natureza sobremodo vária, de necessidade se há de valer de muitas.
Se na poesia não houvesse diferença de estilo, que decoro a comporia?
É nela de infinita importância diferenciar a locução, variar os lumes, conforme as coisas de que se fala; não menos do que na música convém levantar e variar os tons e os modos, segundo as coisas que se cantam.
Teve a música antiga três gêneros: diatônico, cromático e inarmônico; e como querem muitos, teve cada sujeito seu modo de música, cantando-se com um alegrias, com outro tristezas etc.
Mas perdeu-se totalmente este costume e nem há rastro de suas notas.
Mas tornemos à locução.
Non omni causae, nec personae, nec tempori congruere unum genus: é doutrina de Cícero, e Quintiliano diz não ser de estima a obra si genus dicendi laetum tristibus, minax supplicibus adhibeamus.
Não convém na pintura de ação humilde representação ilustre; nem na poesia decere uerbum ponere in humili, quod in alta oratione conueniret: Viperano,
Assim como as cores devem corresponder às coisas para perfeita imitação da pintura, assim a locução deve semelhar-se às coisas que se imitam na poesia: ornatus omnis non tam sua, quam rei cui adhibetur, conditione constat: Quintiliano.
Qualis igitur persona, talis ei debetur oratio: Scaligero,
As palavras e o que delas se forma não são mais que um vestido dos conceitos de nosso ânimo, e por isso, assim como os vestidos devem sempre apropriar-se à condição de quem os traja, assim a locução e as palavras devem ter proporção e correspondência com as coisas que tratam.
Donde erraria quem vestisse uma senhora com fatos de moça ou uma menina com trajo grave, e quem a um sujeito levantado aplicasse palavras desmaiadas e frouxas, ou a um sujeito humilde locuções altivas e compendiosas.
Conforme a qualidade que o poeta quer dar ao estilo, scilicet, de gravidade ou de humildade, de doçura ou de aspereza, assim lhe deve dar as palavras conformes pela semelhança das letras, mudando ou alterando as que lhe parecerem desconvir, ou juntamente misturar outras, como faz o pintor, que querendo imitar a semelhança de alguma imagem, lhe ajunta ora uma e ora outra cor, ora as muda e altera, e talvez juntas mistura a muitas, segundo a imagem se há de representar melhor.
Conte,
Há-se de procurar em suma sempre locução conveniente à matéria, de tal sorte que se pareça ver com os olhos a mesma coisa: Illud praecipue uideo comendari, ut uerba rebus "
Ita enim interesse te putes, non legere, cum jucunda uerbis suauibus, atrocibus aspera, quieta sedatis, deductisque humilia, grandibus ardua proferantur: unde illa orationis honestas, et quasi certum decus oritur: Crinito, De Honesta Disciplina,
E assim como é famoso o pintor que com sagacidade e indústria ordena suas cores, famoso é o poeta que aplica com conveniência todo o estilo: Magnus qui in omnem partem uestere dictionem potest, nunc serpere, nunc montium uerticem pedibus calcare, nunc etc.:Carlos Scribano, De Institutio Politico-Christiana,
Para o pintor ser em sua arte famoso tem principalmente necessidade de três coisas: ciência, experiência e diligência.
No tocante à ciência convém saber obrar; no concernente à experiência pertence-lhe ser exercitado na operação; e no pertencente à diligência tem obrigação de aplicar o ânimo à coisa que obra.
Na parte que convém à ciência, deve o bom pintor ser abundante em engenho para inventar, e em juízo para representar.
Tem necessidade de engenho porque não obstante serem suas pinturas dignas de louvor e de admiração, em que se entende mais do que se mostra, não obstante a arte por si mesma ser grande, contudo a delicadeza e a sutileza a excede; e tais se conta serem as obras de Timantes.
É de importância ao pintor o juízo, por que discretamente evite os atos desordenados e cuidadosamente fuja das inconveniências.
Retratando-se a el-rei Antígono, que tinha uma vista menos, se pôs de esguelha, para que o defeito do corpo se atribuísse à falta da pintura.
Esta história atribui Quintiliano a Timantes; Ludovico Domenico, Protógenes; e Plínio, Apeles; quem quer que fosse andou avisado, po rque o pintor tem licença para fazer sombras, escorços, e pôr em tal
Se por ser torto Aníbal lhe desse outro capitão combatendo em estacada uma ferida pela parte do olho cego, bem era que se parecesse na pintura do feito: porque se devia preferir o valor e ânimo de tal capitão a qualquer defeito natural ou acidental corporal, mostrando o jeito do olho; mas sendo caso que não possa ser, encubra-se o defeito da tal pessoa.
A pintura de Antíoco em perfil escondida a falta do olho lhe agradou sobremodo; as pinturas de Díocles e Scope, dos quais um o lisonjeou pondo-lhes ambos os olhos, e outro o retratou ao natural, o desgostaram.
Quando Cipião pôs no Capitólio em um painel a sua vitória asiática, encolerizou-se notavelmente seu irmão Cipião Africano, porque nela lhe cativaram um filho: L. Scipio tabulam uictoriae suae Asiaticae in Capitolio posuit: idque aegre tulisse fratrem Africanum tradunt iratum haud immerito, quoniam filius eius illo proelio captus fuerat:
Plínio,
Teve Péricles a cabeça longa desproporcionadamente, e por encobrir tal deformidade todas suas estátuas se formavam cobertas com capacetes: fuit Pericles capite
E assim em quanto a arte der lugar, se emendará a falta da natureza, e as partes baixas ou feias, ou se deixem ou se emendem.
A pintura descobre nuas e retrata despidas as pessoas vis e humildes para mostrar a arte, mas cobre os nobres com propriedade de vestidos, segundo sua arte e seu decoro.
As pessoas porém que a pintura escreve nuas vigia sempre em sua honestidade, e assim as partes vergonhosas do corpo, por terem pouca graça, as cobre ou com panos, ou com folhagens, ou com as mãos.
Não basta na pintura engenho e juízo, é-lhe também necessário o conhecimento e a notícia da maior parte das artes e ciências.
É-lhe necessário a Teologia para seguramente poder descrever as coisas de Deus, dos anjos e dos santos; a História sagrada e profana para não enganar nos costumes das pessoas, ou dos sucessos; a Anatomia, para em seus lugares colocar os músculos, sem aleijar a figura; a Filosofia para exprimir muitos acidentes naturais; a Geometria para lançar as linhas; a Arquitetura para perfeitamente divisar as fábricas; a Cosmografia para representar os lugares; a Astrologia para demonstração das imagens do céu; a Milícia para desenhar os sítios das províncias e as plantas das fortalezas; a Prospectiva para luminar e lumiar as figuras, fazer-lhes os escorços e pôr em ato os movimentos.
Zêuxis e Polignoto, sendo pintores, foram filósofos, hosce pictores, philosophos fuisse, minimeque temere exercuisse picturam: Máximo Tírio, sermo 16, veja-se.
Todas estas ciências competem ao poeta.
Metrodoro Ateniense não foi menos filósofo que pintor e por tal foi digno de ser mandado a Paulo Emílio, depois da vitória de Perseu, pedindo o mesmo um filósofo para mestre de seus filhos e um pintor para adornar seu triunfo.
Na parte que fica à experiência deve o bom pintor vigiando
Quando naturalmente não possa avantajar-se deve valer-se da imitação de muitos, seguindo ao pintor Eupompo, que trazia em dizer que para na sua arte bem imitar se deviam recolher as perfeições de muitos, e de cada um a parte em que fosse mais único, como de um o desenho e a proporção; de outro a boa feição e a graça; deste a delicadeza das carnes e a perfeição do rosto; daquele a elegância no vestir e daqueloutro a viveza das cores, e assim do mais, porque não tem cada um per si todas as excelências junto: aperfeiçoou-se a pintura não em uma só pessoa, nem em uma só idade, mas em muitas e muito pouco a pouco.
Os coríntios da sombra do homem tiraram seus princípios.
Os egípcios foram os primeiros que com linhas escreveram em torno o corpo humano.
Ardices Coríntio, e Teléfanes Siciônio exercitaram a pintura sem cores.
Veio depois a arte a distinguir-se a si mesma e a afirmar as medidas, com as diferenças das cores, dos lumes e das sombras.
Cleofanto começou a colorir.
Apolônio inventou o pincel.
Êumaro Ateniense distinguiu o macho da fêmea.
Cínon Cleoneu achou as imagens oblíquas e os torcimentos de corpos, variou os rostos em diversas feições, articulou os músculos, inchou as veias e encrespou as rugas dos vestidos.
Polignoto pintou primeiro as mulheres com vestido lúcido e com mitras de várias cores e deu princípio a abrir a boca e mostrar os dentes.
Zêuxis começou a reforçar as eminências do relevo e deu às coisas
Parrásio ensinou a pintar com simetria, expressou a graça do rosto, a elegância dos cabelos e foi excelentíssimo no rematar as linhas extremas.
Apeles finalmente venceu assim os passados como os vindouros.
Além disso nem todos foram totalmente perfeitos, a muitos faltaram muitas coisas, e uns foram únicos em uma e outros em outra.
Zêuxis levou a palma no pintar frutas, Parrásio nos contornos, Apeles nos retratos, Anfião na disposição, Aristides nos afetos, Asclepiodoro nas medidas, Pereico nos brutos e feras, Ardeai nos países, Páusias nos meninos, Eufranor nos heróis, Eutoquides nos carros, Soso nos solos, Nícias nas mulheres e nos cães, Cláudio nas cenas, e Turpílio nas figuras pequenas.
Daqui veio que Zêuxis havendo de fazer um painel aos agrigentinos, que haviam de pôr no templo de Juno Lucínia, olhou primeiro suas donzelas nuas e fez eleição de cinco, de que escolheu o mais formoso: Virgines eorum nudas inspexerit, et quinque elegerit, ut quod in quaque laudatissimum esset, pictura redderet: Textor na Officina, 2
Há-se o pintor de exercitar sem fadiga e sem moléstia, porque facilitando descansadamente em si mesmo o pincel e adquirindo maior habilidade, vem a refinar a perfeição do hábito.
De o Parrásio conta Eliano,
Deve pois exercitar-se, como Apeles,
Apelle autem fuit perpetua consuetudo nullum diem quibuscumque negotiis occupatum, praeterire quin lineam aliquam duceret, ducendo exerceret artem.
Textor na Officina 2
Leão Batista Alberti nota ser tão suave o tempo em que se pinta que se não sente, mas o uso mostra que sendo demorada a continuação se desalenta o espírito e desmaia o pincel.
Na parte que pertence à diligência deve o pintor empregar todo seu estudo em limar suas obras, mas nunca com tanta indústria que fiquem mais do necessário retocadas e lambidas; não há de polir com demasiada paciência, mas facilitar-se com liberalidade e de modo que nunca apareça a arte, porque sempre se deve envolver em uma negligência artificiosa.
E daqui procede que o mesmo Apeles repreendia a Protógenes por gastar demasiado tempo em suas figuras, retocando-as com viciosa continuação, perseverança impertinente e afetação cuidadosa, não sabendo levantar a mão deles: quod manum ille de tabula nesciret tollere, memorabili praecepto, nocere saepe nimiam deligentiam: Plínio,
Para evitar semelhantes faltas, e seguir o bem natural e as regras da arte, se permite ao pintor longo espaço de tempo, não se obrigando nunca a pintar de repente, porque
Refere Plutarco De Educandis Pueris, que um pintor ignorante na arte mostrara a Apeles uma obra de sua mão feita de repente e que Apeles lhe respondera que assim o entendia, mas que se maravilhava como não fizera mais: Hanc modo pinxi, dixit, cui Apelles, et si taceas, inquit, hanc illo depictam esse intelligo.
Demiror autem quonam pacto non plures huiuscemodi depinxeris.
Gloriava-se Agatarco pintor de repentino e tachava Zêuxis de vagaroso, o qual lhe deu em resposta: ego pinto longo tempore.
Ea enim quae cito fiunt, cito pereunt; contra quae paulatim exacta cura absoluentur, alitem ferunt: Plutarco em Péricles.
Protógenes (relata-o Eliano
No tempo que mais se aplicar se lhe proíbe o muito comer, porque como diz São Jerônimo a Neoposiano: pinguis uenter non gignit sensum tenuem.
De Nícias conta Eliano,
E de outro relata que se mantinha e passava com alguns tremoços molhados na água.
Não basta isto, porque é necessário que tenha o pintor consigo sua obra, e passado algum tempo a torne de novo a especular e ver como coisa estranha, e porque, como tem Lope de Vega:
Imitara a Apeles, que pondo suas pinturas em público, se escondia ouvindo, considerando as falhas que lhe impunham e depois tinha emenda delas: Plutarco, De Cohibenda Iracundia.
Conta Anônimo que perguntando-se a um pintor famoso quem fora seu mestre, apontara com o dedo para o povo: sentiens se ad multitudinis iudicium pingere, et obseruantem quid quisque probaret, et improbaret artem fuisse com consecutum.
O ajudar-se do povo é de proveito, porque como nota Ludovico Tesauro sobre um soneto do Marino, na poesia e na pintura, qualquer homem, ainda que não professe a nenhuma delas, dá seu parecer em ambas.
É aviso aconselhar-se com os amigos e pedir-lhe desengano e haver o parecer dos que o não são, sendo insignes na arte, sem se dar a conhecer.
Com a observação
Contudo ela tem de divindade eternizar do modo que pode e assim os retratos dos mortos vivem uma longa vida por virtude da pintura: Leão Alberti,
Venhamos agora com a mesma ordem às mesmas três condições que devem concorrer no poeta.
Dissemos que para formar um bom pintor era necessário ciência, experiência e diligência, e submetemos à ciência o engenho, o juízo e a notícia das mais das artes.
As mesmas coisas competem à bondade do poeta: ciência, que se adquire com natureza ou engenho, e arte; o engenho deve ter em companhia o juízo ou a prudência; a arte abraça as ciências e as artes.
Experiência e natureza etc.
Que seja arte e que seja natureza,
Natureza significa propriamente a virtude do ânimo e natural habilidade nascida conosco e não adquirida com arte ou indústria; e como tem Possevino,
A arte é uma certa razão, via e guia de fazer, de dizer, de inquirir, e não sofre erro: Certa quaedam dicendi, agendi, faciendi, inquirendi ratio, uia, dux, et comes est, hominem errare non patiens: Viperano,
Define-a Aristóteles hábito factivo com razão verdadeira e que a arte e a natureza sejam no obrar diferentes, porque a arte começa de fora e a natureza de dentro, e que o que faz nos corpos a natureza faz a graça na alma, e que a vantagem que tem a alma ao corpo tem o engenho à arte.
Sem engenho têm muitos por impossível ser poeta e querem que nasça e que o orador seja feitura da arte.
Poetam nasci debere oratorem autem fieri posse, id est, debere neminem ad poeticam prouinciam aspirare, qui non sit natus ad carmen, et qui non habeat diuitem uenam:Iodoco Badio sobre Pérsio.
Outros assentam, como Lope de Vega, ser a essência da poesia a arte:
Os que melhor entendem concordam ser o engenho e arte juntamente de necessidade do poeta.
Não se nega poder muito no poeta o engenho e ter mais força neste que nos demais estudos, mas também se concede haver-se de aprender a arte, e com bom fundamento, porque ainda que haja muitas coisas que se não alcançam se a natureza as não ensina, contudo podem essas mesmas coisas dadas pela natureza fazer-se mais perfeitas com a arte.
Os que confiados na natureza, sem conhecimento da razão e doutrina, se aplicam a algum estudo, muitas vezes levados de um ímpeto e de um movimento do engenho erram, e se seguissem a arte, que é a guia, sempre na verdade acertariam.
E assim vem a ser necessárias à poesia a arte e a natureza ou engenho, o que mostra Lope de Vega na sua vida escrita a Cláudio:
E aqui vem o que Máximo Tírio traz no sermão 16, quando diz: a poesia de Homero é semelhante à pintura de Polignoto ou de Zêuxis.
Duas coisas requer a pintura: arte e engenho.
A arte é necessária para que as figuras e os corpos guardem semelhança de verdade; e o engenho para que a disposição composta e bem ordenadas das linhas faça imitação da formosura.
Duas coisas requer a poesia: poética, que atende ao retrato e imagem da fábula; filosofia, que toca ao amor da virtude e conhecimento
Até aqui Tírio.
Tão raro foi em ambas estas partes Homero, que não se determina Aristóteles se excedeu siue propter artem, siue propter naturam: partícula 51.
Não basta porém ao bom poeta engenho e arte, é necessário que os acompanhe juízo, como tem Pontano, ou prudência, como lhe chama Scaligero.
Nenhuma coisa há na poesia de tanto momento, nem de maior louvor, nem de mais admiração que o juízo.
Tem em si dificuldade não pequena por apenas o poder ensinar a arte o que nasce de ser dádiva e benefício da natureza.
Não é familiar a todos a agudeza do juízo e nem todos os dotados de engenho o possuem.
Virgílio e Ovídio foram iguais no engenho, no juízo foi superior Virgílio não só a Ovídio, mas a Homero, e Homero avantajou a Virgílio na bondade de engenho e de natureza.
Assim, antes de escrever, como no escrever, como depois para emendar, sempre há necessidade de juízo.
Serve ele (como tem Pontano, Institutio Poetica,
Nisi etc.
Vê a Pontano.
É o juízo pai do decoro e regra de conveniência e observação dos costumes, em que assim na pintura como na poesia se considera a pessoa, o tempo, o lugar
E ainda que fica dito por voto de Pontano que Virgílio teve vantagem no juízo a Homero, e que Homero teve melhor engenho que Virgílio, contudo temos a Homero por de mais raro juízo na consideração do decoro particular: a Ulisses atribui a indústria; a Diomedes a confiança; a Teucro a arte de setear; a Mnesteu a arte de ordenar esquadras; a Nestor o bom conselho; a Áiax a fortaleza e
O juízo, ou a prudência, consiste assim nas coisas como nas palavras, em que sempre deve haver disposição concertada.
Ouçamos a Scaligero
E há-se de advertir, ut imitatio rem sequatur: constantia imitationem comitetur, nisi cum inconstantem quem piam finxeris:Scaligero ut supra e veja-se.
Com a prudência e com o juízo se evitam ações mal ordenadas, torpes e prejudiciais, sabendo falar e sabendo calar.
Res duas in omni actu spectet orator, quid decet, quid expediat.
Expedit autem saepe mutari ex illo instituto, traditoque ordine aliquid: et interim decet, ut in statuis, atque picturis uidemus uariari habitus, uultus, status:Quintiliano.
Nem em palavras, nem em obras se deve prejudicar a pessoa a quem se deve respeito.
Homero com juízo e tento deixou de seguir a guerra final de Tróia, por que constrangido da verdade não tivesse ocasião de dizer a morte do seu Aquiles por mão de Heitor e o desbarato dos seus gregos, como tem Díon Prusiense, oratio 10.
Por isso Polinices no primeiro de Estácio, devendo forçosamente fazer relação de sua
Se ao poeta ocorrer contar caso amoroso diga com honestidade e nos feitos a leve por alvo.
Que elegante e honestamente disse Virgílio o que Enéias passou com Dido colhendo o fruto de seus amores!
Fique por máxima em matéria pouco casta si quid fabulae constitutio secum afferat turpitudinis, uel leuiter illud tanget, uel dissimulabit acute, uel sapienter obscurabit.
Neque dum uitia reprehendit, obscaenis uocibus utatur, quae memoria uoluptatum animum turpiter afficiant:
Viperano,
Homero pinta a Ulisses quando escapou do naufrágio e apareceu às donzelas e às filhas de Alcínoo com as partes vergonhosas cobertas de folhas.
Segue-se-nos mostrar como todas as ciências são necessárias ao poeta, como o são ao pintor.
Disse-o Possevino na Bibliotheca Selecta
De Homero refere Plutarco ser doutíssimo em todas as ciências e o mesmo diz o padre Lacerda de Virgílio, de quem disseram que fora, Pierio Valeriano,
E com razão, porque como não há coisa que se não sujeite à imitação das ações humanas, uidentur "
É necessário ao poeta o conhecimento das coisas que a sagacidade humana traçou para o bem e ornamento da vida.
E todas as artes e ciências se inventaram para aliviar, ajudar e aperfeiçoar a natureza dos homens, e assim não há dúvida que de justiça se lhe devem.
Viperano ut supra.
Entre as ciências que ao poeta são necessárias tem o primeiro lugar a Filosofia.
Quemadmodum (Plutarco nos Morais) suauissimae sunt carnes, quae non sunt carnes, et iucundissimi pisces, qui non sunt pisces, ita maxime delectat admixta philosophiae poesis, et poesi admixta philosophia.
E desta opinião é Máximo Tírio, que quer que a filosofia e poesia sejam uma mesma coisa com dois nomes, mas com simples substância, como é a luz por respeito do sol, e por isso define a poesia filosofia antiga em tempo, de som numerosa, de argumentos fabulosa: e a filosofia, como tem o mesmo, tem menos idade e é mais solta de números e nas razões mais clara.
A Política é própria da epopéia e da tragédia; a Econômica da comédia; a Ética da sátira e consecutivamente pertence a todas as espécies de poesia, pois com ela se descrevem as perturbações e afetos do ânimo, os costumes e inclinações de que procedem as ações, que a poesia imita cuidadosamente: Quamobrem ea philosophia, quae de rebus bonis, et malis, de fugiendis, et expetendis, de naturis hominum, et moribus est, tota est perdiscenda poetae humanarum actionum, quae aut uitio, aut uirtute discernuntur, imitatori: Viperano,
Bonus Poeta Gramaticae primum, et metricae facultati dat operam: tum Eloquentiae, Politicae, Astrologiae, Geographiae, ac Philosophiae propè uniuersae, Historiae, Medicinae quoque, et Agriculturae interdum ac Theologiae: Paulo Bênio, in Aristoteles Poetica,"fl.462".
Que seja isto verdade é prova ver nos poemas e principalmente epopéicos tratar de Deus, dos anjos, dos cursos das estrelas, das regiões do céu e da terra, dos mares, dos rios, dos montes, da noite, de manhã, do dia, do arco-da-velha, dos trovões, dos animais, das plantas e de outras muitas coisas naturais; prova também ver que descreve e imita coisas artificiosas, como cidades, templos, portos, teatros, jogos, esquadrões, combates, guerras, triunfos e coisas deste gênero: Bênio ut supra.
E como em comum de todo o poeta tem Viperano,
ut eum si omnium sensibus, et mentibus satisfacere uelit, uniuersam doctrinarum rationem comprehendisse necesse est.
Nihil ergo dices Poetae licebit ignorare?
Nestas ciências não entra o poeta como professor, entra como imitador de ações humanas e assim, Poeta delibat uaria, quibus poemata respergat moderate:Bênio, sobre a Poetica Arist. , fl. 462, fol. 549: Literales doctrinae attingendae quidem sint Poetae, sed commode, et parce, seu moderate usurpande.
E como tem Viperano,
O poeta tem necessidade da notícia de todas as ciências e artes, mas visto não poder o engenho humano alcançar tanto, permite-se-lhe sabê-las sumariamente e possuir no ânimo um compêndio de que possa colher, quase flores, os conceitos, para com eles aformosear sua obra; e concede-se-lhe que errando em qualquer ciência ou arte, não sua, seja o tal erro digno de perdão:
Sin uero in his deliquerit, quae sunt aliarum artium propia leuiorem feret culpam errati: quia minus artis suae ignoratione, et dessidia premetur.
Non enim se doctrinarum disputatorem, sed humanarum actionum imitatorem profitetur.
Non secus pictori uitio est in conformandis lineamentis, et pigmentis aspergendis errare: qui in his rebus quae ad aliorum facultatem pertinent, si quid ignorans commiserit, justiore excusatione defenditur: Viperano,
Entre muitas causas que a poesia tem para ser dificultosa é a união das ciências, porque sem elas fica seca, nua e descomposta; e delas lhe serem necessárias mana não se sofrer meão poeta: Não sofre a poesia mediocridade, isto é, o poeta há de ser excelente em sumo grau.
Boas são as ciências, mas não são de excelência na poesia.
Se o poeta houvesse de ser famoso em todas as ciências, seriam os erros nelas cometidos iguais aos seus, mas são por acidente os da poesia per si e o mesmo corre nos pintores: de que vem a serem raros uns e outros, e infinitos os que presumem e intentam ganhar a palma.
Proinde et bonos poetas, et bonos pictores miraculae quaedam esse naturae: Possevino ut supra.
Que a poesia não sustente mediocridade é de Horácio, mediocribus esse Poetis; non homines, non Dii, non concessere columnae, e que sejam inumeráveis os que exercitam o pincel, digam-no casas de lavradores, e que os ruins poetas sejam certos em toda a parte é de Marcial,
Que fosse poeta de imortal memória Homero não tem necessidade de prova, e que fosse pintor famoso, além de o dizer Plutarco, livro De Homero,
Que na Eneida fosse excelente pintor Virgílio mostra bem Scaligero,
Nestas pinturas são poetas mas poetas pintores necessitados de muita arte e de muita ciência, que eles possuíram.
Filósofos foram os poetas antigos; desprezando depois animosamente as coisas naturais, empreenderam aquelas a que a mesma natureza não se atreve.
Baste isto no pertencente à ciência e suas partes.
Passemos à experiência,
Tem obrigação o poeta de se exercitar todos os dias, como consta fazerem todos os bons, e em particular Virgílio, o qual elegia a manhã; e por à sua natureza e à sua arte se unir esta experiência e perseverança, foram suas obras perfeitas: mas porque ordinariamente o poeta não pode ver e seguir a perfeita razão e o acertado uso tem necessidade de escolher os mais insignes para imitar, Viperano,
E assim imitando obras alheias e as da natureza, fica com nome de verdadeiro imitador.
Ex animo itaque qui trahunt suo, et qui ex multis aliorum in eloquendo uirtutibus unum quasi corpus conficiunt, ii optime dicuntur imitari, non furari, aut mendicare: Pico a Bembo, De Imitatione.
Qui sine multa exercitatione, sine deligenti optimorum poetarum imitatione (ut alia non pauca praeteream) se magnam laudem adepturum sperat, is non tam imprudens, quam impudens censeri rite potest: Pontano, Institutio Poetica,
A poesia teve princípios rudes, e primeiro que se perfeiçoasse passaram muitos
Eurípides foi trágico, Aristófanes cômico, Píndaro lírico, Orfeu himnógrafo, e cada qual teve em seu particular sua excelência; veio Homero, e conforme Aristóteles, avantajou-se em tudo a todos: mas também se se considerar a crítica não faltam defeitos que os afeiem e assim deve o poeta tomar de todos o melhor, exercitando-se neles com a pena na mão, estudando de dia e de noite.
A experiência e o exercício fez poeta a Torquato Tasso, o qual, como conta em sua vida João Batista Manso,
Verdade é que foi dotado de divino engenho, mas naturalmente estéril no compor, e assim, como se colhe de suas cartas, quanto compôs e especialmente em verso, foi mais por força de contínuo estudo que por aptidão de inclinação natural.
Perguntando-se ao mesmo Tasso que era necessário para ser bom poeta, respondeu, "perseverança", propondo-se-lhe por mais duas vezes o mesmo, respondeu, "só perseverança".
Afrânio poeta disse que a sabedoria era filha do uso: Aulo Gélio,
Segundo Platão, a arte, a natureza, e o contínuo estudo, é necessário para se um homem fazer assinalado em sua profissão; aprovou isto depois Teônides dizendo: natura facit habilem, ars uero facilem, ususque potentem.
Nenhuma coisa grande se fez de repente, mas por muitas e diversas vezes e com larga experiência; bem convém logo que a tenha o poeta.
A experiência não deve ser violenta, suave sim, estudar com modo e compor unido às forças da natureza, sem nunca a oprimir.
Estácio, como se sentia cansado do trabalho
Muitas horas contínuas se gastam poetando sem se sentir o trabalho, mas não se pode negar que se se excede no modo, posto que então se não sinta, sai a poesia frouxa e sem alma, e o corpo se debilita.
Em tudo é necessária a mudança das coisas, até na conservação da saúde é agradável: Cornélio Celso,
E a nosso propósito Plínio o moço,
A terceira e última condição do poeta é a diligência, ou aplicação, ou vigilância.
E assim deve nocturnis impallescere chartis: Pérsio, sátira 5, e ter-se contra o sono, sem lhe dar entrada: como de si conta Sêneca.
Esta diligência, ainda que se encarece, não há de ser demasiada: in omnibus rebus uidendum est, quatenus; magis enim offendit nimium, quam parum, in quo Apelles pictores peccare dicebat, qui non sentirent quid esset, satis:
Cícero, na Retórica a M. Bruto. E Quintiliano disse,
Deligentiam tuam in retractandis operibus ualde probo.
Est tamen aliquis modus: primum, quod nimia cura deterit magis, quam emendat: deinde, quod nos a recentioribus reuocat, simulque nec absoluit priora, et inchoare posteriora non patitur:
Plínio o moço,
Deve a diligência ser tão disfarçada que não mostre artifício, mas, desinet ars esse, si apparet: Quintiliano,
E para estas considerações se lhe concede largo tempo, porque com brevidade não saiu obra perfeita.
Gabou-se Alceste a Eurípides, ambos poetas trágicos, que em uma hora fazia cem versos, e que ele Eurípides apenas em três
Pedindo Estela a Marcial (ele o refere de si,
Radero: Nihil hoc uerius, uix enim meditati dignum aliquid aeuo condimus.
Sensit idem poeta noster, carminibus, quod de pictis tabulis Apelles; e mais abaixo: subitos uersus bullas esse inanes, anteque parentem plerumque mori male natos.
Baltazar Elísio gastou sete anos no seu poema da imaculada conceição da Virgem, e se fora menos escuro e sem tanta afetação de arte, fora o primeiro de sujeito divino em Espanha, e por isso se pode comparar ao Jalisso de Protógenes, a quem faltou graça.
Contudo, com a concessão de largueza de tempo é necessário temperança e sobriedade na maior aplicação, porque como tem Sêneca, epístola 15: copia ciborum subtilitas impeditur :
o homem comilão não pode ter bom engenho.
Plínio, De Natural Historia: minus ingeniosos esse, quibus uenter est pinguis , e Horácio,
L
Sobre estas condições se requer mais guardar por tempo suas obras para depois as ver com novos olhos e ver sem afeição os defeitos que as viciam.
Horácio dá por doutrina que nenhum poeta saia à luz
É também de muito interesse consultar amigos: Virgílio consultou a Varo, Ovídio a Propércio; e se o amigo não é fiel, melhor é mandá-las por terceira pessoa a homens doutos a quem não conheçam, porque como totalmente desapegados e desafeiçoados julgarão com mais rigor; e porque pode haver muitos, por não perder parte do crédito é acerto não se nomear o autor, como nota Turnebo a Francisco Olivario.
E todas estas coisas são necessárias, porque multa simul uno impetu corrigi non possunt: Martim do Rio in act. I, Thebaidem Senecae.
Se o poeta observar as três condições sobreditas, ciência, experiência e diligência, ficará imortal em suas obras, como refere Fálaris escrevendo aos hemerenses de Estesícoro: Tum ne cogitetis Stesichorum in mortuis numerari, etenim in poematis suis, quae communia cunctis hominibus fecit, superstes est, atque uiuit.
Presumiu esta eternidade de si Ovídio:parte tamen meliore mei super alta perennis.
Astra ferar, nomenque erit indelibile nostrum.
Não presumiu menos Horácio, dizendo: Non ego pauperum / Sanguis, parentum, non ego quem uocas / Dilecte Maecenas obibo / Nec Stygia cohibebor unda.
Vê a Luis Carrillo, Discurso da Erudición Poética,
Da pintura e da poesia eternizarem faz menção João Segundo: Felices artes, rabiem quae uincitis Orci / Atque aliquid fati demitis imperio.
E Ronsardo,
E não somente perpetua sua mesma fama, mas a dos que celebra, dando com uma mesma obra duas eternidades, como tem Platão e cita Scaligero,
E nestas coisas é a poesia superior à pintura, pois dura e eterniza mais, como doutamente mostra Luciano no fim do seu Diálogo das Imagens, em que
Será esta muito mais estável e durará mais tempo que alguma imagem ou de Apeles, ou de Parrásio, ou de Polignoto.
Esta mostra muito mais graça, por não ser formada de pau, de cera, ou de cores, mas por diligência e por indústria expressa das musas para este efeito invocadas, a qual sem dúvida alguma será entre todas as imagens perfeitíssima, mostrando em um mesmo tempo visíveis a formosura do corpo e a virtude da alma.
Até aqui Luciano.
Trazem este lugar Maçônio, na
A mesma vantagem na duração e perpetuidade do tempo deram à poesia Horácio e Ovídio, igualando a imortalidade suas obras.
Horácio,
Ovídio, no fim dos Metamorfoses:
A quem imitaram muitos séculos depois Ronsardo no fim de suas odes,
Ronsardo:
Ferreira:
Criam o poeta e o pintor de novo as coisas, imitando sempre ao mesmo Deus.
Temos evidência disto na descrição das fábricas mais sublimes, dos jardins mais idolatrados, dos montes nunca visto com tanta formosura dos homens, nem tão perfeitos etc., em quem a valentia do pincel e a excelência da pena mostram sua destreza: Poeta uidetur Deum imitari.
Nam ut ille ex nihilo res creat, sic iste paene ex nihilo confingendo admirabilia quaedam producit: neque res gestas historicorum more pronuntiat; sed diuina quadam, et singulari ratione nouas condit, earumque rerum, quae nusquam sunt, pulchriores effinget:
Viperano,
Nam quae omnium opifex condidit, eorum reliquae scientiae tanquam actores sunt: Poetica uero, cum et speciosius, quae sunt, et quae non sunt eorum speciem ponit, uidetur sane res ipsas, non ut aliae quasi histrio, narrare, sed uelut alter Deus condere:
Scaligero,
Mostra bem isto a origem do nome do poeta, o qual se deriva, conforme Boccaccio, de formo, ou fingo, e segundo a Scaligero,
Sed initio a faciendo uersu ductum est , donde o Credo tem factorem, id est, creatorem, tem o grego poeten: Serário, na
Foi Deus tão excelente pintor que nenhuma imaginação pudera alcançar a sombra de tanta perfeição; e desta tiraram os homens muitos poemas, com que a ele se quiseram assemelhar em sua criação, contrafazendo a bondade de semelhante obra; e assim podemos dizer que se Deus nos não dera tão perfeito painel, como é o do Universo, nunca o engenho humano pudera intentar arremedá-lo, nem recrear com sua escritura aos ânimos.
Vejamos pois este retábulo divino, dourado com infinitos caracteres de ouro que nele estrelejam, e de sua perfeição viremos em conhecimento dos poemas que o imitaram.
Várias e diversas maravilhas pintou Deus na criação do mundo e as mesmas conserva hoje em dia.
Primeiramente começou a fazer países, quando estendeu o ar, pendurou o fogo, ajuntou as águas, fundou a terra, aplainou as campinas, encurvou as montanhas, encovou os vales, adensou os bosques, recolheu as fontes, desatou os rios, espraiou os lagos e finalmente quando pintou quanto em si contém esta grande máquina universal.
Que lugares deleitosos ofereceu nunca aos olhos quadro flamengo com formosura de engano, que muito melhor com verdade real não manifeste à nossa vista este imenso e agradável teatro do mundo?
Deleitou-se também Deus de fazer brutescos, formando tanta variedade
Recreou-se algumas vezes em fazer festões.
Na verdura tanta cópia de flores, de folhas, de frutas, de espigas, de ervas, de plantas, de raízes e de boscagem.
Não se podem pintar mais formosas guarnições e mais vistosas folhagens, ou tecer mais ricos setiais, mais galhardos dosséis e mais galantes cortinas, quais são as que adornam esta espaciosa casa do homem.
Não se acham panos de armar de fina verdura em Lídia, ou panos de raz em Babilônia, ou tapetes e alcatifas em Alexandria que aos naturais ornamentos que se vêem espalhados pela terra não conheçam por superiores.
Quem há que veja o vermelhão da rosa, o lacre do cravo, o encarnado da papoula, a neve do jasmim, o amarelo da coroa-de-rei, a cor celeste da viola, o azul do linho florido, que se não maravilhe da sabedoria, e do estilo daquele grande tintureiro?
Fez Deus além disto, pintando fantástica e caprichosamente neste seu painel, monstros extravagantes, portentos extraordinários, e não só em feras, mas em homens, não só na terra, mas ainda no Céu, não só quantos cá embaixo vemos cada dia lançarem seus abusos a natura inferior, mas quantos desde o princípio do mundo lá em cima fixou o governador e senhor da natura.
Cá embaixo há folha 89
Deu-se depois a fazer desenhos de claro-escuro.
Provou também a iluminação, vede as abelhas, os mosquitos, as aranhas, as borboletas, as formigas, que são os corpos mais pequenos entre os viventes.
Não menos se mostrou douto e experimentado na plástica e na escultura, lavrando de relevo, antes a modo de pintor judicioso, o qual muitas vezes as mesmas figuras que há de colorir em tábua ou em pano reduz em modelo; ou de barro, compôs a estátua humana de limo e de lodo; e sobretudo retratou-se a si mesmo e fez muitos retratos seus e todos semelhantes e formosos, como é o Homem, o Anjo e o Verbo.
Até aqui Marino, Dicerie 1,
Há pintura mais excelente?
Esta nos escreve o grande cronista Moisés na sua sagrada cosmopéia, ou para melhor dizer, nos pinta no Gênesis; escritura ditada pelo mesmo Deus, e dela em Grécia se aproveitaram porventura Parmênides na sua Cosmogonia, isto é, nascimento do mundo: e Lino Tebano, como tem Laércio, também na sua
Contudo, como o tempo aclara e aperfeiçoa as coisas, veio Cristóvão Gamon, outrossim francês, e fazendo da pena espada o desafiou e mostrou com estocada a verdadeira doutrina das coisas criadas.
De Salústio e do Tasso nasceram em Europa muitos poemas, como foi o Essamerone do Passero, a Criação do Murtola, a Semana Divina de João Dessi, e outro castelhano que imprimiu em Roma ano 1612 e (como nota das jornadas do Tasso Ângelo Ingenheiro)
No prólogo ao leitor na Semana: Jettons en somme l'oeil sur le grand, et sur le petit monde, il n'y a pinceau humain qui nous le représente mieux que celui du Bartas.
E mais adiante: Voulez vous voir les louanges des vertus, les vitupères, et décris des vices, les vives descriptions de toutes choses, les tableaux de Nature naturante, et naturée, vous les avez vu.
E nas advertências ao leitor do mesmo Bartas: D'avantage, puis qu'il est ainsi que la poésie est une parlante peinture, et que l'office d'un ingénieux écrivain est de marier le plaisir au profit, qui trouvera étrange si i'ai rendu le paysage de ce tableau aussi divers que la nature même?
Culpavam-no de muito vários seus inimigos.
E que seja pintura o tem Cristóvão de Gamon: Vereis aqui uma paisagem, nesta paisagem a natureza, e nesta natureza diversidades.
Se há neste painel, como eu confio, alguma coisa por pequena que seja que nos possa agradar, persuadir-me-ei, ainda que ele não vá trabalhado perfeitamente nem saia de mão de mestre, que as cores vão nele bem assentadas, suas miscras mui artificiosas, os parergos e ataviamentos do mais necessário sobremodo esquisitos, as sombras admiravelmente observadas, e que não carece da perspectiva, das proporções, nem da contornação e ordem da obra: até aqui Gamon falando do seu poema da criação do mundo na dedicatória.
Bem se disse logo que da pintura da mão divina saíram poemas, e bem concluímos também ser a mesma pintura poesia, e que vem quase a ser o mesmo poesia e pintura e pintura e poesia.
E que uma e outra é verdadeiro retrato do Universo e que sem sua formosura não recreara tanto.
E quando tudo isto não bastasse, basta-nos provar que o mundo era pintura, e agora provamos como a poesia de Ronsardo é retrato do mesmo mundo, como nota em sua vida Cláudio Bineto,
De todos os poetas que houve uns ganharam a palma na epopéia, outros na liródia e assim dos mais; mas
Mostra-nos isto bem sua eloqüência diversificada de tantas variedades e que por inteiro imita a natureza, mãe de todas as coisas.
E mais abaixo: pode-se chamar o corpo das obras de Ronsardo um pequeno mundo perfeito e acabado com a formosura de todas suas partes em sua diversidade: tanto imita o mundo natural.
Porque assim como este de um lado se mostra fértil, abundante e viçoso de ricas serras, esmaltado de formosos e floridos prados, a quem muitas ribeiras e fontes regam e entretalham; e logo o cerca e cinge o grande mar, que realça e exalta sua formosura: de outro lado aparece denso e verde-escuro com tantos bosques, florestas e defesas, estéril em terra baldia e charnequenta, seco com areias, deserto com rochas e montanhas, causa deste todo ser mais perfeito em sua variedade: assim se mostra o divino gênio da poesia de Ronsardo, a grandeza e venerável majestade de suas concepções, a variedade de seus enlaçamentos poéticos, com que ele enriquece, como de franjas e passamanes, suas divinas obras, a facilidade inimitável de seus versos; aqui é florido e copioso; ali seco e tosco; aqui redondo e abreviado; ali elegante e polido: ora usando do estilo grande e ora do meão: agradável em comparações industriosas e naturais, estudioso na viveza das descrições, e em todas estas coisas sempre tão igual a seu sujeito, e assim mesmo, como dissemelhante e diferente na variedade de invenções e de argumentos, representando juntamente todas as musas, que têm diverso e diferente rosto, no qual contudo se
O mesmo se pode atribuir a outros poetas.
E se a alguém parecer pouca vantagem em tantos poemas de um só poeta, mostraremos agora ser mundo a epopéia, a qual por constar de variedade é justamente comparado ao mundo, ou para melhor, é mundo: porque assim como no (veja-se a Tasso, Discurso Heróico,
Assim do mesmo modo forma o excelente poeta (o qual se chama divino porque assemelhando-se em suas obras ao supremo artífice vem a participar de sua divindade) a sua epopéia, em que quase em um mundo pequeno se lêem ordenanças de exércitos, batalhas terrestres e navais, cercos e assaltos de cidades, escaramuças e desafios, justas, descrições de fome e sede, tempestades, incêndios, prodígios.
Nesta parte se acham concílios celestes e infernais; naquelas vêem rebeliões, discórdias, errores, venturas, encantamentos, obras de
Até aqui Tasso ut supra.
O mesmo pensamento tem Bênio na Comparatione, Discurso 5,
Pelo que assim como este universo, posto que seja um, manifesta no largo celeste seio tanta e tão admirável variedade de esferas, lumes e movimentos; e representa, como em pomposa cena, nos elementos, além da infinita multidão de animais, ardentes raios e fogos, úmidos vapores, nuvens variadas e tintas de mil cores, e em particular a terra, a qual juntamente com os viventes abraça bosques, prados, fontes, rios, com encerrar no mais escondido seio as pedras preciosas, o ouro e outros vários metais e mistos; assim a epopéia, com ficar uma, põe diante dos olhos cidades, exércitos, batalhas, armadas, navegações, tempestades, cercos, encontros, tomadas, e para que o diga em uma só palavra, várias e quase infinitas formas e venturas.
Até aqui Bênio ut supra.
E que a epopéia tenha em si esta variedade e seja retrato do universo, além de o mostrar aos olhos sua leitura, o disse claramente Máximo Tírio de Homero, que viu tudo: Ille quae in caelo mouentur, quae in terra"
Ut omittam politica, economica, quae ad bellum, quae ad pacem pertinent, nuptialia, rustica, equestria, nautica, artes quascumque, diuersissima uocabula, diuersas rerum species, lamentantes, gaudantes, lugentes, ridentes, bellentes, irascentes, epulantes, nauegantes.
E o mesmo se acha em Virgílio, cuja Eneida tem tudo e é, como tem Pontano nos Prodigamas
E prova-o com a tempestade do Livro 1, com o cavalo de Dido no 4, com a briga de Dares e Entelo no 5, e com a oficina de Vulcano com seus ciclopes no 7.
Explica-se o pensamento humano entre os doutos com vários modos, os menos usados são hieroglíficos e enigmas, mais em costume andam emblemas e empresas.
Declara-se também com medalhas, com seus reveses, e com brasões.
Todas estas coisas parecem manarem dos hieroglíficos.
Manifesta-se outrossim o pensamento humano com parábolas, provérbios, apólogos e sentenças, cuja escuridão procede em certa maneira do enigma.
Dos primeiros quatro modos trataremos um pouco ao largo, com o motivo de serem pinturas e poesias juntamente, dando o primeiro lugar de misto de poesia e pintura ao emblema, o segundo à empresa, que são ficções com linguagem e se permitem entre os poemas, o terceiro ao enigma, que também tem muito cheiro de poema, e o último ao hieroglífico, que só tem pintura e ficção sem linguagem e não é tanto poema quanto uma metáfora de uma coisa em outra.
Das mais coisas apontadas, com que entre si os sábios mostram seus conceitos, diremos de passagem quanto baste a dar notícia de suas diferenças e distinções, por se quererem levantar a maiores com a preeminência do enigma e do emblema: e para que venhamos ao essencial, começaremos do mais remoto, que é o hieroglífico, e dele passaremos ao enigma, e deste à empresa, e logo ao emblema.
Tem-se por certo que os egípcios e os caldeus, que tiveram universidade em Mênfis, antes do uso da escritura ou invenção das letras, usaram de imagens toscas e rudes, como figuras de animais, de estrelas, de ervas, de rios, de árvores, significando ou seus conceitos, ou os mistérios de sua religião falsa, a que chamaram Hyeroglipha Grammata, hieroglíficos, que é o mesmo que letras sagradas, que os latinos traduzem ignorabiles.
Inventaram-se, como tem Cornélio Tácito, para que as coisas santas e veneráveis fossem só entendidas dos letrados, que eram os seus sacerdotes: factum esse constat ne ab imperita multitudine mysteria, et arcana sapientiae, quam colebant, puris animis, ac manibus, facile profanarentur, sed ab iis dumtaxat intelligerentur, qui sacris iisdem initiati essent:Cláudio Minois in Alciato.
Fizeram os gregos caso desta invenção, e ainda que foram notáveis em letras a poliram e exercitaram e entre senhores foi de estima.
De hieroglíficos há larga menção nos antigos, em pedras, colunas, pirâmides e nos obeliscos de Roma temos sua evidência, e com mais facilidade em Pierio Valeriano, que escreveu deles; vê Crinito,
Seu fim foi representar com a natureza da coisa pintada o conceito de quem escrevia; e assim o crocodilo significava a luxúria danosa; a cola do pavão a inconstância das riquezas; a formiga a providência; a abelha ao rei; o céu pintado lançando orvalho, a disciplina ou a arte: ver Textor
Pela cruz (por que façamos menção de quem tanto devemos), como nota Crinito ut supra, se dava
E como tem Cláudio Minois in Alciato, de autoridade das histórias sacras e dos comentários de São Jerônimo: litteram Hebraicam Tau, salutis fuisse olim signum etiam paganis ipsis habitum; e um pouco abaixo: et certe Crux merito pro salutis nota usurpari caepta est; quod T literae, quod fuit olim absolutionis signum, uideatur respondere, si picturam, et lineas spectes:Cláudio ut supra.
Ver a Sixto Senense,
Estes hieroglíficos, letras dos egípcios em que misteriosa e simbolicamente se declarava a natureza das coisas humanas e divinas, eram verdadeira escultura em pedras e verdadeira pintura em pano, tábua ou parede; do que claro fica sua poesia ser pintura; e se se negasse haver entre eles poesia, se responde que eles ensinaram a Moisés, como em sua vida refere Filo, entre outras artes, a música, harmônica, rítmica e métrica.
Deste modo de escrever temos em parte algum uso, pois entre nós se toma a morte pelo acipreste, a paz pela oliveira, o engenho sempre verde pelo loureiro e pela hera.
Dos hieroglíficos tomaram motivo na Antigüidade varões insignes em armas para a invenção de seus brasões, cada um a seu modo, como se vê em Ésquilo
Vê Maçônio,
Estes brasões não tinham mote ou letra.
Estendeu-se este costume até hoje e conforme as ocasiões, ações, proezas, dão os nossos reis o brasão das armas a seus vassalos e no tal há muitas vezes letra.
Os varões eruditos, que com seus estudos se fazem nobres e gozam do privilégio de fidalgos, tomam o brasão que mais satisfaz a sua doutrina e as mais das vezes são empresas.
O uso dos brasões ou armas se exercitou sempre nos escudos, rodelas e adargas e daqui passou a edifícios, estátuas, medalhas ou moedas e seus reveses, nascendo, a meu ver, dos hieroglíficos, por ordinariamente não haver nas tais armas mote ou letra.
Nota.
As medalhas que os antigos lavraram e bateram não foram só para correrem por moeda, mas para louvor e exaltação das pessoas que neles se esculpiam e ficavam sendo, como estátuas, pinturas e poemas, como afirma Sebastião Eriço, ""Sopra le Medaglia Antigua.
E os reveses das ditas moedas ou medalhas declaravam algum nobre desejo, ou a memória de algum notável acontecimento com figuras de corpos, fingidos ou verdadeiros, animados ou inanimados, e algumas vezes com alguma inscrição ou título extrínseco: ver Garzoni, Piazza, discurso cxlviii,
Pintura pelas figuras, poesia pelas letras.
É enigma, conforme Gélio, uma questão escura, envolta e intrincada, e segundo Clearzo Solense é uma questão jocosa proposta para se soltar, ou para ganhar louvor, ou para fugir pena, a qual antigamente se dava a quem a não desenvolvia e desatava.
Usou-se na Antigüidade de dois modos, porque ou mandavam uns reis a outros enigmas, e quem com luz não manifestava os pensamentos neles encobertos perdia a aposta que se punha e quem a declarava tinha-se em conta de mais sábio; ou se punham à mesa dos mesmos reis e pessoas notáveis, também com prêmio, e pena, para os mofinos, e ditosos.
Seus grifos foram de muitos modos, porque ou consistiam na mudança e alteração de uma letra, ou de uma sílaba, ou de uma palavra, ou na extensão de muitas palavras, ou na confusão da coisa, como exemplifica Garzoni, Piazza, discurso cix,
O que tudo disse por diversa maneira César Scaligero (que deles fez livro particular),
A semelhantes rodeios chamaram grifos os antigos, Ambages eæ Gryphi dictae sunt ab antiquis: Scaligero ut supra.
E segundo a Crinito: Propter ipsam obscuritatem á Graecis gryphi, et aenigmata dicuntur:
Nós porém ao todo chamamos enigma, e às partes intrincadas e escuras, grifos.
Grifo é uma figura monstruosa, do meio corpo para cima de águia e do meio para baixo de leão.
Dizem que se cria entre citas e que defende o ouro que as formigas tiram das entranhas da terra e que trazem guerra com certas gentes que não têm mais que um olho, chamadas Arimaspas.
Pintou-a a alguns a Antigüidade no elmo de Palas ou Minerva; o que tudo em si tem doutrina.
Ter Minerva na cabeça grifos esculpidos significa ser necessário guardar nosso entendimento (que conforme a comum opinião tem seu assento na cabeça) das sofistarias e de doutrinas falsas e enganosas; por o ouro se entende o engenho, e pelos Arimaspas as sofistarias e falsos dogmas.
Constar o enigma de grifos é mostrar sua dificuldade; defenderem eles o ouro é dar a entender a moralidade que em si contêm; pelejarem com gente de um olho é dizer que para se entenderem bem importa ter dois e estes com vista aguda; e esculpirem-se no elmo de Minerva, deusa da sabedoria, é significar que os sábios os senhoreiam.
Gregos e latinos exercitaram em seus poemas variamente os enigmas e assim parece haver muitas sortes.
Aristóteles na Poética nos ensina uma
O uso de semelhantes enigmas na poesia é defeituoso, por ser uma pura metáfora e como tal se deve evitar.
Virgílio nas suas Éclogas introduz a Dametas e a Menalcas propondo uma pergunta dificultosa, ou pela matéria, ou pelo secreto, ou por tudo que em si contém, sem grifo algum: imitaram o Sannazaro na Arcádia e o Rota nas Piscatórias.
Em poemas dramáticos são enigmas estes dignos de imitação.
Além destes modos há também outro usado de gregos, que é expressar o nome da pessoa por confundir o sentido da escritura, descrevendo as figuras das letras que entram no tal nome: há exemplo no Teseu de Eurípides, no Telefo de Agatão entre gregos, e entre italianos na Pentesiléia de Braccolino.
Daqui nasceram, se me não engano, os anagramas, tão exercitados em França, que abraçam o nome, ou pensamento da pessoa com diferentes palavras, mas com as mesmas letras: vê Garzoni, Piazza,
Semelhantes enigmas são os que se introduzem dentro dos poemas e não é pouco conhecê-los; venhamos aos que fazem corpo de per si.
Os enigmas dos gregos eram uma
E como é o de Platão, relatado por Crinito:
E exercite-se o engenho e tire-se desta confusão claridade.
Nas armações que os devotos fazem pelas ruas de nossas procissões costumam pendurar enigmas com prêmios, os quais constam de figuras e de versos, consistem em grifos, e no enleio das coisas não examinamos sua bondade, por ora só dizemos que são um misto de pintura e de poesia.
O enigma, a parábola, o provérbio e o apólogo têm muita semelhança, diferem porém precisamente falando, ainda que a obscuridade é comum a todos, acidentalmente, conforme mais ou menos, e segundo a vontade dos que os usam e tomam: vê Martim do Rio, no prólogo Adagialia Sacra.
O enigma é muito escuro, é (como lá dizem) boca de lobo.
A parábola não tem tanto escuro, não é cercada de tanta cerração, semelha ao crepúsculo da manhã ou da noite: Santo Agostinho disse que era o enigma uma escura alegoria, e que aos poetas que costumavam misturar enigmas de fábulas, chamavam os 70 intérpretes, enigmatistas.
Tão intrínseca é a escuridade ao enigma que se se entender, em se propondo,
A escuridade do provérbio é mais extrínseca, porque quem o usa quer ser entendido de todos.
Parábola propriamente é narração de coisa fingida, quase feita, narrada para coisa futura, e é contrária à história.
O provérbio convém com a parábola, enquanto tem semelhança de coisa verdadeira ou feita com a coisa que se há de fazer; distingue-se porém não só por modo de narração, mas por modo de breve sentença, e pela maior parte propõe figurada e escuramente o que intenta, de maneira que em certo modo é uma breve parábola.
A parábola propõe-se como narração mais longa, o provérbio como documento vulgar, trilhado e breve: a escuridão do provérbio costuma nascer da metáfora ou da novidade da linguagem; a escuridão da parábola procede do profundo da matéria.
O apólogo difere da parábola tomado apertadamente, porque a parábola imita a história e narra coisas verossímeis; o apólogo ordinariamente conta com modo fabuloso coisas impossíveis, como colóquios de feras e animais, apotegmas de sátiros, loqui arbores, feras cum hominibus gemere, uerbis certare uolucres, animalia ridere
Difere também o apólogo do provérbio na grandeza, porque como tem Quintiliano, paraemia est uelut fabella breuior.
E isto baste para conhecer o enigma e coisas que o contrafazem e para saber o modo com que o pensamento humano se explica com mais ou menos claridade entre os varões de alto entendimento; mas passemos à empresa, na qual, por ser tão moderna que Paulo Iovio foi seu primeiro escritor, nos estenderemos.
Empresa, de voto de uns, é uma composição de corpo pintado e juntamente de mote, para dar a entender alguma particular proposta do homem; e de parecer de outros, a meu ver melhor, empresa é explicação de um conceito, feito por via de figura de alguma coisa natural, ou artificial, mediante a semelhança, acompanhado de breves e compendiosas palavras.
Suas partes são coisas e palavras, ou como outros dizem, figura e mote, que são o que vulgarmente chamam corpo e alma.
São tão necessárias que uma não serve sem outra e assim se devem ligar uniformemente.
E daqui nasce conhecer bem a imperfeição da empresa, em que o mote per si mesmo e sem se valer da figura explica bem o conceito, e em tal caso é a figura ociosa, como é, de opinião de Alexandre Farra, a de Múcio Colona, cujo mote era Fortia facere, et pati romanorum est, o qual expressa per si mesmo mais do necessário.
O mesmo se requer nas figuras, que não manifestem o conceito de modo que o mote seja supérfluo, porque sendo-o se cairá em três erros.
O primeiro que nenhuma diferença haverá entre estas figuras e os hieroglíficos, os quais naturalmente per si mesmos significam.
O segundo que o mote se poria sem fruto algum.
A empresa têm muitos para si ser de três sortes: ou hieroglífica, ou de cifras figuradas, ou simples e verdadeira.
A hieroglífica é a que conforme o uso dos egípcios se põe a figura pelo figurado, como o boi pelo trabalho, a lanterna pela vigilância etc., mas a esta lança fora a definição que demos, a qual a distingue dos hieroglíficos e dos brasões, que têm só figura sem mote, e a empresa tem mote e figura.
A de cifra figurada, como a de uma dama que ausentando-se-lhe o namorado lhe enviou num lenço uma pérola partida pelo meio, com umas continhas, fruto de ... a que chamam lágrimas de Moisés, e dizia conforme o seu intento: Pela partida lágrimas.
Esta sorte de empresa há também falta de mote, e como tal a não aceitamos.
A verdadeira empresa é aquela cuja figura se forma ou de coisas naturais, como de animais, de plantas, de aves etc., sem as tomar na significação hieroglífica e sem jogar do vocábulo; ou de coisas naturais, como edifícios, instrumentos de artes etc.
As compostas de coisas naturais são de mais estima que de coisas artificiais.
Assim umas como outras devem ter o próprio significado, que proceda
É condição da empresa, ut facile conspici, et dijudicari possit, si forte aliquid interjectum habeat: ut interdum sunt sydera, stellae, luna, sol, ignis, unda, nubes, siluae, rupes, speluncae, et alia innumerabilia: Cláudio Minois sobre Alciato.
E para mais breve, não seja a empresa tão escura que tenha necessidade de intérprete, nem tão clara que os ignorantes a entendam.
Quatro condições se requerem na figura da empresa para de todo ser perfeita: verdade, simplicidade, nobreza e proporção.
A verdade lança fora corpos falsos, impossíveis, imaginários ou quiméricos; porque não basta que com a figura da empresa se declare o conceito, mas convém que pela natureza da mesma figura fique ela provada, ao que não podem ajudar ficções falsas.
Lança também fora a figura
Ne qua humana forma, nisi admodum raro depingatur:
Cláudio Minois sobre Alciato.
Há muitas figuras que ainda que estejam em forma humana não a têm realmente, e as tais se dizem quase pessoas e se aceitam por boas nas empresas, tal é a de uma donzela que em a mão direita tem uma coroa de louro e na esquerda uma palma com a letra, Maxima sui, em que se ensina que a vitória maior é vencer-se a si mesmo; e posto que a tal figura é de mulher, não o é realmente, mas é quase pessoa e alegoricamente significa o para quê foi inventada.
A empresa é uma muda comparação do estado e do pensamento de seu autor com a coisa que nela é figurada e assim não pode ser boa comparação se não é de diversa espécie da coisa comparada e assim o pôr a figura humana em empresa é comparar um homem a outro homem; e na empresa não é louvável, e por isso não admite figuras humanas, e consecutivamente lança também fora as fabulosas.
E posto que príncipes e academias em Itália tomaram por empresa figuras humanas e fabulosas, como se pode ver no Ruscello e Garzoni, Piazza,
A simplicidade consiste, a meu ver, no apartar-se da multidão das coisas e no avizinhar-se à unidade e ainda que em muitas empresas parece haver multidão de corpos e figuras, bem considerado (se as tais empresas são perfeitas) se acha unidade, ou do sujeito, ou do agente, ou da espécie, ou da agregação: vê Panfilo Landi
Não só se requer unidade de figura, mas também unidade de conceito, por ser mais nobre que a multidão.
A nobreza
Nota: homens de singular doutrina elegeram empresas humildes, vis e ridículas com altos sentidos, como uma cabaça nadando, um cancrejo, uma lançadeira, um carvão, um caracol, um cadeado, uma rato na ratoeira e outras semelhantes, mas na verdade mais merecimento tiveram se foram mais nobres.
A proporção é que deve a figura representar a pessoa a quem se apropria e aplica a empresa, e para a representar convém haver entre elas qualquer proporção e analogia de semelhança, como deve haver na alegoria e na coisa significada com a alegoria; maiormente que a empresa parece ser uma alegoria pintada, e esta proporção ou semelhança se deve fundar em alguma semelhante propriedade e condição que se acha num e noutra, como fica dito.
Consiste a bondade do mote ou alma da empresa em união, brevidade, nobreza de palavras e proporção de significado.
Deve ser tanta a união do mote com a figura, ou da alma com o corpo, que com recíproco ofício expliquem juntamente folha
Sua brevidade é, conforme uns, não ter de três vozes para cima, e destas há uma de ser monossílaba, e segundo outros, excedendo este número permite-se meio verso, ou ao mais um verso inteiro.
Sua nobreza é ser de engenho afamado, em prosa ou em verso; mas em rigor não refuta o mote de própria invenção, porque como tem Cícero, as próprias invenções, quando quadram bem à matéria, são tão louváveis como as alheias.
Consiste a virtude do mote na proporção do significado, porque as palavras de que se formar hão de tomar-se na mesma força de seu autor, sem violência, de tal sorte que signifiquem com elegância a figura.
Os varões mais insignes tiram e compõem os motes de suas empresas do grego e do latim, e os que o não são tanto se aproveitam ou da língua materna, ou de outra que bem sabem, tendo sempre em si sentença aguda e compendiosa etc., como doutamente tem Cláudio Minois em Alciato: id autem fieri ab eruditis, uel iis qui a liberali, et polita literarum cognitione auersum animum non habeant, graece, aut latine commode solet: aut denique, si magis placeat, extera quadam lingua, idque sententia breui, arguta, graui, uel adagio, aut etiam hemistichio, integro uersu nonnumquam, qui uel recens natus, uel aliunde petitus sit, dummodo argutiarum aliquid, et salis contineat: doutrina digna de observação.
Deve também o mote
Qualquer que seja o mote deve expressar a qualidade da coisa pretendida e posta nas figuras, de modo que leve e suavemente firam todas a um tempo o entendimento e o ânimo de quem ouve ou lê o mote, requerendo-se para isso ler-se e escrever-se com a propriedade que pede o tal idioma, de que for.
Não é defeito servir uma figura em diversas empresas, contanto que sejam por qualidade e condição diferentes e que tenham semelhanças e conferências com vários conceitos, de modo que possa representá-los diversamente; antes, bem atentado, merece mais louvor quem acha e inventa mais comparações e conformidades entre a figura e a variedade dos conceitos que envolvem em seu entendimento: como vemos na figura do sol, usada em infinitas empresas diferentes, mas dos vários efeitos que dela nascem tomaram os excelentes engenhos ocasião de explicar a diversidade de seus conceitos.
Seja o primeiro mote: Dissipabit; o segundo: impollutus; o terceiro: discutit, et fouet ; o quarto: tu splendorem, tu uigorem; o quinto: unius splendor, alteri ardor; o sexto: non exoratus exorior ;
No que bem se deixa entender não ser defeso usar de uma mesma figura em muitas empresas, contanto que a semelhança, como causa formal, seja diversa: Casoni, Discurso Dell'Impresse,
Assim como a figura da coisa natural ou artificial tem várias semelhanças e por isso é acomodada a manifestar diversos conceitos, assim o mote em si mesmo separado de toda a empresa pode ter vários sentidos e por tal usar-se muitas vezes; antes, se bem se considera, se o mote tivesse uma só significação seria inútil, porque desta maneira a figura não serviria à expressão do conceito, bastando só o mote a significá-lo.
Pode servir de exemplo o mote Donec purgetur, o qual se usa em muitas figuras diferentes, como na da joeira com trigo; na do ferro abrasado; na da bomba tirando água e noutras semelhantes.
Meu.
De mais disto, uma mesma empresa e um mesmo mote na mesma pode ter diferentes conceitos e assim deve notar-se a qualidade da pessoa que toma para si a tal empresa, porque com esta consideração fica isenta de se dizer que é a mesma empresa já usada.
É exemplo a figura do monte Etna vomitando fogo do cume e com as fraldas e raízes cheias de neve, com mote: ambo in corde.
A qual empresa se pode aplicar a diversas pessoas, como à dama que tendo dois amantes a ambos entretém com esperança; ao estudioso afeiçoado às letras e às armas etc.
Verei de força a Casoni, Discurso das
Com as empresas manifestam os homens entendidos seus pensamentos ao mundo e fazem sem consideração a nosso intento um misto de poesia e pintura.
Passemos ao emblema.
Emblema foi um enlaçamento de pedras e esmaltes de diversas cores, como nota Budeo; latamente tomado, é tudo o que se interpõe em meio de alguma coisa, como parede, solo, vasos, taças, vestidos etc., por causa do ornamento; começou-se a introduzir nos vasos coríntios, conforme Plínio, logo passou às baixelas, fazendo-as de escultura, ou cinzeladas.
Dali se usaram os escudos nos chapéus ou toucados com título de medalhas ou camafeus, com figuras e motes, chamando-se por metáfora emblemas os versos que por empresa se sobrescrevem.
Tomado estreitamente, é uma composição moral que consta de título, figura e versos.
No título se mostra o intento, na figura com pouca clareza se dá a entender a moralidade, e nos versos vária e eruditamente se explica a figura ou figuras, que sempre devem ser bem achadas; o título deve ser brevíssimo, como é o dos epigramas; a figura deve ser uma, como também um o preceito moral pertencente a todos, e esta não importa se humana ou fabulosa, ou natural ou artificial: não é porém esta regra inviolável, porque também admite quantidade de figuras, contanto que se refiram a uma, como se vê na história de Ísis, em que intervém o asno, o que o guia, o simulacro da deusa e uma multidão de homens que a reverenciam.
Os versos fazem declaração da figura ou figuras com linguagem bem trabalhada e cheia de galas e flores da retórica; e finalmente, assim as coisas como as palavras devem ser ponderosas e escolhidas.
Todo o emblema deve ser sentencioso para bem público e namorar o ânimo ou com a novidade da coisa, ou com notícia notável de antigüidade.
Seus escritores são João Sabuco, Adrião Iunio, Aquiles Bocchio e é seu príncipe Alciato.
Escreveram na mesma matéria Guilhelmo Perrerio,
Muitos de bom engenho confundem temerariamente o emblema com a empresa, com o enigma, com a sentença e com o provérbio.
Verdade é consistir a força do emblema na empresa, diferem porém, bem como o homem e o animal, porque este se toma mais em geral e aquele mais em especial.
Não é o emblema enigma, bem que algumas vezes se pareça com ele, porque no emblema é mais patente a razão, por causa dos versos que o interpretam: o enigma é duvidoso e escuro em suas palavras, no que se vê algumas vezes cansar a entendimentos delicados.
A razão do emblema deve ser mais manifesta, de modo que se não deixe entender de nécios, nem moleste totalmente aos sábios: há de mostrar seu conceito como entre vidraças.
Não é tampouco o emblema sentença, ainda que as mais das vezes as tenha: difere o emblema, e a sentença, como as palavras e as coisas, ou como os sinais das coisas e as coisas signadas.
Não é o emblema provérbio, porque o emblema é coisa engenhosamente imaginada de algum bom entendimento: o provérbio é dito que anda na boca de todos.
Do que bem se infere errarem os que têm para si poder atribuir-se aos emblemas quaisquer sentenças, provérbios, símiles, apotegmas e histórias, e dever de qualquer coisa destas formar-se emblema.
O emblema e a empresa são muito parentes por constarem de figura e de palavras que tiram ao mesmo alvo; diferem porém na intenção e no modo.
E quanto à intenção, o emblema não deve representar mais que uma advertência moral, não determinada a uma só pessoa, mas pertencente a todas igualmente.
A empresa mostra somente a determinada proposta que o tal empreende fazer e de que tem constante resolução em seu ânimo.
O emblema de um particular tira uma advertência universal; a empresa aspira sempre a um particular e antes acena do que exprime perfeitamente, não deixando o emblema coisa por dizer que sirva à declaração da figura pintada.
Donde, assim como não convém usar das coisas particulares alheias, assim
Convém o revés da medalha com o emblema por ambos admitirem pessoas humanas, não só fabulosas, mas verdadeiras, e não só uma ou duas, mas muitas, com condição que representem um só corpo de uma mesma espécie, como exemplificamos com a história de Ísis, que é o sétimo emblema de Alciato, com título: Non tibi, sed religioni; e como se vê nas costas das medalhas dos imperadores, quando têm esculpido donativos ao povo, ou práticas a soldados, em que há multidão de figuras humanas.
Três diferenças há entre o revés da medalha e o emblema. Primeira, o emblema tem sempre intenção universal, o revés a tem particular à pessoa cujo retrato tem esculpido.
Segunda, o emblema, como contém advertência, olha o porvir; o revés, como atende ao louvor, que contém ações obradas, olha o passado.
Terceira, o emblema não se faz à honra, nem em louvor de pessoa alguma, mas para admoestação; o revés, pela maior parte, é para glória e exaltação da pessoa em cuja honra se fez a medalha.
Não há mais para que cansar nesta matéria, e baste o dito para notícia das coisas que usa o entendimento humano em se explicar e para conhecimento das advertências que o nosso pintor poeta deve guardar, quando se ofereça ocasião de exercitar seu engenho em